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- Continho
Enterrado em seus pensamentos, Diego via, mas não via a cena da rua. Até que teve uma coisa que o chamou a atenção. A cada 4 ou 5 pessoas que passavam, um pedreiro gordo pegava uma pela gola e pela cintura e a atirava na construção. Que diabo é isso? E ninguém dizia nada? Já tinha pego uns 3 quando Diego se aproximou. Ele não vai me pegar, vai? Dito e feito. Bastou chegar perto e o pedreiro gordo o catou e jogou pra dentro. Ainda mais essa! - Escuta aqui, meu filho... - Vai jogar! - Como assim vai jogar? - Você vai jogar. Foi aí que Diego olhou para dentro. Estava acontecendo uma partida de futebol improvisado na areia, num espaço minúsculo. Pessoas esquisitas jogando! E aqueles cachorros imensos observando calmamente? - Mas eu não sei jogar futebol! - Claro que sabe, hombre. Você é o Pelé. Continua... Rafael Torres
- Conto de Horror e Decadência
Miguel terminou o conto, publicou e fechou o notebook. Deitou e ficou naquela situação de tentar dormir quando se está sem sono. Contou carneirinhos, lembrou que tinha comido uma maçã e que maçã deixa a gente sem sono, enfiou a cabeça no travesseiro até que dormiu. Acordou com os bem-te-vis. Fez o café, pegou a geléia, suco, pão, e comeu. Abriu o blog. Quase 300 visualizações e 33 likes. Tava bom. Ele dormia muito cedo, mas o post não tivera muitas horas pra capturar pessoas. Só ele acordava às 5. Olhou pro celular. A luzinha piscava. Devia ser o Rafael. Seu irmão acordava bem tarde, se duvidasse nem tinha ido dormir ainda. Resolveu pegar o celular. 12 áudios. Porra, aquela mania do Rafael de mandar áudios. Ia escutar só o último. - Não adianta, não adianta mais. Eles já morderam... - ele falou com dificuldade, bem próximo do microfone do celular. Porra, Rafael. Ainda manda um áudio enigmático? Tá bom, vamos ouvir do começo. - Ei, eu vi que publicou um conto. Leio já. Mas já vou criando o post pras redes sociais. Me manda aquela imagem. Blip! - Escuta, tu publicou um conto falando sobre o quê? Me dá um briefing rapidinho, porque a internet tá uma bosta. Mas eu tô precisando saber e te explico já por quê. Blip! - Miguel!... Miguel! Eu não acredito! Como é que tu publica esse conto? Por que tu fez isso? Tu até fala o nome! O nome! Tira do ar, tira do ar! - Sua voz tremia. Miguel pausou. Será que Rafael entendeu errado? Ou pior, será que ele entendeu tudo? Blip! - Eu vou lá pro papai, eles não estão atendendo. Porra. Por que tu tinha que me fazer levar aquela bosta pra lá??? Eu não acredito. Vai buscar agora! Eu disse pra eles que tu ia amanhã, mas tem que ir agora. Vai. Vai! Blip! - Eu não tô conseguindo táxi... - Rafael chorava - Tu sabe! Sabe perfeitamente que se eles lerem o conto vão ficar curiosos... E vão ficar arrasados. Uma pessoa arrasada do lado daquilo... é tentação. Ai meu Deus! Miguel se sobressaltou, porque ele costumava dizer "Ai meu Deux!". Deus não tinha gênero, blá blá blá. Blip! - Não tem taxi. Eu vou andando até a beira-mar ver se lá tem. Por que tu não atende? Miguel olhou o horário da mensagem. 20:13. Como não ocorreu a Rafael que ele estaria dormindo essa hora? Ele sabia perfeitamente. Blip! - Olha, Miguel - ele bufava - aquilo foi um presente. Um gesto que eu fiz pra ti. Mas eu acho que aquela coisa é do mal. Eu nunca concordei, eu sempre achei que era a raiz, o ponto mais essencial, da porra do mal. Blip! - Como é que tu escreve uma bosta dessa! - ele estava correndo - O que foi que deu na tua cabeça? Acorda, acorda! Blip! - Eu pedi pro Mário tirar do ar. Agora, precisa da tua senha. A senha! Se a senha for o que eu tô pensando... eu nunca mais falo contigo. Eu vou te matar! Blip! - Eu tô achando aqui uma coisa - e agora ele estava quieto, parado, calmo. Miguel ficou tão assustado que um frio percorreu todo seu corpo. Blip! - É o que eu tô pensando? Porque eu liguei pra lá. Miguel, o que você fez foi a maior de todas as... o maior mal... a maior perversão que eu poderia sequer conceber... Você foi escroto. Você... - e ele ouviu um barulho de pneu, um baque violento e esse grito que vinha das profundezas da terra. Miguel chorava. Em profusão, como nunca um ser humano havia chorado. Aquilo não era sua culpa. Não era sua culpa! Ou era? Não, não, não! Ele plantara uma isca, agora via claramente. E se ele pegasse o carro agora, correndo. Blip! - Não adianta, não adianta mais. Eles já morderam... Continua... Rafael Torres
- De Helena para Iara
Helena finalmente havia conseguido convidar Marcela para aquele bar, seu favorito, porque era gay (o bar) (e Helena). Só não entendia aquela moça na outra mesa, à sua frente. Acontece que, quando Marcela levantou pra jogar bilhar, ficou de cara com a moça. Ela sorria e dizia: "Ei!", "Psiu!", "Tu és especial, sabia?", "Sabias que és... eras bela?" E caía na risada. Completamente bêbada, Helena pensou. Helena olhava ansiosa por Marcela, mas seu olhar sempre caía na moça. Era até bonita. Na verdade, reparando bem, era muito bonita. Mandou um beijo, a louca. Tinha que parar de olhá-la. Ia aparentar interesse. Olhou para a mesa de bilhar e pensou se não devia ir pra lá de mudança, com cerveja e tudo. Marcela estava linda, e parece que rodeada de admiradores. Helena suspirou. Porque hoje ela pegava a Marcela. Quando olhou pra frente tomou um susto: a moça estava sentada em sua mesa. - Tenho um presente pra ti - ela falou um tanto infantil, estendendo uma coisa pra ela. Era um embrulho de folhas de bananeira. Cocada? Mas a gente dá cocada em folha de bananeira? Sem pensar, ela pegou e abriu. Rapadura. Rapadura? Ficou sem jeito. - Obrigada. Você que fez? - Foi. Fui eu que fiz. - ela não tinha mais a atitude infantil - Come! - e o seu semblante mudou, ficando levemente mais sério. Desse jeito ela se revelava seriamente bela. Mas de um jeito que tanto impressionou Helena que ela soltou um ui! A outra riu. - Tu és doida? És sim - ela chiava. Pernambucana. - Mas sério, come, que não é desse mundo. Helena buscou Marcela, mas não a achou. Devia ter ido ao banheiro. De repente, ao imaginar Marcela nua, acabou imaginando a pernambucana. Quase soltou outro ui. - Ei, olha aqui pra mim - e agora ela estava normal, como se tivesse ficado sóbria num instante - Prazer, Iara. - Prazer! Helena. - e deu uma mordidinha na rapadura. Era boa. Incrível. - Pois bem, mas você não quer que eu acredite que trouxe essa rapadura pra mim, né? - Quero... - e Helena teve que lembrar o que tinha dito. - Claro que não você você. Mas para uma pessoa especial que eu sabia que ia encontrar hoje - ela sorria. - E o que você quer dessa pessoa especial? - Quero. - e Helena teve que lembrar o que tinha perguntado. - Essa rapadura. Ela... - Helena resolveu ir ao ponto - Tem alguma coisa, não tem? Droga? Eu não uso droga. - Ah, mas não é nada sério. - e lá ia Helena tentar reconstruir o que perguntara. Então era uma droga, mas não era séria? Não era droga? Ou o quê? Sei lá... O que quer que fosse a estava deixando incrivelmente relaxada. Ela deu uma mordida bem grande, olhando Iara nos olhos. Ela tinha a pele branca, rosada, linda. Os olhos azuis tinham um charme incomum. E a boca, os cabelos, aquela mulher era perfeita. Mas tinha que se restaurar. A Marcela, cadê a Marcela? Estava na mesa de bilhar ficando com um menino. Ao diacho. Voltou a olhar para Iara e ela estava com a língua levemente exposta a encarando. Meu Deus, o que fazer com aquela língua. Foi quando percebeu que, na ponta, tinha um papelzinho quadrado. Pensando bem, uma vez na vida a gente tem que experimentar. Sem pensar, tocou a língua com a sua. Beijaram-se longamente. Dali a uma hora, já estavam fora, andando de mãos dadas. "Eu moro aqui perto". - Você não era de Recife? - Perto. - aí Helena desistiu de tentar refazer a pergunta na sua cabeça. Estava meio confusa, já. Andaram uns três quarteirões e entraram num beco. Estava tudo deserto. Helena não sentia nem um pouco de medo. Se pegaram mais um bocado e entraram em outro beco. Isso, de dentro de um beco. Ali, Iara simplesmente se agachou e fez xixi. E Helena reparou, no seu ombro, uma tatuagem. Espera, ela tá fazendo xixi? Helena só olhava o ombro, o xixi e a tatuagem. Era um boto rosa, perfeito, parecia uma foto. Helena sentiu a ironia e deu um risinho. - Quem fez foi um grande amigo meu. O maior tatuador do Brasil. - E se levantou puxando Helena. Ela sentia que deveria estar achando tudo muito mais estranho do que estava achando. Estava ficando era tonta. Bem tonta. A outra a conduziu por outro beco, esse bem escuro. Tão escuro que dava sono. Ela não via mais nada, só o contorno de Iara. Pediu pra sentar um pouco e apagou. Acordou com dia claro num quartinho. Pequeno mesmo. Só uma cama, uma cômoda e uma cadeira com um senhor de preto. Ele falou sorrindo. - Bom dia, Iara. - Seu sorriso era agradável. - Não vejo a Iara. - Ah, claro. Esqueci de lhe apresentar. Você é a Iara. Lhe apresentar? Fora apresentada a si mesma? Seu nome era Iara? Era Iara? Olhou para a porta que se abria e a outra Iara entrou, sentando-se na beira da cama e dando-lhe um beijo carinhoso. O homem saiu. Helena tinha muitas perguntas, mas não tinha muita vontade de fazê-las. - Você é igual o Boto Rosa? Ou é diferente? - Helena perguntou tentando se fazer casual. - Sou. - Ué? Helena ia vocalizar esse ué quando a outra continuou. - Você quer ficar comigo? Não vai acontecer nada de errado com você. Não sou como dizem. - E como dizem? - Dizem. - ai ai ai, pensou Helena... - Eu sou... Eu não sou o boto. - E quem você é? Qual o seu nome? É Iara? - Ainda não decidi. Mas Iara é você. Eu sou música... Calma, suas perguntas serão respondidas. - Verdade? - Não. - ela riu, mais bela do que nunca. Aff... Helena sentia que tinha que desvendar aquela ali. Não ia embora. Não enquanto não desvendasse todos os segredos da menina sem nome. Continua... Rafael Torres
- Conto sem título, e esse é precisamente o título do conto
O andar do caminhão era lento, lento. Por três razões: havia os buracos, o carregamento era extremamente sensível e o caminhão era ruim mesmo. Os buracos, Ezequiel não enxergava até estarem bem próximos, tudo o que via eram manchas escuras na estrada. Às vezes eram sombras, às vezes remendos no asfalto e outras, depressões perigosas. Era por isso que ele tinha que olhar a estrada com mais cuidado que o normal, observando cada uma daquelas manchas. Teve uma em que, não sabia por que, seu olho pousara por mais tempo. Se fosse um buraco, era uma verdadeira cratera, e ia até o acostamento. Foi só quando ele se aproximou muito que percebeu que a mancha era escarlate. Mais perto, viu que era líquida. Enquanto passava por cima, refletia: seria sangue? Mas tanto sangue? Só um boi poderia ter deixado tamanho rastro. E quem arrastaria um boi para a mata? Era um boi ou uma pessoa... Agora que a mancha estava para trás, Ezequiel repentinamente lembrou: teria visto um sapato? Tinha quase certeza que sim. Aquilo estava muito estranho. O último carro a passar pela vista dele o fizera há mais de duas horas. Não era nada comum a estrada estar tão deserta, mesmo ali no sertão do Piauí. Era um sapato. Num rastro de sangue. Isso tudo correu na cabeça dele em poucos instantes, e ele já estava decidindo se parava ou não. Não tinha nada a ver com isso, mas lembrou-se da frase atrás do caminhão: "Deus no comando!". Sim, Deus pararia, com certeza. Ezequiel freou de uma vez. Tão de uma vez que ouviu um vaso se quebrar na carga. Soltou um palavrão pela metade, pois lembrou que Deus estava presente... Quando desceu, além do calor assassino, notou que tinha trazido até aqui um rastro de sangue pelos pneus direitos. E que devia ter passado mais tempo refletindo do que se lembrava, pois estava a pelo menos trezentos metros da poça. Não dava pra dar ré e nem pra fazer o retorno. Trancou a cabine e abriu o compartimento de carga. Era incrivelmente escuro lá dentro. Diacho. Subiu e esperou um pouco até os olhos se acomodarem. Aos poucos foi percebendo que os primeiros estavam íntegros e foi andando até o fundo. E lá estava ele. Um vaso quebrado em dois. Era uma obra de arte. Trazia oito (agora sete) obras de arte. Naquela específica, havia a imagem de um homem branco carregando nos braços uma mulher negra aparentemente morta, com o pescoço quebrado. Lembrou imediatamente, não sabia por que, da lenda que conhecia desde pequenininho, e da música que a acompanhava. "Samba Lelê tá doente / Tá com a cabeça quebrada / Samba Lelê precisava / É de umas boas palmadas". Perguntou-se o porquê das palmadas, a pobre já ia com a cabeça quebrada. Mas o vaso... Dona Neide fora enfática até demais: cada vaso, de um artista famosíssimo, custava mais que o caminhão. Aliás, ele via agora, não eram vasos, eram potes decorativos. Enormes, passavam da sua cintura. Cada um embalado com vários travesseiros. Ele ainda pensou em levar a coisa pra fora, mas além de pesado, o destinatário fatalmente saberia que faltava um. Ô lasquêra! Foi quando lembrou do motivo de ter parado. Ia, sim, andar aqueles 300 metros. Não teria quebrado o vaso por nada. Foi Deus. Ele, no volante, era responsável pelo pote. E, tendo freado, queria que Ezequiel cuidasse daquela mancha. Pois haveria de saber tudo sobre aquela mancha. Se morreu, o que morreu, como morreu e tudo. Ia andando e o sol batucava na sua cabeça a melodia: "Samba Lelê Precisava / É de umas boas palmadas / Samba, samba ô Lelê / Samba, samba, samba ô Lalá"... Chegou na poça e se agachou. Era enorme. Uma pessoa precisava de um ferimento imenso para verter aquele tanto de sangue. Devia ser um boi. Ou um cavalo. Mas parecia ter sido arrastado mata adentro, quando, fosse um animal, tivesse sido arrastado, no máximo, até a beira da mata, e já estaria fora do alcance dos veículos. Ele suspirou: iria entrar naquela mata. Agora já não era o instinto religioso de ajudar. Era curiosidade. O que quer que fosse, já o fizera perder o emprego. Com resignação e total ignorância do que haveria de encontrar, entrou na mata seca e densa. Havia um rastro de sangue e uma pequena trilha de galhos quebrados. Ezequiel caminhou, e caminhou tanto que, a cada vez que pensava em desistir, lembrava do quanto já tinha investido naquele pequeno mistério. Andou por mais de 3 horas, a trilha se esvaindo. Quando começou a escurecer foi que ele realmente se deu conta de que tinha que voltar. Estava morrendo de sede. Nem sinal de água por ali. Ele nem sabia que direção pegar, mas bastava voltar e encontrar a trilha de sangue. Só que não a achou. Em vez disso, ficou andando até a sede realmente apertar. Já estava escuro e surpreendentemente frio quando ele sentou. Suas pernas doíam, só agora percebia. Ele bufava, de cansaço e medo. Não sabe quanto tempo se passou até que visse um pequeno ponto luminoso alaranjado. Um cigarro, pensou. Exausto, só conseguiu levantar após três tentativas. Como a luz permanecia, foi se esgueirando, machucando o já arranhado rosto, pela mata. Até que percebeu o que parecia ser um homem todo de branco fumando um cigarro de palha. Mas estava longe, e ainda se afastava. Ezequiel o seguiu, trôpego, por um bom tempo, até que sentiu que não iria mais resistir. Antes mesmo de se sentar, apagou. Já não sabia mais onde estava, o que era o tempo, se dia ou noite. Aos poucos foi dando por si. A primeira coisa que notou foi o barulho de chuva, mas não sentia nenhum molhado. Depois, sentiu que estava amarrado a um pau na vertical, bastante coberto por corda, exceto a perna esquerda. Quando conseguiu abrir os olhos, viu um fogo. O que seria? Uma fogueira anormalmente grande. Estava em uma caverna. Em torno do fogo as pessoas, os seres, eram bizarros. Uma velha muito idosa; o homem de branco, ainda fumando; um casal lindíssimo de índios; dois cachorros; e uma gigantesca cobra: era enorme até mesmo para uma jiboia ou uma sucuri. Um pouco afastado jazia o corpo de uma mulher com a cabeça quase decepada. Voltou, na sua cabeça, a canção: "Samba Lelê tá doente / Tá com a cabeça quebrada"... Ele, sem querer, soltou um gemido, e todos olharam para ele. A velha pegou um facão do chão e todos se aproximaram. — O que querem? Quem são vocês? — Disse, ou ao menos pensou ter dito. — Queremos que você se junte a nós — disse o índio. — Vocês mataram ela? — Ela? — Apontou a velha com a cabeça. — Ela não está morta. Era impossível. Ela tinha um corte até a metade do pescoço. E não se movia. — Ela vai acordar, no seu tempo. Ela já aceitou. — Disse alguém. Foi então que ele percebeu que havia mais uma pessoa ali. Um homem de seus 50 anos, grisalho, com um terno sofisticado. — Quem são vocês? O homem se aproximou e o olhou no olho, tão perto que Ezequiel não conseguia focar. — Sim, é ele — sorriu. — Ele quem? O que é isso? — Você saberá. Em breve será um de nós — disse o homem de branco. Ezequiel olhou novamente para a mulher caída. Continuava inerte. — Quer saber quem é ela? Samba Lelê. – Disse a velha. Então Ezequiel compreendeu. Jamais saberia explicar o que entendeu, mas entendeu. Ainda perguntou. — Você é artista, não é? O homem acenou que sim. — E eu, quem sou? — Ezequiel perguntou. — Saci — a velha falou. E dizendo isso, ordenou aos cães que atacassem a perna de Ezequiel. Continua... Rafael Torres
- Conto entre Parêntesis
Ficava tão frio à noite quanto quente de dia. Era por isso que Jaime e Marcelinha se abraçavam na rede. Eram irmãos apaixonados, no bom sentido. Um sabia tudo do outro, desde os segredos do casamento dele às paqueras dela. Todos já sabiam que ela gostava de meninas. Sabiam desde antes, mas antes ela era nova demais pra saber qualquer coisa. Agora ia com 18, bem menos que Jaime. - Essa redinha é tão confortável! - ela quase bocejou. - Também, por 500 reais, tinha que ser um palácio! Ela riu. Marcelinha era muito bonita, era a mulher mais bonita que já tinha visto. - Cabe três? - era Maíra. - Cabem! - Marcela falou e não sabiam se ela concordava ou corrigia Maíra - Principalmente quando a terceira pessoa vem com castanha. - Pois eu não arrisco, não - Jaime se levantou, ajudando Maíra a deitar. Deu um beijo em cada testa e foi beber suco. Suas duas criaturas preferidas estavam naquela rede. A esposa e a irmã. O que tramavam? Ainda era começo de noite, mas ele já ia deitar. De alguma forma se pegou pensando no que as duas estariam conversando. Será que a Marcelinha estava contando pra Maíra sobre aquele cidadão grisalho? Jaime não ficara com ciúme, porque sabia que ela gostava de meninas, mas, se fosse o caso, podia ficar rapidinho. Nunca tinha sido ciumento com a irmã, na verdade, fazia um certo esforço pra não ser (mesmo em seu íntimo), mas aquele homem específico o tinha deixado encafifado. Um cara madurão, com um sorriso pilantra. Devia ser mais um estrangeiro se esbaldando em Canoa Quebrada. Foi pro quarto, que tinha as coisas de que mais gostava. O violão e ar condicionado. E a promessa de Maíra. Agora, a descrição de Maíra, pois era um tipo muito específico de mulher. Era bela, especialmente com raiva. A paleta era o oposto de Jaime e Marcelinha: era morena jambo (sua avó era indígena). Cabelos pretos, no ombro. Olhos negros. Quando a Marcelinha estava aprendendo violão, bem novinha, dizia que aquela música russa se chamava Maíra. Era séria, mas quando sorria a sala toda sorria junto. Toda a família adorava aquela mulher. Dando um susto nele, a porta abriu e ela entrou, de canga e biquine. No bar vizinho, fechado, mas certamente já juntando gente na varanda, ele ouviu um xote. E era Marcela no triângulo, tinha certeza. A Maíra entrou calada e passou pro banheiro. Dali a pouco saiu só de calcinha, deixando a luz do banheiro acesa, desligou a do quarto. Ela gostava assim. Pena que não tinha televisão. Ele gostava do barulho. Deitaram e Jaime notou que ela não dissera uma palavra desde que entrara. - Tá tudo bem, Maíra? - Arrã. Tá, sim. Ele sabia que ela estava mentindo. Ela não sabia enganar. Faltava-lhe sutileza. - Agora você me assustou. A Marcelinha falou alguma coisa? - Talvez. - É aquele sujeito, não é? Aquele da camisa abotoada até o peito? Aquele. - Sim, sim. - Sim, sim o quê? - Sim, sim, sei quem é. - Tá, e o que mais? - Nada, quase nada. - Eita. Eita, eita, eita. Ela tá apaixonada por aquele canastrão? - Eu não diria apaixonada. É mais encantada. Jaime levou as mãos em postura de prece ao rosto, respirou. Então quer dizer que ela era bi? E o fator decisivo pra isso era aquele homem? - Me conta! Eu juro que não falo pra ela. - Pensa, Jaime, pensa. - Pensar o quê?... Que se ela te contou é porque tinha certeza que eu ia acabar sabendo? - É. - Tá, pois então eu tô aqui, calmíssimo, esperando que você me conte TUDO, desculpa, tudo que tiver pra contar. - Sua voz quase tremia. Se a Marcelinha estiver grávida eu mato ela, pensou. - Vish, se acalma, menino. Também não tem nada pra contar. Ele se apresentou pra gente, parece ser uma ótima pessoa. De manhã. - É uma ótima pessoa de manhã? - Se apresentou pra gente de manhã. E eu os deixei conversando. - E aí? - E aí nada. Ela disse que ele falou que ela era muito bonita e... - E?... - Chamou ela pra ir com ele pra Fernando de Noronha. Parece que tem uma pousada lá. - E ela? - Nãaao, não... Ela não vai, não. Então era isso? A Marcelinha queria morar com um sujeito com o dobro, o triplo da idade dela, que acabara de conhecer? - Calma, Jaime. Ela não disse nada. - E o que é que você acha? - Que não. Que ela vai ficar. - Tem certeza? - Tenho quase. Naquela noite não teve sexo. Não tinha clima. Ele estava chateado. Só queria entender o porquê de a Marcelinha sequer considerar largar tudo pra ir viver com aquele sujeito. Amanhã teria uma séria conversa com ela. Na manhã seguinte acordou bem cedo. Foi procurar a Marcela e não a encontrou na cozinha, na mesa, na rede. Podia ainda estar dormindo. Só que deu 9 horas e ela não saiu, de modo que ele abriu a porta e viu a cama vazia. Vazia, não, tinha o triângulo, e em baixo dele, um bilhete. Naquele momento, Marcela morreu para ele. "Precisamos fugir do meio-dia E atender ao chamado da meia-noite" Continua... Rafael Torres
- Conto a respeito de Euclides
Era impressionante que Euclides soubesse exatamente como caíra o avião, mas não soubesse como chegara àquela terra. Estava semienterrado, só as extremidades e a cabeça sobravam pra fora. Foi com muita dificuldade que se safou e se levantou. Estava inteiro. Até os óculos. E toda a roupa do corpo. Nada mais. Aliás, tinha, sim. O xale que compara para sua mãe. Tinha chamado atenção de Euclides na lojinha do museu. A moça dissera que era um fino artesão de Lisboa. Quem sabe ela aceitasse como pedido de desculpas? Aliás, por que logo esse xale sobrevivera à tragédia? Euclides estava seco, e o xale também, o que era estranho. Olhou em volta. Ilha deserta? Nada indicava que não ou que sim. Ele podia estar em pleno continente, a metros de alguma casa com piscina. Opa! Não, não era ilha deserta, mesmo. Logo à frente havia um poço. Um belo e humano poço, com balde e cordinha. Estava com sede, caminhou, desceu o balde e o levantou pesado de água. Doce. Sorveu quase com felicidade. Aquelas vidas todas. Lembrava de o avião ter pousado na água e quase imediatamente começado a afundar. Ele estava ao lado da porta de emergência, e simplesmente abriu e saiu. Lembrava de, no mar, ter chamado por alguém e da frustração intensa que sentiu quando viu um corpo, virado pra baixo, sem chance... Euclides soltou um grito, quase um uivo, e então, só lembra do branco. Nada. Acordara ali, uns bons 30 metros de areia entre si e o mar, e vizinho a um poço. Mas também, era só isso. O poço, ele, xale, mar, areia e um mato verde, mais além. Ele não estava nem um pouco cansado, tinha que fazer alguma coisa. Agora, qual era o problema de Euclides? O problema é que ele era totalmente desorientado. Se entrasse demais na mata não saberia voltar praquele ponto específico. E aquele ponto específico tinha água. Andou só um pouquinho. Só uns 20 metros mata adentro, e se sentiu mal. Não era medo, era uma coisa mais forte. Era ojeriza. Nojo. Ele só viu mais mata. Voltou resolvido a ficar ali mesmo. E, na volta, ainda achou o que comer. Um iguana, dando sopa. Não gostava muito de répteis, mas era o que tinha. Levou folhas, gravetos e voltou pro poço. O que Euclides fez para sobreviver não é a questão. Ele fez, e sobreviveu. Mas depois de três dias já não aguentava mais. Iguana, água e a sensação de que podia estar a trezentos metros da civilização. Por que não entrava naquela mata? Era covarde? Iria tentar. Vencer a repulsa. Olhou pra dentro da mata, o mais distante que podia ver, e sentiu um mal pressentimento. Era como se o destino mais terrível estivesse por ali. Mas ele já não tivera o destino mais terrível? O que podia ser pior que aquilo? Pois ele foi. Chegou o mais longe que tinha ido, respirou, e foi além. O fato é que, mal começou, 300 metros, ele avistou a coisa mais inesperada. Uma caverna. Parou, olhou, espiou, e quis entrar. Era alguma coisa, alguma sutileza da caverna, talvez um cheiro. Que o fazia querer entrar. Foi adentrando lentamente, a luz ficando pouca, até que penumbra, até que só uma abertura lá longe. Foi quando ele se deu conta do que estava fazendo. Estava desviando do plano. Encontrar a humanidade. Devia voltar. Mas aí foi que aconteceu: sentiu uma mordida na sua mão, uma dor incrível, a luta para ver o que era que tinha feito aquilo, o desespero. E ele gritou, quase uivou. Conseguiu achar a saída e, de alguma forma, quando viu, já estava no poço. A mão! Faltavam-lhe dois dedos. Logo da mão boa... Que porcaria! Que droga! Não podia acreditar. Saía muito sangue. Ele enrolou no xale e apertou com força. Não conseguiu deixar de soltar mais um grito. Uivo. Começou a passar mal até que se estirou no chão, inconsciente. Acordou no outro dia, e com raiva. A excursão fora um desastre. Ele não sabia o que fazer. Aquilo ia gangrenar, apodrecer. Precisava ir atrás de cidade. Pegou o xale, os óculos e foi. Ficou aliviado ao perceber que não estava tonto. Na verdade, sentia-se invadido por um estranho vigor. Então, quando viu, estava em frente à caverna. Só que ele jurava ter tomado outro caminho... Tinha algo, um cheiro, um fascínio... Ele sentiu a enorme necessidade de saber o que o tinha ficado com um teco seu. O que quer que fosse era excelente caçador, não fizera ruído algum. Quem fizera fora Euclides. Aquele uivo não lhe saía da cabeça. Pois entrou. E foi ficando escuro, escuro. Até que ele só via um pontinho ao longe. E então, aconteceu de novo. Dessa vez foi mordido na barriga. Arrancou-se um pedaço de carne. Gritou, correu para o poço e constatou que, embora saísse algum sangue, não tinha sido profundo. Catou um iguana, assou e comeu. Com água. Tinha que matar a criatura, mas como? Ideia! Colocou uma pedra na ponta de um toco de madeira e atou com os cadarços e o xale, com muita dificuladade. O nome do artista ficara exposto. Euclides ficou curioso e leu... Mas sentiu algo muito estranho. Nem com muito esforço conseguiria pronunciar aquele nome, aquela palavra simples... Parecia a coisa mais improvável de dizer, até de pensar. Agora lembrava do desenho bordado. Um homem flutuando. Um espírito, um fantasma? O que o... o artista queria dizer com isso? Quando sentiu que seu tacape estava seguro começou a se deslocar rumo à caverna. Olhou o iguana, no canto de sempre. Não importava quantos já tivesse pego, sempre aparecia um novo ali, no mesmo lugar. Aproximou-se da caverna, olhou, espiou, e entrou. Nem tinha ficado totalmente escuro quando ele sentiu, no calcanhar, a mordida. Gritou. Lutou, girou seu tacape cego por todo lado, com tudo que tinha. Com força, veloz, pra baixo, pro lado. Até que sentiu que atingiu algo e ouviu a coisa caindo no chão. Pegara? Matara? Euclides ainda sacudiu a marreta pra todo lado, tentou buscar coisa no chão até que ergueu seu taco, em postura defensiva. E sentiu outra mordida, no peito. Uivou alto. A dor era insuportável. Mal pode correr, mas de alguma forma conseguiu atingir o exterior da caverna. Caminhou com muita dificuldade até o poço. Lavou as feridas. Bem profundas. Doía muito, mas conseguia andar. Não tinha jeito. Não sentia que ia conseguir, mas tinha que pegar a criatura. Dessa vez Euclides nem esperou a dor passar. Nem sentiu quando já estava na boca da caverna. Dessa vez não levaria nada. Desfez o tacape e deixou tudo ali no chão: a pedra, o toco e o xale. Entrou na caverna sem medo. Sem nada. Quase nu. Dessa vez teve que entrar mais ainda, de modo que não via mais a entrada. Estava no completo breu. A mordida, dessa vez, foi nas costas. Mas teve uma coisa: ele não gritou, não deu um pio, mas conseguiu ouvir o seu grito vindo de longe. O seu mesmo grito, seu uivo. Alguém o soltara por ele. Mas não pode pensar muito no assunto, perdeu os sentidos rapidamente. A primeira coisa que ouviu foi o crepitar do fogo. Uma fogueira. Abriu os olhos e, lentamente foi discernindo as figuras que o cercavam, estirado no chão. Uma mulher muito velha, dois cachorros enormes, um homem sem uma das pernas, um homem negro de branco, um homem branco de negro, um casal lindo de índios, uma cobra imensa, com dois grandes olhos e dois cachorros gigantescos. - Dá, dá, sim. – sorriu o homem de preto. - Claro que dá, foi perfeito. – sussurou a índia. - Dá o quê? - perguntou Euclides. Lá longe ouviu-se um longo e desesperado grito. - Esse grito é meu! - Não é mais – homem falou suspirando – Não é mais seu. Mas você poderá vê-lo toda noite. - De quem estão falando? O que será dele? - Vai berrar, ué! Vai berrar pela eternidade. - Onde ele está? - Sabe, você esqueceu suas coisas na entrada da gruta. - disse a velha. - Mas de noite vai poder tê-las. - falou o homem de preto. - O que vai ser de mim? - implorou Euclides. - Você é meu Corpo Seco. - Mas o que é corpo seco? - Pesquise, meu menino, tem muito livro por aí... – riu a velha. - Com essas feridas, eu vou morrer! - A gente não morre, rapaz. A gente não morre nunca! - e o cão arrancou-lhe mais um pedaço. Euclides nada sentiu. Lá longe, alguma coisa soltou um longo uivo. Continua... Rafael Torres
- Conto sobre Jaime, se não me engano
- Jaime, eu tive uma ideia. - Sério? - Maíra nunca tinha ideias. - Você vai ser vendedor de chegadinho. - Como assim? O casamento ia bem, já tinha uma década, forte, firme. Eram os melhores amigos. Mas Jaime tinha perdido a irmã e o emprego há três anos e entrado numa depressão com toc com síndrome do pânico com tudo. Quando saiu da crise estava sem forças para arranjar emprego. Vivia sustentado pelos pais, que mandavam dinheiro todo mês, e por Maíra. Tinha se acomodado. - Assim, literalmente. Vender chegadinho. A dona Ruth do escritório sabe fazer e disse que não ia cobrar nada. Nem o material, no começo. E eu aprendo rapidinho. - Olha, Maíra, calma. Se tem alguma coisa que você quer me dizer, ou me contar... - Claro que não, bobo. Eu tô falando de ganhar dinheiro! - Com chegadinho? - Sim. Mais pra frente você pode migrar pra pamonha, se preferir. Ele sabia que ela não estava brincando. Ela não tinha sutilezas, ironias. Era pá pei. Ou pei bufo. Só que aquilo estava surreal demais. - Certo, - fingiu - digamos que eu vá vender chegadinho. A gente tem que voltar pro Ceará, porque aqui em São Paulo ninguém sabe nem o que é! - A dona Ruth falou que tem muita gente... Tem mercado. - Mas como é que pode? - Você sabe o que o vendedor de chegadinho faz? - Sim, toca triângulo e sai pelas ruas vendendo. Chegadinho. - Isso! - E agora isso? E eu vou ser vendedor de chegadinho pro resto da minha vida? - Claro que não! A gente estabelece uma meta. Tipo "até comprar a bolsa". Não acreditava. Isso tudo pela bolsa que eles viram numa exposição nordestina. Ela ficara louca por essa bolsa, o próprio Jaime ficara apaixonado. Era de um grande artesão. Mas era o preço da televisão, e ela concordara que a televisão era mais em benefício mútuo. Se bem que se arrependera. Hoje em dia a gente fica mesmo é enfiado dentro do celular. Só que Jaime gostava de fazer outras coisas com o barulho da tv. - As pessoas aqui já olham pra gente como 'iguais', né? - Raramente. - pá pei, ela não tinha ironia. - Então? Imagina um nordestino com um triângulo passando na calçada. - Como é que vão saber que tu, esse alemão gigante, é nordestino? - O triângulo!!! Ela abaixou a cabeça pra mão. Levantou, respirou. - Todo dia, tu pega ele e anda três quarteirões. Vai fazendo clientela, conversando com o povo. Depois a gente abre pra Vergueiro e pronto. Pelo menos vai ter algum dinheiro. - Tipo, dez reais? - ele riu. - Faz isso por mim, amor - ela apelou praquele jeito bem sério e sincerão dela. E aí não tinha jeito. Ela podia pedir pra mudar de cidade, que ele fazia. - Cê tá falando sério? - Olha, eu sei que parece doidice, mas... sei lá... a dona Ruth garantiu que... você está há tanto tempo parado... - Tá bom. Tá bom, tá bom. Olha, segunda feira eu testo. Faço três quarteirões. - Por que não começa amanhã? - Tá doida? Eu nem tenho nem o tambor de colocar os bichinhos - olha, ele já estava criando um laço! - e nem o triângulo. - Eu disse pra trazer, eu sabia que ia precisar. - Como é que eu ia saber que ia precisar de um triângulo? É uma longa história. - Que frase insólita! - ela riu - Precisar de um triângulo... - Não foi a frase mais insólita dita esta noite... - Ou você quer mandar trazer o triângulo de Fortaleza? Só não lhe deu um tapa porque sabia que não era ironia. Ela não tinha essas coisas. - Não. Aquele, não precisa. - Pois bem. A dona Ruth sabe onde vende o tambor. O triângulo a gente compra em qualquer loja de música. Naquela noite Jaime dormiu encafifado. A Maíra endoidou? Mas tudo bem, ele vendia o troço - calma, troço, não. Os bichinhos. Curtir bem o sábado e o domingo, porque ele não sabia, mas já pressentia, que sua vida estava pra mudar. Ele jamais migraria para pamonha. Continua... Rafael Torres
- Conto de morte
"Eu sou muito burro!" - pensou Pedro. Os pelotões estavam ali, um correndo contra o outro e ele deixara a adaga cair. E agora não tinha volta. Eles já estavam há menos de cinquenta metros do outro grupo. "Calma", falou seu pai em sua cabeça. "O que foi que a gente combinou?" Pedro não sabia por que tinha pensado aquilo, porque nem cabia na situação. O que eles tinham combinado é que, no momento mais deseperador, Pedro ia simplesmente se sentar de olhos fechados. Mas claro que pai tava falando em outro sentido. Relaxar, respirar e deixar a mente se acalmar. Ou não? O fato é que ele estava sem adaga... A adaga de seu pai, feita pelo melhor ferreiro da região. Pedro foi perdendo velocidade, até que parou. Já estava morto, mesmo. O grupo passou e ele ficou ali. Logo à frente, os dois exércitos se encontraram e aí não tinha mais jeito. "Não vou desertar, não. Vou só sentar um pouquinho." Sentou, cruzou as pernas e fechou os olhos. Respirou fundo e soltou o ar com ruído. E não ouviu mais nada. Sentiu o corpo ficar leve, leve. Será que tinha morrido? Isso nem importava mais, Pedro estava simplesmente flutuando. Jessé vinha de cavalo, veloz, mas nem tanto, pra não ficar sozinho na frente. Quando os dois lados se bateram, ele atacou com a adaga, mas, por mais estranho que pareça, não acertou uma alma. Queria por sangue na adaga nova. Ia fazer a volta quando viu aquele homem sentado, um pouco à frente. Ah, diacho! Achava que guerra era pra relaxar, é? Acelerou pra ele e preparou a adaga. Quando estava perto, em cima do homem, viu que começou a levitar. Sério mesmo, o homem estava voando. Só que Jessé já tinha dado ao cérebro o comando de matá-lo. Porque se não, queria saber que diabo era aquilo. Um vivente flutuando! E tchum - cortou-lhe a cabeça. E ouviu o som seco do corpo caindo. "Eu sou muito burro!" - pensou. Parou o cavalo e olhou pra trás. Só que nada. Nem o corpo, nem a cabeça. Aproximou-se do local onde via sangue. Porque sangue tinha. Tinha que investigar, ele sabia que tinha matado o homem. Já tinha matado antes, e era assim que sentia. Estacionou o cavalo numa árvore e, quando se virou, deu de cara com a Mula-sem-Cabeça. Todinha. Quer dizer, sem a cabeça. E por, isso mesmo, completa. Uma labareda lhe saía do pescoço. Jessé sabia que não adiantava mais fazer nada. Olhou em volta e não havia ninguém. Nem a companhia, nada. Só a árvore, o cavalo, ele e a Mula. "Eu digo alguma coisa?" - isso ele disse. Será que ele tinha criado a Mula? Ela se aproximava, já tava sem jeito. Fechou os olhos e esperou. Só que o tempo passou e nada acontecia. Será que tinha morrido? Abriu os olhos. Ela ainda estava lá, bem diante dele. E agora ele podia reparar um novo elemento. A cabeça do homem, de olhos fechados, logo ali. Jessé suava, até porque a Mula era quente. As chamas pareciam vir em direção dele para, no último segundo, o evitar. Ele ficou ali, sem saber o que fazer. O que é que a Mula queria? Olhou para a cabeça no chão e imediatamente soube. Não poderia explicar o que compreendera, mas entendera. O lenço vermelho no pescoço do rapaz. Todo se tremendo, ele caminhou até lá e tirou o lenço. Foi voltando, desfazendo o nó e o amarrou no pescoço da Mula-sem-Cabeça. Ela deu as costas e foi sumindo, rumo à ainda pálida alvorada. Ele respirou, aliviado. Tinha que admirar aquele ali. Maragato até depois da morte. Continua... Rafael Torres
- microliteratura de marcio markendof #02: microcontos críticos críticos
Os microcontos, apesar de sua curta extensão, podem ser empregados como ferramentas e crítica social, permitindo uma visão irônica do mundo contemporâneo. Na pequena seleta abaixo temas de nossa época, como o terraplanismo, a modernidade líquida e as fortunas de igrejas, são o alvo de uma narrativa breve, mas pronta para um punch no leitor. Mais microliteratura aqui. Mais produções artística com oquadrinhos, contos, cordel e tudo o mais que pode caber num site na nossa sessão Zartes. Marcio Markendorf Professor, pesquisador e escritor. Leciona no curso de Cinema e na Pós-graduação em Literatura da UFSC. Publicou a novela "Soy loca, Lorca, feito um chien no chão" (Urutau, 2019) e, em parceria com Adriano Salvi, o volume de microliteratura, "Microcontando" (Caiaponte Edições, 2019), obra financiada pela lei de incentivo à cultura de Balneário Camboriú. Mantém uma conta dedicada às formas breves no Instagram (@microliteratura).
- Entrevista com Luiz Cláudio Ramos - Papo de Arara
Um dos maiores arranjadores do Brasil há várias décadas, Luiz Cláudio Ramos já trabalhou com Dorival Caymmi, Elis Regina, Quarteto em Cy, Tom Jobim e, hoje, com Chico Buarque. Eu digo hoje porque eles trabalham lado a lado desde o final dos anos 80. Luiz é o arranjador e produtor musical de todos os discos e shows de Chico desde então. Veja aqui a lista com os discos do Chico favoritos da Arara. Olá, maestro Luiz Cláudio Ramos. Obrigado por nos conceder essa entrevista com tanta prontidão. 1. Você nasceu e sempre viveu no Rio de Janeiro? Nasci em Santa Teresa, aqui no Rio e sempre vivi aqui no Rio. 2. Me fale um pouco sobre as suas origens musicais. Muita música em casa? Teve professor? A minha mãe era gaúcha, com uma família grande, muitos irmãos, todos músicos. Minha mãe tocava piano, cantava, tocava violão. Tias e tios, todos músicos. Piano, violoncelo, flauta, tinha bastante coisa. Eu tive uma iniciação muito leve com o Ian Guest (compositor húngaro radicado no Brasil), na parte de música, teoria; e tive uma iniciação também muito leve com o Arthur Verocai no violão. Isso lá por 1967, por aí. 3. Meu pai me contou que, nos anos 70, ele comprava discos seus. Só não lembro se eram de violão ou se você cantava. Nunca consegui achar os discos, mas tenho imensa curiosidade. Quantos discos lançou de si mesmo? Eu não tenho muitos discos, não. Meus, mesmo, eu tenho dois. Um com o Franklin (da Flauta), que a gente gravou, sei lá, uns dez anos atrás; e um que eu gravei no início dos 80 pra PolyGram, num projeto chamado MPBC. Agora, tinha um cantor da geração do meu irmão - não falei, o meu irmão foi cantor, Carlos José, seresteiro, éramos 4, ele, o primeiro e eu, o mais novo - e tinha um amigo dele, Luiz Cláudio, mineiro. Acho que seu pai me confundiu com ele... 4. Você escreve para orquestra muito bem. Quando decidiu se tornar arranjador? Estudou orquestração? Muito obrigado que eu escrevo muito bem. Eu sempre gostei de arranjar, de harmonizar, desde os primeiros grupos, ainda no colégio. Eu sempre gostava de harmonizar e fazer contracanto. E não estudei orquestração, não. Foi tudo na marra, mesmo. Eu tive muita prática, porque tive a sorte de entrar no mercado de trabalho, gravando discos, muito cedo, e eu peguei aquela fase áurea de gravação, em que a gente gravava, às vezes, várias vezes por dia. E aí o Roberto Menescal foi muito importante na minha carreira, me incentivou a escrever e eu comecei. O primeiro disco que eu fiz foi o do Fagner, Manera Fru Fru. 5. Você trabalhou em vários discos do Chico Buarque antes de se tornar efetivo na banda dele, na posição que convencionamos chamar de “maestro” (e não vejo por que não). Como foi essa transição? Ele te convidou para fazer a produção musical de um disco – o Chico Buarque, de 1989? Eu toco com o Chico há muito tempo, a primeira gravação que eu fiz com ele foi um arranjo do Edu Lobo, para Bárbara, isso no início dos anos 70. E a partir daí eu comecei a trabalhar com ele. Já naquele disco - no show - Chico e Bethânia, eu já participei da elaboração das harmonias junto com o Chico. Eu era o responsável pelas músicas do Chico. O Chico pensava parecido comigo - pensa parecido comigo. Há uma identificação, principalmente harmônica, ele gosta de inverter (acordes)... E nesse meio tempo, o que resolveu a minha vida, foi que eu percebi uma tese de escalas - o que eu uso são 4 escalas, basicamente, para fazer todos os meus arranjos. A transição. Aí eu participei de vários discos do Chico como músico. O primeiro arranjo que eu fiz pra ele completo, foi "Mulheres de Atenas". Porque na fase do Chico e Bethânia, quem fez os arranjos de orquestra foi o Maestro Gaya. 6. Você tem muito contato com a música erudita? Chega a ser um entusiasta? Tive muito contato com música erudita, sim. Principalmente através da família da minha mãe, que tocava piano. E várias pessoas ligadas à família, sempre houve muita música lá em casa. E sou um entusiasta, sim. São os grandes mestres, né? Bach, Ravel, Chopin, Mozart, esses são talvez da minha maior admiração. Sou um entusiasta da música clássica, sim. 7. Como é produzir um disco? Eu nunca tive um produtor, de modo que não faço ideia do que ele faz. Produzir disco, depende muito do artista. Tem artistas que chegam com tudo pronto. Tem outros que não têm ideia do que querem, na verdade. Tem produtores que são ligados na parte da mídia, que têm ligações com a mídia, alguns não entendem nada de música... Tem outros ligados mais à parte técnica da produção do disco, pessoas que já sabem mixar, que têm ideia já da mesa. Eu sou ligado à parte musical, sou um produtor musical. Elaboro os arranjos, me ligo mesmo é na parte da música. 8. Você já tocou com Tom Jobim, Edu Lobo, Chico, Caetano, Dori, e até Mick Jagger. Agora é só esperar a ligação do Paul McCartney (risos). Deve ter boas histórias. Ah, tenho ótimas histórias, claro. São mais de 50 anos de profissão. Eu larguei a faculdade de medicina pra ser músico - fiz o primeiro ano da faculdade em 68, e em 69, logo no início, eu comecei a tocar com o Simonal, Wilson Simonal, que era um sucesso grande na época. Com o Som Três do César (Camargo) Mariano, que era um dos meus ídolos de juventude. E é claro, aí tem muitas histórias. 9. Como é trabalhar com o Chico Buarque? Ele é exigente? Tem noção da importância dele para os fãs? O Chico é o Chico, né? É muito fácil trabalhar com ele, e é claro que eu tenho noção da importância dele pro mundo. "Exigente", eu não diria, não. Porque a parte musical... Porque tem outros artistas, por exemplo: o Francis (Hime) escreve, né? O Edu (Lobo) escreve, o Tom (Jobim) escrevia. O Djavan é muito musical - ele não tem conhecimento musical, mas tem uma grande musicalidade, assim como outros... João Bosco... Cada um tem o seu jeito. Mas o Chico, ele é "menos" músico, na acepção da palavra. Músico instrumentista. Do que esses outros, então ele não tem muito a vivência do músico instrumentista. 10. Tem alguma música específica que foi mais desafiadora de fazer arranjo? Não, não tem música específica que tenha sido mais desafiadora, não. Cada música é um desafio, na verdade. E aí vão surgindo os problemas e a gente tem que resolver. É isso. Grande abraço a todos. Espero que tenham gostado. Vão conferindo o nosso disco "Argonautas Interpretam Edu Lobo", que eu estou aos poucos colocando no YouTube e aqui. Beatriz Meia-Noite Opereta de Casamento A Moça do Sonho A Permuta dos Santos Ave Rara Por favor, comentem, fiquem à vontade. E apertem no coraçãozinho.
- top 10: Vídeo-games como obras de arte!
Para conceber uma lista que trate de videogames entendidos como arte, recorremos ao que já foi previamente selecionado para exibição em museus e galerias. Alguns títulos da lista fazem parte do acervo de jogos expostos no Museu de Arte Moderna de Nova York. Outra fonte utilizada para os jogos da lista é o acervo do “Molleindustria”. Estúdio que tem como premissa uma reapropriação de videogames, seus jogos são sempre citados como jogos “persuasivos” ou jogos com uma agenda, que atravessam o paradigma da diversão e trazem muita inquietação nos temas abordados. E ainda adicionamos alguns jogos mais recentes que merecem uma chance de apreciação. 10. GAYBLADE 1992 Em um RPG é comum encontrarmos um universo de ficção repleto de magos, cavaleiros, dragões e paisagens medievais, mas em Gayblade a narrativa aborda uma realidade ainda mais sombria e faz o jogador experienciar o contexto de marginalização e discriminação sofrida pela comunidade LGBT nos anos 90. Inclusive dando a oportunidade do jogador combater os sujeitos propagadores de ódio e desinformação. Talvez o jogo hoje seja pouco conhecido e apreciado por conta de uma atrapalhada empresa. Acontece que Ryan Best perdeu o jogo original e seu código fonte durante uma mudança, a empresa responsável pelo transporte não apareceu e Ryan que tinha voo marcado não conseguiu encaminhar as caixas para o novo endereço. Mesmo com a ajuda e esforço da comunidade o jogo permanece perdido. Mesmo que não seja encontrado o impacto de Gayblade ficou registrado na mídia impressa do período e na memória da comunidade que nunca antes havia sido representada de forma honesta num jogo eletrônico. 9. TETRIS 1984 Os jogos são uma expressão criativa recente e ainda em pleno desenvolvimento, seus desdobramentos esbarram em limitações técnicas. Nesse sentido Tetris se destaca pois envelheceu muito bem, continuando divertido de se jogar mesmo nos dias de hoje. A prova disso é o lançamento de Tetris 99 que apresenta uma versão online que combina o tetris clássico com o novo conceito de “battle royale”. A importância e a relevância cultura de Tetris foi reconhecida quando o jogo foi adicionado ao conjunto de jogos clássicos em exposição no Museu de Arte Moderna de Nova York. Tetris é a prova que mesmo com uma proposta pictórica simples e minimalista o autor pode proporcionar ao expectador uma experiência rica em emoções e divertimento. 8. KATAMARI Se você considera que arte pode apresentar uma perspectiva diferente do cotidiano, que podemos por meio dela refletir sobre nossa experiência de consumo, uso e afinidade com os objetos ao redor. Se essas forem uma das premissas da arte. Katamari definitivamente é arte pois toda a proposta do jogo é trabalhada no acúmulo de objetos enquanto as escalas são a base dessa experiência, algumas fases começam da rua e pouco tempo depois estamos navegando pela galáxia. 7. SIMCITY 1989 Ao assumir o cargo de prefeito o jogador precisa criar e gerir uma cidade. Nessa simulação é preciso dar conta das demandas da população, tomar decisões que envolvem política, geografia, bem estar-social, acidentes naturais, recursos energéticos, impostos. Uma experiência lúdica que diz muito sobre a ideologia do jogador que vai fazer escolhas no âmbito de políticas públicas. Com poucos recursos você precisa decidir entre construir uma escola, delegacia de polícia ou uma nova estação de trem por exemplo. Tais escolhas impactam a vida dos sims (avatares) e fazem refletir sobre o melhor caminho a percorrer no desenvolvimento de uma cidade. 6. PHONE STORY Phone Story demonstra por meio de um jogo divertido uma realidade muito devastadora nas dinâmicas de produção de bens. O jogo é ambientado na produção de um smartphone de uma multinacional que para baratear o custo dos produtos se utiliza da exploração de mão de obra barata em países com leis trabalhistas frágeis. Algumas fases demonstram até mesmo o trabalho infantil. Todo o dinheiro levantado através do jogo foi doado a uma ex-funcionária da Foxconn que ao tentar cometer suicídio ficou com graves sequelas. Phone Story busca uma práxis ao debater as consequências do capitalismo global e lançar um holofote sobre as relações trabalhistas abusivas cometidas no complexo industrial da Foxconn e em outras partes do planeta. 5.TAMATIPICO Este é um dos primeiros jogos da “Molleindustria”, é jogo manifesto que trata da exploração de mão obra com exaustivas horas de trabalho ininterruptas. Aborda as péssimas condições de trabalho em que muitos trabalhadores são expostos ao redor do mundo. Toda a interface e mecânica de Tamatipico busca parodiar os jogos de criação de pets virtuais como o Tamagochi, uma associação engraçada mas que infelizmente é comum em ambientes de trabalho onde muitas empresas impõem aos empregados jornadas exaustivas e sem o devido tempo de descanso. A vida e o bem-estar do trabalhador são concedidos como e quando o empregador quiser. 4. EVE ONLINE Jogo de interpretação de personagem multijogador massivo. A forma de ser e estar em EVE depende do papel que o jogador quer interpretar. Por meio de uma avatar você ocupa um espaço digital de forma coletiva com outros jogadores. Neste universo espacial não existe um objetivo principal mas algumas missões e tarefas opcionais que premiam o jogador com os recursos e a moeda virtual. Para gerar riqueza nesse universo pode-se coletar recursos, fabricar itens, ou mesmo saquear outros jogadores. A transformação da matéria em produtos manufaturados para fins de acúmulo de capital e o consumismo desenfreado funcionam perfeitamente em MMORPGs pois, ao contrário do mundo real lá os recursos naturais são infinitos e não existem os reflexos da poluição e da desigualdade social. Além dessa reflexão social o game também promove, a partir de seus sons e gráficos uma imersão muito boa em sua diegese (universo dele) e arte também pode ser isso um momento de fuga do mundo real para um mundo imaginário, seja ele no espaço sideral ou em um cortiço fictício. 3. PAC-MAN O jogo do “come-come” foi lançado em 1980 visando o mercado de arcades. Mas devido ao sucesso foram feitos diversos desdobramentos do jogo para consoles e o personagem foi utilizado em diversas formas de merchandising. Por conta das limitações técnicas o jogo todo acontecia na mesma tela, ainda com tais limitações os desenvolvedores conseguiram criar uma inteligência artificial complexa onde cada fantasma possuía diretrizes distintas. Também é o começo da mecânica de “power-ups” que mais tarde vai ser popularizada em Super Mario. Hoje o personagem ainda é muito popular e conquistou um lugar de destaque não só na cultura dos jogos mas também na cultura pop tendo aparições em filmes, museus, músicas e desenhos animados. 2. DREAMS Não é o primeiro sistema para criação de jogos mas talvez seja o mais popular e acessível no momento por conta da sua compatibilidade com os consoles modernos (PS4). Mais um caso em que a indústria de jogos flerta com a cultura participativa e propõe o empoderamento criativo e técnico do espectador que consome e constrói jogos em comunidade. Além dos jogos é possível criar outras experiências como as machinimas (animações realizadas usando as engines dos jogos). 1. 171 (Pré-Alpha) Jogo com temática inspirada no Brasil e desenvolvido por brasileiros da Betagames Group. 171 surge no contexto das populares modificações de Grand Theft Auto. Os desenvolvedores receberam apoio da comunidade por meio das campanhas de crowdfunding e o jogo tem tudo para se tornar um título de peso com grande alcance de público dentro e fora do Brasil. A narrativa de ficção com ambiente inspirado em Sumaré (SP) e tantas outras periferias do país. Em jogos de aventura de mundo aberto os detalhes fazem toda a diferença, em 171 é possível identificar os modelos de carros, o estilo das nossas paradas de ônibus, orelhões e ruas de terra. Um registro lúdico de tantas realidades das periferias brasileiras com gráficos fotorrealistas. Fontes: https://www.moma.org/explore/inside_out/2012/11/29/video-games-14-in-the-collection-for-starters/ https://www.molleindustria.org https://lgbtqgamearchive.com/games/games-by-decade/1990s/gayblade/ https://www.netflix.com/br/title/81019087 http://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2012/12/pac-man-tetris-e-outros-games-vao-virar-peca-de-museu-em-2013.html https://tetris.com/by-the-numbers https://youtu.be/1Kpmb77_aFM Ayrton Selo Costuma fazer lives e vídeos pra comunidade de jogos online, sempre experimentando alguma coisa no universo dos memes e outras formas de remixagem. Acusado de atrasar os conteúdos mas sempre correndo pra cumprir os prazos. Gosta de doces e não confia em pessoas que defendem privatizações.
- vida (e morte) de imigrante na irlanda
Nem só de boas notícias sob um céu de arco-íris vive a nossa ilha verdejante. E enquanto seres humanos povoarem esta Terra, que de plana não tem nada, circularão crises, tensões e cisões as mais diversas, como bem sabemos. Inclusive muitos crimes ainda cometidos contra imigrantes, em pleno século XXI. O fato é que um brasileiro, Thiago Cortes (28 anos), que trabalhava com delivery pelo aplicativo Deliveroo, foi tragicamente morto no início de setembro. Após ter sido atropelado na volta de uma de suas entregas, não resistiu aos ferimentos causados pelo motorista, que avançou o sinal vermelho em um cruzamento, deixando de prestar socorro à vítima. Atitude que poderia ter salvado sua vida. Segundo relatos, o carioca pedalava pela área dos cais, no Norte de Dublin, região onde também foi encontrado um carro abandonado, o mesmo envolvido no incidente. As autoridades pediram acesso às câmeras de segurança para poder identificar os suspeitos: um menor de idade e outros três adolescentes alcoolizados, que vivem no subúrbio dublinense. Discutir as razões do atropelamento, mesmo com inúmeros casos de estrangeiros que já sofreram ataques xenófobos seguidos por violência na mesma área da ocorrência, parece mera especulação. No entanto, atualmente, é difícil atribuir total confiança à Guarda Siochána, a polícia civil da República da Irlanda, cujas atribuições são de polícia judiciária e preventiva uniformizada, sob um princípio de: “se impor não pela força das armas ou em número, mas pela autoridade moral, conquanto servidores do povo.” O essencial, portanto, seria compreender as dinâmicas sociais que determinam as desigualdades de tratamento entre nativos e imigrantes, principalmente estrangeiros de origem latino-americana ou ascendência africana. Isto porque fronteiras, nacionalidades e títulos de cidadania não passam de convenções sociais excludentes, instrumentos de dominação nas mãos dos mais poderosos. Como seres humanos, estudantes e trabalhadores, devemos lutar pela superação de lógicas atrozes que, além de não solucionarem nossos reais dilemas, só intensificam essa diáspora entre classes, gêneros, raças e linguagens ao redor do planeta. Tal divisão se agrava quando, enquanto brasileiros em território irlandês, tratamos a comunidade dos “Irish travellers” (viajantes) pelo vocábulo pejorativo “knackers”, por exemplo, um grupo minoritário que geralmente vive nas periferias, recebe apoio financeiro do Governo e apresenta comportamentos antissociais. Os “young offenders” (delinquentes juvenis) são conhecidos por arrumarem confusão, inclusive, entre eles próprios e toda a sociedade irlandesa. Apesar da grande revolta causada pelas leis frouxas quanto à discriminação racial e certo aumento da extrema direita por toda a Europa, a comoção pelo assassinato de Thiago uniu fortemente a comunidade brasileira aqui em Dublin. Foi bonito ver centenas de pessoas se mobilizando em meio à pandemia, tomadas as precauções sanitárias devidas, para uma passeata pela cidade. Além de clamar por justiça nas ruas, tanto o povo latino quanto os irlandeses passaram a arrecadar fundos para auxiliar os familiares da vítima e a discutir amplamente também sobre questões trabalhistas concernentes aos aplicativos de entrega de comida. Curiosidade: Importante notar que um total de 535,4 mil estrangeiros vivem na Irlanda, entre dezenas de nacionalidades, em um país com 4,8 milhões de habitantes. Isso significa que pouco mais de 10% da população é formada por imigrantes. O último censo mostra que o Brasil está em sexto lugar. Na nossa frente, vêm cidadãos da Letônia (19,9 mil), Romênia (29,1 mil), Lituânia (36,5 mil), Reino Unido (103,1 mil) e Polônia (122,5 mil). Dito isto, é urgente que intensifiquemos a educação de toda a população contra o racismo e a xenofobia, sem precisarmos exacerbar a cultura do ódio através de punições mais severas. Pelo contrário, devemos ampliar políticas públicas para o tratamento efetivo da drogadicção, promovendo atividades de prevenção e reinserção social desses usuários de baixa renda, jovens dependentes de drogas e sem-teto, haja vista a gravíssima crise de moradia que por muitos anos vem assolando a sociedade irlandesa, bem como afeta profundamente brasileiros que, assim como Thiago, legal ou ilegalmente, vêm buscar uma qualidade de vida melhor em outro país e se deparam com as condições precárias das acomodações estudantis, maus tratos, entre outras situações indignas. Aproveito este espaço para deixar meus profundos sentimentos aos que morrem todos os dias nas mãos bélicas do preconceito, com a esperança de que esse pesar resista fortemente para pensarmos, em conjunto e criticamente, novas possibilidades fraternas, igualitárias e mais justas. Afinal, o que nos resta a não ser o poder da solidariedade entre todos os povos do mundo? Vamos em frente! Sigamos na luta. #JusticeForThiago #ImmigrantsLifeMatter PAOLA BENEVIDES nasceu em Fortaleza e é licenciada em Letras e pós-graduada em Linguística Aplicada (Tradução), pela UECE. De cantora e compositora em bandas independentes, transita entre performances em saraus, experimentos audiovisuais, midiáticos e místicos. Possui poesia e prosa publicadas em antologias, blogs, zines e revistas literárias. Cofundadora da @logoslanguageservices, é revisora textual, transcritora, tradutora e intérprete. Autoexilada em Dublin desde 2016.
- Top 10 melhores faixas de rock da década de 1970.
Nossa viagem continua! Se existe algo próximo de uma unaminidade é de como os anos 70 foram agitados, barulhentos, emblemáticos e importantes para a construção do mundo que conhecemos hoje. Revoltas, protestos, crises, eclosão de movimentos políticos... E é claro que a arte foi um reflexo de tudo isso. O rock tinha se consolidado nos anos 60 como música jovem, contestadora e de contracultura e isso tudo gerou essas dez faixas que listamos agora para voces! 10 – Hey Hey, My My (Neil Young) Esse é um dos hinos do rock e diz, “o rock and roll nunca morrerá”. Será? 9 – Walk On The Wild Side (Lou Reed) Cria de uma cena altamente louca comandada pelo mago da cultura pop americana Andy Warhol, criou asas e voou nessa que é uma das canções mais Beatnik de todos os tempos. 8 – Black Sabbath (Black Sabbath) Canção soturna que começa com um acorde proibido pela igreja na idade média e a frase “ o que é isso que está na minha frente?”. Vai encarar? 7 - Band on the Run (Wings) A segunda banda de Paul McCartney, Wings, lançou seu terceiro e mais bem sucedido disco em 1973. Até hoje é considerado um dos melhores trabalhos do ex-Beatle. 6 – Psycho Killer (Talking Heads) Pais do Indie, na minha opinião é a maior banda de rock americana de todos os tempos. 5 – The Man Who Sold The World (David Bowie) clássico regravado pelo Nirvana e que fez parte de um dos álbuns mais conceituais e bem produzidos de todos os tempos. 4 – The Battle Of Evermore (Led Zeppelin) Podem dizer o que quiserem... Mas pra mim, o Zeppelin é simplesmente insuperável. Ouço nos caras metal, blues, progressivo, reggae, hard... o que cê quer mais? 3 – Bohemian Rhapsody (Queen) Essa é uma das canções mais tristes e bem feitas que já ouvi. Não à toa se transformou nesse fenômeno sendo escolhido como tema do filme que contou a história da banda. Nota dos editores: Abaixo a primeira versão do clipe dirigido por Bruce Gowers ligeiramente diferente que praticamente todos nós conhecemos. 2 – Imagine (John Lennon) Se todos os políticos decisivos do planeta ouvissem e refletissem sobre o que Lennon escreveu nessa música, o mundo seria outro. Abaixo temos o videoclipe oficial. Mas aqui damos a opção de um clipe experimental do incrível artista polonês Zbigniew Rybczyński que ainda é pouco conhecida e antes só estava disponível em serviços de streaming menos difundidos mundialmente como o youku.com (o "youtube" chinês). 1 – Comfortably Numb (Pink Floyd) Melhor solo de todos os tempos e maior banda da história. Só o Pink Floyd conseguiu tocar o céu! E na próxima semana chegamos aos igualmente incríveis anos 60 quando o rock mostrou que (ao menos aparentemente) veio pra ficar!! Até lá! Rodrigo Vargas é do mundo. Nasceu em Goiânia, cresceu em Brasília, estudou em Londres e está cearense. Jornalista e psicólogo, teve bandas de rock e atuou como VJ na televisão. Foi apresentador e editor de cultura da afiliada à rede Globo no Ceará. O resto é história!
- Beethoven - Sinfonia nº 6 "Pastoral" - Análise
Esta simpática sinfonia de Ludwig van Beethoven (1770-1827) parece a mais inofensiva das nove. É bucólica, campestre, matinal, vespertina. A única coisa que quebra sua paz é uma tempestade, que é seu 4º movimento. Mas na verdade, a única sinfonia descritiva de Beethoven, a Sexta, é uma verdadeira revolução. Primeiramente, por isso mesmo, por ser descritiva. Não era nem um pouco comum. Depois, pela orquestração magistral de que o compositor faz uso. Ela opera, se tirarmos a tempestade, como uma sinfonia clássica: 1º - Rápido; 2º Lento; 3º Scherzo e 4º - Rápido. Mas entre o scherzo e o finale, tem ela, ficando a sinfonia com 5 movimentos. A orquestração se destaca porque, mais do que nas sinfonias anteriores, Beethoven faz muito uso das madeiras, confiando-lhes, às vezes, temas inteiros. Além disso, ele usa efeitos para simular o vento, o canto de pássaros e até gotinhas de chuva. Não podemos comparar, em termos de textura, com uma orquestração de Berlioz, ou Tchaikovsky, estes vieram depois e, se orquestravam com maestria, é porque Beethoven tinha aberto o caminho. Falar em caminho, o compositor adorava trilhas na natureza. Essa música é uma homenagem dele ao campo. Falar em trilhas, foi usada quase completa no filme Fantasia (1940), de Walt Disney com Leopold Stokowski regendo a Orquestra de Filadélfia. Eles removeram algumas repetições, mas usaram todos os movimentos. Muito surpreendente, também, é que ela foi composta juntamente com a 5ª Sinfonia, aquele rompante de fúria e triunfo que em nada lembra a serenidade e a calma da 6ª. É como um escritor trabalhar em dois livros altamente contrastantes ao mesmo tempo. Acontece. A orquestra que se pede consiste em: 2 Flautas (1 Flautim no último movimento) 2 Clarinetes 2 Oboés 2 Fagotes 2 Trompas 2 Trompetes 2 Trombones As cordas (Violinos I, Violinos II, Violas, Violoncelos e Contrabaixos) Tímpanos Abaixo, o regente Andrés Orozco-Estrada regendo a Sinfônica da Rádio de Frankfurt. 1º Movimento - "Despertar de sentimentos alegres na chegada ao campo" - Allegro ma non troppo O primeiro movimento é em forma sonata. Beethoven deu títulos que deixam bem claras as suas alusões musicais. No entanto, ele costumava dizer que queria que a Pastoral fosse "antes uma expressão do sentimento do que uma pintura". Ou seja, ela é descritiva, mas também não dá pra pegar qualquer nota, ou mesmo tema, e aplicar-lhe uma imagem. Muitas vezes o que é retratado é só um estado de espírito. A própria forma sonata é usada de maneira muito (extremamente) orgânica, de modo que não pareça que foi talhada pelo compositor, e sim, sentida. Já começa na exposição com o Tema 1 (23s) dando o ar da graça. Essa melodia (sobretudo as três primeiras notas dos violinos) vai ecoar por todo o movimento. Vamos observar o uso da fermata, que é o prolongamento da nota final de uma frase (28s). As violas repetem as quatro primeiras notas (29s) até que uma figura galopante faz um crescendo que leva ao tutti (todos os instrumentos) (1m01s) que reflete o acordamento desses sentimentos. A 1m30s temos o Tema 2. Viu como ele foi introduzido? Sutil e com charme. Esse tema vai passeando, primeiro nos violinos, depois nas violas, depois nos violoncelos, então nos contrabaixos, até que o clarinete, depois a flauta assumem. Tudo isso para nos dar a impressão de quê? De uma cascata. Não é genial? Daí temos a repetição da exposição (2m43s). Essa repetição, antigamente, como as peças tinham que ser mais curtas para caber nos discos de vinil, ela era cortada. Na verdade, essa mania de cortar a repetição da exposição eu acho que tem a ver com o comprimento da obra para o vinil. Avançamos para o desenvolvimento aos 5 minutos. Um motivo galopante (inversão daquele primeiro) faz uma longa elaboração, que passa pelos violinos (5m13s), flautas (5m17s), oboés (5m24s) e vai crescendo até a orquestra fazê-lo em tutti (5m36s). Aí ela vai se fragmentando até virar duas notinhas no fagote, que o próprio fagote se encarrega de transformar numa lembrança do Tema 1 (5m51s). Isso se repete (5m58s) só que, dessa vez, quando a flauta faz seu trecho ela não empaca, mas continua fazendo mais do Tema (6m43s). Aqui (6m53) entra um desenvolvimento mais sério, com o Tema sendo tocado primeiro o fim, depois o começo. E em tom menor. Até que cai nos violinos, que elaboram uma frase graciosa (7m23s) que leva à recapitulação (7m27s), já com o Tema 1 se montando para o tutti (7m49s). O Tema 2 (8m22s) também reaparece e nos leva ao coda (9m35), anunciado pelo clarinete. 2º Movimento - "Cena no riacho" - Andante molto mosso Iniciando aos 11m43s já com o Tema 1, quero que percebam como a melodia é hesitante, descrevendo os murmúrios de um riacho. É repetido aos 12m19s pelo clarinete e fagote. Perceba os trinados das cordas, sempre pontuando a música com o canto de passarinhos. O Tema 2 entra aos 12m49, nos violinos, repetidos pelo clarinete. Veja como, aos 13m27s o Tema 1 volta recheado de referências ao riozinho e os pássaros. Aos 14m12s a flauta executa um teminha de fechamento que será visto mais adiante. Aos 15m39s, uma aparição em canon do fechamento do Tema 1. Aqui Beethoven optou por nos deixar, em vez de uma cantilena longa, com várias melodias fragmentadas, como ideias episódicas: a água, os animais, o clima... Aos 16m35s o oboé aparece lindo com o Tema 1, a flauta fazendo arpejos de contracanto. Depois a flauta assume e eles fazem um belíssimo dueto (16m57s). Aos 17m21s temos uma modulação importante. Ele brinca com os 2 temas, fazendo-os dar voltas no desenvolvimento. Aos 22m31s temos uma espécie de cadência, em que a flauta, o oboé e o clarinete vão fazer uma imitação de rouxinol, codorniz e cuco, respectivamente. Depois a orquestra se junta ao trio para terminar a seção. 3º Movimento - "Feliz reunião de camponeses" - Allegro Aos 24m13s tem início o Scherzo da peça. As cordas começam imediatamente apresentando o Tema 1, descendente. Aos 24m41s o tema se revela grandioso num tutti. Aos 24m53s repare na resposta das trompas, e também nas próprias trompas. No vídeo eles estão usando duas trompas naturais, sem pistos. É um instrumento da época de Beethoven, quando uma trompa só podia tocar as notas da série harmônica a que se propunha (ela podia, através da mudança de tubos, mudar sua tonalidade, porém), enquanto que as de hoje podem tocar cromaticamente todas as notas. Aliás, algumas vezes durante o vídeo vocês vão ver os trompistas tirando os tubos para escorrer o vapor que se acumula no instrumento - não, não é saliva. Aos 25m02s o oboé e o fagote fazem uma melodia que lembrava a Beethoven tanto os laendler (uma dança que precedeu a valsa) quanto as bandas (ruins) de camponeses que ele tanto conhecia. Isso serve de Trio. Repete-se o Scherzo (25m45s) e o Trio (27m13s). O Scherzo (27m56s) é repetido tranquilamente e alegremente até que é subitamente interrompido (29m07s). Os pastores pressentem uma tempestade, e as primeiras gotas já caem. 4º Movimento - "Trovão, tempestade" - Allegro Os contrabaixos em ppp são os trovões à distância, e os ventos. Os violinos e as madeiras vão fazendo crescer a ameaça até que ela explode num terrível relâmpago, num tutti (29m36s) - e só aqui é revelado que a orquestra tem trombones e trompetes. Além de tímpanos. Aqui ele simula tudo, a chuva (29m57s), os trovões (30m07s), gente chamando (30m42s) e o vento (31m22s). Esse movimento é pura criatividade musical. Mas a tempestade passa logo, os últimos trovões ficando pra trás (32m22s). 5º Movimento - "Canção dos pastores. Sentimentos de graça após a tempestade" - Allegretto Sem interrupção, com um espreguiçar da flauta (32m50s) começa o maravilhoso finale. O clarinete (32m54s) toca um tema que lembra um ranz des vaches, um chamado de pastores aos seus animais. A trompa imediatamente responde e isso dá origem ao nosso Tema 1 (33m08s) nos violinos. Repare nas gotas que sobraram da chuva nos violoncelos, nesse trecho. Os segundos violinos repetem o iluminado e inspirado tema (33m26s) e ele vai crescendo até que atinge toda a orquestra. Esse tema vai ser apresentado como um rondó-sonata: aparece e é seguido pela exposição; aparece (35m07s) e é seguido pelo desenvolvimento (35m41s); aparece (37m02s) e é seguido pela recapitulação. E finalmente vem o coda (41m25s). Termina reafirmando o acorde de fá. Termina de maneira mais sutil que qualquer outra sinfonia de Beethoven. Considerações finais A estreia teve alguns problemas. Como era difícil agendar uma sala em Viena em 1808, ele aproveitou quando conseguiu para estrear a 5ª e 6ª Sinfonias, o 4º Concerto para Piano e outras obras. Foi um concerto de 4 horas, e o público não gostou muito. Mesmo sendo seu querido Beethoven, e mesmo sendo no começo do século XIX, era longo demais. Mas com o tempo se tornou uma das mais queridas sinfonias do repertório, e influenciaria, como falei, Hector Berlioz (1803-1869) na sua Sinfonia Fantástica, fascinado pela ideia de música descritiva e pelo uso da orquestra para efeitos. Gravações recomendadas Tentei excluir as gravações pertencentes a integrais de Beethoven, mas não consegui. Nenhuma das sinfonias de Beethoven é mais gravada que as outras, os regentes fazem, em muitos casos, mais de uma vez, a gravação do conjunto das 9 Sinfonias. Existem infinitas versões maravilhosas. Então eu vou listar aquelas com que tenho uma relação afetiva. - Otto Klemperer, com a Orquestra Philharmonia - De 1958. Klemperer é lento, sempre foi. Mas ao mesmo tempo, tem uma força motora, algo carregando a música para frente. Além disso, faz a orquestra tocar com toda a serenidade que a música pede. Pra mim é a versão definitiva. - Claudio Abbado, com a Filarmônica de Viena - Lá pelos 15 anos, eu ganhei um CD do Claudio Abado regendo a Pastoral, numa gravação ao vivo de 1987. Eu estava acostumado com Bernstein, que me parecia que queria que a música acabasse logo. Quando eu ouvi essa, fiquei impressionado com a lentidão, especialmente no primeiro movimento. E com como essa lentidão não era enfadonha. Certamente não é como se tocava à época de Beethoven, mas é lindo. Você vai encontrar nesse link. https://open.spotify.com/album/49hZO6CqdwimXcAHIIF4qP?si=TAONXi3VQiOn3IGeEre2hQ - Mariss Jansons regendo a Sinfônica da Rádio Bávara - Simplesmente impressionante. Eles tocam muito bonito, é uma das maiores orquestras do mundo. De 2013, é uma versão bem moderna. A combinação Jansons + Sinfônica da Rádio Bávara rendeu muita coisa boa. Ele era um regente espetacular. - Christopher Hogwood, com a Academy of Ancient Music - Quando eu ganhei a minha primeira caixinha com as 9 Sinfonias, foi a de Hogwood. E, como sempre, a Pastoral era uma das que mais me interessavam. A versão, de 1988, é lépida, mas não a ponto de ser apressada. Os instrumentos solistas são excelentes. - Carlo Maria Giulini, com a Filarmônica de Los Angeles - Essa versão é iluminada e sadia. O primeiro movimento começa mansinho, até que explode lindamente no tutti. É de 1980. Ao lado da de Klemperer é considerada obrigatória na coleção de qualquer um. - André Cluytens regendo a Filarmônica de Berlim - É uma versão mais durona da música. Mas claro que Cluytens, com a sua sensibilidade imensurável, sabe também tirar leveza da Filarmônica de Berlim quando acha que cabe. Gravação de 1960, som muito bom.
- gosto mais de estar com 30.
Gosto mais de estar com 30. De me olhar assim de perto, um privilégio, e saber que me tornei outra, outra menina, outra mulher. Gosto mais desses encontros com os espelhos. De descobrir, à penumbra ou à plena luz, as minhas formas e suas incontáveis perfeições, no meio das curvas, através dos pelos e poros, no traço das rugas e nas camadas de celulite. Gosto mais de não achar que estou competindo com outras mulheres, de que preciso de um homem para ser feliz, de que devo satisfações da minha aparência, da minha língua e de quem frequenta a minha cama ou os meus textos. Gosto mais de não aceitar menos do que dou, de ter aprendido a dizer não, não gosto, não quero, talvez mais tarde, talvez nunca. Gosto mais de não ter saco para fingir orgasmos, de finalmente ter comprado um vibrador e de saber exatamente o que me deixa com tesão, na minha pele e na pele do outro. Gosto mais de ignorar as vitrines, os manequins, os catálogos de cosméticos, a promessa da juventude eterna, a suposta ameaça dos carboidratos. Gosto de comer meus doces em paz. Gosto mais de saber que não preciso casar ou ter filhos, porque temos abandonado, não sem sofrimento, eu sei, os prazos de validade. Gosto mais de não ter medo do futuro, como quando eu tinha vinte anos e imaginava que já estaria velha aos 30. Gosto mais de me imaginar aos 40. Da ideia de fazer 50. De poder fazer uma grande festa para comemorar os 60, a idade que a minha mãe tem hoje, com o rosto e o sorriso tão belos quanto antes, e o mesmo cheiro doce e atraente nos abraços. Gosto mais de ter chegado até aqui e de me sentir muito bonita, não por causa dos reflexos com mais ou menos roupa, mas por causa de quem eu sinto que sou, da boa companhia que faço a mim mesma, das conversas que tenho comigo e dos sonhos que ainda tenho sonhado, apesar de tudo e de ser mulher. Gosto mais, finalmente e tanto mais, de olhar em volta e saber que não estou sozinha, pois ao meu lado caminham mulheres, grandes e maravilhosas mulheres, com mais ou menos décadas de vida, e que me inspiram todos os dias a gostar mais de mim e dessa vida pela qual eu permaneço acordando durante as manhãs. Kah Dantas Kah Dantas é cearense, mestra em literatura comparada, professora da rede pública de ensino e autora do livro autobiográfico Boca de Cachorro Louco (2016) e do livro de contos eróticos Orgasmo Santo (2020). Gosta de escrever, cometer o pecado da carne e comer docinhos.
- Rachmaninoff ou Rachmaninov? Como se pronuncia e Escreve?
Os russos têm enorme dificuldade em traduzir os nomes para a escrita ocidental. Pra começar, o "o" de Rachmaninoff tem, na verdade, som de Ö. Aquele o com e alemão. Então, às vezes eles põem um o, como Gorbatchov (ele mesmo, às vezes, aparece como Gorbachev), e às vezes, um e, como Pletnev. O som é o mesmo: Ö. Agora vamos pro ff ou v. Também não faz diferença. O som é de f. No caso de Rachmaninoff, usava-se muito Rachmaninov, mas ele mesmo assinava noff, de modo que passou-se a usar mais este. Tipo, no Spotify tá com ff. Nas capas da maioria dos discos modernos, também. Eu me acostumei mais com essa. Calma que ainda faltam dois fonemas. O R de Ra, é trinado, como em prato. E o ch é como o rr (de arroz). Melhor que tentar escrever é mostrar. Veja abaixo. Espero ter ajudado, foi um prazer. Não deixe de conferir nossas listas de: Top 10 Sinfonias Top 10 Concertos para Piano Top 10 Sonatas para Piano
- Brahms - O 2º Concerto para piano - Análise
Falei sobre o 1º Concerto para Piano em Orquestra, em Ré menor, Op. 15 nesse post - é por isso que eu não sou contra as obras terem apelidos. Facilita muito. O Concerto Nº 2 para Piano e Orquestra, em Si bemol maior, Op. 83 é do que trataremos aqui. Licença pra ser pessoal aqui. Conheci essa peça na adolescência, talvez 12 anos. Na época achava a coisa mais romântica (falo do romantismo, movimento cultural do século XIX) que já tinha ouvido. Eu tinha uma namorada imaginária, e era com ela que eu escutava, deitado no chão em frente ao aparelho de som. E também eu gostava de colocar o vinil - tenho até hoje - e ficar lendo o encarte. Era aquela coleção da Editora Abril, que vinha com um libreto falando da vida do compositor e outro falando da obra e da interpretação. Sempre que chegava no final da biografia, quando eu sabia que o compositor ia morrer, eu ficava pensando: "não vou me emocionar dessa vez", só pra cair no choro quando morria. Eu o conheci antes do primeiro, antes mesmo das sinfonias. Brahms era um homem sério, taciturno, e sua vida, sem graça. Nunca casou, só se relacionando com prostitutas e era apartidáro e ateu. As duas únicas coisas emocionantes em sua biografia são a relação com a família Schumann e o embate Brahms-Wagner. Os Schumann Em 1853 Brahms é recebido por Robert e Clara Schumann em sua casa - ele andava sem rumo e seu amigo Joseph Joachim, um grande violinista da época, fez a ponte com os Schumann. O velho compositor já apresentava sinais de seu estado mental precário, mas escreveu palavras generosas e proféticas sobre Brahms: "... jovem que, já no berço, foi embalado pelas graças e pelos gênios... Apresenta todos os indícios que nos autorizam a proclamá-lo um predestinado... Além disso, tem uma elevada virtude, a modéstia... Nós lhe damos as boas vindas como um mestre entre os mestres." Robert Schumann Acontece que Brahms e a esposa de Schumann, Clara, se apaixonaram. Mas Brahms tinha uma personalidade esquisita: sexo, só com prostitutas, sem ligação emocional; e amor, só se fosse sem sexo. Além disso, ele jamais ficaria com ela, mesmo depois da morte de Schumann, em 1856 - tinha Schumann como um pai. Nos últimos estágios da doença, e após uma tentativa de suicídio, Robert foi internado. Brahms voltou imediatamente à casa da família para cuidar de Clara e das crianças (ela era muito atarefada, tinha uma carreira internacional como pianista e era compositora). Além disso, ela não podia entrar no asilo masculino, de modo que Brahms fazia a comunicação entre Robert e ela. Depois que ele morreu eles continuaram bons amigos e, dizem, platonicamente apaixonados. Brahms X Wagner O compositor Richard Wagner encarnava um mito. Era o maior compositor de ópera (que ele chamava de dramas musicais) do mundo. Brahms nunca escreveu ópera, era apegado às chamadas velhas formas (sinfonia, concerto, sonata - musica basicamente instrumental). Não que ópera fosse uma coisa moderna, existia desde o Barroco. Mas Wagner trazia o novo, o bombástico, o apaixonadamente romântico para a música. Ele defendia que a música tinha que descrever alguma coisa. Que música simplesmente por ser música era algo sem propósito. Não houve embate sério entre os dois compositores em si, mas o mundo se dividia entre os Wagnerianos e os Brahmsianos. Quando saía uma sinfonia de Brahms, metade da plateia aplaudia em deleite e a outra permanecia fria, vindo a escrever críticas com tendencias claramente anti-Brahms. Sobre a sua terceira sinfonia, por exemplo, diziam que não tinha uma melodia cantável (como se isso fosse defeito... - e tinha, sim), que ele compunha 15 minutos de música sobre um material parco e vago (coisa que todos admiravam em Beethoven) e que a orquestração não tinha imaginação (outra mentira). Isso, que dividiu a Europa na segunda metade do século XIX, só iria acabar no modernismo, que aí nada mais importava. Nem formas velhas, nem óperas românticas. Mas a despeito disso, no século XX foram escritas mais sinfonias que em qualquer outro. O Concerto Nº 2 Composto em 1881, ele tem quatro movimentos: Allegro non troppo Allegro appassionato Andante Allegretto grazioso—Un poco più presto E é bem longo, ocupando muitas vezes um CD inteiro. Em concertos, é sempre o prato principal, a outra parte tem que ser mais leve. Desde sua estreia, em 1881, em Budapeste, com o compositor como pianista, revelou-se um tremendo sucesso. Ainda maior que o do primeiro concerto. O fato de ser escrito em 4 movimentos revela a intenção de Brams de que o concerto fosse visto mais como uma peça sinfônica - ou seja, que o público não espere grandes exibições de virtuosismo do tecladista. Não obstante, a obra é tremendamente difícil para o solista. Mas se a escutarmos como quem escuta uma sinfonia, tem mais sentido. Essa concepção de "sinfonia com piano" não é nova. Também não é usada aqui pela última vez. Mas esse é um dos exemplos máximos de peça em que a escrita para piano se mescla impecavelmente com a da orquestra. Acima, a pianista chinesa Yuja Wang toca com a Orquestra Filarmônica de Munique, regida por Valery Gergiev. 1º Movimento - Allegro non troppo O concerto começa com um anúncio da trompa (3s), logo seguido de uma leve pontuação do piano (9s). Isso duas vezes. Aí as madeiras, seguidas pelas cordas, fazem aparecer um motivo (28s) que vai ser muito importante na obra. Segue-se um trabalho mais virtuosístico do piano (43s). E aí vem a exposição em si. Em si bemol (1m43s). O tema é o que se segue. Se não sabe ler partitura, acompanhe o desenho: uma subida, uma descida, uma nota curta e uma longa (a nota branca). Depois uma descida, outra descida e a repetição da nota curta com a longa. Só. E o movimento vai te mostrar como Brahms trabalha com realmente pouquíssimo material, só que no bom sentido. Só essas três primeiras notas, serão exploradas à exaustão. A segunda frase também. Na verdade, o trabalho que ele faz é tão extensivo que não dá pra eu colocar coisa por coisa aqui. Peço que procure identificar as duas frases acima por todo o movimento. Elas aparecem triunfantes, ameaçadoras (3m16s), heróicas (11m24s), de toda forma que você imaginar. 2º Movimento - Allegro appassionato O scherzo (não nomeado) do grupo (18m03s). Como o movimento anterior, tudo está no começo. Quase tudo. O trio do movimento, contém uma das páginas mais difíceis da literatura (23m23s), uma sucessão de oitavas contrárias no piano. Logo uma passagem lírica deste (23m48s) faz voltar o trio em tutti (toda a orquestra) para anunciar a volta do scherzo (25m02s). Extremamente bem escrito, tanto em seu uso do piano e da orquestra quanto nas proporções, é um movimento trágico com vários momentos de calmaria e lirismo. 3º Movimento - Andante Nesse movimento (27m40s) o primeiro violoncelo é importante ao ponto de, às vezes, na contracapa do disco, vir o nome da pessoa. É de uma beleza única, uma das mais belas páginas da litrertura musical. Um diálogo respeitoso (um nunca invade a fala do outro) entre o piano e o cello. Havia essa prática de destacar 1 violoncelo para uma parte importante nos movimentos lentos: veja o 2º Concerto de Franz Liszt e o Concerto de Clara Schumann. A melodia aparece em menor (33m54s), com um ar soturno, para dar voz ao clarinete (34m33s), em uma frase longa que desemboca no tema do violoncelo (36m10s), dessa vez em fá sustenido maior, mas logo voltando para original si bemol maior, dessa vez, com piano e violoncelo realmente conversando. O movimento acaba placidamente com motivos antes apresentados. 4º Movimento - Allegretto grazioso—Un poco più presto Esse movimento pode ser tocado de várias maneiras: mordaz, inocente, triunfante... Yuja Wang e Gergiev tocam brincando. Como eu não gosto de Finales, é o meu menos favorito, mas ainda assim, tenho que reconhecer sua excepcional escrita para piano e para orquestra, e o sabor húngaro de alguns dos seus momentos. E reconheço também que é um ótimo final para esse glorioso concerto. Não é um rondó propriamente dito, mas tem elementos de um. Aqui, diferente dos outros movimentos, em que Brahms se limita a uma economia de material temático, temos 5 temas apresentados no começo. Todos são devidamente desenvolvidos. Esse grandioso concerto, com todos os seus elementos de saga, viajando o mundo inteiro, era inédito até então, até mesmo em suas proporções. Foi um sucesso desde a estréia, mantendo-se no repertório desde então como um dos mais titânicos exemplares de obra concertante romântica. Gravações Importantes O concerto tem muitas nuances, de modo que é impossível uma só interpretação captar todas. Por isso listei um bocado aqui em baixo. Mas qualquer que você escolher vai ser excelente. - Emil Gilels, com Eugen Jochum regendo a Filarmônica de Berlim - Assim como no 1º Concerto, essa dupla + orquestra faz uma gravação que serve até hoje de referência. - Nelson Freire, com Riccardo Chailly regendo a Orquestra do Gewandhaus de Leipzig - Também assim como o 1º Concerto, Freire/Chailly fazem a gravação mais falada (e bem falada) da atualidade. É um disco duplo que tem em todas as estantes de amantes de música clássica. Existe um certo consenso de que essas gravações dos dois concertos são definitivas. Mas, como eu disse, a obra tem nuances. - Hélène Grimaud, com Andris Nelsons conduzindo a Filarmônica de Viena - Hélène entra nessa lista não porque eu precisava colocar uma mulher (poucas gravaram os concertos de Brahms), mas porque o que ela e Andris Nelsons fazem é de arrepiar. - Vladimir Horowitz, com Arturo Toscanini e a Sinfônica da NBC - O pianista e seu sogro, o irascível regente italiano, gravaram poucas vezes juntos. Essa aqui, de 1948, foi muito importante, mesmo Horowitz admitindo que não gostava muito do concerto e achando que tocou mal. Bobagem, Volodya, vc arrasa. - Wilhelm Backhaus, com Karl Böhm e a Filarmônica de Viena - Eu lembro. Comprei o disco da coleção Great Pianists of the 20th Century do Wilhelm Backhaus sem saber do repertório. Quando vi que tinha o Concerto Nº 2 de Brahms e o escutei, queria contar pra todo mundo. Era um registro ao vivo em 1952 com a mesma orquestra, regida por Carl Schuricht. Essa aqui é de 1967, de estúdio, com Böhm, e tem o som ainda melhor. O pianista estava com 83 anos! - Sviatoslav Richter, com Lorin Maazel e a Orquestra de Paris - Das gravações de Richter, o grande intérprete desse concerto, eu ecolho essa daqui? É. É uma das que têm melhor som e o acompanhamento de Maazel com a OdP é lindo! - Daniel Barenboim, com Gustavo Dudamel regendo a Staatskapelle de Berlim - A Staatskapelle de Berlim, depois que tomou Barenboim como líder, tem crescido muito. Aqui ele cede o pódio à celebridade venezuelana Gustavo Dudamel e vai tocar piano. E como toca. São gravações ao vivo (tem o Concerto 1, também). - Claudio Arrau, com Bernard Haitink e a Orquestra do Concertgebouw de Amsterdã - Claudio Arrau, com seu sonzão mostruoso, gravou a peça mais de uma vez. Essa é a melhor: está com a orquestra perfeita, um regente talentoso e os engenheiros de som fazem um ótimo trabalho. - Maurizio Pollini, com Claudio Abbado e a Filarmônica de Berlim - Eles dois, Pollini e Abbado, gravaram esse concerto outra vez, com a Filarmônica de Viena. Aliás, acho que foi antes. Eles gravaram tudo: os concertos de Beethoven, Bartók, Brahms, Schumann. Em Chicago, Viena e Berlim. A dupla italiana era certeira, dois intérpretes um tanto discretos e tecnicamente absolutos. - Joseph Moog, com Nicholas Milton regendo a Deutsche Radio Philharmonie - Foi a última gravação desse concerto que me impressionou. A sonoridade é refinada, camerística e tem um ar de época. Joseph Moog é um grande pianista. - Lars Vogt tocando e regendo a Northern Sinfonia - A única gravação nessa lista de alguém que toca e rege ao mesmo tempo. Mas é porque é perfeita. A orquestra está sensacional. Parabéns para todos os envolvidos. - André Watts, com Leonard Bernstein e a Filarmônica de Nova Iorque - De 1968, quando Watts tinha 22 anos. Ele já tinha gravado com Bernstein, aos 17, o Concerto Nº 1 de Franz Liszt, com imenso sucesso. Ele foi do anonimato à fama rapidamente. Infelizmente não grava nada há anos. O único pianista negro a entrar para a coletânea Great Pianists of the 20th Century. Sua interpretação é forte e precisa, André nunca fez mágica com o som, mas toca com facilidade as passagens mais difíceis, e com muita poesia. Leia mais sobre o 1º Concerto aqui. Gostou do post? Não esqueça de comentar e de clicar no coraçãozinho, pra gente saber que você gostou do conteúdo.
- das kino na arara: A Cinemateca Brasileira pede socorro
Salvaguardando o maior acervo audiovisual da América do Sul, a Cinemateca Brasileira é uma instituição pública responsável pela preservação e divulgação da produção audiovisual brasileira. Seu trabalho essencial percorre desde a coleta, catalogação e difusão, até áreas voltadas à pesquisa, estudo e ressignificação das obras audiovisuais. Seu acervo conta com cerca de 250 mil rolos de filmes e mais de um milhão de documentos relacionados ao cinema, como fotografias, roteiros, cartazes, livros, entre outros. Entre os exemplos de material disponível estão os roteiros originais de Glauber Rocha, os filmes da Companhia Cinematográfica Vera Cruz, as primeiras imagens da Rede Tupi, enfim, um patrimônio de valor inestimável. Como reforço da nossa memória audiovisual, visitar a Cinemateca Brasileira deveria ser um passeio obrigatório a todo(a) brasileiro(a), ao menos uma vez na vida. Localizada na Vila Clementino, na Zona Sul de São Paulo, a Cinemateca vive, em 2020, a sua pior crise, e os problemas vão muito além da situação de pandemia, que impossibilita a visitação das pessoas. As dificuldades se iniciaram em 2013, quando uma intervenção do Ministério da Cultura destituiu a diretoria da Cinemateca, retirando sua autonomia operacional. De lá para cá, a Cinemateca vive um cenário constante de enfraquecimento institucional. O descaso da Secretaria do Audiovisual do antigo Ministério da Cultura (MinC) desencadeou, em 2016, o quarto incêndio sofrido pela instituição ao longo sua história, no qual mil rolos de filmes antigos foram perdidos, situação tratada com total desconsideração pelas autoridades. Tivemos, em fevereiro deste ano, mais um caso de desrespeito à cinemateca: Em enchente que danificou 113 mil cópias de DVDs, a Secretaria do Audiovisual se absteve totalmente das responsabilidades e esta situação, inclusive, nunca sequer foi comentada pela ex-secretária da Cultura, Regina Duarte, atualmente cotada por Jair Bolsonaro para coordenar a própria cinemateca. Sem quaisquer medidas de proteção, falta de manutenção, atraso no pagamento dos funcionários e repasse nulo do Governo Federal para que a cinemateca sobreviva, a instituição, que corre o risco de ter cortada a energia elétrica por falta de pagamento, passa por seu pior momento. Sem cuidados técnicos e condições propícias de conservação, arriscamos perder a totalidade do nosso acervo, uma deterioração da nossa própria memória coletiva e social. Foi divulgado, em 15 de maio, um abaixo-assinado intitulado “Cinemateca pede socorro”, com assinatura de diversos profissionais do setor audiovisual, como cineastas, produtores, críticos, professores, estudantes, curadores, programadores e colaboradores, o texto reporta o total sucateamento que vem sofrendo a instituição. No Twitter, o cineasta Kleber Mendonça Filho enfatizou a questão: “Isso é um pedido de socorro no pior momento dessa instituição que cuida da memória do Brasil”. O diretor estadunidense Martin Scorsese também manifestou apoio e indignação e cobrou explicações sobre o caso. Além de ser uma figura central na fundação da Cinemateca, o crítico e historiador do cinema Paulo Emilio Salles Gomes reforçava sua concepção de Cinemateca voltada uma educação para o cinema. Ocorre que hoje, muito pelo contrário, o que vemos é um governo que não tem projeto para a cultura, e declara uma guerra cultural contra quem tem. Além de deixar morrer os corpos, levando adiante sua necropolítica, também pretende matar as almas. No site da Federação Internacional de Arquivos Cinematográficos é possível ver vários vídeos de apoio à Cinemateca Brasileira. As cinematecas são, geralmente, um local de encontro, um museu, um ponto turístico, motivo de orgulho da população do país. No México, por exemplo, a Cinemateca vive lotada. Em Bogotá, a Cinemateca foi, em 2019, lindamente restaurada. Por aqui, o audiovisual tenta sobreviver. Que dias melhores venham para a Cinemateca Brasileira! Jéssica Frazão é produtora audiovisual e doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP). É integrante do Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema (Elviras) e colunista cinematográfica no jornal O Município Blumenau, com "Das Kino - Um olhar crítico sobre o cinema".
- Os Milagres de Mozart - Concerto para Flauta e Harpa - Análise
As circunstâncias para que justamente Wolfgang Amadeus Mozart compusesse um Concerto para Flauta, Harpa e Orquestra tinham que ser as que foram. Decidido mais uma vez a tentar a vida fora de sua Salzburgo natal, onde seu pai insistia que ficasse, o jovem de 21 anos vai com a sua mãe a Paris. Lá ele se aloja na casa do Duque De Guines, que lhe encomendara aulas de composição para sua filha, Marie-Louise-Philippine. No começo, Wolfgang ficou encantado, a menina era talentosa, o duque tocava flauta muito bem, segundo o próprio Mozart, e encomendou esse concerto para suas próprias habilidades, bem como as da filha na harpa. Mozart compôs essa obra absolutamente maravilhosa, que até hoje está no repertório de qualquer flautista ou harpista. Acontece que a viagem a Paris não foi muito boa. Primeiro porque o duque, ao final das aulas, não quis pagar o que devia a Mozart. Ofereceu metade (que louco!), que o compositor recusou. Pra piorar, a mãe dele acabou morrendo de uma doença que nunca ficou esclarecida. Mozart estava em dívidas, tinha que penhorar objetos constantemente, e a demora em chamar um médico possivelmente foi por causa da falta de dinheiro. Uma coisa que surpreende algumas pessoas às vezes é como, em períodos de penúria, ele compunha peças tão leves e angelicais. Temos que lembrar que a morte prematura e a doença eram muito comuns naquela época. Ele mesmo era um filho que tinha vingado junto com a irmã, de um total de sete que nasceram. Resignava-se e se seguia a vida. Isso e o fato de que ele era um músico realmente prodigioso. Veja aqui um exemplo. Enfim. Ele compôs rapidinho, como costumava, e tudo leva a crer que a peça foi executada pelos três. E nunca mais ele tocou no assunto. A peça está pronta, e muito bem acabada, mas ele não escreveu as cadências, de modo que hoje, praticamente toda gravação tem uma versão diferente das cadências - ele obviamente escreveu pausas e a palavra cadenza para indicar onde as queria. O Concerto Em Dó Maior, esta obra singela e juvenil é o K. 299 de Mozart. Koechel, ou K. é a catalogação mais aceita para as obras dele. Equivale ao Opus. Ele compôs até o K. 626, quando, aos 35 anos, faleceu. Nos concertos até essa altura (antes do século XIX), quando os solistas eram mais de um, chamava-se a eles de concertino e à orquestra, de ripieno. A orquestra do Concerto para Flauta e Harpa é pequena, constituindo-se das cordas, dois oboés, duas trompas e os solistas. Abaixo, o flautista Mathieu Dufour, a harpista Marion Ravot, com a Orquestra da Academia Karajan da Filarmônica de Berlim, sob a regência de Ton Koopman. 1º Movimento - Allegro A obra abre luminosa (30s), com um acorde que leva a uma série de arpejos ascendentes e descendentes. Já é o Tema 1. Note que essa parte é da orquestra, mas era prática comum o concertino se juntar ao ripieno, especialmente no começo da Exposição. Hoje em dia nem sempre se faz isso. 1m09s temos o Tema 2, bem mais calmo e cantante. Com 1m52 começa a exposição dos solistas. Eles praticamente repetem o que fez a orquestra, mas com pequenos arabescos (2m05s), já desenvolvendo o material temático. Aos 2m40s temos esse novo Tema, que é apresentado pela flauta. Aos 3m começa um belo jogo entre as cordas e a flauta e que vai ser explorado posteriormente. Aos 3m22s o Tema 2 volta. E aos 4m48s entra o Desenvolvimento, em que eles trabalham todo o material apresentado. Aos 6m01s vem a Reexposição (ou Recapitulação). Aqui eles vão apresentar os temas 1 (6m01s) e 2 (6m21s) e 3 (6m40s) novamente e abrir espaço para a cadência. Antes, repare nesse momento (7m30s), como a articulação da flauta e dos violinos é perfeita. Aliás, o fraseado inteiro é perfeitamente sincronizado. A cadência se inicia aos 8m43s e vai até 9m52s, quando a orquestra retoma só pra finalizar. 2º Movimento - Andantino O segundo movimento (10m42s) é o milagre de Mozart. Ele apenas apresenta um Tema longo e vai variando - tática que Beethoven aproveitaria, por exemplo, no 2º movimento do seu Concerto para Violino. Começa com as três notinhas em staccato (10m42s) seguidas pela bela frase que as complementa (10m57s). Poucas são as gravações que expõem com nitidez a característica harmônica desse trecho. Especialmente as violas e os segundos violinos, fazem notas dissonantes maravilhosas. Dá pra perceber bem na versão de Hogwood (veja abaixo). Aos 11m26 o concertino repete o longo Tema, e aos 11m56s eles o desenvolvem brevemente. Aos 14m14s repete-se mais uma vez com consequências diferentes. E agora leva a uma cadência (17m09s). Aos 19m07s a orquestra faz seu retorno pra encerrar o movimento. 3º Movimento - Rondeau - Allegro Aos 20m10s tem início o Rondó, que originalmente era uma dança, mas que evoluiu para uma forma. É mais uma forma do que qualquer coisa. O Tema 1 é sucedido da parte 2. Aí volta o Tema 1, dessa vez seguido da parte 3. Enfim, A-B-A-C-A-D-A-E-A... Se assemelha a uma brincadeira. Repare, por exemplo, quando a harpa entrega uma ideia (21m21s) e a flauta devolve (21m31s) um pouco diferente. Faz parecer que os músicos estão improvisando. Volta o Tema 1 (23m55s).Depois, Tema 1 no modo menor (25m14s) e cadência (27m40s). Até que a orquestra volta novamente (28m36s) para encerrar. Considerações Finais É um lindo concerto da juventude de Mozart. Ele obviamente não tocava harpa, mas a escrita não é ruim. Ainda era um instrumento com pouca notoriedade, mais um brinquedo de moças da alta sociedade europeia. Na harpa não se usa o dedo mindinho, de modo que alguns padrões de 5 notas ou 10 são identificáveis como tendo sido compostos para o teclado e depois transpostos para ela. Ademais, nos dois primeiros movimentos é praticamente um concerto para flauta com orquestra e harpa acompanhantes. A harpa só se manifesta mais no terceiro movimento. Gravações Recomendadas - Lisa Beznosiuk (flauta) e Francis Kelly (harpa), com a Academy of Ancient Music, regida por Christopher Hogwood - Christopher Hogwood, grande maestro inglês, e sua orquestra, AAM, são especialistas em repertório pré século XIX. Isto é, tocam com instrumentos do século XVIII (ou cópias fieis) e com técnicas dessa época. Veja mais sobre isso aqui. Essa gravação, de 1987, é impecável. Todas as articulações, os andamentos e as dinâmicas são decisões acertadas. - Karlheinz Zoeller (flauta) e Nicanor Zabaleta (harpa), com a Filarmônica de Berlim, regida por Ernst Märzendorfer - Uma versão bem conhecida. Zabaleta era o harpista do século XX. O som é meio problemático. A harpa parece ter uma microfonação mais distante, mas parecem querer compensar isso deixado o volume mais alto. Mas eles tocam impecavelmente. É uma interpretação romântica da obra, ou seja, usam uma orquestra grande (mais cordas) e fraseados modernos. É de 1962. - Jacques Zoon (flauta) e Letizia Belmondo (harpa), com a Orquestra Mozart, regida por Claudio Abbado - Essa é a ideal pra quem fica indeciso entre uma abordagem (a "de época") e a outra, romântica. Essa aqui, de 2011, é mais como se faz hoje, isto é, com uma orquestra moderna, mas sem exageros, nem de tamanho nem de arroubos sentimentais. Mas também não tem muitas "regras" como têm as "autenticas". Gostou do post? Vai gostar das nossas outras análises. E vai comentar, você vai comentar - olhe bem fixo pra cá; você está começando a sentir sono, os olhos pesados. Mas sabe que se comentar isso passa. Tchaikovsky - A Sinfonia Nº 6 "Pathétique" Rachmaninoff - Concertos Nº 1, Nº 2, Nº3 e Nº 4 Debussy - Os Prelúdios para piano: Livro 1 e Livro 2
- Beatriz - Edu Lobo e Chico Buarque
Eu mesmo cantei Beatriz. Minha filha se chama Beatriz, então, não poderia ser outra pessoa. Perguntei ao Renato Braz, mas ele disse que preferia gravar outra, que essa ele já tinha gravado. Ele acabou gravando "Sobre Todas as Coisas". Não tive dificuldade de achar o tom certo pra cantar, porque resolvi que gravaria tirando 95% do rubato que o Milton Nascimento incutiu nela. Claro que eu não consigo cantar como Milton Nascimento. Principalmente com excesso de rubato. Vou dizer uma coisa. Cantar com esse tanto de rubato do Milton, só o Milton. Eu tive que fazer quadradinha. Mas ficou bem bonitinha. Veja como cada nota conta, tanto da voz como dos instrumentos. Violão, voz, flauta e arranjo: Rafael Torres Piano: Leonardo Torres Bandolim: Ayrton Pessoa Baixo: Ednar Pinho Beatriz Edu Lobo e Chico Buarque Olha Será que ela é moça Será que ela é triste Será que é o contrário Será que é pintura O rosto da atriz Se ela dança no sétimo céu Se ela acredita que é outro país E se ela só decora o seu papel E se eu pudesse entrar na sua vida Olha Será que é de louça Será que é de éter Será que é loucura Será que é cenário A casa da atriz Se ela mora num arranha-céu E se as paredes são feitas de giz E se ela chora num quarto de hotel E se eu pudesse entrar na sua vida Sim, me leva para sempre Beatriz Me ensina a não andar com os pés no chão Pra sempre é sempre por um triz Ai, diz quantos desastres tem na minha mão Diz se é perigoso a gente ser feliz Olha Será que é uma estrela Será que é mentira Será que é comédia Será que é divina A vida da atriz Se ela um dia despencar do céu E se os pagantes exigirem bis E se um arcanjo passar o chapéu E se eu pudesse entrar na sua vida
- Papo de Arara: Gidalti jr.
No ano de 2018 o mais importante prêmio literário do Brasil, o Jabuti, lançou a categoria “Quadrinhos” em sua premiação. O primeiro vencedor dela foi o mineiro natural de Belo Horizonte criado em Belém do Pará Gidalti Jr. Embora seu romance gráfico Castanha do Pará (cuja breve resenha que fiz é possível de ser lida aqui) tenha sido lançado em 2016, foi neste ano com a premiação e, contraditoriamente, com uma censura, que sua obra ganhou espaço na mídia. Em uma exposição num shopping de Belém um dos painéis do artista (justamente a pintura que serve de capa para Castanha do Pará) foi coberto com um lençol a pedido da polícia militar. De São Paulo, o artista que também é professor universitário, concedeu esta entrevista onde fala de sua estreia no mundo da arte sequencial com sua obra premiada com o Jabuti e também indicada ao HQ mix de melhor obra independente. Foi nesse período, cerca de 3 anos atrás que eu entrevistei Gidalti. Republico não somente a entrevista dele aqui, como, numa troca de e-mails rápida, fizemos uma segunda rodada de perguntas "atualizando" a primeira entrevista. Seguem agora ambas aqui nessa postagem. O romance gráfico Castanha do Pará do Pará é sua primeira incursão pelos quadrinhos. Quanto tempo entre a ideia inicial e sua publicação? Sim. De fato a novela gráfica Castanha do Pará é o meu primeiro trabalho de fôlego como autor. Já havia produzido material numa linha mais experimental e pessoal, nada que eu tenha publicado ou tentado publicar. Desde o inicio da ideia da minha HQ, fui com uma ideia objetiva de publicar uma novela gráfica robusta. O tempo de produção durou aproximadamente 3 anos. Ele é uma adaptação de um conto, correto? O conto Adolescendo Solar de Luizan Pinheiro, que eu usei de inspiração para criar o enredo do Castanha do Pará, é a maior influencia na obra. Em seguida, memórias de minha infância vivida e inventada. Ainda, Belém e suas peculiaridades. Sou natural de Belo Horizonte, Minas Gerais, e fui muito criança pra Belém, onde eu vivi minha infância, minha adolescência e parte de minha fase adulta. E tuas referências e influências de modo geral? As minhas referências são bem diversas. A princípio poderia citar o Milton Hatoum, que é um exemplo de como explorar bem o contexto do Norte, assim como outros escritores da região, como Salomão Larêdo, Dalcídio Jurandir, Edyr Augusto Proença. Também cito outras influências como Machado, Franz Kafka, Mia Couto e Ariano Suassuna. No que se refere a parte gráfica e de narrativa, curto muito o trabalho de Jon J. Muth, Enki Bilal, Shiko, Sergio Toppi, Greg Tocchini, Juanjo Guarnido, Pablo Echevarria e meu professor Carcamo. Estou sempre acompanhando como o Brasil é retratado no cinema. Me atrai o olhar de Walter Salles em Central do Brasil e Abril Despedaçado, Fernando Meirelles em Cidade de Deus, Anna Muylaert em Que Horas Ela Volta, Kléber Mendonça Filho em O Som ao Redor, José Padilha em Tropa de Elite e muitos outros. Tenho muitas referências nas artes plásticas e em especial na pintura. Para não me alongar, citaria o Anders Zorn, Sargent e Sorolla. Queria também que você explicasse essa questão da censura. Eram painéis expostos num shopping em Belém? Como foi o convite para essa expo. Eram reproduções suas em painéis, correto? Como chegou a notícia da censura da sua pintura? Eu participei de uma exposição que circula em alguns centros comerciais de Belem. É uma exposição de quadrinistas e artistas que estão no contexto do de produção de quadrinhos no Pará. Uma das obras que estavam na exposição (uma réplica da capa do meu livro) figura uma cena em que um policial militar está correndo atrás de um menino de rua, que é o protagonista do meu livro. É uma cena de ação em que o policial faz um movimento com o objetivo de capturar ou prender o menino. Um movimento de repressão enquanto o menino foge. Aparentemente, essa imagem incomodou um grupo de pessoas que tem afinidade ou vínculos com a polícia militar do Pará, e esse grupo se manifestou por meio das redes sociais de maneira incisiva e até ameaçadora, exigindo a retirada da imagem da exposição. E foi o que aconteceu. Fiquei sabendo do ocorrido através de um jornalista que me procurou perguntando o que eu achava da retirada da obra da exposição. Nesse momento que eu comecei a tomar conhecimento do ocorrido. Como você está lidando com a censura de sua obra pela polícia do Pará? O caso foi resolvido, já? Como isso vem repercutindo? Sobre o caso da censura, eu me manifestei contra por meio das redes sociais e a resposta do público geral e da imprensa foi muito gratificante, pois gerou nas redes sociais e na mídia uma grande manifestação a favor da liberdade e de solidariedade a minha pessoa. Infelizmente, a capa foi retirada da exposição e substituída por outra mas para a administração do shopping a ação pegou muito mal. Apesar do stress, o livro ficou mais exposto ainda. Foi um tiro no pé para os censores. Castanha do Pará pode ter sido sua primeira obra, mas que outras ideias passaram pela sua cabeça antes dela? Ou Ela realmente foi sua primeira ideia de quadrinho? Antes de produzir o álbum eu queria fazer quadrinho de super herói. Eu me via como um desenhista da marvel, dc ou Vertigo. Me via mais como uma peça dentro de uma indústria, por conta de um desconhecimento de minha parte em relação as possibilidades desse universo. Enxergava as possibilidades de atuar na indústria americana era algo mais palpável, uma vez que minhas referências, os artistas que eu admirava atuavam nessa linha. Somente depois que eu ampliei meu universo artístico, seja por meio de influências vindas do cinema, da literatura clássica, das artes plásticas e mesmo de outras abordagens em fazer e pensar histórias em quadrinhos (como o mercado europeu e os autores brasileiros) que percebi que poderia caminhar nessa linha. O projeto foi inscrito no Catarse, demorou muito para conseguir angariar as doações necessárias para o orçamento? sim, o livro foi financiado por meio de financiamento coletivo. Não demorou para que o projeto arrecadasse a verba para custear a impressão e a distribuição. Isso se deve ao fato de que antes de publicar o projeto no catarse, eu já tinha um grande investimento de labor no trabalho, então quando expus o projeto na plataforma, ele já estava praticamente pronto para ser impresso na gráfica. Isso gerou credibilidade nos apoiadores e as pessoas investiram sabendo que o trabalho já estava muito proximo de chegar em suas mãos. Alguns apoiadores receberam o livro antes mesmo da campanha no catarse terminar. E a sensação de ganhar o Jabuti, aliás, de ser o primeiro vencedor da novíssima categoria de Quadrinhos do prêmio Jabuti? Como você soube que estava concorrendo e qual foi a sensação de ganhar? Ganhar o prêmio jabuti foi algo muito especial. O quadrinho nacional está em uma fase excepcional, com muitas obras e autores ganhando cada vez mais destaque.Estamos ganhando espaço, entretanto, o mercado ainda não é totalmente solido. A maioria dos autores que produz quadrinho autoral ainda se encontra em uma zona de risco. A abertura da categoria no prêmio Jabuti confirma os méritos dessa produção. Submeti o projeto ao prêmio sem esperança de estar entre os finalistas, tendo em vista a quantidade de negativas que tive anteriormente. Quando soube que era um finalista, já me sentia muito realizado e ganhar o primeiro lugar foi de fato um reconhecimento que não esperava. Fiquei muito feliz e animado para produzir mais e melhor. Já pensa em próximos projetos em quadrinhos? Sim, estou sempre com muitos projetos em mente. Alguns em fase de amadurecimento, outros mais imaturos. Ainda não sinto a vontade para expor detalhes de trabalhos que ainda estão em fase de amadurecimento, mas não devo demorar a entregar novidades aos meus leitores. Depois dessa entrevista, publicada no jornal onde trabalhava, entrei em contato alguns meses atrás com o Gidalti, não somente para revisitar essas perguntas, mas também para fazer outras. Uma espécie de segundo tempo da nossa conversa, um segundo round. Segue abaixo. 1) Sabemos que um quadrinho no estilo de Castanha do Pará, que muitos usualmente chamam de "Álbum" levam muito tempo para serem feitos. Castanha do Pará por exemplo, você comentou que demorou cerca de 3 anos para sair do papel. Mas de lá para cá algumas das suas ideias ganharam força o suficiente para estarem perto de serem impressas? Sim. Estou a alguns anos envolvido na pesquisa, roteiro e arte de um novo projeto. Será publicado em 2021 e tem o apoio do Proac, o programa de ação cultural de São Paulo. 2) Quando digitamos seu nome no Google aparece logo em seguida que sua profissão é de professor. Eu também já fui professor por cerca de dez anos. É um trabalho fascinante, mas que exige muito e toma tempo. Particularmente eu me inspirava muito, contudo, não tinha tempo para colocar nada (ou quase nada ) no papel. Era paradoxal. Para você, como que ser professor interfere no seu fazer artístico e vice-versa? Ser professor está diretamente ligado ao meu fazer artístico, pois a vivência no ambiente acadêmico me permite estar em constante aprendizado. Penso muito na realização de obras de arte como algo bastante similar a pesquisa científica. O pensamento acadêmico ajuda muito a gerenciar todas as fazes da produção de quadrinhos, por exemplo. E no fim, parte de minhas intenções passam em gerar saberes a parir de minha obra. 3) Como você avalia o impacto do prêmio Jabuti hoje na sua vida pessoal, profissional e para os quadrinhos de um modo geral? Os impactos ainda são sentidos, permanentes, digamos assim, ou é necessário esquecer isso para focar no futuro, em coisas novas e não ficar "deslumbrado" com o prêmio? Obviamente que há impactos permanentes e a maioria destes é no sentido positivo. Como toda conquista, é preciso celebrar e virar a pagina. Sou movido pela novidade e pela inventividade e procuro me colocar sempre fora da zona de conforto. Grandes conquistas surgem a partir dessa lógica de que nada é garantido. 4) O cenário da literatura independente, especificamente de quadrinhos, de dois anos para cá, como você avalia as facilidades e dificuldades para quem quer publicar? Mudou muito, mudou pouco? Não tenho acompanhado de perto as mudanças mais relevantes dos últimos dois anos. Mas posso dizer que, hoje, as possibilidades são múltiplas e há espaço para todos. As pequenas e novas editoras, as plataformas de financiamento e os editais de cultura são determinantes nesse sentido. O mercado continua carente de mais leitores, temos problemas de distribuição, mas o contexto atual é muito dinâmico e temos que estar sempre resilientes e produzindo sempre. Atualmente Gidalti se prepara para lançar o álbum Brega Story que explora o rico universo da música brega paraense. Agradecemos à leitura e se quiser ler nossas outras entrevistas, basta clicar aqui.
- O Visconde Partido ao Meio
O mundo é feito de dualidades. Quente e frio. Claro e escuro. Luz e Sombra. Amor e ódio. Mas acredito que entre as dualidades mundanas, nenhuma tem mais voga que a entre o bem e o mal. E é esta que Ítalo Calvino traz a baila no seu O Visconde Partido ao Meio, obra de 1952, que teve sua primeira edição brasileira em 1988. Ítalo nasceu em Cuba em 1923 e seguiu com seus pais, logo após seu nascimento, para a Itália. Formou-se em Letras e iniciou Agronomia, curso o qual abandou para se juntar à resistência ao fascismo durante a segunda guerra mundial, fazendo do cunho político uma presença assídua em suas obras. Em O Visconde Partido ao Meio, Medardo di Terralba, o Visconde, vai para a guerra contra os turcos, acompanhado de seu escudeiro, Curzio. Lá pelas tantas, Medardo é atingido por um tiro de canhão que o manda pelos ares, partindo-o ao meio no sentido dos pés à cabeça (meu lado biólogo me força a trazer o termo correto: partindo-o em corte sagital). Durante a noite, período de trégua, duas carroças percorrem o campo de batalha: uma para os feridos, uma para os mortos. Do Visconde só se achou metade direita do seu corpo, a qual foi colocada na carroça dos feridos, levada ao hospital e tratada. Após sua “meia” recuperação, meio Medardo volta a Terralba, mas não parece o mesmo que a deixou para a guerra. Além do físico coberto parcialmente por uma capa escura, o visconde se tornou uma pessoa má (qual a relação entre direita e maldade? Olha o cunho político aí, gente!). Quem sabe foram as experiências da guerra que o deixaram assim. Tempos depois, certa confusão se forma ao perceberem a mudança de comportamento do Visconde, que se tornou caridoso e benevolente para com os seus. O que aconteceu realmente com o Visconde, deixo para vocês descobrirem quando lerem a peça de Calvino. Mas o que “O Visconde Partido ao Meio” deixa como aviso, pelo menos para mim, é a questão do equilíbrio. Dualidades, na verdade, não são compostas por duas coisas, mas de apenas uma. Por exemplo: luz e sombra. A sombra nada mais é que a ausência de luz. Então podemos dizer que são duas coisas distintas, sendo que uma é apenas a ausência da outra? E onde começa a luz e termina a sombra, ou vice-versa? Onde começa o calor e termina o frio, sendo que o frio é apenas a ausência de calor? Não temos como dizer onde começa uma e termina a outra, porque não são duas coisas limítrofes que são invadidas conforme a circunstâncias. São apenas a mesma coisa, em “estados diferentes”. Assim como o bem e o mal, abordados na obra do Visconde. Ser benévolo o tempo todo é benéfico e garante a felicidade de si e de outrem? E ser mau? Leiam a estória do Visconde que foi partido ao meio por uma bala de canhão na guerra religiosa entre cristão e mouros e tirem suas conclusões. Curte literatura? Que tal uma lista com 10 livros diferentões pra ler como essa aqui? Ou uma resenha do livro de terror mais badalado do momento? E quem sabe um artigo sobre as principais escritoras argentinas da contemporaneidade? LEANDRO KRINDGES é Técnico Químico de profissão, licenciado em Biologia por paixão, fã de Foo Fighters a Belchior e de tirinhas, especialmente Peanuts. Sempre teve curiosidade em saber o que se passava por trás das músicas, e essa busca se tornou um hobby. Tecladista da Banda Villa Rock, arranha também violão e guitarra. Aprendeu a gostar de ler depois do Kindle.
- Castanha do pará de gidalti moura jr.
Castanha-do-Pará é, sem dúvida, uma obra que futuramente irá figurar em todas as possíveis listas de melhores quadrinhos brasileiros do século XXI, ou ainda em alguma antologia sobre as principais e melhores obras de arte sequencial brasileira vindo desde Ângelo Agostini até os dias atuais. Publicada em 2016 ela foi simplesmente a primeira obra a ganhar o prêmio Jabuti, o mais importante da literatura brasileira na categoria (também lançada em 2018 e, confesso, com certo atraso já) de Histórias em Quadrinhos. O prêmio, e também uma problema jurídico sobre censura que um de seus painéis expostos numa exposição num shopping em Belém, contribuíram para a repercussão do livro. Uma obra com temática necessária e, infelizmente atual, sobre a situação de garotos em situação de rua do país do ponto de vista de um único garoto, Castanha, e de uma única cidade, Belém, mas que respeitando a máxima de Dostoiévsky “cante sua aldeia e cantará o mundo” retrata praticamente todo o país. O trabalho tem uma narrativa literária paralela entre passado e presente que se complementam com ironia e sarcasmo. A narrativa tem uma forte matiz de naturalismo, dada a visceralidade de seu universo, seu cenário, sua história e seus personagens. Mas a narração visual que brinca com elementos realistas, surrealistas e expressionistas transforma tudo numa alegoria visual potente. Se Art Spielgeman ficou conhecido por Maus ao retratar judeus como ratos, alemães como gatos, poloneses como porcos e aliados como cães, aqui Gidalti retrata a partir de animais de nossa fauna urbana como gatos, cães, ratos e urubus as crianças em situação de vulnerabilidade social. A pergunta lançada por Hector Babenco em seu filme Quem matou Pixote reverbera nessa tragédia contemporânea, urbana e banal mostrando os verdadeiros culpados por tantos Pixotes (e acreditem, não são poucos, nem os Pixotes, nem os culpados). E por falar em cineastas, é inevitável vir à minha memória ao falar de uma estreia já tão premiada quanto essa, a figura de Anselmo Duarte, diretor de O Pagador de Promessas, ele falou certa vez em entrevista que largou o cinema porque se no início de sua carreira já ganhou o prêmio máximo do cinema (a Palma de Ouro em Cannes), tudo o que viesse depois (e alguns filmes vieram) seria menor. Tomara que Gidalti Jr. Pense realmente além de prêmios e siga numa profícua carreira nos quadrinhos.
- Sobre dragões em garagens
Tenho escrito sobre os riscos de se acreditar em afirmações falsas (tanto sobre os supostos argumentos do movimento antivax como em fake news de um modo mais geral) e me senti na obrigação de escrever sobre ceticismo. Mais especificamente sobre ceticismo cientifico. Esse termo foi cunhado por Carl Sagan, um dos maiores divulgadores da ciência de todos os tempos, que inspirou muitos jovens a seguir a carreira cientifica, eu incluso. Sei que falar sobre esse assunto sempre causa um certo desconforto, pois é exatamente nesse ponto em que percebemos que a maioria das pessoas não gosta da ciência. Elas gostam das descobertas, dos produtos da ciência. Mas não são muito fãs das perguntas que a ciência faz. Para começar preciso citar outra frase de Sagan: “A ciência é mais que um corpo de conhecimento, é uma forma de pensar, uma forma cética de interrogar o universo, com pleno conhecimento da falibilidade humana.” Mas porque essa forma de pensar causa incômodo? E qual a ligação com dragões em garagens? Vamos por partes. Em seu livro intitulado o Universo assombrado por demônios, Sagan sugere a seguinte situação. Um belo dia alguém que você conhece te diz que tem um dragão morando na garagem. Você decide ir até lá e não vê dragão nenhum. Mas seu amigo insiste que esse dragão é invisível, o que explica satisfatoriamente o fato de você não conseguir ver o tal dragão. Você põe farinha no chão para ver as pegadas, mas seu amigo te informa que esse dragão flutua. Aí você sugere que se jogue tinta em cima dele pois assim vai ficar visível. Mas seu amigo te informa de que esse dragão é etéreo, imaterial, a tinta não grudaria nele. De forma que não há como detectar aquele dragão. A essa altura você deve estar duvidando da seriedade ou da sanidade do seu amigo não é mesmo? É fácil ver nesse caso como o ceticismo pode ser útil e importante para não se deixar acreditar em afirmações infundadas. São necessárias provas irrefutáveis para aceitar essa afirmação como sendo parte da realidade. E simplesmente aceitar qualquer afirmação desse tipo pode ser perigoso além de ridículo. Portanto você diz ao seu amigo que quando ele puder detectar e fornecer alguma prova você irá acreditar. Assim como um amigo que acredita em signos, o dono do dragão tem uma crença que para você não faz sentido. Mas não parece tão grave. Agora imagina que além do seu amigo tem mais gente acreditando nisso. Não só que aquele dragão é real mas que todas as casas do mundo tem um dragão indetectável na garagem e que trazem presentes e enfeites para eles. Loucura não? Imagine que a crença ficou tão popular que não acreditar nela te exclui de grupos, deixa pessoas furiosas, faz com que duvidem do seu caráter. Adicione a isso o ingrediente emocional. Uma geração se passou e agora temos pessoas que foram criadas desde a infância acreditando nesses dragões. Eles absorveram esse ensinamento de maneira emocional, ouviram histórias sobre os dragões salvando a humanidade, essas histórias ajudaram a moldar o caráter delas. Agora quando você tenta explicar que as coisas acontecendo na vida daquela pessoa não dependem da vontade dos dragões, você também estará dizendo a ela que muitas das belas lições que seus pais lhe ensinaram sobre a vida são baseadas em afirmações sem sentido. Que mesmo sendo as pessoas que ela mais ama e admira eles estavam errados em relação ao que acreditavam e ela também está. Carl Sagan nos desafia a manter um estado mental cético, porém aberto a novas ideias e possibilidades. Afinal, você não teria problemas para acreditar na existência dos dragões se eles deixassem pegadas na farinha. Se cobrir o dragão de tinta deixasse ele visível, e se fosse possível interagir com eles, não teria nenhum motivo para discordar do seu amigo. Nesse caso o ceticismo cientifico nos diz para aceitar os dragões como realidade. Por mais incrível e surreal que seja a existência de dragões, se existem provas que não podem ser refutadas então eles são reais. Não importa quantas pessoas aceitem esse fato ou não. A primeira coisa que quero salientar é a importância da análise de evidências. Principalmente quando queremos acreditar em algo. Alguém que jamais perdeu um amigo ou um parente vai ter maior dificuldade de acreditar em comunicação com mortos do que alguém que perdeu pessoas queridas. O fato de uma afirmação parecer agradável ou reconfortante deve ser o primeiro sinal de que precisamos analisar com mais cuidado, pois somos naturalmente susceptíveis ao engano quando queremos acreditar em uma afirmação. A segunda coisa é que o número de pessoas acreditando em uma afirmação não deve ser usado como argumento para validar uma ideia. Entretanto a ideia de pertencimento a um grupo é tão forte que esse argumento é usado inúmeras vezes em nossa sociedade na ideia de que um produto mais consumido é o melhor. Para reforçar essa ideia vale até criar estatísticas e afirmações fantasiosas ainda que contraditórias, (a pasta de dente indicada por 9 a cada dez dentistas aparentemente não é a pasta mais indicada pelos dentistas). A ideia de que a maioria não pode estar errada é explorada também em discursos políticos que chegam a distorcer o conceito de maioria para defender a legitimidade das suas imposições de ideias. Um grande exemplo é nosso atual presidente dizendo que as minorias devem se curvar a vontade da maioria. Para essa frase fazer sentido ele teria que ser pronunciada em mandarim. Sem o cuidado de fazer questionamentos céticos diante das informações que nos são apresentadas acabamos vulneráveis. E por mais que você possa pensar que acreditar em fantasias pode ser inofensivo, saiba que sempre pode ser perigoso viver fora da realidade. Quer ver? Imagina esse grupo de pessoas formando uma bancada no congresso para que seja obrigatório que todos raspem a cabeça, afinal dragões invisíveis odeiam cabelo. E quando você menos espera existem dois grupos brigando até a morte porque segundo um grupo os dragões invisíveis não podem ter cor, pois são invisíveis. Mas outro grupo, apesar de não verem os dragões, tem fé que eles são amarelos. E quando as políticas públicas forem guiadas por alguém que afirma ter conversado com um desses dragões, não em uma garagem mas em cima de uma goiabeira? Pois bem, apesar de ser muito louca essa história tem vários paralelos com a realidade. É por isso que o ceticismo cientifico causa tanto desconforto, porque revisar de forma crítica nossos conhecimentos e nossas visões de mundo exige maturidade, disciplina e nunca será mais fácil do que aceitar sem questionar. Questionar é o trabalho básico de um cientista. Por isso cientistas no mundo todo estão nesse momento tentando achar furos ou erros e imprecisões nas afirmações cientificas mais básicas e relevantes. Porque se você descobre que Einstein estava totalmente errado sobre a relatividade e consegue provar isso, você não vai ser agredido, ninguém vai duvidar do seu caráter. Eles vão te dar um prêmio Nobel. Você será lembrado como um dos grandes nomes que nos ajudaram a entender o universo. Então se você acredita em energia dos cristais, signos, homeopatia ou feng shui, entenda que é uma crença sem bases sólidas. Portanto sua crença num judeu zumbi de dois mil anos, que é um terço de Deus e veio numa missão suicida pra te salvar da maldição do homem de barro que comeu a fruta mágica, não é melhor do que o amigo imaginário de ninguém. Mesmo que pareça inofensivo, repense se a atitude de aceitar matar seu próprio filho porque ouviu uma voz na sua cabeça deve ser considerado um gesto de fé. Questione. Faça perguntas. Faça uma geral na sua garagem. E se no final ainda sobrar algum dragão por lá lembre-se que ter uma crença é como ter um pênis: isso não é um problema em si, contanto que você não tente enfiar ele nas pessoas à força. Gostou do artigo? tem mais artigos da nossa sessão Neurônio Cult aqui! André Almeida André Pinheiro: Nascido no Ceará e radicado no Rio de Janeiro, cursando doutorado em biofísica pela UFRJ atualmente pesquisando na área de toxicologia ambiental sobre a bioacumulação de microplástico. Nerd assumido e aventureiro da cozinha nas horas vagas
- top 10: livros para azeitar uma conversa literária
A função desta lista — bem como de outras que publicarei aqui — não é mostrar nada muito diferente, avassaladoramente bizarro ou absurdamente experimental. Um dia farei umas listas loucas dessas, mas não agora. A intenção é apenas ampliar o radar de buscas literárias partindo de livros, temas e artistas já relativamente conhecidos. Deste modo, aqui tem lado B de grandes escritoras e escritores, abordagens não usuais para gêneros já conhecidos, estreias de artistas da palavra — que, a meu ver, deveriam ser mais conhecidas — e livros que eu fico triste por serem erroneamente pouco lidos, ou pouco traduzidos ou editados ou debatidos em nosso país. Vamos lá! 10. O Perseguidor - Julio Cortázar Todo mundo conhece Cortázar de livros como "O jogo da amarelinha" e "Todos os fogos o fogo". Isso faz com que esta pequena novela (ou conto grande) passe desapercebida. Ela, aliás, só não foi completamente esquecida pelo editorial (e pelos leitores) do Brasil possivelmente graças à editora mais hipster que já existiu em terras tupiniquins: Cosac Naify, que fez esta edição da foto em capa dura e, como era de praxe deles, arrojado projeto gráfico. Eu comprei essa edição em uma daquelas míticas promoções anuais da editora — que eu passei muito tempo achando que eram lenda urbana e as pessoas na livraria riram quando descobri que era de verdade. Então procurei todos que meu bolso permitiu comprar e, dentre eles, esta edição, que não foi difícil encontrar, pois é um livro chamativo. Aliás, ele é tão bem ilustrado pelo conterrâneo de Cortázar, José Muñoz, que, quando pus minhas mãos nele, pensei se tratar de um quadrinho. Mas é prosa. E uma prosa altamente dinâmica, que narra, do ponto de vista de um jornalista crítico musical, parte da vida de um músico de jazz, o saxofonista Johnny Carter, especificamente seus últimas dias de vida. A narrativa é extremamente envolvente e detalhada, a ponto de você acreditar que Johnny Carter realmente existiu. Sob determinado ponto de vista, até que existiu sim, já que ele é baseado em Charlie Parker, por quem Cortázar nutria admiração (aliás, quem gosta de jazz mesmo vai admirar, ou pelo menos respeitar, Charlie Parker). Este conto-novela foi publicado originalmente em 1959, na coletânea intitulada "As armas secretas". Aqui, Cortázar tenta tratar daquilo que ele considerava seu principal epicentro narrativo: o que ele chamava de "fato humano essencial". É um livro que boa parte das pessoas leria em uma tarde, em uma sentada, num longo fôlego que as páginas irão tirar. A narrativa tem uma stimmung (que pode ser "rusticamente" traduzido por "atmosfera") perfeita a ponto de ser possível sentir o cheiro dos lugares. É incrível. A tradução aqui é de Sebastião Uchoa Leite. 9. As Fenícias - Eurípedes Este livro conta a história de um cara, um tal de Édipo, que, sem saber, mata o pai e casa com a mãe. Mas, espera, essa peça não é "Édipo Rei"? Pois é, a original, de Sófocles, é sim. Mas esta aqui é a versão feminina, na qual Jocasta — a "mãe-esposa" de Édipo — que conta o paranauê mais complicado da história daquilo que resolvemos chamar de "ocidente". A peça em questão foi escrita por Eurípedes por volta de 411 a.C., ou seja, aproximadamente 16 anos após a estimativa de data de Édipo Rei, 427 a.C. É uma peça que tenta ser menos racional que Édipo, apelando mais à emoção. Penso que ela seria muito mais interessante se tivesse sido escrita por uma mulher, mas estamos falando da Grécia no tempo em que ela era antiga, né? Então vamos de Eurípedes mesmo. É uma peça curta e, claro, uma tragédia, mais que literalmente falando. Dessas que acabam com a gente no final. Aí eu sempre imagino um texto desse encenado ao vivo, deve ser ainda mais doloroso. "Édipo Rei" teve várias continuações e releituras (algo que hoje o pessoal gosta de chamar de "franquia"), criando um universo narrativo próprio, mas "As Fenícias" também chegou a ter sua própria releitura por Sêneca, que escreveu uma peça homônima. Mas neste caso específico, temos um tratado sobre as paixões humanas e, talvez, até uma tentativa (extremamente datada e que envelheceu mal) de homenagear as mulheres, enaltecendo, por exemplo, sua capacidade maternal "inata". De todo modo, fazendo um recorte temporal, lembrando que é uma peça da Antiguidade, temos uma obra que ajudou na criação de arquétipos psicossociais tão importantes para a humanidade (sobretudo a "ocidental"). É um relato épico, trágico e emotivo sobre nossa desgraça. E nós sabemos que nada mais atual do que uma desgraça, né? 8. Branco neve, vermelho Rússia - Dorota Masłowska Eu achei esse livro no acaso dos acasos. Estava na casa de um amigo debatendo um curta-metragem que estávamos produzindo e, em cima de uma pilha de coisas que estava em cima de uma caixa de som, havia esse livro. O projeto gráfico e as ilustrações eram tão bonitos, caprichados e coloridos que, por um momento, como ocorreu com o livro do Cortázar citado acima, eu pensei que fosse uma graphic novel. Infelizmente não consegui recordar o nome do ilustrador, nem achar na internet. Se alguém souber agradeço de antemão se colocar nos comentários. Trata-se do primeiro romance da ainda muito jovem escritora polonesa. Tem uma narrativa altamente dinâmica, rápida, vertiginosa e muito divertida, e que lembra o fluxo de ideias vomitadas em alta velocidade de "Trainspotting", por exemplo. Linguagem chula, vulgar, gírias... Um verdadeiro "videoclipe literário". Dorota também usa, genialmente, um recurso metalinguístico que eu não vou dizer qual é para não estragar a surpresa. A originalidade não é no truque em si, mas na forma como ele surge e que até hoje me marca. É um livro divertido, intenso (e muito tenso também), muito inteligente, engraçado e jovem. Embora ele fale especificamente sobre um tipo de juventude, existe algo de atemporal nisso, algo que perpassa praticamente todos os jovens de todas (ou quase todas) as gerações. Um livro rock'n'roll de uma autora que, infelizmente, só tem este livro traduzido no Brasil. A história em si é simples: Andrzej Vermski está em crise depois de (adivinha) ser largado pela namorada Magda. Ele passa o dia se esbarrando em várias e várias mulheres interessantes em meio a teorias da conspiração, delírios e compulsão por drogas. O que o torna incrível, contudo, não é essa história meio chinfrim e batida, mas a forma como a autora a narra. Divertido, inteligente, pouco conhecido e com momentos de genialidade. Não tem como não estar nesta lista! 7. A Tenda - Margaret Atwood Margaret Atwood ganhou um merecido lugar de destaque na cultura pop contemporânea depois que seu premiado livro "O conto da aia" virou série de TV. Mas aqui nós temos uma autora experimental, com textos curtos e deliciosamente misteriosos (aliás, foi com este livro que eu a conheci, presente da minha sogra). Em alguma medida, evoca em minha mente diversos textos curtos e deliciosos do livro "Contos de Amor Rasgados", da brasileira Marina Colasanti, mas provavelmente só pelo fato de serem curtos e absurdamente bem escritos. As narrativas não são tão curtas como as de Marina — em geral, têm entre duas e oito páginas — e nem tão fofas. São algo entre a literatura experimental e a literatura de gênero, mais precisamente o realismo fantástico ou surrealismo (roupas que sonham, por exemplo), o terror e a fantasia e um pouco de ficção científica. É como se fosse mesmo uma síntese dialética entre o seu lado "best-seller" e uma prosa poética que se preocupa apenas com a suspensão dos processos de leitura, em alguns momentos apontando para o vazio e para a leveza e, em outros, cutucando dedos nas feridas de modo que algo que pode parecer quase uma fábula é, em verdade, muito mais próximo de uma narrativa baseada em fatos reais. Não existe nenhuma preocupação intensa ou evidente de explicar fatos ou mesmo de promover explicitamente algum tipo de catarse, apenas um tentador convite de embarcar na viagem. Um ponto forte e que deixa o livro ainda mais belo e especial é que as ilustrações (que ora são desenhos, ora poemas visuais) são da própria Margaret Atwood. Um "lado B" da autora com toda a potência de um "lado A". 6. Contos - Katherine Mansfield Sempre que falam de grandes escritoras que exploram e vagueiam pelos recônditos da alma humana (e, claro, feminina também), fala-se em Virginia Woolf, Clarice Lispector e Lygia Fagundes Telles — agora também na Margaret Atwood (conforme consta na posição 7 aqui desta lista). Mas que tal conferir essa maravilhosa escritora neozelandesa? Katherine Mansfield foi uma primorosa escritora de contos e outras narrativas curtas tendo influenciado pessoas do calibre da própria Virginia Woolf. Contudo, sua fama é mais restrita aos anglófonos (e olhe lá, porque mesmo entre os anglófonos a Nova Zelândia é quase um "pária", na falta de termo melhor, por ter pouco de sua cultura divulgada fora do manto de exotismo que a cerca), além de ter vivido muito pouco tempo, apenas 34 anos, o que contribui para não ser tão famosa quanto as pessoas que influenciou. Mansfield foi uma mulher à frente de seu tempo, tanto na escrita, tendo praticamente criado um estilo de conto "só seu", como na vida pessoal, tendo escandalizado algumas pessoas. O primeiro conto deste livro, "Senhorita Brill", por exemplo, é intenso, quando parece discreto. Aliás, graças especificamente a este conto, este livro começou a fazer parte da minha vida, pois a senhorita Brill foi uma das fontes de inspiração para uma personagem teatral que criei em parceria com minha amiga Andréa Piol. Ela passou uma semana falando desse conto sem parar e o utilizamos em nosso texto. É uma beleza e de uma tremenda virtuose literária criar toda uma violência sutil e delicada... É como se lêssemos em suas linhas algo realmente semelhante a Clarice Lispector ou Virginia Woolf (que alegava que Mansfield era a única pessoa cuja escrita ela invejava), mas, nas entrelinhas, soa como um Edgar Allan Poe, um Rubem Fonseca. Incrível como cada pequeno acontecimento é gigantesco. Aliás, este conto também foi importante para a própria Mansfield, que alcançou com ele um enorme reconhecimento crítico. Contudo, sua história de vida foi bastante triste, como a de outro gênio literário, Franz Kafka. Katherine Mansfield sofria de depressão e tuberculose, de modo que ela passou muito tempo reclusa e publicando quase nada de seus textos. Mas, se considerarmos que boa parte de seus melhores escritos foram produzidos enquanto ela estava internada em um spa europeu tratando de uma grave hemorragia em 1918 (e que a mataria em 1923), então... uau! Publicar o que escrevia era o de menos. Mansfield foi bem pouco traduzida para o português. Suas primeiras edições brasileiras datam de 1992, o que incluem três contos, que seriam parte de uma novela inacabada, e um ensaio, nunca concluído de sua transição dos contos para narrativas longas. A edição da foto é da finada editora Cosac Naify. 5. Sob o olhar do Leão - Maaza Mengiste Bem sabemos que um artista não nasce pronto. Ele vai melhorando ao longo do tempo. Mas algumas pessoas iluminadas já arrasam logo na sua estreia, fazendo com que o conceito de obra-prima se assemelhe ao de obra máxima. É o caso de Maaza Mengiste, que impressiona de cara em seu primeiro livro, justamente este. A história toca em um ponto sempre polêmico, sobretudo atualmente, quando todo mundo (acha que) entende de política: revolução. Particularmente, o tema política me interessa bastante; infelizmente, contudo, a qualidade de boa parte das obras de várias linguagens que tratam disso vai na contramão. Nos dias de hoje é comum explorar a política através de avassaladoras paixões cegas, de certezas absolutas e totalmente partidárias, não dando a devida importância para as micro-histórias. No Brasil, a primeira lembrança que me vem à mente numa narrativa semelhante é "Eles não usam Black-Tie", de Gianfrancesco Guarnieri, que, a partir da história de uma família, retrata o processo de uma greve, ou a partir de uma greve retrata uma família. Conflitos trabalhistas de uma indústria, tensões familiares, racismo, papéis de gênero... Está tudo ali. No romance de Mengiste, temos, não uma greve, mas uma guerrilha marxista (Derg) derrubando Hailé Selassié — descendente de uma linhagem histórica de imperadores, especificamente o 255º sucessor da linhagem do famigerado rei Salomão (lembrando sempre que a Etiópia é o país mais antigo do mundo) — afetando toda uma nação no auge dos anos 1970. Hailé Selassié, embora tenha modernizado o país, não conseguiu combater a enorme fome que assolava seu povo, sendo esse o estopim da guerrilha. E, no meio disso tudo, uma família, cuja única certeza é a da incerteza e cuja única prioridade é a a vida de seus integrantes e sua própria sobrevivência enquanto família. O patriarca, o médico Hailu, tem que lidar com a doença da esposa, o fascínio revolucionário de um dos filhos e o fascínio religioso de outro, que também enfrenta seus próprios problemas familiares. História real e ficcional de costuram, de forma coerente, racional e emotiva. A autora e sua obra (indicada ao Pushcart Prize) foram aclamadas pela revista New York logo de cara. O que me lembra que pensei em fazer uma lista sobre grandes estreias, sabe, aquele pessoal que já na primeira obra faz um estardalhaço? Bom, mas acabei colocando a Maaza aqui nesta lista, porque, afinal, pessoas talentosas podem figurar em diversas listas. Atualmente ela já publicou três livros e vive entre a Etiópia, a Itália e os Estados Unidos. 4. A fábrica de robôs - Karel Tchapek Peça de teatro é algo que poucas pessoas — que não são do teatro — leem. Talvez exista uma exceção disso quando falamos em uma dramaturgia muito famosa como a de William Shakespeare, Samuel Beckett e, talvez, Bertolt Brecht. E justamente por isso (também por isso na verdade) nesta lista tem duas. "As Fenícias", que citei lá em cima, e esta aqui, a segunda. Eu amo essa peça com todas as minhas forças e tenho uma enorme admiração pelo seu autor. Karel Tchapek é tipo... uma meta de vida. Percebam: na época da Segunda Guerra Mundial, Tchapek e seu irmão Josef foram declarados inimigos públicos pelos Nazistas pelo fato de ser escritor e o irmão pintor. Depois vieram os Soviéticos e, bem, ele continuou sendo inimigo público. Em 1969, 31 anos após seu falecimento, o astrônomo Luboš Kohoutek batizou um asteroide que havia descoberto com seu nome: 1931-Capek. Ou seja: o cara irritou stalinistas, nazistas, inventou uma palavra, revolucionou a ficção científica, virou um dos escritores mais importantes em sua língua e ainda virou nome de asteroide. Nazistas e stalinistas eu já sei que irrito. Falta a parte do asteroide e de escrever alguma coisa que preste. Mas voltemos ao livro de Tchapek... Trata-se de uma peça em três atos, que conta a história de cientistas e uma ativista de direitos "robóticos", digamos assim, dentro da fábrica de robôs Rossum. No primeiro ato, temos a apresentação do cenário, dos personagens e, bom, melhor deixar vocês descobrirem por conta própria. Embora tenha criado o termo e o conceito de robô (antes, no máximo, existia a ideia de "autômatos"), o que existe na peça são o que hoje conhecemos por "sintozoides": seres sintéticos muito mais próximos de algo orgânico que algo mecânico. Uma curiosidade é que a palavra vem do tcheco robota, que pode ser associada tanto a servo ou escravo como a trabalho forçado. Há também quem associe o termo ao conceito de mais-valia marxista. O mais interessante, porém, é que Tchapek pensou em usar o termo labori, do latim labor, mas seu irmão o convenceu de que a sonoridade tcheca era melhor. Fico imaginando nos blockbusters de ficção científica as pessoas gritando: "os laboris assassinos", "os laboris espaciais". Uma grata surpresa ao escrever este artigo foi descobrir que a editora brasileira Madrepérola está em campanha de financiamento coletivo para uma edição lindamente ilustrada, traduzida diretamente do tcheco e com o texto adaptado ao formato de prosa, mais precisamente romance. Vou até fazer uma pausa para permitir a admiração dessa arte linda do Vitor Wiedergrun. Essa edição em questão vem com o título mais próximo do original tcheco: R.U.R. (Robôs Universais de Rossum). 3. Diário de Bitita - Carolina Maria de Jesus Carolina Maria de Jesus é um gênio literário — ou uma gênia, se quisermos subverter a norma, algo que gênios geralmente fazem. Mas dizer que ela era genial ainda é pouco, pois ela era mais que isso: precisava escrever, era algo atávico à sua já difícil sobrevivência. Provavelmente todo mundo já pelo menos ouviu falar de "Quarto de Despejo", sua mais que incrível estreia no mundo literário, mas "Diário de Bitita" é igualmente tocante, lindo, delicado e também, ao mesmo tempo, forte. Ali entendemos, de modo poético, o surgimento, a formação desta incrível autora. Mas eu vejo muito pouca gente falando sobre "Diário de Bitita". Aqui ela fala da sua infância, adolescência e o começo da vida adulta. Aliás, o nome é porque esse era o seu apelido quando jovem. Carolina de Jesus só soube seu nome oficial quando entrou na escola. O livro, além de ser de uma beleza pungente, é de uma verdade dolorosa. Para aqueles que não entendem — ou não querem entender — as teorias sociais do tão famoso "racismo estrutural" proferidas por acadêmicos, bastaria ler com honestidade este livro para ter todos os mecanismos para jogar fora todo e qualquer resquício de racismo que, porventura, exista em sua mente. Além da história singela, linda e, ao mesmo tempo, cruel de dentro do livro, a história do livro em si é assaz interessante. Carolina Maria de Jesus, antes de morrer, entregou dois cadernos com seus manuscritos para a jornalista Clélia Pisa. "Diário de Bitita" foi publicado postumamente (e pela primeira vez) em Paris, em 1982, cinco anos após sua morte. No Brasil, no entanto, o livro foi publicado apenas em 1986, mais uma prova de que o Brasil não liga muito para seus próprios artistas. Maria Carolina de Jesus, ao invés de ser reverenciada por seu trabalho como escritora e compositora (e por que não dizer "socióloga"?), foi tratada por muitos críticos como uma "curiosidade estética" (a exemplo do que ocorreu com o pintor Chico da Silva), do tipo "olhe, uma escritora naïf que é catadora de lixo! Que coisa mais avant-garde!", de modo que, ao passar o sucesso de seu celebrado primeiro livro, todos voltaram aos seus afazeres de sempre, o que só reitera e comprova tudo que ela diz em seus escritos e mostra como boa parte da suposta elite intelectual brasileira é elitista, esnobe e, quase que por conseguinte dessas duas características, racista, lembrando-me que Nelson Pereira dos Santos, em "Rio, Zona Norte", tece críticas geniais a esta fauna intelectual brasileira. Voltando ao livro em questão, problemas de gênero, pobreza e racismo são alguns dos temas tratados por Bitita, com a inteligência e objetividade de uma criança que, bem sabemos, tornou-se um monstro da literatura mundial. 2. Sobre a imortalidade de Rui Leão - Machado de Assis Todo mundo sabe que Machado de Assis é "O Cara", mas a maioria de nós conhece apenas os greatest hits do cara. Só que ele escreveu praticamente todos os gêneros, até os mais obscuros e, se bobear, deve até ter inventado alguns. Temos aqui um tremendo lado B que a editora Plutão, especializada em ficção científica, fez o favor de publicar e resgatar nessa edição digital muito caprichada e bonita. São dois contos fantásticos — tanto por serem do gênero "fantasia", guarda-chuva que engloba terror, ficção científica e fantasia propriamente dito, como por serem, claro, fantasticamente bem escritos — que contam a história, por dois pontos de vista diferentes, de Rui Leão, um homem imortal graças a uma misteriosa poção indígena que ganhou do sogro. Claro que temos toda a ironia, inteligência e elegância de Machado de Assis que, embora não tenha criado a ficção científica ou a literatura fantástica, percebeu rápido como ninguém seu potencial metafórico e alegórico para falar da realidade e das dores humanas. Os contos não são longos, mas somadas suas páginas a uma ótima introdução escrita por Roberto de Sousa Causo, que provavelmente é o mais profícuo autor brasileiro de ficção científica da atualidade, temos o peso de um bom livro que pode ser lido, talvez, em uma só tarde. Vale muito a pena! E como a Plutão só trabalha com publicações digitais, o livro é baratinho! Vale demais! 1. O último homem - Mary Shelley Mary Shelley é conhecida por apenas um romance, poeticamente intitulado de "O Prometeu Moderno", mais conhecido, no entanto, pelo seu título mais simples e famoso (sim, a obra tem dois títulos) "Frankenstein". Isso não é injusto, de certo modo, já que este livro revolucionou toda a literatura e ganhou um enorme espaço na cultura pop. Nenhuma lista de elogios, por maior que seja, é suficiente para "Frankenstein", de modo que, se ela quisesse não fazer mais nada da vida depois de escrevê-la com apenas 19 anos, estaria coberta de razão. Contudo, não foi isso o que ocorreu e ela continuou escrevendo. O problema, de certo modo, é que a absurda genialidade de seu primeiro romance acabou ofuscando praticamente todos os seus trabalhos subsequentes. Dentre eles, esta magnífica obra futurista e distópica, simplesmente sua segunda ficção científica — e, não duvido, a segunda ficção científica do mundo, já que a primeira é dela também. A obra — originalmente publicada em três partes — tem muitas semelhanças com "Fankenstein": girando em torno de personagens perdidos em seu próprio tempo e com sublimes e detalhadas descrições de paisagens exuberantes que nada devem ao seu legado literário (ela e seu esposo, Percy Shelley, viajavam muito e boa parte de seus diários de viagem eram aproveitados por Mary Shelley em suas obras). A história começa em 2073 e inaugura o que, no cinema, vai ser conhecido por found footage — virando um subgênero do horror —, que são os filmes que são encontrados por acaso dentro de uma narrativa, tipo o já clássico "Bruxa de Blair". Mas o que se encontra aqui é, não um filme, claro, mas um manuscrito em uma caverna na Itália. É um livro que também é extremamente interessante, inventivo e bem construído. É também um pouco engraçado, já que o "transporte do futuro" imaginado pela autora são os balões (sim, queridos, balões!). A história tem personagens fortemente autobiográficos (alteregos dela, do esposo e de amigos, como Lord Byron), questionador da política e da humanidade, em meio a uma PANDEMIA (olha que atual! Praticamente um documentário!) e esteticamente revolucionário (Mary Shelley questiona o próprio estilo romântico de outrora). Uma segunda e feliz descoberta que fiz nesta lista foi que a editora Plutão está preparando uma segunda versão brasileira da obra com esta beleza de capa que deixo aqui para o deleite de vocês. Gostou? Não gostou? Comenta aqui! Se você gosta de resenhas literárias, confere a resenha que a Fabi Ferraz do romance da autora sul-coreana Han Kang A Vegetariana. Outra dica legal é a matéria sobre literatura contemporânea argentina de nossa correspondente internacional Mariana Cerrillo que você pode ler clicando aqui.