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352 itens encontrados para ""

  • Brahms - O 1º Concerto para Piano - Análise

    Tem uma besteira na música clássica - tem muita besteira - que agrupa Johann Sebastian Bach (1685-1750), Ludwig van Beethoven (1770-1827) e Johannes Brahms (1833-1894) como os "3 B's". Se Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) fosse Bozart, teríamos o "Quarteto B" com os compositores mais importantes da história. Diz-se, por exemplo, que um determinado regente vai se dar bem porque ele é bom nos 3 B's. Pra mim isso é BS, se é que me entendem. Mas nos dá uma noção da relevância de Brahms. Ele foi o compositor sinfônico mais importante de sua época - Richard Wagner (1813-1883) era o maior compositor de ópera. Ambos protagonizaram uma imensa briga (que se dava, na verdade, entre seus admiradores, pois os dois se davam bem) na segunda metade do século XIX - música instrumental vs. ópera; música pura vs. música descritiva; as velhas formas vs. a amorfidade do novo. Ainda falo sobre isso. Mas entenderam, né? O maior compositor "não de ópera" do romantismo depois de Beethoven foi Brahms. Pois para compositores sinfônicos, as obras mais importantes eram sinfonias e concertos, formas que ele dominava à perfeição. Escreveu 4 Sinfonias e 4 Concertos. Era muito perfeccionista, às vezes, já nas páginas finais de uma obra, a rasgava ou jogava na lareira. Daí o número relativamente pequeno. Os concertos são: 2 para piano, um para violino e um duplo, para violino e violoncelo. Lembrem-se que concertos são obras que combinam ou até antagonizam um instrumento solista com a orquestra. Sempre tem orquestra. O 1º Concerto para Piano Enfim, o mais antigo dos 4 é o 1º Concerto para Piano, em Ré Menor, completado em 1858. É seu Opus 15. Foi estreado em 1859, em Hanover, com Brahms ao piano e seu amigo, o violinista Joseph Joachim, regendo a orquestra. Foi sucesso imediato, alçando o compositor à categoria "promessa". Lembrando que ele também era um ótimo compositor para de música para piano e para música de câmara, e nesses cenários ele já despontava. Mas foi sua primeira obra orquestral a ser tocada em público e receber aprovação. E não foi à toa. É uma obra confiante, com uma escrita orquestral e pianística majestosa, com algumas melodias que grudam na cabeça. O primeiro movimento tem 22 minutos. O segundo, 14 e o terceiro, 11. De fato, o movimento de abertura é um dos mais longos do repertório concertístico, mas, graças à habilidade de Brahms em manipular o material que tem, a escuta não é nem um pouco maçante. Estrutura O compositor trabalha, no primeiro movimento, com um material temático relativamente limitado. Há o tema principal, que contém os trinados; o primeiro tema do piano, em terças; e um tema coral que surge no piano, mas que é nas cordas que revela sua beleza. Com esses três temas, dissecando-os, combinando-os e os modulando, ele cria um movimento impactante, que deixou ótimas impressões no público da época. O segundo movimento é muito mais contido e esparso. Longas linhas melódicas se desenvolvem nos fagotes em contraponto com os violinos, são depois repetidas pelo piano. Esse movimento tem um dos momentos mais belos pra mim (de tudo). É uma melodia em terças primeiro nos clarinetes - sob acordes descendentes do piano -, depois nas flautas, aí, um pouco à frente, nos oboés e então nos clarinetes, só que agora em maior. É lá pelos 5-6 minutos. O terceiro movimento é um rondó com três temas principais. Depois do segundo movimento carregado, esse é leve, como uma dança. É uma peça difícil para o piano e para a orquestra, finalizando o concerto com brilho. O concerto todo, a meu ver, não é muito virtuosístico, isto é, o pianista não se exibe muito. Mas é difícil achar o tom certo, bem como o equilíbrio entre o material temático. Gravações Importantes - Leon Fleisher, com George Szell regendo a Orquestra de Cleveland - Uma gravação clássica e excepcional. Como qualquer outra dessa lista, ela basta pra que você conheça o concerto. A parceria entre Fleisher, Szell e Cleveland deu muitos frutos nos anos 50-60. - Nelson Freire, com Riccardo Chailly regendo a Orquestra do Gewandhaus de Leipzig - Considerada a gravação definitiva por muitos. Uma das colaborações mais felizes da história do disco. Nelson toca com um som gigantesco, e Chailly fornece mais que um acompanhamento. Regente, pianista e orquestra encontraram o equilíbrio perfeito. E a sonoridade... - Hélène Grimaud, com Andris Nelsons conduzindo a Orquestra Sinfônica da Rádio Bávara - Hélène foi uma das primeiras mulheres a gravar os concertos de Brahms, isso recentemente. E o fez com sua costumeira elegância e bom gosto. Escolheu (ou foi escolhida por) um dos regentes mais talentosos da atualidade e uma das orquestras mais suntuosas de todas. O som dessa gravação ao vivo é excepcional. - Ivan Moravec, com Jiří Bělohlávek e a Orquestra Filarmônica Tcheca - Moravec foi um pianista especial, dotado de um misto de colorido com técnica. Foi um dos melhores pianistas da sua geração, morrendo em 2015, em Praga, na sua República Tcheca. A Filarmônica Tcheca é sempre um privilégio ouvir, com Bělohlávek tendo sido um dos seus grandes regentes. - Emil Gilels, com Eugen Jochum e a Orquestra Filarmônica de Berlim - Maravilhosa, simplesmente. Eu ia dizer encantadora, mas não é. É titânica. Gilels podia tirar o som mais forte do piano antes de quebrar as cordas. E, nas passagens líricas, nos deixar boquiabertos. Jochum é o regente perfeito de Brahms. - Clifford Curzon, com George Szell regendo a Orquestra Sinfônica de Londres - Szell, desta vez regendo Curzon, prova que foi um dos maiores acompanhantes que já existiram. Essa, junto com a de Gilels, era considerada a grande gravação da obra, antes de Freire/Chailly.

  • Maestro Bernard Haitink (1929-2021)

    Essa semana, dia 21 de outubro de 2021, morreu um dos maiores regentes dos nossos tempos. O holandês Bernard Haitink. Nascido em Amsterdã, em 4 de março de 1929, ele muito cedo teve aulas de violino e regência com Felix Hupka, um professor local da Escola de Música de Amsterdã. Trabalhou como violinista em algumas orquestras e, entre 1954 e 1955 foi ter aulas com o grande regente alemão Ferdinand Leitner. Teve uma carreira meteórica, por assim dizer, ultrapassando seu professor em importância e produtividade. Em 1956 regeu pela primeira vez a Orquestra Real do Concertgebouw, de Amsterdã, substituindo num concerto o lendário Carlo Maria Giulini. Em 1959, com a morte de Edward van Beinum, ele se torna regente titular da orquestra, que já era considerada uma das mais refinadas e peculiares do mundo. Manteve o cargo de regente principal até 1988. Nesse longo período, comparado ao de Herbert von Karajan com a Filarmônica de Berlim, ele moldou o conjunto e o pôs no patamar mais alto: a Concertgebouw é frequentemente apontada como uma das 3 melhores do mundo. E gravaram muito. Ele era especialista em Gustav Mahler, Anton Bruckner, Ludwig van Beethoven, Johannes Brahms e o inglês Ralph Vaughan Williams. Gravou integrais das sinfonias de cada um desses. Regeu também a Filarmônica de Londres (1967-1979), a Orquestra do Covent Garden (a orquestra da ópera real britânica, entre 1987 e 2002), a Staatskapelle de Dresden (2002-2004), Sinfônica de Boston (principal regente convidado entre 1995 e 2004) e foi eleito membro honorário da Filarmônica de Berlim. Para mim, o que define a musicalidade de Haitink é a inteligência, a completa falta de frescura (sabe aqueles regentes que regem os movimentos lentos beeeem lento? Pra comover? Ele não.) A orquestra com que mais é associado é a do Concertgebouw, não tem como. Em 2019 anunciou que se aposentaria em setembro, e no dia 6, conduziu a Filarmônica de Viena, em Lucerna. Foi sua última aparição. Regeu o 4º Concerto para Piano de Beethoven (com Emanuel Ax ao piano) e a 7ª Sinfonia de Bruckner. Em 2020 saiu uma caixa de luxo do seu último concerto com a Filarmônica de Berlim. Também era a 7ª de Bruckner. Perdemos um dos maiores músicos do mundo, um homem que compreendia bem a linguagem musical dos mestres e que entendia todos os desdobramentos da arte de fazer soar uma orquestra. Gravações Recomendadas - Claude Debussy, com a Orquestra do Concertgebouw - Prelúde à l'Après-Midi d'un Faune, La Mer e Ibéria. Gravado em 1986 e 87, é um dos discos mais aclamados de Haitink. A orquestra soa excepcionalmente bem em música impressionista francesa. Eles tocam com calma e segurança, não tendo nada o que provar. - Maurice Ravel, com a a Orquestra do Concertgebouw - Boléro, Rapsódia Espanhola, Daphnis et Chloé (Suíte Nº 2) e Pavane pour une Infante Dèfunte. O Boléro é rápido e virtuosístico. A versão de Ravel tem 17 minutos, e essa aqui tem menos de 15. Mas o Daphnis é excepcional, as cordas da orquestra dando um show e as madeiras fazendo toda a diferença. Detalhe, na Pavane, para a trompa, executada como se fosse a coisa mais fácil do mundo (na verdade, é dificílimo, por causa das frases longas, sem respiração). Foram gravados entre 1971 e 76. - Johannes Brahms, com Claudio Arrau ao piano e a Orquestra do Concertgebouw - Concerto Nº 1 para Piano. Tão importante para a discografia de Arrau quanto para a de Haitink, essa gravação de 1969 do 1º concerto de Brahms é considerada definitiva. É uma preciosidade. - Sergei Rachmaninoff, com Vladimir Ashkenazy ao piano e a Orquestra do Concertgebouw - Concertos para Piano Nº 2 e 4. Os dois ciclos de Rachmaninoff mais importantes de Ashkenazy são com a Sinfônica de Londres, sob André Previn e esse daqui, com a Concertgebouw e Haitink. Cada um tem seus momentos, mas nos concertos 2 e 4 acho que essa versão, de 1984, bate a outra. - Richard Strauss, com Maximilian Hornung no violoncelo e a Orquestra da Rádio Bávara - Don Quixote. Acho essa gravação fenomenal. As dissonâncias tocadas sem um pingo de pudor pela orquestra Bávara, o violoncelo encantador, os andamentos. Tudo para fazer um dos Don Quixotes mais arrebatadores que já ouvi. De 2014. - Anton Bruckner, com a Filarmônica de Berlim - Sinfonia Nº 7. US$ 675. Essa gravação vem com um livro de luxo, num lançamento de gala pelo selo da Filarmônica de Berlim, a última do maestro com o conjunto. É de 2020.

  • Beethoven - A 10ª Sinfonia - Completada por Inteligência Artificial

    Quando eu era pequeno, vi na televisão um meninozinho, provavelmente de algum projeto de música para crianças carentes, tocando violino. No final o repórter perguntou, naturalmente, qual era aquela música. "Ode à Alegria, quem canta é o Beethoven", respondeu na lata. Um aluno meu me pediu uma vez pra aprender "Ódio e Alegria", que eu acho que é a mesma. O fato é que a 9ª e última sinfonia de Ludwig van Beethoven é um sucesso. Ela tem esse nome "Ode à Alegria" porque seu último movimento conta com um coral enorme, além de solistas (uma soprano, uma contralto, um tenor e um baixo) (além da orquestra) cantando um poema de Friedrich Schiller de mesmo nome. Foi terminada em 1824 e estreada em setembro do mesmo ano. É seu Op. 125. Foi a primeira sinfonia com vozes. Beethoven já estava totalmente surdo. O que não o impediu de reger a premiére. Inclusive, de continuar regendo quando a música já tinha acabado. O público delirou com a música desde esta estreia. Era claro que Beethoven queria que fosse sua última sinfonia. Caso contrário teria ele mesmo escrito a seguinte. Na verdade, ele dedicou seus últimos anos a escrever quartetos de cordas e dormir. Existe a possibilidade de que ele tenha querido compor uma 10ª em algum ponto. Porque existem esboços de um 1º movimento. Mas ele não levou adiante. Esses são os fatos. Acontece que, em 2019, uns musicólogos e uma inteligência artificial alegaram ter "completado" a obra. É o projeto "Beethoven X". A décima foi estreada em Bonn, cidade natal do compositor, em outubro de 2021. Fez-se um estardalhaço, todo mundo só fala disso, mas algumas coisas têm que ser ditas. O projeto em si é interessante, e a idéia de deixar uma inteligência artificial fazer o trabalho torna a coisa ainda mais instigante. E ainda tira a responsabilidade de cima dos musicólogos. Mas a peça não deve ser levada a sério, como se fosse mesmo uma imagem do que o próprio Beethoven teria escrito. Como disse o crítico musical David Hurwitz em seu canal do YouTube, Beethoven estava sempre se renovando. Cada sinfonia era diferente da anterior. Então é impossível alguém, ou mesmo um computador, prever o que ele faria a seguir. Ou seja, em vez de dar um passo à frente, eles deram um passo de lado. Ouvindo a obra, constato que isso é verdade: não parece Beethoven, parece um imitador de Beethoven que se baseou no que o compositor havia escrito antes. Capturaram bem seu estilo maduro (a chamada 3ª fase) e aplicaram tudo que se conhece de esboço e de procedimentos orquestrais dele. Além, claro, dos procedimentos musicais. Mas é esquisito. O último movimento, ainda que interessante, é meio bizarro. Aliás, é bem bonito, com uma introdução misteriosa (começa aos 8m50s, no vídeo abaixo). Tem órgão. Mas a mim lembra mais Hans Zimmer do que Ludwig. Claro que um projeto como esse tem tudo para ser criticado, porque cada pessoa que ama Beethoven é uma especialista em Beethoven. E cada especialista tem sua opinião. O fato é que a única coisa que a gente pode ter certeza é que, caso ele tivesse composto a décima, soaria como qualquer coisa, menos com isso. Como foi uma inteligência artificial que compôs, ela acabou escrevendo a música impossível. Veja, o computador teve que lidar com bilhões de informações, simular milhares de escolhas e ainda tentar imitá-lo. É impossível dizer que Beethoven tomaria as mesmas decisões. Na verdade é muito mais fácil afirmar que ele não faria igual. Não estou xingando o PC, veja bem. É um exercício válido e um orgulho para todas as inteligências artificiais. Só não dá pra gente se empolgar e achar que é a 10ª de Beethoven. Não condeno a iniciativa, desde que se deixe bem claro o que é Beethoven ali. Aliás, não é a primeira vez que tentam isso. Em 1989 o musicólogo Barry Cooper fez uma 10ª de Beethoven pra chamar de sua. Foi até gravada, com um áudio falado por ele. Ele deixa claro que "Beethoven estava completamente inocente" dessa ideia de 10ª sinfonia. Mas que o compositor se referiu a essa obra em cartas, de forma não muito definitiva. Existem hoje esboços para 1 e apenas 1 movimento. Nenhum fragmento tem mais do que 30 compassos contínuos. E nem sinal da orquestração, está tudo escrito para piano. Ele mesmo, Barry Cooper, nos dá um veredicto: "afinal, se nem Beethoven quis completar a obra, seria idiotice outra pessoa fazê-lo". Tiro no pé, afinal ele mesmo tentou. Argumentava que dava para fazer pelo menos o 1º movimento juntando os caquinhos que o mestre tinha deixado; e que a prática de outros compositores finalizarem obras dos mestres era comum (existe uma 10ª de Mahler, também completada por universitários). Mas no final temos isso: duas tentativas, duas ilusões. Interessantes, porque cada pessoa que tenta imitar Beethoven contribui para essa fantasia. Mas é só. Fantasia. Para ouvir o esforço bem intencionado e até agradável do Barry Cooper, acesse o seguinte link, com a Orquestra Sinfônica de Londres sob a regência de Wyn Morris: https://open.spotify.com/album/0YdABEBmv5PIlHtMf1fB1Q?si=LmbQ0qcCTe2wA-yX3bdvwA Agora, leia sobre uma sinfonia real de Beethoven, a 6ª, conhecida como "Pastoral". E vamos em frente.

  • Chopin - Os Prelúdios, Op. 28 - Análise

    Em 1839, Frédéric Chopin publica seu caderno de 24 Prelúdios Op. 28, cada um em uma tonalidade diferente (como J. S. Bach havia feito nos seus dois cadernos chamados "O Cravo Bem Temperado"). Enquanto os de Bach podem ser tocados separadamente, os de Chopin funcionam melhor tocados todos juntos, e na ordem em que estão publicados. É como se fosse uma grande obra formada por pequenas peças. Mesmo assim, às vezes, a gente ouve um ou dois sozinhos, em um concerto, especialmente como encore (bis). No inverno de 1838, Chopin vai com Georges Sand e os filhos dela para Mallorca (Espanha): morando em Paris desde 1830, o compositor polonês sofria com o frio, sobretudo porque tinha tuberculose. É nessa viagem que ele compõe uma boa parte dos Prelúdios. Ele dedica a obra a Camille Pleyel, o famoso fabricante de pianos da capital francesa, que lhe pagou 2 mil francos (equivalente a 30.000 euros hoje). É uma obra bem característica do romantismo, em que cada prelúdio tem um caráter sentimental forte, por vezes arrebatador. Alguns são mais fáceis de tocar, outros são extremamente virtuosísticos. Dura em torno de 33 a 35 minutos. A Obra Abaixo, o genial pianista russo Mikhail Pletnev executa os 24 prelúdios. Prelúdio 1, em Dó maior - Agitato Uma bela e nobre introdução. Hans von Bülow o apelidou de "Reunião", como se ele estivesse fazendo uma recapitulação mental de tudo que sabe para então mostrar toda a sua criatividade. Prelúdio 2, em Lá menor - Lento (46s) Meditativo, lento, belo e simples, com uma melodia (de notas longas) na mão direita e o acompanhamento na esquerda. No final ele faz uma cadência surpreendente, como se fosse modular para Mi maior, mas depois ajeita e termina em lá menor. Prelúdio 3, em Sol maior - Vivace (3m20s) Esse aqui é um prelúdio com jeitinho de toccata. Meio brincalhão. A mão esquerda faz um movimento perpétuo bem ligeiro até o final. Prelúdio 4, em Mi menor - Largo (4m20s) Esse é o mais famoso, talvez. Tom Jobim se inspirou nessa bela melodia e, principalmente, na expressiva harmonia cromática, para fazer sua "Insensatez". Tem desenvolvimento, o que o torna um pouco mais comprido. No funeral de Chopin essa peça foi executada em um órgão. Prelúdio 5, em Ré maior - Molto allegro (6m31s) Leve e divertido, conta com uma escrita fragmentada, como era típico de Chopin. Prelúdio 6, em Si menor - Lento assai (7m07s) Esse prelúdio lembra o Nº 4, o que nos dá uma sensação de retorno. Mas é outra música, com o mesmo tom funesto. Desta vez a melodia está na mão esquerda, a direita fazendo os acordes. Prelúdio 7, em Lá Maior - Andantino (9m18s) Este intrigante prelúdio é curtíssimo. Lindo, um dos favoritos do público. Lembra uma valsa que nunca começa. Ou uma Mazurka, uma dança polonesa que rendeu muitas composições de Chopin. Prelúdio 8, em Fá Sustenido menor - Molto agitato (10m02s) Aqui já é o típico Chopin agitado, transtornado, inquieto... A escrita já é mais pianística do que os anteriores, não dá pra tocar em outro instrumento. Prelúdio 9, em Mi maior - Largo (11m54s) Esse prelúdio consiste mais de uma progressão harmônica que de uma melodia em si. Prelúdio 10, em Dó Sustenido menor - Molto allegro (13m14s) Super ligeiro, com uma ideia musical meio macabra, diabólica, bem Chopin. Prelúdio 11, em Si maior - Vivace (13m50s) Mais tranquilo, só que sem ser triste. Prelúdio 12, em Sol Sustenido menor - Presto (14m46s) É bem virtuosístico, embora Pletnev aí em cima toque um pouco devagar. Prelúdio 13, em Fá Sustenido maior - Lento (16m03s) Esse também é muito bonito. Lembra um pouco um Impromptu de Schubert. Tem uma modulação belíssima (17m28s). É em forma A-B-A. Prelúdio 14, em Mi Bemol menor - Allegro (19m27s) Alfred Cortot chamou esse aqui de "Medo". Também é muito típico de Chopin. Prelúdio 15, em Ré Bemol maior - Sostenuto (20m05s) Já esse aqui é tranquilidade total. Sereno e belo. É o chamado "Pingo de Chuva" (Raindrop). Tem uma parte central mais séria (21m32s), com umas notas repetidas que nos trazem de volta o "medo" do prelúdio anterior. Mas a tranquilidade volta. Também é muito conhecido, sendo às vezes tocado sozinho. É o mais longo de todos do grupo. Termina quase em estado de devaneio. Prelúdio 16, em Si Bemol menor - Presto con fuoco (25m06s) Rápido e com fogo (Presto con fuoco). É um dos mais difíceis. Lembra um Impromptu, também, mas do próprio Chopin. Prelúdio 17, em Lá Bemol maior - Allegretto (26m11s) Um dos mais longos, também é tranquilo e melódico. Era o favorito de Robert e Clara Schumann e de Mendelssohn. Tem uma recapitulação com uma harmonia difusa (28m20s) extremamente interessante. Prelúdio 18, em Fá menor - Molto allegro (29m31s) Esse aqui me lembra o finale da 2ª Sonata. É impossível de ser cantado (sem ficar ridículo). É bem curtinho e explora bem a técnica do pianista. Prelúdio 19, em Mi Bemol maior - Vivace (30m35s) Por falar em técnica, esse aqui é provavelmente o mais difícil de todos, com suas figuras arpejadas. Embora não pareça. Prelúdio 20, em Dó menor - Largo (32m08s) Esse é bem carregado, com uma harmonia dotada de personalidade. É como uma série de cadências. Prelúdio 21, em Si Bemol maior - Cantabile (33m45s) Com uma melodia simples na mão direita e uma harmonia cromática na esquerda, é um prelúdio encantador. Prelúdio 22, em Sol menor - Molto agitato (35m23s) Muito agitado (Molto agitato) e atormentado, chamado por Alfred Cortot (um grande pianista que, por algum motivo, colocou um apelido para cada um dos prelúdios) de "Rebelião". Prelúdio 23, em Fá maior - Moderato (36m10s) A melodia passeia entre as duas mãos, com um clima meio encantado. Prelúdio 24, em Ré menor - Allegro appassionato (37m08s) Também bastante virtuosístico, esse prelúdio. Confere um final triunfante e brilhante para a peça. Gravações Recomendadas É simples. Todo grande pianista já gravou esse livro de prelúdios, mas basta você escutar as versões de Martha Argerich (um trovão) e Nelson Freire (a perfeição). Eu disse basta, mas como são peças bastante expressivas, elas abrem espaço para infinitas interpretações, de forma que é bem divertido ver o que cada pianista faz com elas. Também confira Jorge Bolet, Vladimir Ashkenazy, Claudio Arrau e o próprio Alfred Cortot, numa gravação antiga, mas muito interessante. Martha Argerich - https://open.spotify.com/album/3baJOyeM5b3t8CoOOeRKH6?si=elWRcNERRUui3yeIz3VZJQ Nelson Freire (disco 5) - https://open.spotify.com/album/40xVWPfQEPiTuMVKC2o1Ie?si=IHl0MLTWRKiyJA2U-M1-1g Jorge Bolet (ao vivo no Carnegie Hall) - https://open.spotify.com/album/44GKgtXEZbl2XJJzgzJfpm?si=4cy6XJgsTDuB6Zd-_oyy3w Alfred Cortot - https://open.spotify.com/album/507xh6aaYSJSDK8ioKKoqe?si=yQ-88tcwSqC3TVnCvjj-Ww ou https://open.spotify.com/album/5b8qw29oiPkYfVX1aj5sp2?si=OMNQnT1nSsCPP8XK-IVYZg (essa mais vintage)

  • Os 5 Concertos para Piano de Beethoven

    O conjunto dos 5 Concertos para Piano e Orquestra de Ludwig van Beethoven é um dos mais importantes da literatura musical. Os dois primeiros são da década de 1790, o começo da carreira do compositor, antes dos seus 30 anos. Nessa época, Beethoven ainda se encontrava no período clássico, e pode-se dizer até que imitava Mozart. Depois ele viria a operar no romantismo, e, a cada concerto, surpreendia. Não se pode falar de sua obra sem mencionar as 9 Sinfonias, as 32 Sonatas, os 5 Concertos para Piano, o Concerto para Violino, os 16 Quartetos de Corda... 1º Concerto O 1º Concerto na verdade foi composto em 1795, depois do segundo (mas publicado antes), sendo até um pouco evoluído em relação a este. Ele já tem vários elementos da personalidade musical de Beethoven. Especialmente nos ritmos martelados fora do tempo forte, na harmonia ousada e na orquestração grandiloquente. O compositor deixou 3 opções de cadência para o primeiro movimento, o que não impede que o pianista componha a sua própria. O segundo movimento é lindo, reminiscente de Mozart, também. Já demonstrava a capacidade melódica dele. O último movimento é um Rondó também obediente ao classicismo, e também tem cadência. Gravação recomendada: Martha Argerich, com a Orquestra de Câmara Mito (argh), sob Seiji Ozawa 2º Concerto O 2º Concerto é anterior, datando de 1789, possivelmente. É o menos tocado dos 5, mas não é desprovido de charme. Na verdade é bem interessante e teve gravações importantes (o concerto menos gravado de Beethoven ainda é mais gravado que o mais gravado da maioria dos compositores). Antes, quando me vinha à memória a melodia do primeiro movimento, eu jurava que era de Mozart. Menos emocional que o 1º, eu diria que é mais nobre. Sério, nessa de imitar o ídolo, ele fez um belo trabalho. Claro que quando você escuta com atenção, percebe que é Beethoven: um momento mais sombrio, uma variedade maior de dinâmica etc. Ele mesmo não gostava da peça: "não é das minhas melhores"... Mas compositores costumam ser críticos de suas obras mais bem sucedidas. A cadência do 1º movimento é brilhante, assim como no concerto anterior. O 2º movimento é sensacional, comovente. Melodicamente, em 4 dos 5 concertos, ele demonstrou sua capacidade plena nos segundos movimentos. No finale temos um Rondó cativante que termina a obra com brilho. Gravação recomendada: Mitsuko Uchida, com a Filarmônica de Berlim, sob a direção de Simon Rattle 3º Concerto O 3º Concerto é o adolescente. O começo do desprendimento de Beethoven dos seus antecessores clássicos. Aqui ele dá maior atenção aos sentimentos, pra colocar de forma simples. A música se torna muito mais poderosa, a intenção não é mais de fazer música que simplesmente gere deleite. É uma coisa especial. Composto por volta de 1800 e publicado em 1804, é uma obra que começa a pisar na nova corrente artística que varreria a Europa e da qual Beethoven seria um dos patronos: o romantismo. Pra começar, ele é em tom menor. Bem mais sombrio e capaz de provocar sensações mais à flor da pele. Tem característica da segunda fase do compositor (são 3): arrebatamento através de explosões orquestrais, mudanças súbitas na harmonia, acentuações rítmicas inesperadas e uma orquestração muito mais colorida. Além da cadência voraz e absolutamente matadora no primeiro movimento. O concerto é um perfeito veículo para um pianista mostrar suas qualidades. Delicadeza e ternura no segundo movimento. Agilidade no terceiro. É uma das mais importantes obras do mestre alemão, e, embora ainda não seja tecnicamente romântica, já semeia o terreno. Gravação recomendada: Martha Argerich, com a Orquestra de Câmara Mahler, sob a direção de Claudio Abbado 4º Concerto Já completamente mergulhado no romantismo, o 4º Concerto é uma das obras mais bem acabadas e maduras de qualquer compositor, de 1806. Claramente não foi feito para impressionar, com sua estrutura um tanto caótica: o 1º movimento começa com o piano introduzindo um tema na tonalidade de sol, que é a tonalidade proposta pelo concerto. Mas a orquestra retoma o tema em si maior. O que é estranho. Daí, mal a orquestra faz uma exposição, o piano volta e eles continuam em perfeita harmonia, como se não houvesse duelo senão nas entrelinhas. A obra só não é confusa porque tem certeza de si. É assertiva e segura. E genial. O tempo todo somos surpreendidos. Também não apresenta virtuosismo gratuito, isto é, exibicionismo de técnica por parte do piano. E lembra que eu disse que Beethoven desfila sua criatividade melódica nos movimentos lentos de 4 dos concertos? Pois aqui é a exceção. Não que o 2º movimento seja feio. Ele apenas não quer ser simplesmente belo. Sabe aquela modelo que insiste que é mais do que um rostinho bonito? É o caso. E é mais, mesmo. A melodia (ou como você quiser chamar) esconde uma profundidade que a gente só capta com muitas audições. A orquestra parece que vem com raiva e o piano responde sempre calmamente. Os dois quase não se encontram no movimento, quando um fala o outro cala. E os silêncios... Falam quase mais que a música. O terceiro movimento é um Rondó alegre como se nada tivesse acontecido. Mas também não é vazio. Consegue ser triunfante sem fugir da proposta do concerto, que é mais soturna. Vários compositores fizeram cadências para esta obra, dentre eles o próprio Beethoven, Johannes Brahms, Feruccio Busoni e Camille Saint-Saëns. Gravação recomendada: Alexis Weissenberg, com a Filarmônica de Berlim, sob a direção de Herbert von Karajan 5º Concerto - "Imperador" O Imperador é o mais conhecido dos 5. De 1811, nessa época o compositor, muito provavelmente já estava completamente surdo. Tanto que não tocou na estréia, como de praxe. O primeiro movimento começa com um acorde explosivo da orquestra seguido por uma breve candência do piano. E outra, e outra. Depois temos a exposição orquestral. O concerto é extremamente heróico, audacioso. Uma curiosidade é que ele não tem e, ao mesmo tempo, tem, uma cadência propriamente dita. A orquestra prepara, tocando o acorde da tônica com baixo na 5ª e para. Sabe-se que vem uma cadência. Mas o que vem é menor que uma, menos improvisativo, mais curto e menos virtuosístico. Mas, pra mim, é cadência. O segundo movimento é um dos mais belos do compositor. Sereno, apresenta uma perfeita harmonia entre o piano solista e a orquestra. Também tem modulações arrepiantes. Ele desemboca direto no terceiro movimento, sem interrupções, um Rondó que, pra mim, é um tanto barulhento. Não gosto de coisas felizes demais, alegria em excesso é desespero. Esse é provavelmente o concerto mais genial de Beethoven, embora alguns considerem o 4º mais satisfatório. Abaixo vou deixar algumas sugestões de gravação dos 5 concertos em conjunto. São muitas gravações excepcionais, e eu selecionei apenas algumas. Estas foram gravadas em conjunto, com o mesmo regente, a mesma orquestra e o mesmo pianista nos 5 concertos. São as chamadas integrais dos concertos para piano de Beethoven. Se você não conhece nenhum, sugiro que começe pelo 5º. - Alexis Weissenberg, com a Filarmônica de Berlim e o maestro Herbert von Karajan; - Mitsuko Uchida, com a Filarmônica de Berlim, sob a batuta de Simon Rattle; - Leif Ove Andsnes tocando e regendo a Orquestra de Câmara Mahler; - Claudio Arrau, com a Orquestra do Concertgebouw de Amsterdã, sob Bernard Haitink; - Nelson Freire, com a Orquestra do Gewandhaus de Leipzig, regida por Riccardo Chailly; - Wilhelm Kempff, com a Filarmônica de Berlim, sob Ferdinand Leitner; - Evgeny Kissin, Sinfônica de Londres, Colin Davis - Leon Fleisher, com a Orquestra de Cleveland, sob George Szell Não deixe de conferir nossas listas de: Top 10 Sinfonias Top 10 Concertos para Piano Top 10 Sonatas para Piano

  • As Variações Enigma, de Elgar: mistério eterno

    Compostas em 1899 por Edward Elgar, as Variações Sobre um Tema Original, apelidadas pelo próprio compositor de Variações Enigma constituem uma obra de cerca de 35 minutos para orquestra. Possuem um tema e 14 variações. Cada variação corresponde a um amigo ou parente de Elgar. Nelas ele faz um retrato em 2 camadas dessas pessoas ou de situações e até cacoetes relacionados a elas. Eu me apaixonei por essa música recentemente, agora, em 2020. E espero que vocês também gostem, porque é encantadora. Os movimentos são: (00:00) Tema (Enigma: Andante) - o tema em si, nobre e bonito, em forma ABA; (02:18) Variação I (L'istesso tempo) "C.A.E." - Caroline Alice Elgar era a esposa do compositor, e recebeu a variação mais terna. Mal chega a ser uma variação, na verdade, é mais uma elaboração do tema principal, o que não deixa de ser um gesto romântico; (04:12) Variação II (Allegro) "H.D.S-P." - "Hew David Steuart-Powell foi um conhecido pianista amador e um grande músico de câmara. Esteve associado a B.G.N. (violoncelo) e ao compositor (violino) por muitos anos", escreveu Elgar. Hew tinha o hábito de tocar uma escala cromática antes da música, daí a variação ser uma Tocata cromática; (05:04) Variação III (Allegretto) "R.B.T." - Richard Baxter Townshend, um escritor; (06:30) Variação IV (Allegro di molto) "W.M.B." - William Meath Baker, amigo do compositor; (07:14) Variação V (Moderato) "R.P.A." - Richard Penrose, também pianista amador; (09:55) Variação VI (Andantino) "Ysobel" - Isabel Fitton, uma aluna de viola de Elgar; (11:24) Variação VII (Presto) "Troyte" - Arthur Troyte Griffith era um dos melhores amigos do compositor. A variação se refere a um episódio em que eles foram pegos de surpresa em uma tempestade, e se abrigaram na casa de Winifred Norbury, personagem da próxima variação; (12:37) Variação VIII (Allegretto) "W.N." - Winifred era uma secretária da Sociedade Filarmônica de Worcester, e sua característica risada é mostrada aqui; (14:46) Variação IX (Adagio) "Nimrod" - a variação mais famosa. Dedicada a Augustus Jaeger, um editor musical. A história diz que certa ocasião Elgar estava deprimido e sem confiança para compor. Jaeger o visitou e o encorajou, cantando trechos do segundo movimento da Sonata "Patética", de Beethoven, a que essa variação faz referência; (19:36) Variação X (Intermezzo: Allegretto) "Dorabella" - Dora Penny, uma amiga cuja gagueira é parodiada aqui; (22:02) Variação XI (Allegro di molto) "G.R.S." - George Robertson Sinclair, um respeitado organista. Refere-se a uma ocasião em que viram um cão cair e ser arrastado pela correnteza de um riacho. O latido fez George virar-se para elgar e dizer: ponha isso em música. E ele o fez aqui; (23:09) Variação XII (Andante) "B.G.N." - Basil George Nevinson, o violoncelista que tocava com Elgar; (26:47) Variação XIII (Romanza: Moderato) " * * * " - "os asteriscos tomam o lugar do nome de uma dama" que estava, à época, numa viagem de navio, possivelmente Lady Mary Lygon. A música faz referência à obra de Mendelssohn "Mar Calmo e Viagem Próspera". É possível que Elgar não tenha colocado suas iniciais devido à superstição dela com o número 13 - também é possível que essa variação (uma Romanza) seja secretamete dedicada a Helen Weaver, ex-noiva do compositor, que terminou o relacionamento e zarpou para a Nova Zelândia; (30:19) Variação XIV (Finale: Allegro) "E.D.U." - Edu era o apelido que sua esposa Alice dera a ele. Originalmente essa música era mais curta, mas Jaeger o pediu que fizesse mais longa. Em 19 de junho de 1899 o maestro Hans Richter, um dos grandes regentes da história, talvez o maior de sua época, conduziu a estreia das Variações Enigma. A crítica foi unânime em elogiar a estrutura e a orquestração da peça. O enigma diz respeito provavelmente a uma melodia que estaria escondida na música. Elgar fala das peças de teatro modernas, em que o personagem principal nunca aparece no palco. Ele chama o tema principal de enigma, de modo que os estudiosos têm quase certeza que a charada seria uma melodia que poderia fazer contraponto com esse tema. Ou seja, é ambíguo, podendo ser o próprio tema o enigma, ou esse contraponto invisível. O compositor foi pro túmulo sem revelar, dando apenas algumas pistas. Por exemplo, a melodia que faz contraponto com o tema seria muito conhecida. Além disso, um tema secreto maior percorre todas as variações. Elgar ficou surpreso de não terem descoberto o enigma desde a estréia. Algumas candidatas a contraponto são: - A melodia de Brilha, Brilha, Estrelinha; - Um tema da 4ª Sinfonia de Brahms; - Uma ária da ópera Così Fan Tutte, de Mozart; - A Sonata Patética, de Beethoven. Eu tenho minha própria teoria. Não se trata de um contraponto, mas de uma referência a uma obra musical muito maior. O Réquiem de Mozart. Em várias passagens eu posso ver paralelos entre as duas obras. Não é aquela coisa certinha, em que tudo se encaixa. Na verdade, eu acho até mais provável que não seja uma citação estrita, em que você vai escutando e tudo vai se encaixando. Pelo contrário, são momentos, às vezes detalhes, às vezes estados de espírito de uma música que são aludidos na outra. Também é possível que o enigma não exista. Que ele tenha envolvido a obra em misticismo tamanho que não conseguiu escapar dele. Essa atmosfera que ele criou foi um golpe de gênio. Porque a música, além de ser extremamente bonita (me comove de verdade), tem uma aura de mistério que é irresistível. Mas, como eu disse, ela é, acima de tudo, genial. Bela, de orquestração impressionante (e de muito bom gosto) e mostra um domínio da forma Tema com Variações absoluto. Gravação recomendada: Orquestra Filarmônica de Bergen (Bergen Philharmonic), regente: Andrew Litton Leia mais sobre a obra aqui, onde eu a coloquei numa lista de 10 grandes peças orquestrais. Veja também essas 10 grandes sinfonias e as 20 melhores orquestras do mundo.

  • A Violinista Encantada - Ginette Neveu

    Nascida em Paris, em 11 de agosto de 1919, Ginette Neveu revelou-se musical na primeira infância. Aos 5 tocou seu violino em público pela primeira vez, mas foi aos 7 que se deu sua estréia oficial: tocou o dificílimo concerto de Max Bruch na Salle Gaveaux, em Paris. Aos 9 ela se graduou no Conservatório de Paris com destaque. Aos 12 o professor Carl Flesch a ouviu num concurso e se ofereceu para dar aulas de graça. Aos 15 anos Ginette fez o impossível. Ganhou o Concurso Wieniawsky, em Varsóvia, que teve no segundo lugar ninguém menos que David Oistrakh, 27. E a ainda pequenininha Ida Haendel (aos 5), que ganhou uma medalha e tirou 7º lugar. Esse feito impressiona e assombra o mundo, porque Oistrakh viria a se tornar um dos (sei lá) cinco maiores violinistas de meados do século XX. Ginette teve uma carreira curta impecável, seu pianista era seu irmão, Jean-Paul Neveu. E além do repertório de violino e piano, ela excursionava com o repertório de violino e orquestra. Em 28 de outubro de 1949, ia com seu irmão de Paris a Nova Iorque quando o avião bateu numa montanha nos Açores, não deixando sobreviventes. Ela tinha 30 anos. Foram 48 vítimas. A sorte é que nos deixou gravações. Eu pessoalmente acho seu som cósmico, foram poucos os violinistas que me surpreenderam como ela. Ela tinha uma sonoridade límpida, clara. Sua técnica era evoluída. Ela fazia as passagens mais difíceis soarem fáceis, como se estivesse 50 anos à frente. Tocando Sibelius, revela-se sua mais óbvia façanha: era uma pintora, fazendo a gente ver as cores e até sentir o frio. No segundo movimento do Concerto para Violino de Beethoven, parece uma voz suave, mas que cala a todos quando fala. Às vezes, uma nota que antes era só uma nota, vira um momento revelador. Você tem que ter a experiência de, ao menos uma vez na vida, escutar Ginette Neveu. Gravações importantes - Johannes Brahms - Concerto para Violino, com a Orquestra Philharmonia, regida por Issay Dobrowen - Jean Sibelius - Concerto para Violino, com a Orquestra Philharmonia, dirigida por Walter Susskind - Claude Debussy - Sonata para Violino e Piano, com Jean-Paul Neveu - Richard Strauss - Sonata para Violino e Piano, com Gustaf Beck - Ludwig van Beethoven - Concerto para Violino, com a Orquestra SWR, de Stuttgart, regida por Hans Rosbaud (uma gravação ao vivo resgatada do último ano de sua vida - contém uma outra gravação maravilhosa, também ao vivo, do Concerto de Brahms, com a Filarmônica da Haia, regida por Antal Doráti) Abaixo, um trecho do Poème de Ernest Chausson. Observe o carisma, a entonação (afinação) com que ela toca os trinados e a intensidade do seu olhar e do seu toque.

  • papo de arara: hermes Veras

    Hermes Veras é antropólogo, poeta e membro do selo literário Tubo e do Escambanautas, também outro grupo de escritores e escritoras que troca experiências, promove cursos e viabiliza publicações. Hermes já publicou a não-ficção O sacerdote e o aprendiz: antropologia de um terreiro amazônico pela editora Letramento agora no ao de 2021 e está neste momento com uma campanha de financiamento coletivo de seu livro de poemas Formas Veladas. Cearense radicado no Pará e com doutorado no Rio Grande do Sul, Hermes bateu um papo gostoso com a redação da Arara sobre antropologia, vida, arte e, claro, poesia e literatura. 1. Hermes, primeiramente explica: como foi que você percebeu que era poeta? Convive em mim um velho. Desde o finalzinho da infância, no início do adolescer, sentia aquela vontade de fazer poesia e outros tipos de expressões artística com as palavras. Só que essa vontade ia e voltava, geralmente passava logo! E me concentrava em coisas boas-divertidas, como brincar, ouvir música, jogar RPG. Com o passar do tempo e convivendo com meus professores de literatura no ensino médio, principalmente um professor que perdi o contato e a professora Nádya Gurgel, com quem falo até hoje, aprendi alguma coisa sobre a poesia e as escolas literárias. Meus primeiros poemas eram emulação do estilo simbolista e árcade, hahaha. E eu falando assim sei que parece coisa de gente besta, mas juro, não sou não. Eu tinha acesso a isso com o meu livro didático de literatura e também aperreando os professores. Bom, mas isso não me convenceu a ser poeta, nem de que eu poderia ser um. Já no final do ensino médio e o início de meu tempo de cientista social aprendiz, andava com um caderninho vagabundo, daqueles de capa mole e estampa de surfe, escrevendo uns poemas alucinatórios, sobre a filosofia das coisas cotidianas, da percepção de se perceber gente, disso de percorrer com consciência o tempo e o espaço. Das coisas que só podemos fazer quando estamos mergulhados no tempo da juventude e escolar, sem outras preocupações. Nesse período escrevi um livro todo manuscrito de poesia, tem um pouco mais de 40 poemas. Nunca publiquei e pretendo que fique assim. Mas lá tem poemas que gosto até hoje. Com isso ganhei o apelido de poeta entre amigas e amigos, claro que com um tom pejorativo, às vezes contemplativo ou digno de pena. Nessa época já participava do Grupo Eufonia de Literatura, também em Fortaleza (2007-2012). E éramos amigos que nos reuníamos para falar de literatura, de nossas leituras nae do que a gente escrevia na época. Foi um momento fundamental para que eu me sentisse parte de algo e esboçasse a vida de escritor. De qualquer forma, depois disso vieram os contatos com a Fazia Poesia, encabeçada pelo poeta Alex Zani, que é um portal literário de poetas contemporâneos, a participação do Festival da Poesia de Fortaleza (2020), com a curadoria do escritor Talles Azigon e por aí vai. 2. E como você se descobriu e se tornou antropólogo? Olha no Brasil geralmente é antropólogo quem tem o bacharelado em Antropologia (são cursos recentes) ou formação de pós-graduação em Ci na área. Entrei em contato com a antropologia só na graduação em Ciências Sociais na UECE (2009-2012). Sempre gostei da antropologia por conta de achar os textos mais bem escritos do que os das outras áreas das ciências sociais. Isso falando de maneira bem geral, há muitas exceções e diferenças. Mas o espírito da antropologia me pegou de jeito por ser uma maneira de se estar no mundo pensando e vivendo a diversidade-diferença e a potência disso para as relações sociais. É bem utópico, sabemos do passado colonial da disciplina, mas acredito que há muitas formas de praticar antropologia, quando estou escrevendo, seja o que for, estou fazendo uma delas, mas com outros registros e artefatos. Então, formalmente, fiz a graduação em ciências sociais. Passei a me achar perto de ser um antropólogo no mestrado em antropologia, que fiz na UFPA (2013-2015), em Belém do Pará. Mas isso é gradativo. Acho que me tornei antropólogo quando aprendi a ouvir o outro e extrair um aprendizado disso. O meu livro O sacerdote e o aprendiz: antropologia de um terreiro amazônico (2021) é uma materialização disso, por isso sou sempre muito grato ao Terreiro de Mina Deus Esteja Contigo e ao Pai Álvaro, local e com quem construí minha pesquisa para a dissertação-livro. Atualmente concluo o doutorado em Antropologia Social pela UFRGS, mas a minha pesquisa é em São João de Pirabas, também sou bastante grato aos terreiros que me receberam por lá, aos pais e mães de santo com quem convivi e muitas pessoas de religião afro. Não se acerta sempre, mas acho que a antropologia tem que ter esse espírito de aprendizagem, interlocução e movimento. 3. E como que você encara esse cenário atual da arte e, um pouco mais especificamente, da literatura independente brasileira? Em que estágio estamos tanto no sentido de organização, financiamento, mas sobretudo também de difusão das obras? Porque você faz parte de um selo literário independente, não é? Sabe, não sou a melhor pessoa para responder sobre mercado literário, mesmo o independente. Sim, o meu livro está saindo por uma editora independente, a Escaleras, de Salvador/João Pessoa, que é encabeçado pela escritora e editora Débora Gil Pantaleão. Convivo com várias outras pessoas escritoras que se aventuram no campo independente da literatura contemporânea. Acho que está difícil, pois sempre esteve. Mas está pior por conta da pandemia e de se ter um governo genocida, fascista e contra tudo que é bom na humanidade, ou seja, odeia a arte. Mas o pessoal está resistindo, criando, fazendo arte de birra, por ser contra, por precisar fazer isso. Sendo tinhoso, botando boneco. Mas aí cansa. Artista precisa comer, precisa pagar contas, precisa viver. No caso da literatura acho que há espaço para tudo e todas as pessoas. Sabe, acompanho de perto a revista Escambanáutica, que paga seus autores. Um de seus editores é o Moacir Fio, que também escreveu um microposfácio em Formas Veladas. A revista foca em literatura fantástica e especulativa. Tem também a newsletter de lá, a Pulpa Mágica, que também paga. Há algumas revistas que conseguem pagar seus profissionais por conta de financiamento coletivo. Esse é uns dos caminhos. Mas também pode nos esgotar. Enfim, o importante é tentar, brigar por nossos direitos e fazer o que estiver ao nosso alcance para construir um público leitor (devo ter umas 20 pessoas, mas estou caminhando rs) e nós mesmos tentarmos distribuirmos nossas obras. No geral nem as grandes editoras fazem isso, apenas com alguns gatos pingados. As independentes estão limitadas por questão humana: quase sempre é uma pessoa que toma conta de tudo, abrangendo para mais duas ou três. E tem a questão financeira, do financiamento da obra de fato. Muitas editoras independentes dependem do catarse, ou outras plataformas, para lançar os seus livros. A pré-venda por esses projetos de financiamento coletivo é essencial para que a editora não tenha maiores prejuízos e consiga produzir a obra. É um caminho que precisamos percorrer, mas também estarmos atentos a outras possibilidades. Uma hora a fonte seca... Enfim, acho que me perdi na resposta. De fato não sou o melhor para responder sobre isso, apesar de estar atento ao movimento. 4. É possível ser um artista sem ter internet hoje? Sim. É possível ser tudo. Não vai ser fácil. Assim como não é fácil ser artista e estar na internet ao mesmo tempo. Mas vou falar por mim, e sobre uma parte do meio literário que conheço. Não consigo me imaginar construindo um público leitor (que apesar de ser mínimo, tem sido formado a duras penas, com cada pessoa sendo conquistada na arte da palavra, sedução e lorota rs) sem os recursos das redes sociais. Além disso, estabeleci vínculos com várias pessoas da literatura por conta de oficinas que cursei, grupos de discussão, enfim, por conta dessas redes que vamos estabelecendo. Olha, hoje eu publico microcontos no instagram, na página @viu.eitanem . Tento ter um instagram relativamente ativo, no meu perfil pessoal também. Uso o twitter, facebook, linkedin... Escrevo uma newsletter de crônicas, um mensageiro, no link https://tinyletter.com/hermesveras. Enfim. Uso a internet a meu favor. De quebra ganho ansiedade e outros problemas. Nada é fácil... Sei que aprendi muito com a escritora e professora de escrita Vanessa Passos (que assina a quarta capa de Formas Veladas). Ela já era minha amiga por ser casada com o Paulo Henrique Passos, que participou do eufonia comigo junto com o CA Ribeiro Neto (que assina um microposfácio no Formas Veladas), o Pedro Gurgel e muitos outros amigos e amigas. Mas enfim, a Vanessa me incentiva a estar na internet, divulgando o meu trabalho como escritor e a colocar a cara no mundo. Também aprendo muito com a minha companheira, a Thay Petit, que é antropóloga e artista visual. A maioria dos aspectos visuais e audiovisuais que estão nas minhas redes são feitos por ela, ou tem muito da mão dela. Ela me convenceu de que eu preciso dar um jeito no visual das coisas que apresento. Antes eu batia o pé: sou escritor, vão ler o que escrevo. Sim, vão ler (esperança), mas preciso apresentar ao menos um negócio bonitinho, né. 5. E sobre o seu livro, como foi o processo de escrita do livro? Escrevi a maior parte dos poemas em 2020. Mas há poemas de 2019. Como te contei, escrevo poemas com certa frequência desde o final do ensino médio. Escrevi alguns livros de poesia que ficam na minha gaveta. Participo da Fazia Poesia. E por conta desses contatos, acabei fazendo algumas oficinas com a poeta Anna Clara de Vitto (ela escreveu a orelha de Formas Veladas). As oficinas dela foram empurrões para que eu criasse vergonha na cara e escrevesse mais um livro de poesia, mas um que dessa vez viesse ao mundo e fosse publicado. Então impulsionado pela oficina, ainda no início da pandemia, escrevi boa parte dos poemas. Reuni alguns de 2019 e editei para que tudo isso tivesse cara de livro. 6. Depois de escrito, qual foi a trajetória dele para chegar até a editora? Depois de tudo isso o livro recebeu a leitura sensível e crítica do CA Ribeiro Neto, ele me ajudou a pensar mais na unidade de Formas Veladas como um livro. Submeti para o concurso da Biblioteca Pública do Paraná. Aguardei o resultado, vi que não tinha rolado. Então editei o livro um pouco mais. Até que apareceu a chamada de originais da Editora Escaleras. Eu já tinha feito umas oficinas com a Débora Gil Pantaleão, a responsável pela editora. Sem contar que sou leitor mesmo de seu catálogo, acho que tem muita gente incrível, que não cito com medo de perder algum nome. Mas o catálogo de contos, poesias e agora romance, é impecável mesmo. Leiam Escaleras! Enfim. Enviei o meu original e ele foi aprovado. A Débora fez uma leitura também sensível, sugeriu umas alterações e fizemos. Agora o livro está em seus últimos dias de campanha no catarse, depois vai para a casa de quem comprar! 7. Você também é antropólogo, né? Lembro que o Paulo Leminski, que era faixa preta de judô, sempre dizia que - ao menos no caso dele - não dava para separar o atleta-artista marcial do poeta. Então eu te pergunto: é possível separar o antropólogo do poeta? Como esses dois campos se misturam e se conciliam em ti? Você separa ou junta uma da outra? Antes eu pensava que separava. Mas aí vi que não fazia muito sentido. Na verdade a pós-graduação acabou aniquilando um pouco do meu tesão pela literatura. Continuava lendo, mas escrevia pouco. Atualmente consigo conciliar um pouco melhor isso, mas continuo um caos. Não separo o antropólogo do poeta, nem o poeta do cronista, contista. Quando passo um café, sou eu que estou ali, passando o café. Eu que vou tomar o café, provavelmente. Então por que diabos não seria o antropólogo, poeta, contista, cronista, diabo a quatro, que estaria passando e tomando este café? Demorei para perceber isso, aí você pode perceber o quanto sou confuso e lento. 8. Hermes, você é nordestino, especificamente cearense. Mora no norte, especificamente o Pará, há muitos anos e atualmente estuda doutorado no Sul do país, na federal do Rio Grande do Sul. Partindo desse contexto queríamos te perguntar basicamente duas ou três coisas: Você tem a sensação de que muitos brasileiros desconhecem o próprio país? Ou em outro sentido, você percebe o privilégio que é ter essa vivência em várias regiões e realidades diferentes? Acho que é ainda mais privilégio ter essa vivência juntamente com esse conhecimento todo que você tem de antropologia onde a vivência prática e a reflexão teórica podem se misturar. E por fim, como você acha que isso contribui para sua poesia? A pergunta parece enorme, no entanto, no fundo, no fundo, o que queremos perguntar basicamente é uma pergunta-chave para outro antropólogo, Stuart Hall: Você consegue responder com facilidade àquela famosa pergunta: de onde você é? Quero te agradecer por essa pergunta. Sabe, eu gosto mesmo é do movimento. Mas nós nos movimentamos dentro de nós mesmos. Podemos viajar sem sair do lugar. De qualquer forma, me mover, simultaneamente, tanto de mim, quanto em espaço, caminhar por outras geografias, me é muito prazeroso. Sou um privilegiado por ter me deslocado para estudar. Na época estávamos nos governos do PT, todo aquele clima de que estudar vale a pena, que não eram mais só os ricos que poderiam estudar e até mesmo seguir carreira acadêmica. Viajei para vários estados do Brasil para apresentar meus trabalhos de antropologia, indo até mesmo para Santiago, no Chile e Posadas, Argentina. Tudo sendo financiado pelas universidades e instituições de fomento. Antes de entrar na faculdade, eu nunca tinha saído do Ceará praticamente. Só uma vez que fui de ônibus para Recife. Mas quem me fez sair de casa mesmo foi o ensino público e a ciência! Então sou um privilegiado por ter conseguido uma bolsa no mestrado, mesmo que tenha passado seis meses sem recursos, e por ter tido bolsa no doutorado. Sou privilegiado por ter estudado em universidades públicas, gratuitas e de qualidade, como a Universidade Estadual do Ceará, Universidade Federal do Pará, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E eu quero que cada vez mais pessoas possam passar por isso! Não podemos aceitar que o governo do nosso país seja contra a educação e a ciência. Que afirme que só os ricos podem acessar a universidade. Esses caras não podem vencer. Nem vão. Verdade é que meu movimento se deu junto com os bons ares da política pública universitária, junto com a minha vontade de conhecer mais do Brasil. Não é fácil aceitar esse tipo de vida movente. Agora tô com anseio de me fixar, conseguir me manter financeiramente, ajudar minha família de maneira mais efetiva. Mas não me arrependo. E bom. Eu posso dizer com exatidão de onde eu sou, nasci em Fortaleza e vivi nesta cidade até os meus 22 anos. Agora não sou só isso. A minha experiência em Belém e Ananindeua, no Pará, me marcou profundamente. Fui muito bem recebido aqui. Já a experiência no Sul, em Porto Alegre, foi mais de alteridade radical. Foi uma experiência bem interessante, mas não é a mesma de ter morado no Norte. No Norte acho que me misturei. Eu como as coisas daqui, falo expressões daqui. Isso sem deixar de ser cearense. Mas em Porto Alegre a história foi outra. Questão de afinidade espiritual, se podemos dizer assim. E também morei por menos tempo e sabia que era a experiência de cursar um doutorado. Quanto ao fato das pessoas não conhecerem o próprio país, acho que isso acontece mais por conta de nossa dimensão, da falta de incentivo e investimento em estudos básicos em geografia e a própria antropologia. Sem contar que o poder sudestino tende a ler o Brasil a partir do próprio umbigo, espalhando as suas mídias e atos como se fossem eles mesmas a expressão única e máxima do que se é Brasil. Mas nós no Norte e Nordeste sempre resistimos a tudo isso e não deixamos de contar nossas histórias e nos expressarmos desde a nossa experiência, mas sem dever nada a ninguém! 9. Quais suas principais influências na literatura, na antropologia e na vida? Isso de influência é difícil, pois me sinto influenciado por muita gente e seres. Não só no bom sentido. Portanto vou elencar nomes aleatórios e embaralhados: Manuel Bandeira, Gilka Machado, Hilda Hilst, Olga Savary, Cruz e Sousa, Kadu Carneiro, Lívio Barreto, Adélia Prado, Edson Carneiro, Bruno Menezes, Belchior, Luizinho Calixto, Zila Mamede e daí por diante. De contemporâneo a lista é mais infinita, leio muito meus amigos de editoras independentes. Mas vou citar os poetas do coletivo Fazia Poesia, muita gente me influencia ali, junto com o pessoal do Eufonia, atual Nós por Nós e o pessoal Escambanautas. Quem quiser apoiar o livro do Hermes no Catarse é só clicar aqui que enquanto a campanha estiver no ar o linque estará disponível!

  • o custo do negacionismo

    Existem alguns pontos interessantes na narrativa do Governo Federal sobre o combate à pandemia de COVID que eu gostaria de explorar. Segundo dados oficiais, o governo já gastou mais de 500 bilhões de reais no combate à pandemia. E ele tem se vangloriado desse feito como o governo que mais “investiu” na saúde desde sempre. O mesmo governo também se vangloria de não ter fechado nem mesmo um botequim e, portanto, não é responsável pelo desemprego crescente. E esse mesmo governo também afirma que não é possível dar um auxílio aos trabalhadores num valor que seja capaz de mantê-los em casa. Particularmente, acho muito pouco provável que qualquer parlamentar, ministro ou similar, no Brasil, seja capaz de viver com um salário mínimo durante alguns meses. Muito menos com os 600 reais do auxílio inicial e é impossível que alguém sobreviva com 150 reais. Mas o meu ponto aqui é como essas três situações estão interligadas e resultam de uma mistura de ignorância e viés político presentes não só na cabeça do presidente, mas de (quase) toda a classe dominante do país. Primeiro, o gasto com saúde. O que tem sido feito não pode ser chamado de investimento, pois investimento é algo que se faz com antecedência, esperando um retorno futuro. Hospitais de campanha não são investimento. Mesmo a compra desesperada de ventiladores mecânicos não deve ser considerada como investimento, uma vez que foi feita para atender uma demanda emergencial (muitas vezes com preços acima do usual). Sim, esses equipamentos poderão ser utilizados após a pandemia e poderiam ser encarados como “ganho de capital”. Mas comprar acima do valor numa quantidade que não foi planejada de acordo com a necessidade, projeções e outros fatores não pode ser considerado um investimento. Foram gastos necessários dadas as condições do país, mas não são investimentos. Não um bom investimento, ao menos. Se você sofre um acidente e precisa gastar dinheiro com internação, dificilmente vai chamar isso de “investimento em saúde”. Grande parte desse chamado “investimento” foi aplicado em insumos e outros itens que já não existem mais. Ou seja, são gastos e não investimentos, como o governo quer fazer parecer. E que fique bem claro: para salvar a vida dos brasileiros, poderia (e deveria) ser gasto até muito mais! Dinheiro se recupera, vidas não! E aí é que está o ponto! O discurso do governo e seu “painel da vida”, assim como de muitos senadores da base aliada durante a CPI, é de que mais de 16 milhões de vidas foram salvas. É um número impressionante! Mas a sua interpretação está errada. A infecção pelo novo coronavírus não é obrigatória, de modo que o termo mais correto seria "infectados" ao invés de "curados". A Nova Zelândia, por exemplo, relata menos de 3 mil casos (564 casos/milhão de habitantes). O Vietnã, com quase 100 milhões de habitantes, teve apenas 16 mil casos (164 casos/milhão). Se analisarmos esses dados a partir da premissa de "curados" vamos perceber que eles estão bem mal, já que curaram muito pouca gente. É uma questão matemática. A infecção de mais de 18 milhões de brasileiros (86 mil casos/milhão de habitantes) é resultado das escolhas do governo federal não só no início, como durante todo o curso da pandemia. Sim! Outros entes também possuem sua parcela de culpa, como governadores, prefeitos, o legislativo e o judiciário. Mas a condução geral do país é atribuição do poder executivo federal, concentrado nas mãos do presidente. E se a condução geral não foi exatamente como ele desejava é porque alguns destes entes, esporadicamente, agiram contra a sua orientação, salvando algumas centenas (milhares?) de vidas. Dessa forma, fica claro que se o governo gastou (e não investiu) mais de 500 bilhões no combate à COVID, esse gasto excessivo foi consequência direta das suas escolhas de combate. E isso é evidenciado pelo que ele tenta mostrar como marca de sucesso: o número de recuperados. Percebam, no entanto que só é possível ter um número alto de recuperados se houver um número alto de infectados. Soma-se a isso o fato de que os dados começam a mostrar que até ¼ dos recuperados apresenta sequelas, algumas duradouras, representando mais gastos para o sistema de saúde. E também que a sobrecarga do sistema causa desgaste extra dos equipamentos, levando a uma depreciação acelerada. E se, ao invés de gastar todo esse dinheiro tentando “recuperar” os infectados, a opção tivesse sido gastar mantendo as pessoas em casa? A experiência da Austrália e Nova Zelândia mostrou que o fechamento de fronteiras, distanciamento físico e outras medidas não-farmacológicas são inequivocamente eficazes no controle da pandemia. Sabemos, no entanto, que a Austrália voltou aos noticiários devido ao aumento dos casos ocorrido justamente após o relaxamento das medidas não-farmacológicas e ao não investimento massivo em medidas farmacológicas como vacinas (que deveriam ser combinadas às medidas não-farmacológicas) somando-se a isso o fato de o movimento antivacina ter uma expressão relativamente forte no país como podemos constatar nesta matéria da BBC. Mas a questão não é se espelhar em erros, mas em acertos: E se gastássemos mais nos auxílios, com fronteiras fechadas? Um, dois, três meses de atividade econômica prejudicada, com retomada gradual, mas com 50 mil casos totais e cerca de mil mortes. Será que o gasto extra com auxílios poderia ter sido equilibrado com a economia feita no tratamento? E parte desse gasto não retornaria na forma de impostos sobre o consumo feito com os auxílios? Talvez você possa argumentar que o gasto no tratamento também gerou retorno de impostos e que “daria na mesma”. Do ponto de vista econômico, talvez. Essa é uma discussão de visão política e econômica, favorecer a base ou o topo. Mas não existe comparação possível no que diz respeito ao custo em vidas! E essas, como dito antes, não são recuperáveis... Sandro Sperandei Brasileiro exportado para a Australia, Sandro é professor de Epidemiologia na Western Sydney University. Professor de Educação Física (UERJ) e estatístico (UERJ), mestre em Engenharia Biomédica (UFRJ) e doutor em Biologia Computacional e Sistemas (FIOCRUZ), é especialista em analise estatística e simulação de dados e realiza pesquisas em saúde mental e prevenção de suicídio.

  • a indústria do plástico mentiu pra você

    Gostaria de iniciar esse texto ressaltando duas coisas muito importantes. Não estou aqui para demonizar o plástico em si, nem sou de forma alguma contra reciclagem. Entretanto precisamos falar de um problema global, grande o suficiente para afetar diretamente cada ser vivo nesse planeta e que passa por esses dois tópicos. Não vou gastar muito tempo falando de todas as maravilhas do plástico já que você que me lê agora com certeza já percebeu que o plástico está em tudo ao seu redor. É um material extremamente versátil, barato, resistente, leve. Mas assim como o toque do rei Midas algumas maravilhas podem ser bem problemáticas na prática. Um exemplo disso é a poluição do plástico. E sim eu sei que você está ciente dela em partes, mas existe uma parte do problema que não é simplesmente uma questão de nos esforçar um pouco mais para salvar nosso planeta. E pior, estão mentindo pra você. Estão fazendo um grande esforço pra culpar você pelas consequências. Sim, a indústria do plástico iniciou um projeto que visa deixar você com a consciência pesada pelos problemas que ela mesma criou! Primeiro vamos entender o tamanho do problema. De 1950 aos dias atuais nosso planeta passou de um lugar que nunca teve uma só grama de plástico para um lugar onde nenhum ambiente natural ou ser vivo está livre de plástico. Isso mesmo o plástico está em você, dentro do seu corpo entranhado em seus músculos, fígado, cérebro e rins. Está no ar que você respira na água que você bebe, em tudo o que você come. É um nível de onipresença que para deixar claro precisamos comparar ao conceito de Deus. O plástico é como Deus para os religiosos ou a força para os nerds fãs de guerra nas estrelas. Está em tudo. Mas diferente de deus e da força podemos isolar esse material diretamente de tecido muscular de um animal morto. Temos também ilhas de plástico boiando no oceano pacifico numa área que vai da costa da Califórnia até a costa do Japão. A projeção é que em 2050 os oceanos do mundo tenham mais plástico do que peixe! Além disso o plástico que foi quebrado pela exposição ao sol e vento vai sumindo da vista mas não do ambiente. Ele vai se quebrando em microplástico e vai sendo espalhado pelo vento, ingerido e aspirado por animais. Acontece que o plástico que foi ingerido nem sempre é excretado, parte dele fica em nós em diversos tecidos do nosso corpo. Como se isso não fosse assustador o bastante temos ainda o fato de que esse microplástico transporta outros poluentes aderidos à sua superfície. Alguns poluentes, especialmente os que tem afinidade por gorduras, tem afinidade pela superfície do plástico nas condições ambientais. Mas uma vez exposto aos sucos gástricos a afinidade cai, fazendo com que essas substâncias sejam liberadas dentro dos organismos. Ensaios em laboratório já demonstram que um organismo aquático sofre maior contaminação por alguns poluentes quando o microplástico é adicionado potencializando a toxicidade para os seres vivos. O problema já é tão grande que promete ser o maior problema ambiental do nosso século. E de quem é a culpa? Sua claro. Você cidadão médio que não se dá o trabalho de separar seu lixo para reciclagem. É você que está matando as tartarugas sufocadas, intoxicando a vida nesse planeta. Afinal era só você criar vergonha nessa sua cara e separar seu lixo que todo o plástico seria reciclado e tudo ficaria bem. Mas você incompetente que é não faz e é exatamente por isso que chegamos nesse ponto não é mesmo? Bem, talvez não seja exatamente assim. Se, por exemplo, eu te disser que nem todo plástico é reciclável? E se eu te disser que mesmo que cada garrafa reciclável fosse coletada para reciclagem o percentual de plástico reciclado na próxima garrafa produzida não mudaria? E se eu te disser que cerca de 35% de todo o plástico produzido é feito para ter uma vida útil ridiculamente curta mesmo com o tempo de duração do material tendendo ao infinito? Aposto que você se sentiria menos culpado. Pois aqui vão algumas outras informações que você nunca viu nem verá numa campanha de reciclagem. Quando reciclamos um plástico não estamos exatamente pegando aquele material e moldando em outra forma, é preciso acrescentar plástico virgem. Na verdade alguns plásticos como o poliestireno perdem algumas propriedades físicas quando reciclados fazendo com que a resina reciclada seja de baixa qualidade e assim passe a ser usada apenas em conjunto com mais resina virgem, ou seja aquela ideia de que o plástico pode ser reciclado indefinidamente não existe! Além disso o plástico está ligado a produção de petróleo que tem outros produtos mais economicamente interessantes como a gasolina e o diesel. Sendo assim o plástico reciclado apesar de ser inferior em qualidade é apenas 20-30% mais barato do que o plástico virgem. E para piorar, muito do plástico coletado não é reciclável. Então porque as campanhas de reciclagem não enfatizam a separação do plástico por tipos já que assim poderíamos aumentar a nossa eficiência de reciclagem? Bom é que as principais campanhas mundiais de reciclagem de plástico são promovidas pelas empresas que produzem e distribuem plástico em seus produtos. E para elas melhor do que aumentar a porcentagem de reciclagem é te convencer que a parte delas está sendo feita. Que só temos esse problema porque você não coopera. Em suma essas campanhas funcionam na prática como a meritocracia te mantem apegado ao fato de que se você se esforçasse mais a sua vida poderia estar melhor. Mas a campanha sobre isso existe não porque se espera que você se esforce mais, mas para esconder outra verdade, a de que mesmo que todos se esforcem ao máximo não dá para 8 bilhões de pessoas serem ricas. Simplesmente não dá. Sim nós podemos melhorar os números, mas não temos como parar de produzir plástico e apenas reciclar o que já temos. Uma parte vai obrigatoriamente se acumular no ambiente. Enquanto isso a indústria do plástico nos presenteia com mais uma grande inovação: o plástico feito de plantas. Olha que lindo! Parece uma solução incrível. Só que não é. Basta uma reflexão rápida para entender que transformar algo que é rapidamente degradado e processado pelo meio ambiente em plástico não é uma boa alternativa já que o plástico biodegradável leva mais de 100 anos para se decompor. Se a primeira molécula de plástico produzida tivesse sido biodegradável ainda teríamos a mesma quantidade de plástico no mundo já que a invenção desse material tem menos de um século. Se você leu até aqui deve estar se perguntando como resolver esse problema e essa é uma excelente pergunta. A resposta honesta é: Eu não sei! Faço doutorado nesse assunto e não tenho a resposta então não se preocupe se você também não tem. Mas assim como eu você deve entender que qualquer solução passa obrigatoriamente por encarar os fatos. Pensar o assunto de um ponto de vista honesto e realista. E francamente o fato de nem isso termos começado a fazer diante desse problema é de longe o fato que mais me assusta. André Pinheiro: Nascido no Ceará e radicado no Rio de Janeiro, cursando doutorado em biofísica pela UFRJ atualmente pesquisando na área de toxicologia ambiental sobre a bioacumulação de microplástico. Nerd assumido e aventureiro da cozinha nas horas vagas.

  • Brahms - Sinfonia Nº 1 - Análise

    A primeira sinfonia de Johannes Brahms (1833-1897) é uma das mais impactantes obras sinfônicas do repertório. Sucessora das 9 de Beethoven, mostra um compositor maduro e seguro. Outros compositores podem ter o dom da melodia, ou um senso de tragédia, de novelização do discurso, mas poucos têm o que Brahms tem. A grandeza absoluta que reina em cada compasso. Escrita ao longo de bem 20 anos e finalizada em 1876, a Sinfonia Nº 1 em Dó Menor, Op. 68 é uma obra ambiciosa. Se bem que isso dá a entender que ela "tentou". Ela, de fato, conseguiu. Ludwig van Beethoven escreveu sua última sinfonia em 1824, e quando ele morreu, em 1827, deixou o mundo germânico meio inquieto. Procurava-se o "sucessor" dele, aquele que carregasse a tocha da sabedoria sinfônica - e o domínio da forma sonata conduzida por uma orquestra - por tudo quanto é canto. Robert Schumann, por mais que nos tenha deixado 4 sinfonias, estas (com todas as suas qualidades, sobre as quais ainda falarei) não eram dignas de tamanho legado. Então sempre coube a Brahms, nascido alguns anos após a morte de Beethoven, a tarefa de seguir fazendo música alemã que fosse simplesmente bíblica (no bom sentido). E ele atrasou. A responsabilidade era muita. Para se ter uma ideia, ele entregou antes duas Serenatas monumentais para orquestra. Serviram como exercício e como sondas, tateando o caminho com o público. E um concerto para piano e orquestra (o 1º Concerto para Piano, em ré menor) igualmente grandioso. Todos são tocados com frequência ainda hoje. Até que, aos 43 anos, lançou sua formidável obra prima. A primeira de suas 4 sinfonias. Só não foi uma unanimidade porque toda unanimidade é burra (parece haver unanimidade sobre esse dizer). Sim, Brahms tinha seus detratores. Fanáticos pela música de Richard Wagner que acreditavam que a música não deveria ser "pura", isto é, desprovida de ideias extramusicais. Ou seja, achavam que música tinha que necessariamente estar atrelada a um programa, a uma historinha, que seja. Por isso viam na ópera - o teatro em música - a forma mais fundamental da arte. As velhas formas, sonata, sinfonia, concerto, estavam ultrapassadas. Aqui é só um parágrafo, mas na Europa do romantismo foi uma guerra. Só que não dava para ignorar a sinfonia. Era um rompante de tamanha violência, uma explosão que até hoje se ouve em todos os cantos do mundo. A orquestra tem: Violinos I Violinos II Violas Violoncelos Contrabaixos 2 Flautas 2 Oboés 2 Clarinetes 2 Fagotes 1 Contrafagote 4 Trompas 2 Trompetes 3 Trombones Tímpanos Abaixo, a gravação ao vivo da Orquestra Sinfônica da Rádio de Frankfurt (hr-Sinfonieorchester), sob a regência de Stanisław Skrowaczewski. Está funcionando, sim. 1º Movimento - Un poco sostenuto - Allegro - Meno allegro A peça começa com uma explosão (25s), um momento em que a orquestra extravasa seu viés trágico. É uma introdução (e vale lembrar que Brahms a acrescentou posteriormente). Duas linhas principais: uma ascendente nos violinos e uma descendente nas madeiras, ambas em síncope. Leonard Bernstein descreveu como uma revelação, uma auto-revelação. "Duas agonizantes linhas melódicas rasgando uma à outra em movimento contrário, inflando-nos com a paixão e desespero de Brahms". "... para declarar a dualidade de sua própria natureza...". É um momento de libertação. Ele tinha que começar sua primeira sinfonia (que seria chamada de a 10ª de Beethoven) sinalizando que não tinha medo de ser o sucessor do mestre que ele nunca conheceu. Uma vez feito isso, que comece a música. A introdução é repetida (2m25s) até que um oboé (2m47s) e, por fim, os violoncelos (3m08s), elaboram uma ideia melódica que conduz ao fim dela. Um toque do tímpano (3m31s) marca o começo da exposição. Em vez de nos inundar com abundância de temas, ele prefere fazer com que cada tema tenha mais de um elemento, o que confere riqueza à obra, sem que precisemos ter que decorar várias melodias. O 1º tema é exposto primeiro pela flauta. Ele tem 3 partes: (3m32s) uma escala cromática ascendente, seguida por notinhas rápidas descendentes; (3m37s) uma melodia em intervalos bem espaçados, exposta pelos violinos; e (3m47s) um ritmo pontuado com intervalos descendentes, tocados nos violinos. Este trecho, voltado ao 1º tema, é agitado, inquieto. Ele define bem a sinfonia em cores escuras. Um momento nas madeiras (5m04s) é a transição (transição é a ponte entre o 1º e o 2º tema). Aparece o 2º tema no oboé logo em seguida (5m36s). É uma melodia lírica que nos dá espaço para respirar. Subitamente a agitação volta a tomar conta, com três notinhas pausadas (staccato) que vão se multiplicando (6m22s). Isso fecha a exposição. Aos 7m, um toque com o tímpano leva à repetição dessa parte. Então esse parágrafo aqui é repetido, ok? Nessa interpretação do vídeo e em muitas outras. Mas alguns regentes optam por não repetir. O desenvolvimento começa aos 10m26s. Nele vão se alternar alusões, citações e declarações das três partes do tema 1 e do tema 2. Repare que constantemente ele nos faz ouvir um motivo de 4 notas (tã tã tã taaaam), geralmente nos tímpanos ou nos instrumentos graves. Esse motivo é oriundo da famosa 5ª Sinfonia de Beethoven, e não é a última citação a este compositor que veremos aqui. Ouça aos 11m37s nos trompetes, por exemplo. Ele começa a dominar a peça. É um vírus. Ouça o murmúrio dos contrabaixos com respostas das madeiras (12m41s). Até que o vírus domina completamente (13m19s), os outros temas tentando se safar. A partir daí a música decresce, mas sem perder ímpeto. Com uma modulação aos 13m33s começa a recapitulação. Ela reapresenta tema 1 e tema 2. Aqui ele faz várias modulações. Novamente o único momento plácido é o do tema 2 (15m13s), até a intervenção do clarinete e da trompa (15m41s). Aos 16m a inquietação volta a crescer nas violas, levando-nos ao coda. Aos 16m51s tem início o coda, parte final do primeiro movimento, com o pizzicato das cordas. Ele é relativamente calmo, depois de um movimento tão turbulento, e acaba em acorde maior. 2º Movimento - Andante sostenuto O lírico Andante começa aos 18m42s. É lírico e algo majestoso. É dito que nesse movimento Brahms fez sua "única concessão romântica" - um violino solo faz a frase de fechamento, lá pelas tantas. Totalmente contrastante ao 1º movimento, este aqui faz a mesma orquestra soar serena. Ele usa os instrumentos de madeira (flauta, oboé, clarinete e fagote) como solistas em várias ocasiões. Ele tem forma A (18m42) - B (20m43s) - A (23m23s) e um coda (25m50s). 3º Movimento - Un poco allegretto e grazioso Aos 28m29s o clarinete anuncia o tema principal do poco allegretto. Mais agitado que um minueto, mas menos que um scherzo, ele tem a estrutura de um (scherzo), com parte a - trio - parte A'. Belamente escrito e orquestrado, serve de escape para toda a imersão profunda que estávamos tendo. Um relaxante antes do monumental finale. Os temas são: tema 1 (28m29s), tema 2 (28m44s), tema do trio (30m16s). O tema 1 volta aos 32m02s, e o tema 2, aos 32m21s. Enfim, é um movimento sutil e gracioso, além de colorido. 4º Movimento - Adagio — Più andante — Allegro non troppo, ma con brio — Più allegro O 4º movimento é o que confere o peso real da sinfonia. Dura quase 25 minutos e é bem episódico, mas costurado por uma habilidade única de Brahms de conduzir a narrativa sem nunca dizer algo que não seja estritamente necessário. Uma longa introdução, colorida como uma pintura (aliás, em chiaroscuro) deságua num longo momento da trompa (36m33s), como um raiar de sol, a anunciar o início propriamente do movimento. Aos 39m entra o tema 1, o principal nas cordas. Seu desenho é parecido com o do finale da 9ª Sinfonia de Beethoven. "Claro que eu percebo", disse Brahms, "qualquer idiota percebe." Então tá. É glorioso, grandioso e eloquente. A partir daqui a música ganha júbilo, se despedindo quase que completamente de seus momentos mais trágicos. E o faz com força, como poucas sinfonias antes o fizeram. Termina em retumbante triunfo. Considerações finais O sucesso foi arrebatador. O público já aguardava há décadas por uma sinfonia germânica de proporções avantajadas e de ambição igual. Os críticos foram quase unânimes em festejá-la. Se fosse a única de Brahms, já teria seu lugar em toda sala de concerto (e sala de estar). Mas foi sucedida por outras 3 igualmente excepcionais, formando um conjunto que é um patrimônio da música não só da Alemanha, mas da humanidade. Ao lado de Beethoven, Bruckner, Mahler, Sibelius, Dvořák, Schubert e outros poucos, ele cravou seu nome para sempre. Gravações recomendadas - Eugen Jochum regendo a Filarmônica de Berlim - Jochum conseguiu se tornar o maior intérprete de Brahms de sua época. E olha que isso era concorridíssimo. Nessa gravação de 1954, em excelente som mono, ele parece extrair da Filarmônica de Berlim a última gota de disciplina, com uma atmosfera elétrica. - Herbert von Karajan, com a Filarmônica de Viena - De 1960, e também em mono, esta versão é a mais impressionante que já ouvi e aquela à qual sempre retorno. A energia é de arrepiar, já no primeiro ataque vê-se que o som da orquestra é de outro mundo. - Daniel Barenboim regendo a Staatskapelle Berlin - Uma versão moderna, lançada em 2018. A orquestra, a da ópera de Berlim, está incrível, e Barenboim se sai incrivelmente bem. - Bernard Haitink, com a Orquestra do Concertgebouw de Amsterdã - A sonoridade quente, grave e absolutamente polida da orquestra, sob a regência do grande Haitink, faz um verdadeiro milagre, uma invasão acústica, nessa gravação de 1973. Confira aqui a análise da 4ª Sinfonia de Brahms. E, em breve, teremos a 2ª e a 3ª.

  • papo de arara: JÚLIO HOLANDA

    Entrevista com Júlio Holanda Co-candidato na @coletivabemviver Colaboração de André Luís Sales. Pouco antes das eleições nosso colaborador político, André Luís se propôs a explicar o que são as candidaturas coletivas. Para além do bem e do mal, a entrevista não ficou pronta antes das eleições, mas segue agora, instrutiva, porque política é assunto de todo dia e não somente em época de eleição. Candidaturas e mandatos coletivos são tentativas de mudar tanto o conteúdo da política, quanto as forma de se fazê-la. A aposta é em inserir mais gentes das mais diversas para resolver um problema antigo: aproximar quem emprestou o poder, de quem recebeu o empréstimo. Nessa entrevista, Julio Holanda, cearense acariaocado, "biólogo, militante ecossocialista e por justiça socioambiental", co-candidato a vereador no Rio de Janeiro através da @coletivabemviver fala um pouco mais sobre essa gambiarra política criada para diminuir as distâncias entre quem vota e quem é votado. Júlio, obrigado por encontrar tempo em meio a campanha para conversar conosco. Você pode nos explicar o que são candidaturas coletivas e porque você resolveu fazer parte de uma? As candidaturas coletivas representam um modelo inovador de ocupar a política institucional, onde duas ou mais pessoas se apresentam em conjunto em uma única candidatura, de forma horizontal, sem hierarquias entre os postulantes, algumas vezes se autointitulando “co-candidatos”. Elas representam uma importante oposição ao individualismo da representação na democracia liberal representativa, sendo altamente questionadoras de seus pressupostos. Apesar de já ser filiado ao PSOL desde 2010 e atuar com justiça socioambiental desde 2005, particularmente nunca tive interesse de virar candidato. Mas a proposta da candidatura coletiva me encantou, pois tira o foco das pessoas e destaca mais o programa que elas defendem - que deveria ser a finalidade de qualquer candidatura política, mas não é o que acontece, inclusive dentro das organizações de esquerda, onde ainda predomina o personalismo. Além disso, esse formato tem condições de abarcar mais temas e territórios, pois cada um tem uma atuação diferente que se complementam, do que se eu viesse sozinho numa candidatura convencional. Qual seria a principal diferença de uma candidatura coletiva para uma candidatura tradicional? Quebrar com o personalismo das candidaturas convencionais e apostar numa construção horizontal, plural, sem hierarquias. As coletivas buscam um eleitorado que se identifica mais com as propostas e os projetos do que necessariamente com as pessoas. É óbvio que as pessoas são importantes, são referências e faz toda diferença na hora da pessoa definir o seu voto, contudo é uma questão de prioridade, essas candidaturas colocam o personalismo e as pessoas em um segundo plano, atrás do programa que elas apresentam. Vocês estão candidatos pelo PSOL, como está sendo a aceitação interna do partido a essa modalidade de candidatura? Nós somos a primeira (e única) candidatura coletiva do PSOL na cidade do Rio de Janeiro e isso foi um baita desafio. Por um lado o formato ainda gera muitas dúvidas, o que de fato é compreensível e natural, nem mesmo o TRE prevê esse formato ainda, então mesmo internamente existe certa resistência, e isso reflete nas relações internas. Por exemplo, em nossa candidatura são 2 homens e 2 mulheres, mas como o CPF é do Pedro Mara, a candidatura não se enquadrou internamente como de mulheres, mas sim de homens. Por outro lado, houve uma aceitação muito positiva pela maior parte da militância, das demais candidaturas e até mesmo do público em geral e eleitorado do PSOL. Muita gente elogiou a iniciativa, a coragem da campanha e ouvimos de diferentes pessoas frases do tipo “como ninguém pensou nisso antes? é tão óbvio”. Você entende que as candidaturas coletivas guardam alguma relação com os movimentos de protesto que começaram em Junho de 2013 no Brasil? Acredito que sim. As jornadas de junho de 2013 aconteceram por uma confluência de fatores, impossível destacar um único motivo, mas que culminaram nas manifestações que ganharam o Brasil. Um dos elementos principais presentes nos protestos tinha relação com um questionamento à democracia representativa liberal, questionamento também às instituições representativas mais tradicionais como sindicatos, partidos etc. Atualmente vivemos uma profunda crise de representatividade, tanto que nessa eleição aumentou o número de pessoas votando em branco ou nulo, não se sentindo representadas por ninguém, nem mesmo reconhecendo o processo eleitoral como legítimo muitas vezes. As coletivas surgem como diferencial nesse sentido, se apresentando como importante inovação na representatividade. Como você (s) estão pensando a relação entre a atuação na câmara - caso ganhem o mandato - e as organizações sociais que estão apoiando a candidatura de vocês? Pretendemos fazer um mandato coletivo com horizontalidade, democracia real e participação popular efetiva. O que isso quer dizer na prática? Que não vamos governar sozinhos, contaremos com cada um e cada uma que tem apoiado e construindo a campanha e o futuro mandato. Vamos realizar assembléias populares do bem viver nas grandes regiões da cidade (ZN, ZO, centro e ZS) para ouvir as demandas e elaborar um planejamento estratégico das ações do mandato. As grandes decisões serão definidas nesse espaço, e as decisões do cotidiano, por um grupo executivo menor, indicado pelas assembléias. Queremos ouvir as pessoas, acolher as demandas, mas queremos ir além de ouvi-las apenas, queremos convocar as pessoas e criar espaços, mecanismos e condições objetivas para que elas sejam sujeitas ativas da elaboração/execução da política do mandato. Nosso mandato não é fim, mas será instrumento para organizar as lutas populares, ecoar as demandas e denúncias dos movimentos sociais e territórios mais atingidos. A coletivabemviver está comprometida com uma pauta ecossocialista. Vocês usam a expressão bem viver, a qual eu suponho tenha relação com a ideia do Buen vivir presente nas cosmovisões de povos originários latino-americanos. Poderia nos explicar um pouco mais sobre o que isso significa e como vocês estão pensando em levar essas ideias para atuação câmara de vereadores do Rio? Antes de ser uma ideia, Bem Viver é um modo de vida, uma experiência, uma vivência entre as pessoas e a Natureza ao seu redor. Parte do princípio de que tudo está vivo junto e tudo está relacionado e conectado. É uma vida em equilíbrio com todo o universo, guiada por laços de complementaridade, reciprocidade e solidariedade entre indivíduos, comunidade e natureza. O ser humano não está no centro: é parte do todo. É uma experiência de vida que não se compara a ideia do bem estar individual, da qualidade de vida ocidental moderna. É justamente o contrário disso, se opõe ao viver melhor ocidental, que explora os recursos naturais e as pessoas, onde poucos vivem bem, mas que implica, no capitalismo, uma grande maioria que vive pior. O bem viver fala de uma vida plena de sentido e direitos para todos e todas, surge a partir das experiências de comunidades indígenas andinas e amazônicas, mas que não se limita a esse contexto e está presente em diferentes culturas e em diferentes lugares do mundo. O nosso Bem Viver parte do concreto, das experiências acumuladas nos territórios, na periferia, nas salas de aula da educação popular, nas trincheiras do exercício livre das nossas identidades e sexualidades, nos mutirões nos quais semeamos a terra e lutamos pela soberania alimentar e o direito de morar e plantar nas cidades. É essa inspiração utópica e de outra possibilidade de vida que vamos levar para a câmara dos vereadores. Além da candidatura de vocês, eu encontrei uma outra candidatura em Florianóplis - Coletiva Bem Viver - trabalhando com a ideia de Buen vivir. Vocês conhecem outras candidaturas? Há alguma articulação entre a candidatura de vocês e outros coletivos defensores da mesma pauta? Existe a Coletiva Bem Viver no Rio de Janeiro, em Florianópolis que foi eleita e em Joinville, também em Santa Catarina. Estamos em diálogo sim, temos atuação em um projeto comum que é o Mutirão do Bem Viver em resposta a pandemia, que buscou atender com cestas agroecológicas e itens de primeira necessidade as pessoas mais vulnerabilizadas com a pandemia. Fizemos uma atividade das três candidaturas durante a campanha, com participação da Sônia Guajajara, Thiago Ávila, MST e outras pessoas importantes nessa temáticca e que são referência para a nossa construção. Também fizemos um encontro de algumas candidaturas coletivas do PSOL no estado do Rio (Petrópolis, Angra dos Reis e Arraial do Cabo), foi importante para visibilizar e fortalecer essa experiência inovadora. Como você imagina que um mandato coletivo em uma câmara de vereadores pode favorecer a construção de "poder popular em uma perspectiva revolucionária, libertária e ecossocialista"? Existem limites, mas existe muita potência também. Entendo um mandato parlamentar de esquerda dentro da institucionalidade burguesa como uma trincheira importante das lutas populares, deve servir como instrumento para fortalecer a auto organização da classe trabalhadora e dos setores mais oprimidos e explorados da sociedade, ampliando e visibilizando as denúncias de violações de direitos, buscando diálogo com órgãos de acesso à justiça, elaborando iniciativas legislativas que busquem reduzir as desigualdades sociais e ambientais na cidade e fortalecendo as ações de resistência e tecnologias sociais. Dessa forma, o mandato não deve ser encarado como um fim em si mesmo, mas como instrumento que potencializa e fortalece os coletivos, movimentos e demais organizações da sociedade civil. Você se define como "militante ecossocialista", te parece haver alguma distinção entre militantes e ativistas? Acredito que tenha diferenças sim, tanto do ponto de vista sociológico, mas também dos sentidos que essas palavras remetem no senso comum. Pra mim, a ideia do militante se refere a algo mais pleno, integral, total, é a opção por um modo e estilo de vida, que se entrelaçam e passa a fazer parte da nossa vida como um todo, não podendo separar com facilidade as dimensões pessoais, profissionais, políticas etc. A ideia do ativista pra mim se refere a algo pontual, específico, é o defensor de uma determinada causa ou reivindicação. Então, seguindo essa lógica, pra mim todo militante é também um ativista, de alguma causa ou luta específica, mas nem todo ativista é um militante. E não quero dizer com isso que o militante é melhor que um ativista, acho que não, apenas formas diferentes de compreender o mundo e atuar nele - há casos em que o ativismo em uma determinada frente ou causa social, com mais foco e energia concentrada consegue vitórias importantes. Outra diferença que percebo é que os coletivos, organizações e movimentos mais recentes também têm utilizado o termo ativismo para se diferenciar do termo militante que faz referência às organizações políticas mais convencionais, como os sindicatos, partidos políticos etc, e que inclusive foram alvo de críticas e questionamentos desde junho de 2013. Nós sabemos que as inovações, em geral, chegam antes da normatização das mesmas. Sendo bem específico, como você acha que é necessário proceder para adaptar o mandato coletivo às normas da câmara dos vereadora, porque, oficialmente, apenas uma pessoa é eleita oficialmente e apenas ela pode votar, comparecer às sessões, subir à tribuna para falar e, em caso de ausência o suplente dessa pessoa não é ninguém do mandato, mas sim, de acordo com as regras eleitorais, a pessoa mais votada subsequente à ela do seu próprio partido. Como vocês imaginaram lidar com essas e outras questões? Nós assinamos em cartório um termo de compromisso que estabelece detalhes da forma de funcionamento interno do nosso mandato - e em caso de não sermos eleitos pretendemos dar continuidade a alguns pontos acordados como forma de continuar esse processo (uma das coisas que pretendemos manter são as assembléias populares do bem viver). De fato as normas atuais da câmara não prevê ainda o formato de mandatos coletivos, essa inovação não é prevista, mas tampouco é vetada. Então o que existe atualmente é que o funcionamento interno é viabilizado a partir dos acordos políticos entre os candidatos que estão concorrendo, na base da confiança política e cada um define essas condições. Mas acho que como todas as demais novidades políticas que buscam mais democracia e participação popular não serão aceitas com facilidade numa institucionalidade que não deseja mais democracia e participação popular. Logo, são conquistas que só serão alcançadas com muita pressão, insistência e reivindicação de fora pra dentro. Nós temos um projeto de lei a ser apresentado na câmara assim que eleitos para avançar nessa previsão legal e das normas internas da casa legislativa. Tem aumentado também o número de candidaturas coletivas concorrendo em todo o Brasil, em 2020 já foi muito maior do que em 2018 e a tendência é seguir aumentando porque esse formato de fato tem muitas vantagens, inevitavelmente a institucionalidade vai ter que se adequar a esses novos formatos mais cedo ou mais tarde. Pegando o gancho da pergunta acima, como apenas uma pessoa é oficialmente candidata e diplomada, como foi escolhida essa pessoa na coletiva bem viver? No nosso caso é o Pedro Mara, foi uma escolha tranquila, fizemos uma consulta entre nós de quem tinha interesse e condições para disponibilizar o CPF (é assim que falamos) para essa tarefa. Apesar de ser uma mera formalidade, quem fica com o nome vinculado ao TRE tem algumas implicações do ponto de vista pessoal e profissional que são sensíveis, então essas questões também foram levadas em conta nessa escolha. Achou interessante a entrevista? Temos também um texto super bacana do André Luís com mais informações sobre as candidaturas coletivas aqui. E mais um conteúdo crítico sobre a militância de hoje, também do André aqui. Aliás, tem uma entrevista do André muito boa publicada no site da Unisinos sobre as novas possibilidades da política contemporânea. Se você gosta do nosso conteúdo de política, basta clica na nossa tag de política e a mágica acontece!

  • Candidaturas Coletivas, e daí?

    Acompanhar mudanças enquanto elas estão acontecendo, entender como tendências se produzem e ver as pessoas construindo o Futuro através de suas escolhas no Presente, são as partes mais divertidas do meu trabalho de Psicólogo pesquisando o Social. Em 2016, ano em que ganhei o título de Psicólogo Político por estudar emoções, pensamentos, atos e palavras humanas na interseção entre a Psicologia e a Política, me deparei com algo interessante: o movimento mandata ativista. Ativistas: quem eram? Onde viviam? E porque ocupavam escolas e prédios públicos? Eis as questões que eu tentava responder para um globo reporter especial chamado "Pesquisa de Doutorado". Fiquei surpreso quando me deparei com essa junção inesperada: movimento, mandata - escrito assim mesmo, no feminino - e ativista. Eu estava perseguindo a tendência ativista no campo dos movimentos sociais e dos protestos, por isso, a surpresa ao encontrar rastros dela na arena da política institucional e partidária. Para aqueles que estão surpresos, ou até incomodados pela torção no genero da palavra mandato, preciso explicar que no campo das lutas para mudança social as palavras não são neutras. Além de descrever algo, elas também carregam intenções, valores e até julgamentos daqueles que os usam. Falei difícil? Vamos pensar com exemplos. Há muita desinformação e caricaturas sobre o que é o Nordeste, e o que significa ser nordestino. Recentemente, uma jornalista de Igarassu (PE), Ademara Barros, resolveu explicitar o peso da palavra nordestino, fazendo uma inversão divertida dos estereótipos, e apresentando ao mundo uma repórter sudestina. Mandato é um termo usado para nomear poderes emprestados a alguém para executar uma função por um período de tempo. O síndico do seu prédio tem um, sua chefe tem um, e talvez até você tenha um. Na nossa democracia hoje, mandatos são conquistaos no voto. Digo hoje porque nem sempre foi assim e não há garantia alguma de que sempre será. Durante as eleições, os cidadãos não-candidatos votam em cidadõs-candidatos e emprestam a eles o poder de decidir sob os rumos da cidade, do estado e do país. No Brasil, tradicionalmente cedemos nossos poderes para homens e cada mandato é dado a um homem. O movimento mandatA ativista, inseriu tendências ativistas dentro das eleições, apostou nas que política também podeia ser lugar para mulheres, e resolveu interferir na cara da política. Candidaturas e mandatos coletivos são tentativas de mudar tanto o conteúdo da política, quanto as forma de se fazê-la. A aposta é em inserir gentes das mais diversas para resolver um problema antigo: aproximar quem emprestou o poder, de quem recebeu o empréstimo. Funciona assim: um conjunto de pessoas se junta; conversa bastante sobre o que vão defender coletivamente - o bem viver, feminismo antiracista, representatividade política; encontra suas afinidades e define prioridades; combina como dividir tarefas e organizar a campanha, e planeja o que fazer para governar conjuntamente caso ganhe o mandato. Estamos nas vésperas das eleições, então vou deixar o papo sobre os mandatos pra depois e falar das candidatudas coletivas. Ta okey? Eu vou me apoiar em um estudo encomendado pelo Instituto Arapyaú sobre o tema em 2019. Se você quiser acessar o relatório da pesquisa na íntegra, ele está aqui. Quando uma novidade aparece é comum acharmos que ela é inédita, algo sem precedente algum e que surgiu do nada. No geral, quem tá querendo nos convencer que essa novidade é boa, costuma dizer que ela é inédita, maravilhosa e que resolverá de uma vez por todas muitos problemas. Faz parte do meu trabalho de Psicólogo Político duvidar de histórias contadas muito rápido. Não acredito que nada se cria e tudo se copia, mas sei que quem conta um conto, aumenta um ponto. Então, quando vejo algo que não conheço, invés de perguntar se isso é novo, pergunto: isso é inédito? Não, as candidaturas coletivas não são inéditas. Dados Tribunal Superior Eleitoral apontam que elas acontecem no Brasil desde 1994. A grande novidade é o aumento significativo em número de candidatos interessados nessa forma de se candidatar. Nas eleições de 2012, foram registrados 7 candidaturas coletivas - as quais conquistaram 05 mandatos. Já em 2016 houve 98 candidaturas registradas das quais 22 conseguiram ser eleitas. Os motivos dessa expansão podem ser associados as mudanças na política em curso desde 2013. Foram só sete anos, mas como parece que foi um século e meio, relembro aos leitores cansados que uma das pautas cruciais dos manifestantes em Junho de 2013, a qual levou a então presidente Dilma Rouseff a pensar em um plebiscito, era uma reforma no sistema político. Como ela não foi feita, mas a necessidade de aumentar a influência de quem emprestava o poder de decidir sobre aqueles que recebiam o empréstimo continuou, as pessoas foram se juntando para tentar resolver o problema como podiam. Tanto que 16 dos 22 mandatos coletivos em atuação no país, se juntaram para incentivar campanhas coletivas e lançaram o Ocupa Política. Sabendo que é novo, mas não é inédito, você me pergunta: é permitido pela lei? Não, mas também não é proibido. Portanto, não é ilegal. Confuso? Calma. As candidaturas coletivas ainda não foram regulamentadas. Por isso, mesmo que a candidatura seja coletiva apenas um CPF é cadastrado no cartório de registro eleitoral. Há uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC 379) tramitando desde 2017 por entre a Câmara dos Deputados e o Senado Federal para resolver a questão com uma lei específica. Enquanto isso, os casos vão sendoa avaliados caso a caso. Esse ano teremos esse tipo de candidatura em São Paulo, Minas, Bahia, Santa Catarina, Pernanbuco e outros estados. Contudo, no Ceará, o Ministério Público Estadual contestou a candidadura de Adriana Gerônimo, Louise Santana e Lila M., "mulheres pretas e periféricas" reunidas na candidatura coletiva nossa cara. Tendo entendido que é novo, não inédito e infra-legal. A próxima uma próxima seria: é de direita ou de esquerda? Essa questão já era complicada quando a resposta não seria usada para identificar adversários a serem exterminados. Agora ela além de difícil, se tornou perigosa. Por isso, eu vou dizer o seguinte: as candidaturas coletivas estão espalhadas por partidos localizados em diferentes pontos do espectro político. O gráfico abaixo mostra a quantidade de candidatura coletivas por partido político nas eleições de 2016. Ele foi produzido com dados coletados junto ao Tribunal Superior Eleitoral e faz parte do relatório de pesquisa que eu falei antes. Depois de ler 1118 palavras, e ter entendido sobre essas novidades não inéditas infralegais espalhadas por partidos diversos no espectro político, espero que você estejam se pergunando o que você tem a ver com isso tudo. Simples: as eleições municipais interferem diretamente na vida na sua rua, no seu bairro e na sua cidade. É o momento do nosso sistema democrático em que você está mais perto das pessoas para quem você vai emprestar o poder. Passamos o ano todo falando do poder do governo Federal, mas vivemos e morremos em cidades. É nas ruas e nos bairros das cidades que estão aqueles que amamos e as coisas que mais nos importam. Aproveite que as candidaturas coletivas usam muito redes sociais e tecnologias para interagir com os potenciais eleitores e tente encontrar um bando que esteja interessado em usar o poder que você vai emprestar para eles/elas/elxs para criar intervenções no seu entorno que tornem a sua vida menos complicada. André L. L. F. Sales Nasci em Juazeiro do Norte e hoje moro entre São Paulo, Nova Iorque, e Porto Alegre. Pesquiso, estudo e escrevo  sobre Psicologia Política pois estou interessado em entender como as novidades trazidas pela internet mudaram  as estratégias usadas pra protestar. E mais, quero saber como as estratégias usada para protestar mudaram as pessoas que protestam. Enfim, sou um Doutor Psicologia  que ama filmes, músicas e histórias não contadas.

  • A militância mata a política

    A militância, mesmo quando exercida no contexto das lutas pelo poder, é exatamente o oposto do que poderíamos conceber como uma autêntica participação política (Luis Cláudio Figueirêdo, 1993). Eu me senti muito feliz quando li esse pedaço de texto em 2015. Gosto de pensar que o autor também estava incomodado com comportamentos daqueles que se vêem como grandes defensores da justiça social e outras causas nobres. É curioso ver as pessoas ainda chocadas em 2021 ao descobrirem no horário nobre da tv que militantes bem intencionados podem agir com muita violência e ser tão opressores quanto aquilo, e aqueles, a que dizem combater. Quem já frequentou meios revolucionários sabe que a receita para um bom militante leva duas xícaras de obediência, um tablete e meio da convicção de estar do lado certo da História, doze litros de suor temperados com a ideia de que os fins justiticam os meios e seis colheres de sopa de sacrifícios pessoais. Nos tempos em que Luís Cláudio frequentava a PUC/SP, reconhecer tais ingredientes significava ter se rendido aos encantos do inimigo. Era sinônimo de ter sido corrompido pelo discurso do poder e de trair os oprimidos. Na era do "curto logo existo", duvidar da retidão de um militante é colocar-se como alvo da artilharia canceladora do exército ao qual pertence o sujeito que foi alvo de crítica. Vera Iaconelli, em um diálogo com as ideias do pai da Psicanálise, nos convida a reconhecer a tendência militante a agir em bloco e "atropelar a voz de cada um em nome de um bem comum". Ela insiste que se não pensarmos um pouco sobre a distância entre aquilo que dizemos e aquilo que fazemos, iremos repetir a "roleta do cancelamento, só modificando os personagens". Para ajudar na tarefa proposta por Vera, é fundamental enteder o que é militância e porque ela é o oposto da participação política. Política é um modo, um jeito, um método, de lidar com as diferenças existentes na vida pública. Ela é a forma que escolhemos para tentar negociar como atender às necessidades singulares e coletivas. Participar da política é usar esse método para falar e ouvir. Militância é uma ação organizada e intencional, uma estratégia, para agir em conjunto com vistas a suprimir as diferenças em nome de um bem maior para todos. Militar é usar essa estratégia a fim de convencer, ou vencer, aquele que fala algo diferente. Militantes são aqueles que usam essa estratégia. A pluralidade de posições é condição para participação política. A estratégia militante trabalha para domesticação das múltiplas vozes pela voz correta, necessária e revolucionária (Lumena, é você). Resultado: quando aplicada a contento, a estratégia militante faz uma voz se impor sobre as outras, destroi as condições para participação política e transforma lugares de Fale em espaços de Cale-se. André Luís Sales Arquiteto de histórias improváveis. Psicólogo, Mestre e Doutor em Psicologia. Pesquisador Assoaciado ao Núcleo de Estudos em Psicologia Política e Movimentos Sociais da PUC/SP e ao Programa de Educação Urbana da Universidade da Cidade de Nova Iorque. Entusiasta das Políticas Públicas e cético quanto a possibilidade de usar a máquina estatal para erguer projetos civilizatórios sustentáveis. Apaixonado por histórias, pesquisas e ensino.

  • o Inferno na internet: quais são as caras do Nazifascismo brasileiro?

    Enquanto o enredo apocalíptico da pandemia se prolonga no país sob a liderança do Governo Bolsonaro, existe uma onda muito além do falso "conservadorismo-utópico" pregado pela extrema-direita de verde e amarelo: o Nazifascismo. Muitos se reconhecem "contra Bolsonaro" (embora muitos o tenham apoiado ao menos no início de seu mandato) entretanto se assemelham em diversos aspectos ao mesmo. O que é pior; ter a imagem junto ao maior genocida da história brasileira ou ter a imagem associada ao mais famosos genocidas da História Humana? "Sou apenas nacionalista" é o pseudo argumento de muitos. O fato é que na mentalidade problemática dos nazifascisfas, Hitler e Mussolini são bem mais admiráveis, já que muitos consideram Bolsonaro um sionista defensor da "prole judia". Quem são afinal essas pessoas? Como podem ser absolutamente fervorosas pelo ódio em pleno o século XXI? Existem de fato ou são lenda urbana? A resposta é: Infelizmente eles existem! E podem ser qualquer um, em qualquer lugar, sob qualquer privilégio. São chefes de organizações religiosas que, embora católicas, são contra a própria igreja e o Papa. São membros das forças armadas e toda hora aparece um na internet e na vida real. Estamos rodeados pelas sombras que avançam de forma barulhenta nas redes sociais, mas ainda assim ignorada pela sociedade como um todo. Fique de olho na série de reportagens especiais do Mídia NINJA Fortaleza e da Arara Neon, fruto de investigadores infiltrados no inferno da internet. Todas as reportagens sairão completas aqui! Wang Weilin Médico, arqueólogo, jogador de basquete e um tanto misterioso. Adora veículos militares, sobretudo tanques (os motoristas de tanques que não gostam dele). Recebe, ora com alegria, ora com tédio, ameaças de morte de stalinistas recalcados e anarcocapitalistas gamers que só jogam FPS. Curte também colecionar imagens emblemáticas do século XX. E até aparece em algumas.

  • A ignorância como ideologia

    Nos tempos atuais, não deve ser difícil que você, que lê agora este texto, tenha vivido ou conheça alguém que viveu algo bem parecido com a seguinte situação: uma pessoa adulta explicando aos pais a importância da vacinação no atual estado de pandemia. O pai não vai se vacinar até ver o que vai acontecer de efeito colateral em quem se vacinou antes dele e a mãe não entende como a vacina vai conseguir cobrir as variantes do vírus. A pessoa adulta em questão tenta explicar à mãe como a vacina vai funcionar na tentativa de que ela, depois, explique ao pai. Então, começa falando da vacina oriunda do RNA do vírus e, de repente, se engasga. A pessoa olha atônita para a mãe e fala: "espera... você é farmacêutica. Tem pós-graudação. Era você que tinha que estar explicando isso. Eu que deveria ter dúvidas, não você. Não vou explicar mais nada a vocês, não. Os artigos de epidemiologia e imunologia estão sendo divulgados pelos jornalistas." A mãe farmacêutica e o pai tentaram continuar a conversa lançando ideias que qualquer pessoa que estudou minimamente a biologia e a química do ensino médio poderia refutar. De imediato minha mente relacionou este fato ao romance de ficção científica Flores para Algeron, de 1966, escrito pelo estadunidense Daniel Keyes (caprichosamente editado pela Aleph aqui no Brasil com excelente tradução de Luísa Gleiser). Fazia tempo que queria ler e finalmente rolou. É um livro extremamente triste. Para mim, quase tão triste quanto Vidas Secas do querido Graciliano Ramos. E a despeito do que muitas pessoas pensam sobre ficção científica, trata-se de um livro extremamente humano. Esse livro me pareceu uma ótima ferramenta para começar a entender o mundo e essa história toda que está acontecendo hoje em dia com negacionistas e o "movimento antivax" por toda parte. E, claro, é a partir dele que vou começar a escrever este singelo artigo. No romance de Keyes, conhecemos a história de Charlie Gordon, um homem adulto que sofre de um severo retardo mental (embora em algumas passagens sejam citadas pessoas com quadro intelectual ainda mais deficitário que o dele). Ele se submete a um experimento arriscado e inovador que, em poucos meses, triplica seu parco quociente de inteligência. O romance epistolar organizado através de "relatórios de progresso" que Charlie deve escrever para apresentar em suas sessões de terapia narra a dificuldade de ser, de repente, inundado por uma série de conhecimentos e percepções que ele, antes, não se dava conta. A epígrafe do livro, aliás, é perfeita, um trecho da República de Platão em analogia à perturbação que nossa visão sofre ao sair da profunda claridade para a mais densa escuridão ou vice-versa. Segundo Platão (isso também está na epígrafe), perturbação semelhante ocorre com a alma humana ao sair da profunda ignorância para o conhecimento. E é isso que acontece ao protagonista. Essa nova inteligência de Charlie faz com que ele perceba que as pessoas ao seu redor não são tão amigáveis assim. Passa a refletir sobre tudo que o cerca, mas essa reflexão não fica circunscrita ao seu presente (e possível futuro), mas principalmente ao seu passado. Assim, lembranças que antes eram apagadas, acendem com força e com novas interpretações, evidenciadas através de sua nova inteligência em detalhes que ele antes não percebia. Por falar em lembrança, quero contar o que se passa em uma obscura disciplina do curso de Ciências Sociais em que uma professora proferiu a seguinte frase: "Sua ideologia determina o rumo de sua ciência". Eu até hoje não sei se essa frase é dela ou de alguém bastante famoso. O certo é que esta frase me marcou profundamente por ser bastante elucidativa de muita coisa. Se não fosse por ela, esta professora seria menos que um borrão em meus arquivos mentais de hoje. Antes de continuar a reflexão, é salutar definir, ainda que de forma bem rude, a ciência como um conjunto de métodos, um sistema de regras para se chegar a conclusões. Uma receita mais ou menos precisa para se construir respostas possíveis para as perguntas que nos afligem. Outra definição, igualmente rude, é a que gostaria de oferecer para ideologia como tudo aquilo que acreditamos como certo, aquilo que desejamos que seja a verdade para todos e que apaga as dúvidas que porventura existam. Ou seja: a ciência acaba sendo um sistema de obtenção de respostas e a ideologia um conjunto de desejo por respostas. Embora essas "definições" sejam grosseiras, elas são exemplificadas plenamente em duas histórias. Uma delas é bem pessoal e que nunca saiu da minha cabeça que foi um colega seminarista de escola na época do ensino médio me explicando que todo padre tem que cursar obrigatoriamente duas faculdades: a de Filosofia, para se encher de dúvidas e a de Teologia para se encher de respostas. A outra história é um bem mais pública e se trata do célebre experimento de Samuel George Morton, na década de 1840, comprovando cientificamente que humanos caucasianos eram intelectualmente superiores a qualquer outro ser humano de outra etnia. Digo que "comprovou", porque, de fato, seu método foi irrefutável, já que Gordon utilizou os recursos científicos mais avançados que a época oferencia: bolas de chumbo e crânios humanos. Morton despejou bolinhas de chumbo nos crânios (mais de mil, diga-se) e "eureca": os crânios que cabiam mais bolinhas eram, justamente, dos europeus. As etapas foram mais ou menos essas: se os crânios comportavam mais bolinhas, eram maiores, então comportavam um cérebro grande. Se o cérebro era grande, então era mais inteligente, ratificando tudo o que se conhecia (bem pouco) sobre o cérebro naquele tempo. Dois motivos o fizeram chegar a esta conclusão: o já mencionado rigor científico e experimental e, ainda mais importante que sua ciência, a vontade de acreditar que, de fato, os brancos tinham que mandar no mundo. Em outras palavras: a necessidade de comprovar, cientificamente, sua crença, sua ideologia racista. Uma ideologia, aliás, comum a quase todo cientista ocidental do século XIX. Pouco depois disso, em 1895, Gustave le Bon percebeu, também cientificamente (claro!), que os cérebros dos homens geralmente são maiores que os das mulheres, o que levou à conclusão de que também os homens são mais inteligentes que as mulheres. Hoje em dia, sabemos que indivíduos sexualmente masculinos têm, inclusive, mais neurônios que as mulheres, mas também sabemos que homens não são mais inteligentes que mulheres e dificilmente algum cientista vai tentar provar isso hoje me dia. Aliás, existem algumas teorias curiosas sobre essa quantidade extra de neurônios, mas que não vem ao caso agora, já que o tema desse texto é outro: a vontade de acreditar em algo sem comprovação ou, ainda, a necessidade de desacreditar fatos em prol de uma crença, de uma fé ideológica inabalável. E muitas vezes isso acontece de modo estrutural, dentro de um sistema político, basta lembrar que Galileu Galilei foi obrigado pela inquisição católica a negar suas próprias descobertas astronômicas para não ser queimado numa fogueira (ou qualquer que fosse a pena capital na época). Citei esses exemplos antigos para entendermos uma coisa: à medida que vamos aprendendo coisas, vamos deixando de lado certas crenças. Ao menos deveríamos fazer isso. Vejamos: atualmente, sabemos bem mais sobre o funcionamento cerebral e sobre a inteligência do que antes. E também (apesar dos esforços contrários de muitas pessoas) evoluímos social e culturalmente a ponto de deixarmos muitas crenças sexistas e eurocêntricas absolutamente incongruentes de lado. Importante mencionar que a ciência, como parte da cultura, também contribuiu para esse progresso. Uma das provas disso é que, com o passar dos anos, mais e mais furos epistemológicos foram sendo descobertos e divulgados no experimento com bolinhas de chumbo e crânios de Morton. Isso porque é assim que a ciência funciona... Vamos fazendo descobertas e deixando antigos paradigmas de lado (isso não sou eu quem diz, mas o físico Thomas Kuhn em seu soberbo livro A Estrutura das Revoluções Científicas, uma das obras mais importantes do século XX). No entanto, nada nos impede que outras crenças e ideologias cegas não embacem nosso discernimento. Voltamos aqui a falar das vacinas "ideologizadas" pelo Governo Federal que, de tanto martelar dúvidas através dos meios de comunicação, faz com que pessoas estudadas passem a duvidar de seu próprio conhecimento. A crença é baseada em fé, a certeza de algo que, para o crente, não necessita de provas, mas a ciência, o conhecimento, não. Aliás a ciência é justamente o contrário e necessita de provas. Eis aqui um pequeno trecho do livro Um Céu de Estrelas, de Fernando Bonassi, que sintetiza isso bem: "Na verdade, o homem nunca tinha conseguido perceber o fio de gilete que demarcava o lugar onde a mente deixava de ser clara, resoluto e firme, para entrar na zona da crença; na zona gelatinosa da crença. " Ou seja, tem horas que a crença atropela o conhecimento e vice-versa. Ou, numa maneira mais sutil, poderia dizer que, eventualmente, o conhecimento de algo entra em conflito com uma crença. Para citar um exemplo histórico, o famosos naturalista Charles Darwin demorou muito a publicar seu célebre livro A Origem das Espécies por causa de seu profundo respeito ao criacionismo cristão, depois que sua própria fé foi abalada. Ao perceber que outras pessoas receberiam os louros por suas próprias e pioneiras descobertas, apressou-se na publicação. Agora, vamos do vinho para a água. Saimos de uma citação sobre uma das mentes mais brilhantes da humanidade para citar um exemplo, infelizmente atualíssimo: um determinado vereador cearense, ferrenho apoiador do presidente Jair Bolsonaro, que questionou veementemente, assim como seu ídolo faz constantemente, a eficácia da vacina - como podemos ver na imagem a seguir: Mas não basta ser antivacina. Tem que ser antivacina por conveniência, porque, ao que parece, vacina também tem ideologia. Então, dois meses depois da crítica, o governo federal já havia se rendido aos encantos da vacina enviando milhares de doses para o estado do Ceará. Fosse qualquer outro presidente, pela lógica (se é que o tal vereador a possui), ele continuaria sendo antivacina, mas como foi seu ídolo Bolsonaro que aprovou, o vereador, ao que parece, mudou de opinão. E não só isso: foi pessoalmente receber as vacinas (como podemos ver no print do tweet ao lado). Percebam que, se o carregamento de vacina fosse uma pessoa, provavelmente ele teria dado um abraço nela, a despeito do distanciamento social. O importante aqui não é nenhum dado científico, mas a crença, a fé, a ideologia que ele tem ao afirmar que Jair Bolsonaro é, literalmente, o salvador da Pátria. Essa certeza nonsense baseada em fé, amor e devoção faz com que, dentre outras idiossincrasias, ele e diversos militantes bolsonaristas frequentemente repitam a frase de que tem certeza de que está "do lado certo" e, eventualmente de forma mais específica, "do lado certo da história". Como no exemplo a seguir: Muitas pessoas tem essa ideia ao expor seus conceitos (quase sempre cheios de certezas absolutas) de certo e errado além de uma noção muito específica sobre o conceito de história. Tal equívoco talvez tenha sido oficializado com a publicação de um livro da categoria "best seller do New York Times" chamado O Lado Certo da História: como a razão e o propósito moral tornaram o Ocidente grande de um debatedor showman (obivamente estadunidense, onde impera a cultura do "show" mesmo em círculos intelectuais e acadêmicos) chamado Ben Shapiro. Esse livro já no título, revela uma quantidade de simpificações absurdas que atropelam reflexões incríveis, inclusive de um pensador da envergadura de Edward Wadie Said. Mas como o Said não é ocidental, então parece que o título cumpre seu "propósito moral". Agora quanto à parte do "lado certo da história", os problemas persistem. Segundo Izabel Melo, historiadora e professora da Uneb, mestra em História Social do Brasil e Doutora em Meios e Processos Audiovisuais, o termo não tem o menor sentido historiográfico: "História não tem lado, não é um trem nem tem lata de lixo, porque ela não é um Deus Ex Machina que julga tudo e organiza. Quem faz isso é Deus, para quem acredita nessa modalidade de juízo. História é processo, disputa, estabelecimento de narrativa, tudo isso feito a partir das teorias e metodologias", encerra Izabel. Percebemos, a partir daí, que o que as pessoas que estão "ideologizando a vacina"querem com essa frase sobre o "lado certo" é justamente estabelecer uma narrativa a partir da militância. Mas ele passa ao largo das teorias e metodologias tentando estabelecer uma narrativa apenas a partir da crença em Bolsonaro salvador que faz com que o conhecimento dele sobre vacinas seja posto totalmente de lado, quando não enfiado em alguma lixeira mental. O exemplo provavelmente não é bom, porque o vereador sequer terminou algum tipo de faculdade e também é muito jovem, então dificilmente ele vai ter muito conhecimento para jogar fora sobre qualquer assunto. No entanto, exemplos de pessoas verdadeiramente estudadas (inclusive médicos e enfermeiras) - e ao mesmo tempo negacionistas - não faltam. Esse assunto está, inclusive, programado para voltar à pauta aqui na Arara Neon de modo mais detalhado numa série de reportagens investigativas. Mas podemos adiantar alguns exemplos do caos científico que estamos vivendo em alguns exemplos abaixo. O print é de uma postagem de uma conta chamada "@canaldofalcao1" no Instagram. O tal Marcos Falcão, médico recém-formado e militante bolsonarista, aparentemente não sabe a diferença entre vacina e imunidade mágica contra mau-olhado, porque uma postagem dessas dá muita margem para entender que ele pagou alguém para fazer as provas de imunologia na faculdade. Além disso, existe uma pequena anedota sobre profissional recém-formado... Certa vez, estava conversando com um amigo de longa data, engenheiro civil e colega da minha primeira especialização. Ele já tinha anos de profissão e comentou comigo: se o engenheiro for fazer um prédio só com o que ele aprendeu na faculdade, nem se preocupe, o prédio cai. Então, acho nitidamente preocupante um "doutor" desse ser referencial científico para alguém porque ele é tudo, menos cientista. E aí que está a grande questão: nenhum cientista que se preze, tampouco nenhum laboratório de indústria farmacêutica séria (sobretudo dentro da lógica do capitalismo) diz que uma vacina garante 100% de imunidade. O estratagema retórico aqui é se utilizar do argumento "sou médico" como uma possibilidade de dizer qualquer coisa com um sagrado e irrefutável respaldo científico. A legenda da postagem apenas com a palavra "ciência" é uma tentativa de ser minimalista, misteriosa e irônica, mas a rigor nada diz. Todo texto tem um contexto e a gente não estuda hermenêutica, linguística e semiótica à toa (eu pelo menos não). Dito isso, basta entender as linhas que dizem claramente se tratar de uma conta bolsonarista para entender a entrelinha da campanha antivacina presente na postagem. Ou então basta ler os comentários da postagem. No entanto, qualquer pessoa que estudou biologia corretamente no ensino médio sabe que vacinas não são mágicas. Uma vacina não é aquele escudo do Eric de A Caverna do Dragão, que protege todo mundo num campo de força. Essas informações básicas sobre vacina e imunidade em meio a uma pandemia também são repetidas por André Pinheiro, doutorando em biofísica pelo Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da UFRJ: "Vacinas tem a função de produzir anticorpos contra o agente infeccioso. Não necessariamente esses anticorpos serão capazes de controlar a infecção sem que haja qualquer manifestação da doença. É um método eficiente de aumentar a resposta imune de indivíduos evitando o desenvolvimento de formas graves das doenças e, em muitos casos, até mesmo evitando que a infecção seja sequer percebida. A cobertura total de vacinação não vai evitar que algumas pessoas desenvolvam a doença, mas evitará que esses infectados precisem de intubação e vaga na UTI." No entanto, o que é um dado científico frente a uma fé cega? Nada. Por isso que o mesmo médico também postou essa pérola da automedicação conspiratória: Fosse um pajé ou pai de santo recomendando um banho de ervas, certamente seria apedrejado em praça pública. Mas o amigão ao lado é médico e amigo, pode confiar. Na boa... Se você tem um amigo ou médico que dá um conselho desses, minha dica é: fuja! Dificilmente ele é um bom amigo ou um bom médico. Existe uma ignorância ainda mais bizarra que esta: aquela orgulhosa de si mesma. É o caso de Paulo Kogos, influenciador digital de pessoas nitidamente influenciáveis e que em breve também retornará em uma matéria um pouco mais exclusiva sobre ele. Por enquanto, apenas mais uma foto como aperitivo que seria bom mostrar às gerações futuras: Se Marcos Falcão tem a desculpa de que é médico, Kogos não tem desculpa alguma. Talvez ele queira ser um charmoso outsider, ou talvez tenha sofrido demais com bullying na escola pelo fato de achar que é um cavaleiro templário que viaja pelo tempo (como podemos conferir na foto de capa desse texto)... O fato é que percebemos que a diferença entre coragem e falta de noção aqui é tênue. Um caso clínico de uma verdadeira ostentação de ignorância. O que me lembra de um trecho do livro Solaris, de Stanislaw Lem, também editado pela Aleph. O livro conta a história de um planeta cujo oceano é uma misteriosa forma de vida inteligente indecifrável para os seres humanos. Dois trechos são interessantes citar. Em um deles um filósofo fala que o contato com formas alienígenas só será possível se tais alienígenas forem humanóides, o que nos faz pensar em como tudo aquilo que é diferente de nós nos assuta e nos repele. Em outro trecho, alguns exploradores sugerem bombardear o planeta com bombas atômicas e ratifica a necessidade de destruirmos aquilo que não podemos compreender - rotina para os praticantes de religiões como a Umbanda e o Candomblé, que sofrem constantemente ataques de determinados grupos radicais neopetencostais ao invadirem e destruírem seus territórios sagrados. A destruição de algo que não compreendemos (ou nos recusamos), todavia nem sempre é física. Pode apenas ser sua veemente negação (não consigo entender astronomia, então a Terra é plana. Não consigo entender biologia, então Charles Darwin está errado. Acredito que a esquerda é má, então nazismo é de esquerda). Em resumo, um boato não vira fato só porque você tem fé nele, tampouco uma informação verdadeira vira falsa só porque você quer com muita força isso. Se não, vejamos: Não é porque a Nestlé em 1957 disse que Leite Moça com refrigerante é uma merenda nutritiva que isso vai fazer bem para sua criança. Percebe? Volto agora para o exemplo do começo do texto quando uma farmacêutica doutora pergunta ao filho sobre como funciona uma vacina. A crença está fazendo as pessoas esquecerem e renegarem aquilo que conhecem. Talvez, enxergar o mundo com clareza seja ofuscante demais e o mais cômodo seria voltar à caverna. Isso me lembra um terceiro livro, bem menos genial, mas divertido, chamado Como me tornei estúpido, do francês Martin Page, publicado no Brasil em 2005 pela Rocco. Essa noveleta bem humorada conta a história de Antoine, um sujeito aparentemente formado em biologia, especialista em aramaico e profundo conhecedor da obra cinematográfica de Frank Capra e Sam Pekinpah, mas que não consegue se encaixar na sociedade. Provavelmente, por ninguém entender seus "gostos exóticos" (gostos intelectuais, é bom frisar). Sua inadequação é tamanha que sequer tem um emprego decente (Charlie Gordon, de Flores para Algeron, trabalha feliz numa padaria e seus problemas começam depois que a inteligência chega). Ele ouve de uma pessoa numa agência de empregos, ao ler assutada seu currículo, que ele estudou para ser desempregado. Sua solução é virar um imbecil para ser aceito e, também, mitigar suas angústias. Antoine, conscientemente, torna-se um imbecil mais ou menos da mesma forma que Charlie Gordon conscientemente vira um gênio. Antoine seria um Charlie Gordon às avessas e deixo aqui a pergunta: estaríamos lutando contra um exército de Antoines? A motivação de Antoine é simplesmente buscar sua própria felicidade. Pessoas como Carmelo Neto, Paulo Kogos o tal médico recém formado Marcelo Falcão e todos os demais negacionistas certamente também buscam sua própria felicidade (o filósofo André Comte Sponville tem um livro ótimo sobre isso chamado A felicidade, desesperadamente), mas ao contrário de Antoine, que abre mão de seu conhecimento de forma racional e consciente, temos um exército de pessoas que abraçam certezas cegas, certezas cheias de ignorância. Pessoas que moravam fora da caverna e voltam correndo para ela porque a ignorância, no fundo, é reconfortante, já que mais ou menos, como diria Platão, um imbecil que vive numa caverna sob luz direta do sol, aparentemente, torna-se um monstro. Gostou do conteúdo? Muito mais sobre política aqui. Nílbio Thé Editor da Arara Neon. E puto com esses antivacina.

  • Coldplay, as Melancias de Frida Kahlo e a França.

    Escolher o nome de um álbum deve ser algo bastante árduo para um músico ou banda. Ele, junto com a ilustração da capa, serão os cartões de visita da obra. Você ainda não sabe o que tem lá dentro, mas é possível que com um bom título e uma boa imagem se sinta atraído a descobrir. Algumas inspirações para essa parte da elaboração de um álbum, podem surgir de lugares de onde menos se imagina. Esse é o caso do álbum de 2008 do Coldplay, Viva La Vida, que foi inspirado em uma pintura da artista mexicana Frida Kahlo. A obra em questão é uma natureza morta, de tamanho 59,5 x 50,8 cm, pintado em 1954, que mostram algumas melancias (sandías em espanhol) e em uma delas está escrito “Viva La Vida”. Chris Martin, vocalista do Coldplay, em visita ao Museu Frida Kahlo em março de 2007, conheceu o quadro e resolveu homenagear a artista, batizando seu próximo disco com uma referência a pintura: “Ela passou por muitas coisas, e apesar disso, pintou um quadro em sua casa chamado 'Viva La Vida'. Adorei a coragem disso.” Uma pintura de Eugène Delacroix é a arte que ilustra a capa do álbum. “La Liberté guidant le peuple” foi pintada em 1830, em comemoração a da Revolução de Julho de desse mesmo ano, que culminou com a queda de Rei Carlos X. Abaixo, o clipe oficial da música que dá título ao disco. LEANDRO KRINDGES é Técnico Químico de profissão, licenciado em Biologia por paixão, fã de Foo Fighters a Belchior e de tirinhas, especialmente Peanuts. Sempre teve curiosidade em saber o que se passava por trás das músicas, e essa busca se tornou um hobby. Tecladista da Banda Villa Rock, arranha também violão e guitarra. Aprendeu a gostar de ler depois do Kindle.

  • A colonialidade dos afetos

    A colonialidade sempre sonha com um jeito "bom" de permanecer oprimindo. Almeja um cristianismo bom, uma polícia militar não violenta, uma monogamia saudável, um estado democrático e por aí vai. É fazendo essa conta emocional que a branquitude, a cisgeneridade, a monogamia, a misoginia e etc reconciliam-se consigo mesmas. Uma das fantasias brancas é imaginar um mundo em que se possa manter os próprios privilégios e não haver mais racismo. Ou um mundo em que se mantém privilégios hetero, cis, sem transfobia, bifobia, lesbofobia. Não veem que sendo identidades dependentes, os privilégios que sobram a uns são justamente fruto da exploração, do desprivilégio de outros. Não dá pra reformar algo que se construiu e se mantém através da dominação de outros grupos. Mas o que fazer então, acabar com a branquitude, com a cisgeneridade, heterossexualidade, com a riqueza? SIM. O primeiro passo é o reconhecimento desses sistemas como opressores, o segundo é a reparação dos danos. Ex: um mundo sem pobreza é um mundo sem riqueza. Ex: heterossexualidade não é sobre práticas sexuais, é sobre dominação cultural, religiosa, política, simbólica. Ex: branquitude não é cor da pele, é um (im)posição no mundo. Não é possível construir saúde com o território corpo, em suas infinitas teias com outros seres, a partir de identidades hegemônicas. Pensemos sobre isso! Geni Núñez Ativista indígena. Psicóloga e amante do pensamento artesanal. Membro da articulação brasileira de indígenas psicólogos.

  • A lista do lauro: anos 70 pra se ouvir #03

    Anos 70! Continuamos aqui na arara neon atentos para receber a última transmissão de Lauro Almeida que que graças à tecnologia de ponta continua em sua cápsula temporal estacionada em 31 de dezembro 1979 para que ele possa vislumbrar a a década inteira desde primeiro de janeiro de 1970. Diretamente dessa cápsula setentista, nosso crononauta lauro almeida nos envia mais 10 discos que merecem ser descobertos (quando não redescobertos) por nós aqui do futuro. Aproveite a viagem! ÁLBUNS/DISCOS PARA (RE)DESCOBRIR/OUVIR: 1 – SÁBADO SOM (1975) - coletânea do programa Sábado Som exibido entre 74 e 75, onde Nelson Motta apresentava números musicais de grupos de rock, feito ainda inédito no Brasil, uma pré-MTV. O disco, ao contrário do programa, não trás artistas consagrados mundialmente, mas sim, bandas progressivas inglesas, alemães e húngaras praticamente desconhecidas por aqui (Nektar, Omega, Karthago, Nine Days Wonder..) e com músicas já lançadas há alguns anos. A capa, também, merece destaque, com a montagem incrível de Daniel Azulay, com o King Kong original de 1933 transformado num guitarrista Hendrixiano... ATENÇÃO NAS FAIXAS: KARTHAGO “Back Again”, OMEGA “After a Hard Year”, JERONIMO “Blind Man” 2 – RICCARDO COCCIANTE “Concerto Per Marguerita” (1976) – o italiano, de voz potente e rascante, com seu piano forte ao modo Leon Russell, já havia conquistado algum sucesso com “Bella Senz’anima” de 1974 e “L’alba” do ano seguinte. Para o seu novo álbum, Cocciante convidou o tecladista e arranjador Vangelis para a produção das faixas. O clima etéreo e “viajandão” dos inúmeros teclados e cordas transformou o trabalho no seu carro chefe e se tornou seu álbum mais conhecido. Todo composto por baladas dramáticas e emotivas, o álbum é excepcionalmente belo e tocante. ATENÇÃO NAS FAIXAS: "Primavera", "Inverno", "Violenza" 3 - DÓRIS MONTEIRO - "Dóris" (1973) - a chegada dos anos 70 na música brasileira trouxe uma forte carga de soul, funk e balanço, até para os artistas prevenientes da era do Rádio, como foi o caso da já veterana Dóris Monteiro. A sua "fase 70" é cultuada até os dias de hoje por djs e produtores e, lógico, por colecionadores de discos, sempre ávidos por um cópia de algum álbum seu desta década. O trabalho de 1973 não deixa a desejar no swing e sambalanço já conhecidos, na releitura de "Eu Só Quero Um Xodó" e "Se É Por Falta de Adeus, Até Logo" da iniciante dupla Tom e Dito. As baladas "Viagem" e "Até Quem Sabe" trazem o lado maduro, sem soar destoante do conjunto da obra. A cantora em 2021 completa inacreditáveis 70 anos de carreira, ainda na ativa, com a mesma voz doce e envolvente, lúcida e bela. ATENÇÃO NAS FAIXAS: "Até Parece" , "Eu Só Quero um Xodó" , "Pedra de Guaratiba" 4 – NINA SIMONE – “Baltimore” (1978) – o produtor Creed Taylor convidou Nina Simone para integrar o time de bambas da gravadora CTI e para a gravação de um disco que até hoje é um divisor de opiniões. “Baltimore” é um disco misto, que vai do jazz ao reggae, com direito até a uma inusitada releitura de “Rich Girl” da dupla Hall & Oates. A cantora e pianista não ficou contente com os arranjos modernosos e quase abandonou o projeto, dizendo inclusive que se tratava do seu pior trabalho. Mesmo assim, a sonoridade mais fluida e despojada agradou aos jovens que, apesar da explosão da DISCO, abriu os ouvidos também para Bob Marley, para o fusion e o smooth. Apesar das divergências, é um disco tido como “fora da curva” na carreira da cantora. ATENÇÃO NAS FAIXAS: “Rich Girl”. “Baltimore”, “Forget” 5 – FRANÇOISE HARDY – “La Question” (1971) – com a voz doce e uma beleza estonteante, Françoise Hardy iniciou sua promissora carreira nos anos 60, emplacando um dos hits mais conhecidos do cancioneiro francês, a valsinha Tous les garçons et le filles. No meio da década se aproximou do Brasil, vindo a participar do III FIC em 1968. Foi quando conheceu a cantora e violonista Tuca, com quem viria a gravar seu álbum de maior sucesso, “La Question”. Com imensa inspiração na Bossa Nova, o trabalho é todo calcado no violão de Tuca e na voz sensual de Françoise. A música “La Question” foi um dos maiores sucessos aqui no Brasil em 1972, ao ser incluída na trilha internacional da novela “Selva de Pedra” e até hoje é associada à trama. ATENÇÃO NAS FAIXAS: “Rêve”, “La Question”, “Le Martien” 6 – SONIA MELO “Interpreta Roberto Carlos e Erasmo Carlos” (1976) – a década de 70 tem como uma das suas particularidades a reverência máxima ao trabalho da dupla Roberto e Erasmo Carlos, com inúmeras releituras, incluindo a dita NATA DA MPB, como Elis Regina, Gal Costa e Maria Bethânia. O lado popular e menos mainstream também rendeu covers consideráveis e de grande relevância, como esse primeiro álbum da cantora Sonia Melo, todo voltado para a obra da dupla. Pela batuta do maestro Hugo Belardi, Sonia passeia pelos grandes e inesquecíveis sucessos, que vão desde as clássicas “Como É Grande o meu amor por Você” e “Por Isso Corro Demais” (ambas do filme/disco “Roberto Carlos em Ritmo de Aventura” de 1967) e por baladas mais recentes, como a tristíssima “Por Amor” de 1972 e, obviamente, “Detalhes”, hit máximo na carreira de Roberto Carlos. Em 1979, Sonia gravaria outro álbum todo com músicas de Roberto e Erasmo. ATENÇÃO NAS FAIXAS: “Por Amor”, “Quando”, “Sentado a beira do caminho” 7 – APOLLO 100 – “Joy” (1972) – indo de encontro com o rock pesado que imperava no inicio da década, o tecladista Tom Parker criou o projeto Apollo 100, com releituras de peças clássicas com roupagem pop rock. O single “Joy”, baseado em “Jesus alegria dos homens” de Bach, obteve enorme aceitação e o álbum seguiu pelo mesmo caminho. É um álbum pequeno (apenas 28 minutos de duração), mas de uma beleza e brava execução. Algumas adaptações, apesar se serem de fácil identificação, cadenciaram para outro estilo, como a famosa “Ária em corda sol” que se transformou em uma balada jazzística com direito a um solo de saxofone. Mesmo feito se deu com “Dança Macabra” do compositor francês Camille Saint-Saëns que ganhou um incrível solo de bateria no estilo Paice/Moon/Bonham. No Brasil o disco também foi editado em 1972 com uma outra capa, bem mais interessante que a original por sinal. ATENÇÃO NAS FAIXAS: “Hall Of The Mountain King”, “Danse Macabre” “Exercise In 'A' Minor” 8 – EMÍLIO SANTIAGO – “Feito Para Ouvir” (1977) – o quarto álbum de Emílio Santiago deixa um pouco de lado o samba e o balanço que recheou seus trabalhos anteriores. O que temos aqui é um trabalho focado em baladas acústicas que mais se aproximam do jazz. O disco já abre com a magistral “Beijo Partido” de Toninho Horta, considerada por muitos, a melhor versão da música, que conta com inúmeras leituras como as de Nana Caymmi, Milton Nascimento e Flora Purim. O exímio cantor mostra todo o seu potencial em canções de Gilberto Gil, João Donato, Johny Alf e na parceria de Tom Jobim, Vinícius de Moraes e Chico Buarque, na belíssima “Olha Maria”, faixa que fecha o disco com chave de ouro. ATENÇÃO NAS FAIXAS: “Beijo Partido” “O Que É Amar”, “Rua Deserta”. 9 – ROCK HORROR SHOW (1975) – a peça que causou furor em Londres em 1973, chegava ao Brasil dois anos depois, tendo as suas canções originais traduzidas para o português e lançadas em disco pela gravadora Som Livre. No elenco e cantando, estão Lucélia Santos, Wolf Waya, Zé Rodrix e Eduardo Conde, personificando o vampiro travesti Frank ‘N’ Furter. O espetáculo sofreu muito com a censura militar que imperava na época e recebeu inúmeros cortes e proibições, o que causou uma descaracterização do original, porém, no disco, podemos ouvir, na íntegra, as divertidíssimas canções que embalam as aventuras de Brad e Janet no suspeito castelo do vampiro e sua criação erótica. O álbum não fez o sucesso esperado e suas tiragens foram limitadas, o que hoje o torna uma peça rara e de alto valor no mercado dos sebos. ATENÇÃO NAS FAIXAS: “Eu te faço ser homem”, “Science Fiction”, “Me Toque, Me Toque, Toque, Toque” 10 – BARRABAS – “Barrabas” (1972) – com a explosão do rock latino que o grupo Santana trouxe a luz na virada da década, inúmeros grupos apareceram com a mesma proposta, buscando um lugar ao sol. O Barrabas surge em 1972, com um álbum vibrante, poderoso e cheio de percussão e groove. Os hits do álbum ficaram a cargo de “Wild Safari” e “Woman”, sendo essa, a música mais lembrada do grupo e amada por djs, que não cansam de samplear seus acordes e compassos. Os álbuns foram lançados em cd em 2002, mas infelizmente já se encontram fora de catálogo, restando no streaming apenas uma coletânea, mas que ajuda a ouvir e entender a importância da banda. ATENÇÃO NAS FAIXAS: “Woman”, “Only For Men”, “Never in this world” Vamos combinar aqui: quem tiver uma dessas preciosidades em vinil em casa comenta aqui! Quer ver a primeira lista do Lauro? Clica aqui! A lista número 2 tá aqui! Lauro Almeida Amante de música desde criança, colecionador de discos, dj e curador musical, aficionado nos anos 70 e em suas vertentes. Do clássico ou obscuro, do compacto de vinil ao cd.

  • a mina da roupa de borracha #05

    Uma história em quadrinhos de Dona Dora. Dona Dora Nascida no Rio e criada na Ceilândia-DF, foi estudante de escolas públicas e formada em Artes Plásticas pela UnB - Universidade de Brasília. Em 2013, passou a produzir quadrinhos participando de eventos marginais ou feiras de coletivos de produção independente Zines. Desde então faz uns desenhos diferenciados, pinta quadros, faz quadrinhos e atualmente dá aula de Artes para o Ensino Médio. Curadoria de quadrinhos: Nílbio Thé e Isabelle Prado.

  • microliteratura contemporânea

    A microliteratura tem ganhado cada vez mais espaço na vida literária brasileira, muito especialmente em razão das redes sociais (Twitter, Facebook, Instagram), canais que facilitam a circulação desses produtos. Com uma nomenclatura variável — nanocontos, microcontos, miniconto —, a microliteratura da internet apresenta textos de umas poucas linhas/caracteres, às vezes acompanhados por imagens ou legendas, componentes paratextuais que complementam, reforçam ou ironizam o conteúdo do (micro)texto principal. Tal formato mínimo de escrita pode manter paralelos, por exemplo, com a linguagem do chiste, da charge, do aforismo ou do meme, frequentemente sendo permeado pelo humor e pela crítica social. No cenário contemporâneo, a microliteratura foi redescoberta e afasta-se da experimentação literária inicial, como a de Oswald de Andrade, Cacaso e Ana Cristina Cesar, e busca a simplificação de linguagem de um Dalton Trevisan. Na pequena seleta abaixo, um pouco da microliteratura produzida no Brasil. Izabela Drozdowska-Broering (@chimerycznie) Professora universitária, pesquisadora e escritora. Fetiche Para bom entendedor, uma meia basta. High Society Baixaria nas alturas. Threesome Fui pra cama com os dois livros. Ego sutra No vasto mapa dos prazeres, ele conhecia só o ponto E de “eu”. Hermes de Souza Veras (@viu.eitanem) Antropólogo e escritor. Sacada Os últimos raios de sol faíscam nos óculos do suicida. Almoço em família Ao esquecer a máscara perceberam a maneira como encarava a sobrinha. Três Marias Uma mulher se abana no calor dos trópicos e ainda que perdure a umidade sente secar a garganta e jura sentir o hálito da morte que não veio, mas mandou recado pelo grasnar da rasga-mortalha. Maria das Graças, Maria das Dores, Maria Anunciada. Geraldo Lima (@geraaldolima) Escritor, dramaturgo e roteirista. Conto de fada I Beijou e esperou pela metamorfose. Mas o príncipe apenas coaxou, escorregou-lhe das mãos e mergulhou novamente no lodo. Crime perfeito Às vezes a fatalidade só precisa de uma ajuda: no dia seguinte o marido passou desta para melhor. Novo normal A plateia, excitada, implorava para a stripper tirar a máscara. André Ricardo Aguiar (@andrericardoaguiar) Jornalista, revisor e escritor. Psicoterapia Apesar de ter dupla personalidade ainda queria 50% de desconto. Janela Quando pensava nela, a solidão movia as cortinas. Mãos à obra O escritor foi à massagista. — Alguma preferência? — Meu ego. Morandini (@vidanumsegundo) Publicitário, artista gráfico e escritor. I Entrou. Não havia ninguém na casa. Exceto a mulher que um dia tinha amado. II Uma xícara de chá, uma fatia de bolo e um incômodo silêncio. III Clara amava Joana pensando em Laura desejando Sofia. Adriano Salvi (@microcontando) Professor, artista marcial e escritor. Procasti… Depois eu termino. Sopa de Letras Já cmi a mtd. Spoiler Foi o mordomo. Marcio Markendorf (@microliteratura) Professor universitário, pesquisador e escritor Marcio Markendorf Professor, pesquisador e escritor. Leciona no curso de Cinema e na Pós-graduação em Literatura da UFSC. Publicou a novela "Soy loca, Lorca, feito um chien no chão" (Urutau, 2019) e, em parceria com Adriano Salvi, o volume de microliteratura, "Microcontando" (Caiaponte Edições, 2019), obra financiada pela lei de incentivo à cultura de Balneário Camboriú. Mantém uma conta dedicada às formas breves no Instagram (@microliteratura).

  • Top 10 das melhores faixas de rock brasileiro: os anos 2000!

    Demorou, mas chegou!! A parte final do que conseguimos apurar do melhor do rock brasileiro de cada década. Chegamos aos anos 2000! Sem mais delongas do que já tivemos, vamos a eles! 10 – Levo Comigo (Restart) – Pop Rock paulistano. Reflexo de seu tempo e, claro, do mercado fonográfico de então. 9 – Cedo Ou Tarde (NX Zero) – Emocore paulistano. Mais uma faixa importante por ser reflexo de seu tempo. 8 – O Dia Que Não Terminou (Detonautas) – Independente de concordar, Tico Santa Cruz é um dos últimos artistas do rock que falam o que pensam. Essa é uma das atitudes que consolidaram o movimento e o fez sobreviver por 70 anos. Apesar de não ser um som sublime, nem ter letras de excelência, era destaque numa geração completamente mercadológica e sem alma. 7 – Pé na Porta, Soco na Cara (Matanza) – Super influenciada pelo punk rock texano, é pesada e extremamente autoral. Consegue imprimir o estilo sem deixar dúvida! 6 – Fortaleza (Cidadão Instigado) – Deixaram o Ceará no começo dos anos 2000 rumo a São Paulo e nunca mais voltaram. Ainda assim, nunca também deixaram. Basta ouvir esse cordel psicodélico. 5 – Um Minuto Para o Fim do Mundo (CPM 22) – Chegaram a ganhar um Grammy Latino de melhor álbum brasileiro. Inauguraram o Hardcore Melódico e estrangularam o rock nacional. O movimento punk paulistano os considera traidores por terem se deixado fazer um grupo mais vendável. Rick Bonadio, produtor plastificador de sons, é um dos pais da criança. 4 – Pode Agradecer (Jay Vaquer) – Filho de pai homônimo, americano, que tocou com Raul Seixas nos anos 70 e 80, tem grande talento e conseguiu sobreviver em tempos difíceis. 3 – Sinceramente (Cachorro Grande) – Gaúchos que trouxeram o estandarte do rock farroupilha influenciado por gigantes como Engenheiros do Hawaii e Nenhum de Nós. 2 – Me Adora (Pitty) – Baiana danada! Simplesmente chegou chegando! Fez muito barulho na década, mas assim como quase tudo dessa fase de transição, ficou dando voltas e voltas. 1 – Alala (Cansei de Ser Sexy) – Banda brasileira com cara de Indie Rock nova iorquino. É uma das mais bem sucedidas da história, mas como é lado B, pouca gente conhece. RODRIGO VARGAS é do mundo. Nasceu em Goiânia, cresceu em Brasília, estudou em Londres e está cearense. Jornalista e psicólogo, teve bandas de rock e atuou como VJ na televisão. Foi apresentador e editor de cultura da afiliada à rede Globo no Ceará. O resto é história!

  • Músicas Fofinhas I. Humoresque de Dvorák

    Conheça a Humoresque Nº 7, de um grupo de 8 Humoresques que formam o Op. 101 do compositor tcheco Antonin Dvořák. Compostas em 1894 num hiato de sua passagem pelos Estados Unidos (estava de férias na Europa), essa sétima peça se tornou talvez a melodia mais popular do compositor. É uma suíte para piano, mas a popularidade dela a fez ser arranjada para todo tipo de instrumento e conjunto. A versão abaixo, num famoso concerto em Praga feito para a Televisão Tcheca em 1993, é para violino, violoncelo e orquestra. Consta (isso significa que eu li em algum canto, mas não sei onde) que na virada do século XIX para XX era a música mais tocada do mundo. É encantadora, você aprende a gostar muito rápido, tão logo começa.

  • A Ilha dos Mortos - Rachmaninoff - Análise

    Em 1907, o compositor russo Sergei Rachmaninoff (1883-1943) vê em Paris uma reprodução da obra Die Toteninsel, A Ilha dos Mortos, do pintor suíço Arnold Böcklin. O quadro era, obviamente, colorido, mas o que Rachmaninoff viu foi uma foto em preto e branco da pintura. Em 1908, em Dresden ele compôs seu poema sinfônico de mesmo nome. Anos depois, ao se deparar com a pintura em cores, ele ficou desapontado, dizendo que se não tivesse visto em preto e branco, não teria composto seu Die Toteninsel. Tem a ver com primeiras impressões. Se você tem um impacto com uma obra de uma forma, dificilmente terá aquele mesmo impacto de outra. A obra Começa com uma representação musical de um remar. Sendo a música em compasso de 5 tempos (5/8), são 3 tempos para o remo na água e 2 fora da água. Essa métrica também é muito usada para representar a respiração ou as batidas do coração. Todas essas alusões cabem aqui, pois todas estão relacionadas à vida e à morte (o remar refere-se à barca que carrega as almas dos mortos na mitologia grega). Os cromatismos são particularmente notáveis na obra, assim como a referência ao cantochão Dies Irae (Dias de Ira). Esse Canto Gregoriano, em especial, era muito usado pelos compositores para se referir à morte. Mas é um poema sinfônico sem roteiro. Em vez disso, a música tem um metabolismo, uma força motora. E conta com diversos episódios que eu acho que nem adianta a gente ficar tentando elucidar. São atmosferas encadeadas brilhantemente pelo compositor, mostrando sua presença avassaladora na harmonia, nas melodias, contracantos e na orquestração. A orquestra é composta por: As cordas (violinos 1, violinos 2, violas, violoncelos e contrabaixos); 4 flautas (1 mudando para flautim); 2 oboés; 1 corne inglês; 2 clarinete; 1 clarinete baixo; 6 trompas; 3 trompetes; 3 trombones; tuba; tímpanos e harpa. Gravações Importantes - Mikhail Pletnev, com a Orquestra Nacional Russa - De 1999. Pletnev e sua orquestra estelar é a mesma combinação do vídeo que você vê acima. Eles tocam rápido, de forma que, com 18m40s, é uma das gravações mais curtas a entrar nessa lista. Mas o clima é fantástico. Os instrumentos solistas estão muito seguros. - Andrew Litton, com a Filarmônica de Bergen - O regente americano Andrew Litton é fenomenal. E o trabalho que está fazendo com essa orquestra norueguesa é magistral. Está rapidamente se tornando um dos melhores conjuntos da Europa. Ele está no extremo oposto, em termos de andamento. É lento, fazendo com que a música bata os 22 minutos. É de 2012, o ano em que o mundo não acabou, mas devia. - Vladimir Ashkenazy, com a Orquestra do Concertgebouw, de Amsterdã - De 1984, essa gravação é aquela que vão te indicar sempre. Todo mundo. É porque é com a melhor orquestra do mundo, com o melhor intérprete de Rachmaninoff do mundo e com engenheiros de som por aí, também. Expressividade no máximo. - Vassily Petrenko, com a Filarmônica Real de Liverpool - Outra gravação bem moderna de um maestro que vem trazendo sua orquestra aos refletores. É de 2010. Petrenko fez gravações espantosas das sinfonias, concertos e poemas sinfonicos. Tudo com muito bom gosto, refinamento e uma sonoridade impressionante. - Edo de Waart, com a Filarmônica de Roterdã - Uma das primeiras gravações que eu conheci. De Waart é um grande intérprete de Rachmaninoff. E essa orquestra só é superada na Holanda pela Concertgebouw. Gravação de 1979. - Sergei Rachmaninoff, com a Orquestra de Filadélfia - Sergei era um regente fabuloso. Antes de se destacar como compositor ou mesmo como pianista, chamou atenção como um regente sensível e musical. Regendo a sua própria obra (essa peça, a 3ª sinfonia e a Vocalise) é imperdível. O som é bem velhinho, mas o chiado faz é contribuir para a atmosfera sinistra da música. É de 1929.

  • 20 Músicas Clássicas para Iniciantes

    A intenção aqui é darmos uma espécie de compasso para quem quer começar a ouvir música clássica, mas nem sabe por onde começar. Demos certa prioridade a músicas que são completas - não são parte de obras maiores. Mas tem algumas. Não são simplesmente as músicas mais lindas, ou mais relaxantes etc. Aqui são músicas sérias. Que, por acaso, são lindas. Você vai adorar cada uma, mas não tenha pressa. Escolha algumas e deixe-se levar pela beleza. Escute-as no Spotify aqui. 1 - O Canto do Cisne Negro - Heitor Villa-Lobos (modernismo) Uma peça magnífica para violoncelo e piano sobre a qual pouco se sabe. Funciona também com violino e piano, Villa escreveu dos dois jeitos. Ela tem um clima encantado. 2 - Vocalise - Sergei Rachmaninoff (romântismo tardio) Essa peça existe também em vários formatos: para piano, para orquestra, para violoncelo e piano. É muito famosa, uma longa melodia simplesmente inspirada, linda. Depois outras melodias vão se formando, se enganchando. 3 - Melodia - Da ópera Orfeu e Eurídice - Christoph Willibald Gluck (clássicismo) Pertencente à Ópera Orfeu e Eurídice, de Gluck, essa melodia foi extraída e transcrita para piano por Sgambati. Hoje, muitos pianistas a usam como encore. 4 - Bourée - Suíte para Violoncelo Nº 3 - Johann Sebastian Bach (barroco) As suítes para violoncelo de Bach são extremamente conhecidas, dotadas de beleza e muita inventividade. São peças para violoncelo solo, o que é raro. São 6 suítes com 6 peças cada uma. Eu escolhi as Bourées 1 e 2 da 3ª Suíte. É incrível como você tem a melodia principal, contra cantos e os baixos, todos vindo como se fossem uma coisa só. 5 - A Lenda do Caboclo - Heitor Villa-Lobos (modernismo) A Lenda do Caboclo é mais uma peça mágica de Villa-Lobos. Escrita para piano, tem uma atmosfera de misticismo. A música não conta uma lenda. Ela é a própria lenda. 6 - Pavana para uma Infanta Morta - Maurice Ravel (impressionismo) Essa peça também existe em duas versões: piano e orquestra. Eu incluí a versão orquestral, porque é mais conhecida e funciona levemente melhor. A trompa cuida da linda melodia, num registro agudo. Quando a orquestra é boa, o trompista dá uma aula de respiração. 7 - Rêverie - Claude Debussy (impressionismo) Peça para piano, tem um ritmo que parece quebrado, às vezes. É uma obra da juventude de Debussy, ainda bem tonal e com um pé no romantismo. É muito linda. 8 - Pavana - Gabriel Fauré (romantismo tardio) A Pavana de Fauré é a peça mais conhecida dele, que foi professor de Debussy e de tantos outros. É uma melodia belíssima, apresentada pela primeira vez na flauta. Existe na versão para orquestra e para orquestra e coro. Prefiro a puramente instrumental. 9 - Valsa da Dor - Heitor Villa-Lobos (modernismo) Essa é uma das peças mais conhecidas de Villa-Lobos. É para piano. É a Valsa da Dor. Não podia ter outro nome e esse nome não podia ter outra valsa. 10 - Lacrimosa (Do Réquiem) - Wofgang Amadeus Mozart (classicismo) Um dos movimentos mais dramáticos do Réquiem de Mozart, foi tamém o último que ele compôs - na verdade, teve que ser completado. Mozart vem a morrer enquanto escreve o Ráquiem, a missa dos mortos. Para coro e orquestra, esse movimento é arrepiante. 11 - La Badinage - Marin Marais (barroco) La Badinage é uma peça que pertence a um livro chamado Pièces de Viole, que são peças para viola da gamba (um precursor do violoncelo e sua família) e contínuo (às vezes cravo, às vezes teorbo, às vezes os dois). 12 - Gretchen am Spinnrade - Franz Schubert (romantismo) Originalmente é um lied, ou seja, uma peça cantada, acompanhada por piano. Mas a versão que eu indico aqui é a transposta por Franz Liszt para piano solo. Uma das minhas peças favoritas das muitas que ele pegou de Schubert e transpôs. 13 - Arabesque Nº 1 - Claude Debussy (impressionismo) A conhecidíssima Arabesque é também da primeira fase da carreira de Debussy, quando ele ainda flertava com o romantismo. É para piano. 14 - Andante do Concerto para Flauta e Harpa - Wolfgang Amadeus Mozart (classicismo) Sim, peguei um movimento de uma obra maior. Porque numa lista assim não poderia faltar esse movimento belíssimo para flauta, harpa e orquestra. 15 - O Velho Castelo, de Quadros de uma Exposição - Modest Mussorgsky (romantismo) Peguei uma das peças com mais efeito das que Maurice Ravel orquestrou dessa suíte de Mussorgsky. O uso do saxofone contribui para a atmosfera sinistra. 16 - Impromptu Nº 2 - Franz Schubert (romantismo) Uma peça linda, e difícil para o piano. O problema não é a velocidade, mas o legato e o fraseado. Impromptu quer dizer Improviso, porque as peças têm um caráter descompromissado com a forma. 17 - La Fille aux Cheveux de Lin, dos Prelúdios - Claude Debussy (impressionismo) Esse é o prelúdio para piano mais conhecido de Debussy, e é uma música maravilhosa. 18 - Larghetto do Concerto para Violino - Ludwig van Beethoven (romantismo) O concerto para violino de Beethoven é um dos pilares do repertório desse instrumento. Mas além de ser importantíssimo, também é muito bonito. É para violino e orquestra. 19 - Alma Brasileira - Heitor Villa-Lobos (modernismo) Uma música que todo estudante de piano brasileiro conhece. Porque parece mesmo que ele capturou a nossa alma. Do jeito dele. 20 - Adagio do Concerto em Ré menor - Alessandro Marcelo/Johann Sebastian Bach (barroco) De um concerto para oboé, de Marcello, Bach extraiu esse movimento e fez um arranjo para teclado. Ficou super conhecido. Hoje em dia se toca no piano.

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