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  • Entrevista - Cristina Ortiz, Direto de Londres

    Por Rafael Torres Depois de meses de contatos esparsos , até meio desencontrados , a Arara finalmente conseguiu uma entrevista com a pianista brasileira Cristina Ortiz . Do resultado , vocês me digam o que acharam . Mas, acima de tudo, abram o Spotify e escutem essa playlist . Eu adorei a entrevista, não só pelo fato de falar com ela, de quem sou fã desde criancinha. A carreira de Cristina é impecável , tanto no repertório quanto na qualidade que ela entrega. Consegui encontrar nos sebos de vinil de Fortaleza , alguns discos dela que eu não tinha em CD . Quero que escutem e prestem atenção na expressividade de Cristina no " Poema Singelo ", de Villa-Lobos . Ela faz rubatos com tanto bom gosto ... E, nos momentos mais virtousísticos , seu sonzão é maravilhoso. Hoje tenho: - Villa-Lobos - Bachianas Brasileiras nº 3 e Momoprecoce , com a New Philharmonia Orchestra dirigida por Vladimir Ashkenazy ; - Villa-Lobos - Música para Piano (solo); - Villa-Lobos - A Obra para Violoncelo e Piano , com o saudoso Antônio Meneses ; - Dmitri Shostakovich - Os 2 Concertos para Piano , com a Bournemouth Symphony Orchestra regida por Paavo Berglund ; - Sergei Rachmaninoff - Rapsódia Sobre um Tema de Paganini / Ernst von Dohnányi - Variações sobre uma Canção de Ninar - com a New Philharmonia Orchestra regida por Kazuhiro Kolzumi ... E certamente esqueci de outros. É que, desde que assino Spotify , e uma boa parte da discografia dela está lá (com exceções ), costumo escutar lá. De modo que montei a playlist que lhes apresentei e lá tem tudo . Ainda acho que a melhor forma de se encantar com a música de Villa-Lobos é escutando " Música para Piano ", em que Cristina toca as Bachianas Brasileiras nº 4 (completas, com 4 movimentos), a Valsa da Dor , o Poema Singelo , as Três Marias , Caixinha de Música Quebrada , Cirandas , peças do Guia Prático etc. Entrevista Arara : Primeiro, Cristina, precisamos falar do Eleazar de Carvalho . Ele era, mesmo, autoritário ? Era musical? Cristina: Vc conhece este Áudio? Veja só a famosa BRONCA do Eleazar neste meu Début, em 1961, na série de Concertos para a Juventude aos domingos de manhã, onde, dentre 2000 pessoas havia vários escolares barulhentos no 5° andar: Vc bem pode imaginar que eu, aos 11 anos, não tivesse a menor ideia do quê esperar de um maestro! Enquanto ele dava a bronca no público, eu morria de rir discretamente, vendo meus pais na frisa (do Theatro Municipal do Rio), de frente ao piano, apavorados que eu me "desconcentrasse"?! Que nada: fui em frente sem problema algum, tendo sido interrompida novamente por Eleazar, quando alguém na torrinha fez barulho, ele perguntou: "por que tossiu"? O auditório inteiro nem mais respirava! "Vamos recomeçar" e eu reiniciei o 2° movimento pela 3a vez! Arara : Você venceu o concurso Van Cliburn . Conheceu o Van Cliburn? Como é, nessa hora, vencer o nervosismo para tocar um instrumento que exige tamanho ajuste fino ? E nos concertos em geral? Costuma ficar nervosa ?   Cristina: Nunca sofri de nervosismo e sempre bem preparada entrava no palco super alegremente para tentar meu melhor e acostumada com o constante corre-corre de meus 5 irmãos ao torno do piano na sala... não tinha medo e se algo acontecesse diria "ninguém é perfeito"; em geral sempre me dei bem!  Conheci Van, sim, muito gentil -- lembro bem da minha surpresa quando após meu recital de semifinal no Concurso ele veio aos bastidores ele mesmo preparar um suco de laranja para me dar forças dizendo: após todo este esforço é preciso muita vitamina C !  Infelizmente vim a saber anos mais tarde, que ele tentou influenciar o Júri (por não querer que uma mulher ganhasse) mas com gente como Lili Kraus, Peter Frankl, Leon Fleisher entre outros, todos insistiram que, se eu não fosse a vencedora, não haveria o 1° prêmio, o que não cai bem para um Concurso!  (Achamos que o que "não cai bem" é burlar o júri para impedir uma mulher de vencer !) Arara : Como você conheceu o André Previn e o Vladimir Ashkenazy ? Pode nos colocar dentro da cena em que vocês se conheceram?   Cristina: Eram artistas de meu então agente (marido por muitos anos e pai de minhas duas filhas), por isso tive oportunidade de ouvi-los e apreciá-los antes de trabalhar com ambos em várias ocasiões marcantes! Aliás foi Previn que, ao saber que a 'namorada' do meu marido era pianista, pediu para me ouvir! Audição que aconteceu no intervalo de um ensaio dele no Festival Hall de Londres, e onde após me dar a chance de gravar (em seu lugar) "Rio Grande" de Lambert para a EMI e como resultado me convidou para fazer meu Début com sua LSO, executando o Concerto n° 1 de Rachmaninov!  Já com Ashkenazy, no início de sua carreira como regente, gravei "Momoprecoce" e as Bachianas Brasileiras n° 3 de Villa-Lobos e mais tarde, o Concerto de Grieg mais as Variações Sinfônicas e Les Djinns de César Franck.  Fui solista várias vezes sob a batuta de ambos -- uma vez após solar o Concerto n°1 de Mendelssohn no Musikverein de Viena c/ele na regência da Filarmônica, recebi uma crítica tão elogiosa que ao traduzi-la à mesa do Café da Manhã ele disse: nem se você houvesse tocado ambos os Concertos de Brahms, os elogios teriam sido melhores que estes! Tsk! Arara : Quem são seus referenciais pianísticos ? Cristina: Ao chegar a Londres, Vladimir Ashkenazy --  o pianista que nunca errava -- foi uma grande referência, com seu monumental repertório, se apresentava 3 ou 4 vezes por ano. Clifford Curzon, Rudolf Serkin, Arturo Michelangeli, Alfred Brendel, Vladimir Horowitz, Sviatoslav Richter, Byron Janis, Allicia De Larrocha, Radu Lupu, Krystian Zimerman etc. etc., ouvi a todos!  Sempre aprendi ouvindo toda essa gente ao vivo, "o que não fazer", ha ha! Arara : Você sabe que, no blog da Arara , elegemos as 5 melhores pianistas da geração atual e mulheres ? Ficaram Cristina Ortiz , Yuja Wang , Hélène Grimaud , Alice Sara Ott e Khatia Buniatishvili . Gosta delas? Ou de algumas delas? As conhece? Não conheço nem Wang nem Buniatishvili pessoalmente, e as outras.. pouquíssimo.  Arara : Quais são os seus (ou as suas) pianistas jovens favoritos ? Cristina: Hoje em dia por estar um pouco longe dos grandes teatros, não mais tenho contato com jovens pianistas; aliás  sempre recusei ouvir discos, preferindo descobrir ou desenvolver minha própria concepção da partitura, sem qualquer influência exterior! Arara : Você era amiga do Nelson Freire ? Fale um pouco sobre ele. Em especial, sobre sua musicalidade . Cristina: Conheci Nelson muito pouco, várias vezes aconteceu dele estar na mesma cidade onde eu também tocava e por calhar dele estar livre, aparecia nos meus Concertos (The Hague, Tóquio, Rio, Amsterdam); e vice-versa, eu o assisti no TM do Rio e no Cultura Artística de SP (no dia antes do terrível Incêndio) .   Arara : Existe uma diferença entre gostar de um concerto e gostar de tocar um concerto . Quais são os seus concertos favoritos de tocar e de ouvir. E como se dá essa diferença ? Cristina: Desde jovem só aprendia os Concertos de que eu gostava; muito raramente, aconteceu de eu necessitar preparar um Concerto por uma razão ou outra, não por minha escolha:  p. ex o "Rio Grande" de Lambert ou o Concerto de Benjamin Britten, entre outros. Arara : A música erudita brasileira , antes da OSESP , da Filarmônica de Minas Gerais e Filarmônica de Goiás , estava mesmo decadente ? Não estava no mundo inteiro ? Cristina: Sem comentários interessantes... Mudou muito?!  ( Nossa opinião é que, no século XX, não haviam grandes orquestras no Brasil. O surgimento da Osesp ao menos encorajou os Mineiros e Goianos . Já são 3 de bom nível e, quem sabe venham outras , no futuro?) 10. O que podemos encontrar em você da sua mais famosa professora , a lendária Magda Tagliaferro ? E de Rudolf Serkin ?  Cristina: Da D. Magdalena, sempre me fascinou sua clareza e rítmica na música francesa, também seu imaginário colorido (seus anuais Cursos de Interpretação na Salle Cortot se intitulavam "Couleurs dans l'harmonie"). Do Serkin, meu amado Rudi, o respeito indiscutível à partitura e o equilíbrio dosadíssimo nas passagens entre novos Tempi!  A Arara Neon agradece muitíssimo à espetacular Cris Ortiz . Comente sempre ! Agradeço-os  pela visita, sintam-se em casa , aqui. Aqui , os links para as matérias da Araras Neon . Links

  • Lista de Postagens

    Coloquei, agora, os links separados , em vez de no final de cada postagem . Espero que isso facilite . postagens importantes Bem-Vindo à Arara Neon Opinativas e informativas Uma opção para o dilema de tocar ou não Música Russa nos concertos hoje em dia . Um "pequeno " Glossário de termos musicais . Aqui , 10 Livros Sobre Música Clássica Alguém sabe o Que temos com os vestidos das pianistas? Quanto ganham os músicos e regentes de uma grande orquestra? Qual a diferença entre Orquestra Sinfônica e Filarmônica? Quanto ganha um músico de orquestra ou maestro? Compreensão Musical Como Ouvir Música Clássica Vamos Entender a Orquestra Sinfônica Música Clássica é Elitista ? Preconceito Contra Música Clássica O Movimento HIP (Interpretações Historicamente Informadas) César Franck, o Aluno dos seus Alunos Rachmaninoff ou Rachmaninov? Como se pronuncia e escreve? Música Calada, A Arte de Federico Mompou Por que Antônio Meneses regravou as Suítes para Violoncelo Solo de Bach? História da Música Parte 1 - Idade Média Parte 2 - Renascença Parte 3.1 - Barroco ( Conceitos e Inovações ) Parte 3.2 - Barroco ( Compositores Importantes e Exemplos Musicais ) Parte 3.3 - Barroco ( O Fim do Período Barroco , As Vertentes de Interpretação da Música da Época e Discografia Sugerida ) Parte 4.1 - Classicismo ( Compositores importantes e novidades desse curto período ) As Maiores Orquestras do Mundo Vol. 1 - Filarmônica de Berlim Vol. 2 - Orquestra do Concertgebouw, Amsterdã Vol. 3 - Filarmônica de Viena Vol. 4 - Sinfônica da Rádio Bávara Vol. 5 - Sinfônica de Chicago Vol. 6 - Sinfônica de Londres Compreendendo o Maestro Parte 1 - História Parte 2 - Pra Que Serve? Parte 3 - Curiosidades Análise de obras - Bach - Chaconne em Ré Menor (A Maior Dimensão do Raciocínio Humano) - Bach - A Perfeição da Fantasia Cromática e Fuga - Bach - A Passacaglia e Fuga em Dó Menor (Variações sobre nada) - Mozart e seus milagres - Réquiem (A Obra que Matou o Compositor?) - Mozart e seus milagres - Concerto para Flauta, Harpa e Orquestra - Mozart e seus milagres - Et Incarnatus Est, da "Grande Missa" em Dó Menor - Brahms - Sinfonia Nº 1 - Brahms - Sinfonia Nº 2 - Brahms - Sinfonia Nº 3 - Brahms - Sinfonia Nº 4 - Brahms - Concerto para Piano Nº 1 - Brahms - Concerto para Piano Nº 2 - Britten - Guia da Orquestra para Jovens - Elgar - Variações "Enigma" - Bartók - Música para Cordas, Percussão e Celesta - Hekel Tavares - Concerto para Piano em Formas Brasileiras nº 2 - Chopin - Os E studos - Chopin - As Baladas - Chopin - Os Scherzos - Chopin - Os Prelúdios - Liszt - Sonata em Si Menor - Beethoven - Sinfonia Nº 3, "Eroica" - Beethoven - Sinfonia Nº 5 - Beethoven - Sinfonia Nº 6, "Pastoral" - Beethoven - "Sinfonia Nº 10" (Completada por Inteligência Artificial) - Beethoven - O Concerto para Violino - Beethoven - Os Concertos para Piano - Berlioz - Sinfonia Fantástica - Tchaikovsky - Sinfonia Nº 6, "Pathétique" - Wagner - Abertura Tannhäuser - Dvorák - Sinfonia Nº 7 - Dvorák - Sinfonia Nº 8 - Dvorák - Sinfonia Nº 9, "Do Novo Mundo" - Dvorák - Concerto para Piano - Saint-Saëns - Sinfonia Nº 3, "Com Órgão" - Debussy - Prelúdio para a Tarde de um Fauno - Debussy - Os Prelúdios para Piano (Livro 1) - Debussy - Os Prelúdios para Piano (Livro 2) - Debussy - Les Chansons de Bilitis - Dukas - La Péri - Dukas - O Aprendiz de Feiticeiro - Holst - Os Planetas - Honegger - Sinfonia Nº 2 - Lully - "Dormons, Dormons Tous", da Ópera Atys - Mendelssohn - As Hébridas (A Gruta de Fingal) - Mussorgsky - Quadros de Uma Exposição - Penderecki - Trenodia para as Vítimas de Hiroshima - Rachmaninoff - Concerto  para Piano e Orquestra Nº 1 - Rachmaninoff - Concerto  para Piano e Orquestra Nº 2 - Rachmaninoff - Concerto  para Piano e Orquestra Nº 3 - Rachmaninoff - Concerto  para Piano e Orquestra Nº 4 - Rachmaninoff - Rapsódia Sobre um Tema de Paganini - Rachmaninoff - A Ilha dos Mortos Rachmaninoff - Sinfonia Nº 2 - Ravel - Concerto para Piano em Sol - Ravel - La Valse , a Apoteose da Valsa Vienense - Ravel - Bolero - Ravel - Daphnis et Chloé (Suíte Nº 2) - Steve Reich - Música para Pedaços de Madeira - Richard Strauss - Sinfonia Alpina - Schubert - Quarteto de Cordas Nº 14 "A Morte e a Donzela" - Schumann - Estudos Sinfônicos , para Piano - Schumann - Sinfonia Nº 2 - Stravinsky - A Sagração da Primavera - Villa-Lobos - As Bachianas Nº 3 Músicas Fofinhas 1 - Humoreske , de Dvořák 2 - Melodia de Orfeu , de Gluck/Sgambati 3 - Pavane pour une Infante Défunte , de Ravel 4 - Caixinha de Música Quebrada , de Villa-Lobos 5 - Fantasia Tallis , de Vaughan Williams 6 - Abertura Tannhäuser, de Wagner 7 - Rêverie , de Debussy Ouvindo Fácil 1 - Noite no Monte Calvo, de Modest Mussorgsky Veja também: As Famosas Listas - As Maiores e Mais Belas Sinfonias Já Escritas - Top 10 Maiores Pianistas do Brasil - Top 10 Sinfonias Imprescindíveis - Outro Top 10 Sinfonias a se Conhecer - Top + 10 Sinfonias para Escutar Sem Erro - Top 15 Sinfonias Injustiçadas - Top 10 Obras Sinfônicas Extra Categoria - Top + 10 Obras Sinfônicas Extra Categoria - Top 10 Sonatas que Você tem que Conhecer - Top 10 Concertos Para Violino - Top 10 Concertos para Piano - 10 Discos para Entender Beethoven - 10 Discos para Entender Mozart - 10 Discos para Entender Villa-Lobos - Top 10 Música Clássica de Terror - Top 10 Maiores Orquestras Sinfônicas dos EUA - As 20 Maiores Orquestras do Mundo - Alguns dos Maestros Mais Importantes do Século XX - Top 10 Gravações do 1º Concerto para Piano de Brahms - Top 10 Gravações do 2º Concerto para Piano de Brahms - 10 Obras para se Conhecer Bartók - 10 Obras para se Conhecer Chopin Argonautas Saiba, aqui, tudo sobre os Argonautas , um quarteto de MPB Clássica e Contemporânea Autoral Cearense . Música Popular Brasileira Top 10 Discos de Chico Buarque Top 10 Discos de Tom Jobim Top 10 Discos de João Gilberto Top 10 Discos de Edu Lobo Top 10 Discos dos Beatles 7 Discos Fora da Caixinha + 7 Discos Fora da Caixinha ++ 7 Discos Fora da Caixinha Perfis Perfil da pianista portuguesa Maria João Pires , postagem da nossa correspondente prodígio lusitana Mariana Rosas , do Blog Pianíssimo ( www.pianissimo.ovar.info ). Perfil da violinista francesa Ginette Neveu , falecida aos 30 anos em um acidente de avião , em 1949 . Perfil do pianista brasileiro Nelson Freire , considerado um dos maiores dos tempos modernos e falecido em 2021 . Perfil da pianista argentina Martha Argerich , potencialmente a maior pianista que já existiu . Perfil da pianista baiana Cristina Ortiz , talentosa e com uma carreira e discografia invejáveis. Perfil da pianista sino-americana Yuja Wang , possivelmente, a maior de todas . Perfil da pianista georgiana Khatia Buniatishvili , que também é linda , jovem e usa isso em seu favor. E toca pra burro . Perfil da pianista nipo-germânica Alice Sara Ott , uma das que elegemos as 5 maiores pianistas da atualidade . Perfil do compositor húngaro Franz Liszt , personagem central da primeira " Beatlemania " de que temos notícia: a " Lisztomania ". Perfil do compositor alemão Robert Schumann , pianista frustrado , amante de Clara Schumann e potencial suicida do romantismo. Perfil do maestro estoniano Neeme Järvi , um dos maiores e mais interessantes da atualidade. Papo de Arara (Entrevistas) Hermes Veras, poeta e antropólogo Liduino Pitombeira, compositor cearense Leonardo Drummond, da Kuba Áudio Luiz Cláudio Ramos, músico (violonista e arranjador) Verônica Oliveira, faxineira hipster Daniel Pirraça, designer de jogos Yandra Lobo Júlio Holanda Gidalti Jr., quadrinhista Emmanuele Baldini, violinista e regente Depressão Um Cogumelo para Depressão - Psilocibina DBS (Deep Brain Stimulation) - O Marca-Passo da Salvação Não esqueça de comentar!

  • Por que Antônio Meneses regravou as Suítes para Violoncelo Solo de Bach?

    As 6 Suítes para Violoncelo Solo de J. S. Bach estão entre aquelas peças infinitas ao quadrado do mestre alemão do Barroco . E teriam passado despercebidas a todos se, no final do século XIX , o jovem Pau Casals não tivesse encontrado as partituras em um sebo em Barcelona, acreditado que era mesmo Bach e incorporado ao seu repertório . Casals viveu até os anos 70 do nosso século e gravou a peça várias vezes. São patrimônio imaterial da cultura ocidental , e muitos cultuam estas gravações. Eu confesso que tenho dificuldade em fazê-lo. Como todo pioneiro romântico (no sentido de interpretação romântica , aquela oposta ao HIP ), Casals errava muito e tinha umas ideias que não me agradam muito. Mas há quem santifique , e são músicos muito melhores que eu . Eu podia perguntar ao Antônio Meneses o que o levou a gravar a peça pela segunda vez . (Ele será um dos próximos entrevistados da Arara.) Mas prefiro me arriscar e tentar adivinhar apenas pelo som das duas gravações. Digo logo que a nova não substitui a primeira. Veja a capa das duas: Antônio Meneses O violoncelista pernambucano apareceu no começo dos anos 80 , quando venceu o Concurso Internacional Tchaikovsky , em Moscou (na categoria Violoncelo, que seja dito). Mais barulho, ainda, fez, quando o maestro Herbert von Karajan o convidou a gravar . Juntos, gravaram o Concerto para Violino, Violoncelo e Orquestra , de Brahms , com Anne Sophie Mutter ao violino e o Poema Sinfônico Dom Quixote , de Richard Strauss , que tem um violoncelo solista . Depois, sua fama cresceu, ainda, pois se juntou ao Beaux Arts Trio por 10 anos . Sempre entre o Brasil e o exterior , já gravou com a Osesp (os Concertos e a Fantasia de Villa-Lobos ) e com pianistas do porte de Maria João Pires e Nelson Freire . Já trabalhou com a Filarmônica de Berlim , a Filarmônica de Nova Iorque a Sinfônica de Londres , a Sinfônica da BBC , a do Concertgebouw de Amesterdã , a Filarmônica Tcheca , a Filarmônica de Israel , a da Rádio Bávara e regentes como Herbert von Karajan , Riccardo Chailly , Mariss Jansons , Claudio Abbado , Yuri Temirkanov , Kurt Sanderling , Neeme Järvi , Mstislav Rostropovich , e Riccardo Muti . E acabei de ficar sabendo que ele morreu , nesse sábado , na Basileia (Suíça ), aos 66 anos , cancelando, automaticamente, a entrevista. Mas não me faltam grandes músicos para eu perguntar em seu nome. Nesse caso, recorri ao grande violinista italiano Emanuelle Baldini . " Arara : Mestre, por que Antônio Meneses regravou as Suítes de Bach ?" " Baldini : Porque uma gravação não é nada mais do que uma foto sonora que reproduz um momento , uma etapa , e cada um de nós muda muito com o tempo . Na música também, há sempre novas coisas para falar, para descobrir . Nenhuma gravação é definitiva ." " Arara : Mas tem algo de " último testamento "? Ou tem a ver com o movimento HIP , já que gravou um semitom abaixo ?" " Não , muitos cellistas e violinistas gravaram mais de uma vez as mesmas obras, faz parte do normal percurso de crescimento e amadurecimento do músico. E das ocasiões que se oferecem no caminho ." E eis. Itália 2 x 0 Brasil. Palavras de um violinista que conviveu com Antônio e que gravou com ele. Voltemos, então, à biografia de Antônio Meneses . As 3 gravações da Suítes que fez foram: 1 privada , que ele fez nos anos 80 para algum barão japonês , 1 para a Avie , em 2004 e a mais recente , para a Azul Music , em 2023 . Sua discografia no Spotify conta com 24 discos , já nos seu site oficial , 43, menos o mais recente. O feito é extraordinário para um violoncelista , ainda mais brasileiro . Ainda mais nordestino , Tem desde duos com piano (tudo que você imaginar - Schumann , Schubert , Mendelssohn , Villa-Lobos etc.), peças para violoncelo solo (como as Suítes de Bach 2 vezes) e concertos (Haydn , Villa-Lobos , Elgar , CPE Bach , Brahms e Richard Strauss ). Isso sem falar na sua discografia com o Beaux Arts Trio , o maior trio com piano que já se viu. Devemos continuar ouvindo as duas comerciais? Sim, meus caros. Como bem disse o Emmanuele Baldini , cada regravação representa uma nova concepção da música pelo artista. Não aconselho procurarem a 1ª , a 1ª de verdade , pois essa deve ter sido gravada na garantia de que jamais seria divulgada (pode não ter ficado em um nível aceitável por Antônio para lançamento). As outras duas , já falei: ele gravou cada uma em uma afinação diferente , dando-nos mais dos que os motivos necessários para desfrutá-las à vontade . Comente , comente muito , comente sempre ! Agradeço-os pela visita, sintam-se em casa , aqui. Aqui , os links para as matérias da Araras Neon . Links

  • O Milagre dos Andes

    Morte e Amizade Em 13 de outubro de 1972 um avião da Força Aérea Uruguaia, FH-227 , levando 40 passageiros e 5 membros da tripulação, caiu nos Andes , entre Argentina e Chile . Mas no lado argentino da cordilheira, já perto da cidade chilena de Puente Negro . Eles enfrentaram uma jornada de 72 dias .  A maior parte era do time de Rugby Old Christians . A média de idade era de 22 anos. Hoje têm mais de 70 . Na primeira vez em que decolaram, fizeram um desvio para Mendoza por causa do frio . Passaram uma noite lá. Decolaram com o tempo ainda ruim . O avião partiu de Montevideo (Uruguai) até Santiago (Chile), mas jamais chegou ao destino. Era pilotado pelo experiente coronel Júlio César Ferradas e o co-piloto era o não tão experiente Tenente-Cel. Dante Héctor Lagurara. Este último pilotava a aeronave na hora do acidente que, após análise, concluiu-se, caiu por erro do piloto . Nando Parrado  disse, em entrevista ao The Guardian , da Inglaterra. " Atualmente , eu jamais me aproximaria desse avião. Um Fairchild FH-227D  com motores muito fracos , lotado , completamente carregado , sobrevoando as montanhas mais altas da America do Sul , ainda com mau tempo ! De jeito nenhum". Veja trechos da entrevista do sobrevivente Antonio Vinzintin para a Revista Trip , em 1992 . Quando os pilotos tomaram a decisão de cruzar para Santiago, o que aconteceu depois? "Bem, o acidente aconteceu porque os pilotos se perderam . Depois de determinado tempo de voo, dentro da velocidade que íamos, já tínhamos que ter chegado em nosso destino. Mas não foi o que aconteceu . Os pilotos começaram a baixar de altitude . Estavam perdidos e começaram a baixar, baixar, baixar, até encontrarem com a montanha . O avião bateu … " Acontece que, entre Chile e Argentina tem uma das cordilheiras mais traiçoeiras do mundo, os Andes . Não se pode traçar uma reta entre as capitais chilena e argentina, precisa-se viajar para o sul e aproveitar uma passagem na montanha, na altura do Monte Tinguiririca , hoje batizado por um dos sobreviventes, em homenagem a outro, de Monte Seler . Lá o co-piloto esqueceu todo o seu treinamento . Pensou que já haviam cruzado a cidade de Curicó (e disse isso aos sobreviventes, deixando-os mais perdidos ), olhou para fora e viu as montanhas e tentou ganhar atitude , tendo estado voando a 5,5 km para se comunicar e ainda errando na estimativa de chegarem em Curicó . Para a torre de Curicó . O avião estava pesado , lotado (tinha acabado de receber uma reforma , aumentando de 52 para 56 a capacidade máxima de passageiros), e não conseguiu . O clima estava péssimo , prejudicando a visibilidade , a aeronave estava perigosamente em seu limite de peso e o modelo do avião era famoso por não ter força . E foi o décimo FH-227 envolvido em acidentes . Além disso, os passageiros sentiram a brutal ascendência do voo e puderam ver as montanhas abaixo. O desespero foi generalizado. Ao bater no chão, muita gente morreu , pela pancada e por asfixia (ficaram enterrados na neve). Às vezes faziam 30 graus negativos lá fora. Nando Parrado escreveu, dois anos após o incidente, o livro Vivos . A História dos Sobreviventes dos Andes , que inspirou o filme Alive . 5 pessoas morreram na queda, quando a cauda se foi. Além delas, o piloto morreu no impacto e o co-piloto , pouco depois. 4 , quando o avião bateu, ao deslizar, na neve. No final do ski do avião, dos 45 que partiram de Montevideo, apenas 33 estavam vivos. Na manhã seguinte, mais cinco sucumbiram aos ferimentos. As buscas , partindo do Chile , começaram quase imediatamente, quando o voo atrasou e a terra não conseguiu contato. Mas foi um fracasso, pois não se sabia exatamente onde o avião estava (a última comunicação fora em Curicó ), a visibilidade era péssima e o avião , branco , confundia-se com a neve . Ao voltar a Santiago , o pessoal da busca , sem ter obtido sucesso , ouviu mais detalhadamente as gravações das conversas de rádio e concluiu que eles estavam na área mais desértica e remota área dos Andes . No dia seguinte, Argentina e Uruguai uniram-se ao Chile nas buscas. Mas elas foram canceladas no 8º dia . O desespero aumentou. Até tinham um radinho de pilha , mas era de pilha... Foi por ele que souberam do término das buscas . Os médicos e estudantes de medicina do grupo passavam o dia cuidando dos feridos , de suas feridas , suas mortes , suas dores de barriga ... Em 15 de novembro três sobreviventes encontraram a cauda da aeronave. Nela, acharam baterias , com o que queriam alimentar o rádio da carcaça (não deu certo, a bateria era muito pesada para carregar), roupas , chocolate , quadrinhos , rum e outras coisas. O que comiam? " Bom, o avião não tinha muita comida . Eram 28 pessoas vivas , no princípio começamos dividindo, um pedacinho de doce para cada um, pra fazermos uma boquinha. Uma tampa de desodorante de bebida, havia rum , e era só uma tampinha, eram 28 pessoas . Não havia muito, o tempo passou — isto foi antes da avalanche. Não havia nada para comer . Tinha uns estudantes de medicina que disseram que assim não sairíamos vivos . Mas antes de se chegar a essa decisão , discutimos a parte religiosa do assunto, teorias distintas, se era possível ou não. Um dizia que sim, outro dizia que não. Cada um com seu dilema , chegamos à conclusão de que era a última solução ." Isso, eles comeram a carne dos mortos - e são criticados até hoje por isso. Mas lembrem-se, era a única maneira de sobreviverem. E os mortos , em vida , deram autorização para a antropofagia. Após todos decidirem que sua única chance de sobrevivência era buscar ajuda, Roberto Canessa , Nando Parrado e Antonio Vizintin partiram, no sentido errado , em busca de socorro . Vinzintin não conseguiu ir além do 3º dia , em más condições físicas , de modo que voltou aos destroços e os outros continuaram. Andaram, no total, por 10 dias . No 10º dia viram dois homens em cavalos . Através de uma comunicação precária , pois estavam perto de um rio e não se ouviam, Canessa recebeu e devolveu uma pedra enrolada em um papel . Sua resposta foi: " Venho de um avião que caiu nas montanhas. Sou Uruguaio . Nós estamos andando há 10 dias . Temos um amigo ferido, lá. No avião, ainda há 14 pessoas vivas e feridas. Precisamos sair daqui rápido e não sabemos como. Não temos comida . Estamos muito fracos . Quando vocês vêm para nos pegar . Por favor, nós mal podemos andar. Onde estamos ? " Quando foram resgatados , eram apenas 14 deles . Que vivem até hoje (2024 ). Estavam todos desnutridos , desidratados e com geladuras . Em 22 de dezembro , mais de 2 meses após a queda, foram resgatados. 2 helicópteros de resgate os conduziram à capital chilena . Os helicópteros enfrentaram um clima terrível . De volta a, primeiro, o Santiago e, depois, Montevideo , foram recebidos com festa (embora o Chile vivesse uma ditadura ), alegria , médicos , jornalistas e comida . Assistam a essa situação retratada nos filmes : Alive , Estados Unidos, 1993 , de Frank Marshall; Sociedade da Neve , Espanha, 2023 , de J. A. Bayona.

  • Stravinsky - A Sagração da Primavera - Análise

    A companhia Ballets Russes , de Sergei Diaghilev teve tanta importância na música moderna que ele merecia uma condecoração. Foram eles que contrataram Igor Stravinsky (1882-1971), em 1909 para compor a música do balé " O Pássaro de Fogo ". Depois, " Petrushka ", em 1911 e, finalmente " A Sagração da Primavera ", de 1913. Diaghilev também é responsável pela composição de " Daphnis et Chloé " e " La Valse ", de Maurice Ravel ; " Jeux ", de Claude Debussy ; " Chout ", " Le Pas D´Acier " e " Le Fils Prodige ", de Sergei Prokofiev . E muitas outras. Inclusive de Stravinsky. A Sagração da Primavera, que você vai encontrar como The Rite of Spring ou Le Sacre du Printemps foi o mais famoso, porque sua estreia foi um escândalo de proporções tais que mais de um século depois ainda se fala nela. Existem filmes sobre a peça, como Riot at the Rite , da BBC e livros, como A Sagração da Primavera , de Modris Eksteins , um interessante panorama da primeira metade do século XX tendo como ponto de partida a fatídica noite de estreia da peça; e várias tentativas de montar o balé com a coreografia original , que foi perdida durante a 1ª Guerra Mundial . Essa coreografia era de Vaslav Nijinsky , e o cenário e figurino de Nicholas Roerich . Depois que ela se perdeu e a guerra acabou, nos anos 20, Léonide Massine fez uma coreografia nova. Falo sobre a estréia mais adiante. Mas se você ouvir a peça dá pra entender mais ou menos o que aconteceu. É uma música bárbara , sem um tema , uma melodiazinha pra se assobiar . Em alguns momentos não dá pra saber se os músicos estão tocando certo ou errado ... E a coreografia era igualmente impactante : os bailarinos pulavam com os joelhos dobrados , os pés para fora ou, bizarramente, para dentro e faziam expressões bizarras com as mãos e o rosto. Abaixo, uma ótima interpretação da peça por Simon Rattle (que rege de cor) e a Sinfônica de Londres . A Obra Eu quero ser justo. " O Pássaro de Fogo " era uma música bem moderna, mas com muita reverência a Rimsky-Korsakov e o nacionalismo russo. Agora, " Petrushka ", essa já era revolucionária, com polirritmia, orquestração contraintuitiva, politonalidade e tudo que se pode imaginar. Mas encasquetaram com a Sagração. Porque ela foi o ápice do movimento moderno , apresentava inovações que a maior parte do público não poderia compreender. Ou poderia, mas não queria. O fato é que duas semanas depois dessa estreia em Paris , a estreia em Londres foi um sucesso, Stravinsky saiu carregado. A Orquestra A orquestra pedida é enorme, com: 3 Flautas 1 Flautim 1 Flauta contralto 4 Oboés (2 alternando para corne inglês ) 3 Clarinetes (1 alternando para Clarone ) 1 Clarinete em Mi bemol (Soprano) 1 Clarone (Baixo) 4 Fagotes (1 alternando para Contrafagote ) 1 Contrafagote 8 Trompas (2 alternando para Tubas de Wagner ) 5 Trompetes 3 Trombones 2 Tubas Tímpanos (2 tocadores) Vasta percussão Violinos 1 Violinos 2 Violas Violoncelos Contrabaixos A História Stravinsky queria fazer uma obra que falasse dos primórdios da civilização . Uma tribo estava tendo dificuldades no plantio , então resolve fazer uma oferenda ao Deus da Primavera . Essa oferenda consiste em um sacrifício oferecido pelos velhos sábios: as virgens da aldeia iriam dançar . Aquela que caísse três vezes seria a eleita . Ela deveria dançar até a morte , num clímax musical de tremer os ossos. Parte 1 - Adoração da Terra I. Introdução (35s) Começa já com um fagote tocando estranhamente notas agudas, que seriam muito mais confortáveis em um corne inglês . A harmonia é totalmente cromática , quando entram as outras madeiras, chega a dar tontura caso você queira se situar. Essas notas estão fora da alçada usual do fagote, e o efeito que Stravinsky queria era esse mesmo , o músico se esforçando para tocar. Hoje eles tocam com facilidade , devido às evoluções de técnica e de construção do instrumento . Stravinsky chegou a dizer que era bom que a passagem subisse um semitom a cada década, para voltar a ser difícil . II. Augúrios da Primavera: Dança dos Adolescentes (4m05s) Uma dança vigorosa sobre um famoso acorde octatônico (um Mi bemol com 7ª sobreposto a um Mi maior ). Aqui, ouve-se o Stravinsky obsessivo , os ritmos martelando na nossa cabeça. III. Jogo de Captura (7m13s) Os jovens da tribo fazem uma brincadeira de captura com as virgens . IV. Danças de Roda da Primavera (8m29s) Repare nos trinados , eles são tão longos que os instrumentistas têm que se alternar de maneira imperceptível. O destaque é para o clarinete em mi bemol , a requinta . Depois, temos uns acordes arrastados nas cordas até que uma explosão da percussão faz voltar esse motivo nos metais (10m30s ). E a requinta volta com seu tema, junto com a flauta contralto . V. Jogos de Tribos Rivais (12m03s) A música já está bem agitada , a escrita para metais e madeiras é primorosa . VI. Procissão dos Sábios (13m50s) Começa com o canto das Tubas de Wagner (tocadas por dois trompistas ). O clima é tenso e há forte polirritmia . VII. O Sábio (14m37s) Como a apresentação do sábio-mor , temos as notas longas dos fagotes . Reparem no acorde arrepiante (14m56s ). Ele abençoa a terra. VIII. Dança da Terra (15m04s) Mais uma vez a música se agita , com a predominância nos metais . É interrompida bruscamente para dar início à parte 2 . Parte 2 - O Sacrifício IX. Introdução (16m35s) As madeiras fazem uma cama para notas erradias das cordas . Acontecem pequenas explosões . Repare na melodia do violino solo ( 18m08s ) e nos trompetes com surdina ( 18m43s ). X. Círculos Misteriosos de Jovens Garotas (21m10s) As jovens começam uma brincadeira misteriosa, dançando em círculos . Uma delas cai a primeira vez ( 21m33s ), e uma segunda (23m29s ) e, por fim, a terceira (23m49s ). Ela é a eleita . Seu destino é selado por acordes acompanhados pelos tímpanos . XI. Glorificação da Eleita (24m08s) Uma dança febril em glorificação da eleita. XII. Evocação dos ancestrais (25m44s) O tiranossauro mata o estegossauro ... digo... Elas fazem uma breve dança para evocar os ancestrais . XIII. Ritual dos Ancestrais (26m28s) Com a subida cromática do corne inglês e a participação da flauta contralto , a jovem escolhida é incumbida de cuidar do velho sábio . XIV. Dança do Sacrifício (30m05s) A virgem dança até a morte na frente dos velhos sábios . É uma dança intensa , a orquestração é magnífica e brutal . No último acorde ela cai e as luzes se apagam . A Estreia Foi estreada em 29 de maio de 1913, no Théâtre Champs-Élisées com Pierre Monteux regendo a orquestra . Existiam dois tipos de público de balé : os ricaços , que adoravam música bonita e exuberante ; e os modernos , que estavam interessados nessas quebras de paradigmas . Dá pra imaginar que o primeiro grupo ficou escandalizado , vaiando a música do princípio ao fim, muitos deles indo embora sem pestanejar. A orquestra mal conseguia tocar , tamanho era o barulho , e Nijinsky tinha que contar o tempo da coxia em voz alta para os bailarinos. O teatro piscava as luzes tentando equilibrar o público. Stravinsky e sua Sagração da Primavera entravam de maneira assertiva para os livros de história . Gravações Importantes As duas gravações históricas mais importantes envolvem dois regentes diretamente ligados a essa estreia. Pierre Monteux e o próprio Igor Stravinsky , que gravou a obra diversas vezes. Mas existem tantas . Faço menção honrosa a Danielle Gatti , Herbert von Karajan , Bernard Haitink, George Solti, Iván Fischer e Theodor Currentzis . Mas essas são as melhores : - Pierre Monteux com a Orquestra Sinfônica de Boston - Como se trata de Monteux, temos uma noção aproximada de como a música soava desde sua concepção (aliás, não exatamente : a versão que hoje se toca é sempre uma revisão feita por Stravinsky em 1948 ). Essa gravação é de 1957 e toca a versão de 1948 da partitura. https://open.spotify.com/intl-pt/album/2pFq0zeE0WchpawxuWlVMV?si=sHb5C-LVQHi-WbLzU6q0hw - Igor Stravinsky com a Orquestra Sinfônica da Columbia (da gravadora Columbia) - De 1960 , é a melhor gravação de Stravinsky da obra. Ainda que um pouco sutil demais, é um importante registro. https://open.spotify.com/album/2nWCKSMlkbPpzetHTlKu4a?si=bBm3WWq0SU6qjtHwMvi2xA - Claudio Abbado regendo a Sinfônica de Londres - É a minha gravação de cabeceira . Vigorosa e com um som muito bom . É de 1976 . - Paavo Järvi regendo a Sinfônica NHK de Tóquio - O som dessa gravação recente ( 2021 ) é espetacular . Foi uma surpresa para mim, embora Järvi sempre nos traga leituras excepcionais de tudo. - Esa-Pekka Salonen com a Filarmônica de Los Angeles - Uma gravação audiófila , de uma eletricidade ímpar. De 2006 . Salonen também a gravou com sua atual orquestra, a Sinfônica de San Francisco , em 2023 . - Pierre Boulez conduzindo a Orquestra de Cleveland - A primeira gravação de Boulez da peça, de 1969 é considerada exemplar. - Ernst Ansermet , com a Orchestre de la Suisse Romande - Ansermet fez uma gravação clássica e excepcional , como sempre. É de 1957-58 . - Mariss Jansons regendo a Orquestra da Rádio Bávara - Gravação ao vivo , sensacional . A melhor orquestra e o maior regente. De 2018 . - Vassily Petrenko com a Filarmônica Real de Liverpool - Praticamente todas as gravações de Vassily com a Filarmônica Real da terra dos Beatles é perfeita . Esse disco todo é dedicado a obras que se referem à primavera, com Printemps , de Debussy e Spring , uma cantata de Rachmaninoff . É um dos grandes discos modernos, de 2017 . - Yannick Nézet-Séguin , com a Orquestra de Filadélfia - Outro disco que é todo impressionante . É dedicado ao maestro Leopold Stokowski , que regeu a Sagração para o filme Fantasia (Disney, 1940) e contém várias de suas transcrições de obras de Bach e da Sagração . Foi lançado em 2013 . - Riccardo Chailly , com a Orquestra de Cleveland - Outra referência. Uma das mais adoradas pelos amantes de Stravinsky . De 1987 , está no disco 2 da compilação do link . https://open.spotify.com/album/2yskaJYHG3dtY8hT5OJ9ge?si=OPHEXXQISQKLGptt1Rg_Hw Seu comentário é bem-vindo! Aqui , uma lista de nossas postagens . E boa tarde !

  • Franz Liszt - Tudo sobre, mais um pouco e muito mais

    Por Rafael Torres Andei falando pouco sobre o compositor Romântico húngaro Franz Liszt por aqui. Ser compositor envolve muitas habilidades. Um bom compositor domina todas elas ou então é um prodígio sem igual em uma ou duas. Eu costumava não ter paciência para com a sua música, por detectar nela muito virtuosismo gratuito. Muitas cascatas e tufões de notas sem propósito. Estava, acho, errado. À medida em que fui escutando, percebi que sua obra (essencialmente para Piano) era exatamente como eu pensava, tinha demonstrações de habilidade em excesso. Mas percebi, também, algo que não notara antes. Que não há nada de errado com isso, pelo menos na dosagem que ele usa. A técnica pianística teve um salto evolutivo incrível em Paris nos anos 1830, onde viviam Liszt, Frédéric Chopin, e Sigismund Thalberg, cada um trazendo peças cada vez mais intrincadas. O objetivo era esse, o de tornar tocar piano uma coisa sempre mais complexa, com novos problemas, novas soluções, novas invenções e idiomatismo. Ouso dizer que, antes dessa geração, e se excetuarmos algumas das últimas sonatas para Piano de Ludwig van Beethoven (1770-1827) e de Franz Schubert (1797-1828), todas as peças escritas para teclado, especialmente as Barrocas, como as de Domenico Scarlatti, Girolamo Frescobaldi, François Couperin e Johann Sebastian Bach, podiam ser facilmente transpostas para outro instrumento ou combinação de instrumentos. Já ouvi discos inteiros de obras de Bach tocadas no Acordeon. Ou por Trios de Cordas, ou Quartetos. É absolutamente impossível fazer isso com a obra de Liszt. Ou, pelo menos, com algumas obras. E isso, descobrir novos efeitos no instrumento, expandir suas possibilidades expressivas e explorar todos os seus recursos é, por si só, uma arte. E quando, além de toda a parafernália técnica, a música tem significado, beleza e expressão, como é o caso da maior parte da obra de Liszt, vejo que esta não é apenas válida. É essencial. Franz Liszt (1811-1886) Liszt Ferencz, nascido em 1811, foi batizado Franciscus, mas lhe chamavam de toda variação desse nome: François, Franz, Francesco etc. Ele veio ao mundo em um período de fertilidade musical na Europa central. Em 1809 nasceu Felix Mendelssohn, em 1810 nasceram Frédéric Chopin e Robert Schumann e, em 1813, Richard Wagner e Giuseppe Verdi. Liszt nasceu na vila de Doborján, no Reino da Hungria, que era dominado pelo Império Austríaco (dos Habsburgo). Doborján hoje é a cidade de Raiding, na Áustria. Sua língua nativa era o alemão. Ele não sabe falar magiar até hoje. Quando meu irmão estava na faculdade de Piano em São Paulo, percebeu que as pessoas pronunciavam "Licht", em vez de "List". Na verdade, isso é uma dúvida eterna. Há quem diga que seu bisavô, chamado Sebastian List, quando migrou da Alemanha para a Hungria, estranhou que todos o chamassem de Licht. Daí descobriu que adicionando o z os húngaros passavam a pronunciar List, como ele queria. Então, Liszt = List, certo? Ah, se fosse tão fácil... Porque há, também, quem defenda tese completamente oposta. Que o z foi adicionado justamente para que se pronunciasse Licht. Saibam os paulistas e os cariocas que, no Ceará, biscoito é o doce e bolacha, o salgado. Pois bem. Após um concerto juvenil (aos 9 anos) extremamente bem sucedido, ele e seu pai, que viera lhe ensinando até ali, angariaram dos aristocratas embasbacados dinheiro suficiente para custear sua educação musical por seis anos. Eles não pestanejaram e partiram para Viena. Ali, ele teve aulas de piano com Carl Czerny e de composição com Antonio Salieri. Parêntesis para Beethoven Conta-se (ele contava) que, aos 11 anos, já morando em Viena e estudando com Carl Czerny (o último e mais famoso aluno de Piano de Beethoven), pediu a este que arranjasse um encontro na casa de Beethoven - isso foi três anos antes da morte dele. E que, após muita insistência, o mestre consentiu. Liszt tocou para ele. O grande compositor ouviu (aliás, acho que não escutava mais nada) e perguntou se o garoto conseguiria tocar uma Fuga do Cravo Bem Temperado de Johann Sebastian Bach transpondo para o tom que ele escolhesse. Liszt o fez e arrancou uma fala ambígua do alemão: "Um diabinho, esse aqui!". Liszt não gostou. Fecha Parêntesis Em 1823, já tendo lucrado horrores com concertos, ele e a família se mudam para a França, mas Liszt não pôde entrar no famoso Conservatório de Paris por ser estrangeiro. Acabou estudando com Anton Reicha e Ferdinando Paer. De qualquer forma, a partir de março de 1824, sua carreira começou de vez. Ele fez uma turnê aplaudidíssima na França e na Inglaterra e, nos seguintes 4 anos, foi recebido com veneração em cada cidade por que passou. O Revés Em 1827 seu pai, Adam Liszt, morreu em Paris. A família continuou vivendo lá, mas Liszt, o Franz, não queria mais dar concertos. Sobrevivia de aulas que dava de uma ponta a outra da cidade. Apaixonou-se por uma moça, mas a família vetou o casamento. Começou a beber e fumar. Parou de dar aulas e recorreu à religião, quase transformando-a em um vício. O que começou a tirá-lo dessa fossa foi a descoberta, através de um amigo violinista, da música de Franz Schubert, por quem a admiração de Liszt, Romântica até a raiz, passou a ser apaixonada, febril. Ele jamais abandonaria o hábito de transcrever para o Piano obras escritas para Voz e Piano (os chamados Lieder, plural de Lied) por Schubert, que falecera em 1828. Se a música já era para Piano, Liszt dava um jeito de trabalhar nela, transformando-a em um quase Concerto para Piano e Orquestra. No final de 1830 ele conheceu o grande compositor Hector Berlioz e sua espetacular Sinfonia Fantástica, que muito o impressionou. Em 1832 ouviu o compositor e violinista Nicolò Paganini. Foi quase um golpe. O virtuosismo do homem que diziam ter feito pacto com o diabo era a coisa mais impressionante que Liszt já tinha visto. Ele tocava o impossível. E o impossível passou a ser a meta de Liszt. Ele se tornaria o Paganini do Piano. Cada um desses músicos, Berlioz, Paganini, Beethoven, Schubert e Frédéric Chopin, que conheceu por essa altura, projetou em Liszt traços que formariam sua personalidade musical, porque ele absorvia e internalizava o que o interessava com muita facilidade. A Lisztomania Em 1839 ele volta aos palcos. Pelos seguintes oito anos foi criada a imagem de um artista com talento ilimitado, quase sobrenatural, além de (ele era considerado) belo, fazendo mocinhas despencarem no chão ao som de tantas notas por segundo quanto um ser humano era capaz de produzir. Era uma Beatlemania. "O primeiro pop star", gostam de dizer os que gostam de música pop e não conseguem perceber que a música de Liszt é a antítese desta. Mas, se não podemos comparar, como vamos compreender? Bom, ocorre que o termo "mania", no século XIX, tinha uma conotação diferente da atual. Medicamente, não se compreendia por que as pessoas agiam assim (desmaiando, idolatrando, com taquicardia e suores) à simples menção de Liszt. Uma luva jogada por ele era uma relíquia de valor inestimável. Amontoavam donzelas no chão a disputar ferozmente pela peça. A Lisztomania começou em Berlim, em 1841 e recebeu esse nome alguns anos depois, em 1844, por Heinrich Heine, em Paris. Críticos de música, diários de fãs e cartas trocadas nos dão pistas sobre a dimensão sem precedentes que a febre alcançou. Algo como o que veríamos no século seguinte, durante a Beatlemania (paralelo inevitável), mas, dessa vez, com precedentes. Lisztomania nada mais era que o frenesi, a febre causada pelo compositor e pianista Franz Liszt. Uma histeria observada especialmente em mulheres. Começou, como dito, em Berlim, 1841, e foi descrita em Paris, 1844. Como diz a Espanholinha do YouTube (canal Música con Historia, canal utilíssimo): foi a primeira vez que a sociedade viu um grupo de pessoas entrar em total frenesi por ver uma pessoa em cena. A Espanholinha do YouTube: Os paralelos com a Beatlemania não terminam aí. Mas deveriam. Que, no máximo se comparasse a Beatlemania à Lisztomania, mas não é o que se faz. Levanta-se um breve interesse por esse tal de Licht quando o assunto vem à tona e pronto. A cultura popular o esquece, porque a cultura popular esquece. De qualquer forma, não considero o assunto de tamanho interesse para deliberar mais. A Música de Liszt A música para Piano de Liszt parece surgir da tentativa do compositor de produzir a peça mais difícil antes de ser impossível. Ela traz novos problemas técnicos, ou aumenta a dificuldade de problemas técnicos já superados. Mas não só. Qualquer pateta pode escrever música difícil de tocar. É fácil. Mas você corre o risco de ultrapassar o domínio da dificuldade e entrar no domínio do impossível. Entre o muito difícil e o impossível há um limiar. É nesse limiar que Liszt trabalha. E necessário ter muita intimidade com o Piano, horas e horas de estudo e vasto conhecimento do repertório existente para encravar na sua personalidade esse modo de compor. Além disso ele compôs obras orquestrais e até corais. E o mais importante: sua música não era vazia. Certamente, música nenhuma precisa de tantos artifícios quanto ele usa para ser expressiva. Mas o que ocorre de maneira muito usual é que os compositores, ao trabalhar suas ideias e colocar no papel mil escalas em prestíssimo e em semifusas, escalas cromáticas em terças, o chamado "efeito das três mãos" e oitavas em rápida sucessão, perdem facilmente a essência da música. Não Liszt. Ele sabia utilizar todos esses recursos a favor da expressividade e, muitas vezes, do enredo, já que grande parte de sua obra é programática. A obra abaixo é considerada, não só a mais difícil de Liszt, mas uma das mais exigentes de todo o repertório. Confira a russa Valentina Lisitsa a desbravando. Chama-se "O Contrabandista". O Fim Liszt parou de se apresentar em público em 1847, atendendo um conselho de sua amada, a princesa Carolyne zu Sayn-Wittgenstein. Tinha 36 anos. Em 1860 foi morar com a princesa (que, casada, não conseguira o divórcio) na Itália, e permaneceram unidos até a morte, que veio com alguns meses de diferença entre os dois. Franz Liszt morreu em julho de 1886, em Bayreuth, na Baviera, onde sua filha Cosima, viúva do compositor Richard Wagner, tentava organizar um novo Festival de Bayreuth. Naquela cidade, Wagner havia dirigido, em 1876, o mesmo festival. O Festival de Bayreuth permanece hoje como um dos mais importantes festivais de Ópera do mundo. A obra A vasta obra do compositor pode ser dividida em vários pares: Transcrições e Originais; para Piano e para Orquestra; Música Programática e Música Pura etc. Exemplos de todas elas você pode encontrar na PlayLiszt abaixo. Seu comentário é crucial! Aqui, uma lista de nossas postagens. E boa tarde!

  • Robert Schumann - Perfil - Estilo, Época e Principais Obras

    Por Rafael Torres Compositor absolutamente atormentado, nobre, caótico, generoso e genial. Nasceu em Zwickau, no Reino da Saxônia, atualmente Alemanha, em um período a que nasceram muitos compositores importantes do Romantismo - Frédèric Chopin (1810), Franz Liszt (1811), Felix Mendelssohn (1809), Richard Wagner (1813) e Giuseppe Verdi (1813). Schumann começou a compor aos 6 anos. Era apaixonado, acima de tudo, por literatura - seu pai era livreiro, escritor e editor. Seu autor favorito era o romancista e contista alemão Jean Paul, por quem era obcecado. Começou a estudar piano e teoria musical aos 7, com um professor local, e desde então desenvolveu um fascínio inesgotável pela música. Dentre seus compositores favoritos estavam Ludwig van Beethoven, Franz Schubert e Felix Mendelssohn, que foi uma criança prodígio... Schumann começou a escrever literatura aos 14. Em 1826, seu pai, que encorajava suas aspirações musicais, morreu. A mãe, que nunca o apoiou na música, o pressionou até que, em 1828 ele partiu para Leipzig (Alemanha) para estudar direito. Em Leipzig ele foi a um concerto de uma jovem pianista, Clara Wieck. Tão entusiasmado ficou que começou a estudar piano com seriedade, com o professor Friedrich Wieck (pai dela), que o garantia que ele se tornaria o maior pianista da Europa. Acontece que Robert sofreu um acidente - ninguém sabe ao certo, mas conta-se que ele possuía um mecanismo para fortalecer os dedos fracos (anelar e mínimo) que acabou prejudicando os outros dedos da mão direita (outra tese diz que isso ocorreu porque ele tinha distonia). Por isso ele teve que abandonar o piano e se voltar à composição. Virou também crítico musical, com seu jornal Neue Zeitschrift für Musik. Nesse jornal ele leva adiante uma antiga e problemática ideia: a de escrever encarnando dois personagens, Florestan, que representa seu lado passional e febril, e Eusebius, representando seu lado meditativo e sonhador (havia um terceiro, chamado Master Raro, de que pouco se fala, representando o equilíbrio entre os dois). Ele assinava suas críticas, algumas vezes, como um ou outro. Florestan e Eusebius também podem ser observados em sua obra musical, que frequentemente alterna entre os dois humores. Um piano febril e um contemplativo, O problema, eu já conto. Por volta de 1835 ele começa a se apaixonar pela filha do professor de piano, a Clara. Ela tinha 15 anos (isso era normal na época) e já era uma pianista consagrada, tendo feito sua estreia aos 9 anos. Clara viria a se tornar uma das mais prestigiadas pianistas da Europa, além de ser compositora. Mas a carreira de compositora ainda era mal vista pela Europa machista de então, de modo que ela publicou poucas e inocentes obras. Em 1940 eles se casaram, depois de uma batalha jurídica com o pai dela (que só voltaria a falar com eles 3 anos depois). O casamento foi próspero, ela estreou muitas das peças dele. Mas a verdade é que a vida em família pesou sobre a carreira dela. Eles tiveram 8 filhos, dos quais 7 vingaram. Quando Robert morreu, em 1856, Clara passou a ter que cuidar da família sozinha. Mas os Schumann eram um casal unido, respeitado, querido e prestigiado. O problema é o seguinte: é a saúde mental de Robert. Sua irmã Emilie havia cometido suicídio, e ele mesmo sentia uma aflição mental desde 1833, que foi evoluindo para possivelmente o que chamamos de depressão bipolar (aculture-se aqui - link externo). Muitos estudos médicos, da época e mesmo de hoje, feitos através de cartes e diários, não conseguiram definir o que Schumann tinha. Mas, o que quer que fosse, continuava a se agravar. A própria Sinfonia Nº 2, de que já tratamos, nos traz sinais de um possível transtorno bipolar, com seus momentos líricos, calmos, contrastando com outros de saudade e solidão. É como se Florestan e Eusebius lutassem para ver quem toma conta da mente de Robert. O fato de ele usar dois personagens tão distintos pode ser sinal do transtorno. Por um tempo, nos anos 1840 e 1850, ele pareceu se recuperar, viajando com a família e tendo momentos de lazer. Em 1850 a família se muda para Düsseldorf, onde Schumann tinha sido contratado como regente. Acontece que ele era notoriamente um péssimo regente, e logo passou a ser hostilizado pelos músicos da orquestra. Não durou um ano. Em 1853, ele voltariam a viver em Düsseldorf. No final dos anos 1840 a família sofre a perda do primogênito Emil, bem como dos amigos irmãos Fanny e Félix Mendelssohn. Em 1853,bate à porta dos Schumann o jovem compositor Johannes Brahms (aos 20 anos e trazendo consigo as partituras de suas três Sonatas para Piano). Os três criam intimidade, mútua simpatia e admiração rapidamente e Brahms passa alguns meses vivendo com eles. Schumann escreveu em seu jornal: "é o escolhido"... "destinado a dar expressão aos tempos da mais elevada e ideal maneira"... De fato, Brahms viria a se tornar uma espécie de sucessor musical de Beethoven. Mas em 1854 Robert teve uma piora significativa. Ele via demônios e ouvia constantemente a nota lá. Em certo ponto, ele relatou que a nota lá se transformara na mais angelical das músicas, só para depois, em uma certa noite, acordar de madrugada alegando que o fantasma de Mendelssohn ou Schubert havia lhe ditado um tema dos espíritos. Ocorre que tal melodia era do próprio Schumann, ele já havia escrito obras com o tema, como o Concerto para Violino. São os sinais definitivos de que ele estava enlouquecendo. No mesmo ano de 1854 ele tentou suicídio, atirando-se no rio Reno. Sua carta de despedida fecha assim: "Irei encerrar agora. Está ficando escuro". É internado em um Sanatório em Bonn e impedido de ver Clara, pois o médico o considerava perigoso. Ela tem que confiar as visitas ao grande amigo do casal, Brahms, que fielmente dá notícias frequentes. Em 1856, Clara é autorizada a vê-lo. Ele a reconhece e diz umas poucas palavras. Dois dias depois, Robert morre de pneumonia. A obra de Schumann é uma das mais importantes na tradição erudita europeia (tradição que já tinha estudiosos nas Américas). É uma música colorida, de belos temas e de escrita impecável. Assim como o compositor era atormentado, a música descrevia sentimentos (por vezes febris), em vez de ações, um dos ideais do Romantismo. Forestan e Eusebius são frequentemente evocados, muitas vezes os dois em uma mesma peça. Uma parcela enorme da sua obra é para piano solo. Além disso ele escrevia música de câmera, música sinfônica (algumas aberturas, além das 4 sinfonias), três Concertos (para Piano, para Violoncelo e para Violino) e até um pouco de música coral e alguns lieder (canções). Suas peças mais conhecidas incluem: Papillons (para piano); Kinderszenen (para piano); Fantasia em Dó Maior (para piano); Kreisleriana (para piano); Estudos Sinfônicos (para piano); Carnaval (para piano); Álbum para a Juventude (para piano); 3 Sonatas para Piano; Concerto para Piano em Lá Menor (para piano e orquestra); Concerto para Violoncelo em Lá Menor (para violoncelo e orquestra); Quarteto com Piano (para piano e trio de cordas); Quinteto com Piano (para piano e quarteto de cordas); As 4 Sinfonias. Por conta de todos esses percalços, Shumann, que era um músico e compositor renomado e respeitado, jamais atingiu a fama. Clara, sim. Sua esposa viajava por toda a Europa levando seu piano elegante e técnico. Demorou a vingar como compositora (e ainda demora), mas como pianista chegava a ser tida como uma das maiores da Europa. Aproveite a Playlist do Spotify abaixo, que contém virtualmente toda a obra de Robert. Na ordem - Piano, Câmara - Sinfônica. Seu comentário é crucial! Aqui, uma lista de nossas postagens. E boa tarde!

  • Schumann - Sinfonia Nº 2

    Por Rafael Torres Esta postagem, em vez de dilatada, foi dilacerada, deu origem a duas. Esta é a Segunda Sinfonia, em Dó Maior, Op. 61, do compositor Romântico alemão Robert Schumann (1810-1856) e foi composta entre 1845 e 1846. Schumann é autor de 4 Sinfonias, mas eles as compôs em ordem diferente da que conhecemos hoje. Sinfonia Nº 1 "Primavera", em Si Bemol Maior, Op. 38. Publicada em 1841. Sinfonia Nº 4, em Ré Menor, Op. 120. Publicada em 1841. Sinfonia Nº 2, em Dó Maior, Op. 61. Publicada em 1846. Sinfonia Nº 3 "Renana", em Mi Bemol Maior, Op. 97. Publicada em 1851. Ela é, portanto, a penúltima que ele escreveu. A obra A 2ª Sinfonia, em Dó Maior, Op. 61, é uma obra suavemente serena, como se Eusebius tivesse sequestrado a pena. Florestan, com seus arroubos, pode ser ouvido várias vezes na música, mas não chega a dominá-la. Essa leveza da obra não condizia com a vida real de Schumann, que se achava cada vez mais perturbado. Foi quando escrevia o final dela que apareceu a nota lá, dentro de sua cabeça, para não sair nunca mais. Ah, é importante ressaltar que, em 1845, justo quando começava a compor a sinfonia, Schumann reformulou seu método de compor. Agora, ele não escrevia sentado ao piano, coisa que ele fazia antes, mesmo que só uma mão lhe servisse. Essa nova abordagem pode ter aparecido como fruto dos intensos estudos de contraponto que havia feito com Clara. Contraponto é a arte de escrever duas ou mais melodias para soarem ao mesmo tempo, sendo necessária, para isso, uma série de regras e parâmetros. O estudo do contraponto, cuja prática vinha desde o fim da Idade Média, fortalece, entre outras coisas, o ouvido interno (a capacidade de "escutar" uma partitura na mente, apenas imaginando os sons). Uma influência presente, ainda que sutil, é a da obra de Beethoven (que havia morrido em 1827). Não necessariamente na concepção melódica ou na escrita orquestral. Na verdade é na narrativa (essa palavra tão apoucada atualmente é deveras útil quando se trata de música), sendo que, segundo alguns, a Segunda Sinfonia pode ser parente da 5ª Sinfonia de Beethoven. Especialmente no concernente à ideia da superação de um destino adverso, chegando ao triunfo. Ela ganhou reconhecimento após a morte do compositor, no século XIX, mas se tornou uma peça esquecida, no século XX. Atualmente volta a ganhar amantes, atraídos pela interessante ligação que há entre os movimentos e pela beleza deslumbrante do terceiro movimento. Schumann sempre foi e ainda é considerado um mal orquestrador. Mas temos que lembrar que a Orquestra de Leipzig era pequena, se comparada às de hoje. Os regentes atuais tentam antepor a escrita para sopros (às vezes um par de cada madeira) a 50 instrumentos de corda, e aí se queixam da falta de equilíbrio (os sopros não soam com clareza). O fato é que, se o maestro trouxesse um naipe de cordas menor, mais apropriado, o equilíbrio chegaria naturalmente. Dito isto, ainda assim, sua orquestração pode ser considerada um tanto sem cor. Falta de manejo orquestral, dobrar um instrumento com outro instrumento certo. Desde a época de Beethoven, era norma dobrar Flautas com Oboés e Clarinetes com Fagotes, além de milhões de outras minúcias. Era como se a música orquestral de Schumann fosse um esboço, cuja orquestração ele talharia mais tarde. No caso da Sinfonia Nº 2, a orquestra que ele determina contém: 2 Flautas, 2 Oboés, 2 Clarinetes, 2 Fagotes, 2 Trompas, 2 Trompetes, 3 Trombones, Tímpanos, Violinos 1, Violinos 2, Violas, Violoncelos e Contrabaixos. Lembrando que qualquer compositor raramente especifica quantos de cada instrumento de corda ele quer. Em seguida farei uma postagem sobre uma obra realmente bem orquestrada e vou me referir a essa como comparativo. Não considero essa sinfonia (e nenhuma outra dele) mal orquestrada. Na verdade, acho que ele faz um belo estrago com a orquestra que pediu. É só uma orquestração tímida. A obra dura cerca de 40 minutos e tem 4 movimentos. É uma sinfonia quase cíclica. Uma obra cíclica é aquela em que o material temático de um movimento invade os outros movimentos. No caso dessa sinfonia, os temas dos três primeiros movimentos vão se acumulando e são todos invocados no quarto movimento. Abaixo, temos a NDR Elbphilharmonie Orchester (Orquestra do Elphilharmonie, uma sala de concertos lindísssima - link externo - e moderna em Hamburgo) sob a regência do maestro alemão Christoph von Dohnányi. 1º Movimento - Sostenuto Assai - Allegro, ma non Troppo Introdução Marcada Sostenuto Assai (muito sustentado), a introdução (que é longa e toma 1/3 do movimento) se inicia com o preguiçoso acordar dos Trompetes e das Trompas, com fanfarras ascendentes, em uma linha de notas longas, enquanto as cordas, em duplo piano, pp (baixinho), tocam uma linha um pouco mais ágil. Esta é uma das passagens traiçoeiras da orquestração de Schumann: em pianissimo, os trompetes e as trompas soam bem mais alto do que as cordas, de maneira que cabe ao regente equilibrar a intensidade dos dois naipes. Isso não chega a ser problema para as super orquestras e os super regentes da atualidade, mas, no começo do século XX, era uma barreira tão forte, que os regentes tinham que trabalhar à exaustão (o compositor tcheco-austríaco Gustav Mahler chegou a escrever uma edição reorquestrada por si, que ele considerava mais satisfatória - arredondando as arestas e polindo as texturas, vou recomendar uma gravação no final). A melodia amorfa dos metais continuará ao longo da música. Shumann aproveita para lançar algumas dissonâncias pontuais (35s) de muito efeito. Flautas e Oboés irrompem (1m27s), enquanto a música vai ganhando corpo, desta vez com verdadeiro aspecto de música coral de J S Bach. Aos 2m20s a música começa a ganhar mais substância, a partir das notas curtíssimas das madeiras, metais, Violinos 1, Contrabaixos, Violoncelos e Tímpanos. Agora, a partitura instrui aos músicos: Un poco più vivace (um pouco mais vivo). A orquestra vai, pouco a pouco, se tornando mais densa e assertiva. Perceba que as cordas, agora, fazem alusões às fanfarras dos metais (2m48s). Uma sessão repleta de notas em staccato (a partir de 3m02s), seguida (3m34s) por uma em que os Violinos assumem. A passagem está marcada stringendo (acelerando gradualmente) e nos conduz à exposição. Exposição (3m48s) A exposição já começa lançando o saltitante Tema A (3m48s), nos Violinos 1 e 2, Fagotes e Clarinetes, logo agregando os Oboés. Repare nas frases de resposta das Flautas, Oboés e Fagotes (a partir de 4m07s), com material que já foi apresentado na introdução. Aos 4m17s temos, nos Violinos 1 e 2, Violas e uma Flauta, o Tema B, que começa com uma subida cromática de 4 notas também derivada da introdução. Nesse ponto fica claro que a introdução é mais que uma introdução, antecipando muitas das ideias do primeiro movimento. O Tema C aparece logo em seguida (4m42s), nos Violinos 1, Flautas e Oboés e tem caráter de tema de transição, passageiro, mas não o é. Aos 4m53s aparece novamente o Tema A, ao que se segue uma repetição da exposição. A repetição termina aos 6m15s, abrindo espaço para o desenvolvimento. Desenvolvimento (6m15s) Aqui Schumann vai desenvolver, trabalhar, os três temas. De cara (6m15s), o Tema A é pincelado, pelos Clarinetes e Fagotes. Após uma breve e bela divagação (6m20s), com arpejos dos Primeiros Violinos e notas intrusas do Oboé e da Flauta, o Tema B aparece, em outra tonalidade, aos 6m32s, nos Violinos 1 e Flautas. Tudo em tons mais escuros, de caráter enigmático. A aparente ingenuidade que os temas apresentavam no início se revela um sentimento mais profundo, no desenvolvimento. Perceba, aos 7m04s, que o Tema C vem com seu caráter completamente transformado, como é típico de Schumann. Sutilmente e muito mais lento do que o conhecemos, o Tema C (7m27s) pode ser percebido várias vezes nessa sessão, assim como sua inversão (as notas são ascendentes), que acaba por se transformar no Tema B. Aos 7m48s ouvimos uns fortepianos (o músico ataca a nota forte, mas logo diminui para piano) que lembram claramente a música de Beethoven. Aos 8m10s ele pode ser ouvido com mais clareza nos Violinos. Aos 8m22s temos o Tema A alterado, nas madeiras. Aos 8m38s nós o temos em tom menor. Aos 8m46s vários temas e melodias menores do movimento começam a ressurgir. Um crescendo da orquestra (9m24s) finaliza o desenvolvimento e já se conecta à recapitulação. Recapitulação (9m27s) Recapitulação é o momento em que o compositor traz todos os temas sem grandes alterações. Começando em triunfo, ela traz primeiro o Tema A (9m27s), nas madeiras (flautas, oboés, clarinetes e fagotes), com respostas das cordas. O Tema B aparece aos 10m09s, nos Violinos 1 e 2 e Violas, com respostas das madeiras. Aos 10m34s surge o Tema C, nos Violinos 1 e Flautas. Coda (10m52s) O Coda é a finalização do movimento, podendo ser curto (especialmente no Barroco) ou comprido (especialmente no Romantismo). Esse é relativamente longo. Ele começa com uma descida das cordas (10m52s) que faz a música modular (mudar de tom). Logo os Clarinetes e Fagotes (10m54s) fazem uma melodia. Surge, então, nas Flautas e Oboés, uma referência ao Tema A (11m06s). A partir daí a música ganha a instrução Con Fuoco (com fogo), tornando-se mais agitada. Ouvimos, aos 11m34s, nos Trompetes, o pequeno motivo da introdução. A partir dos 11m45s somos conduzidos ao final da música, que termina alegre e ruidosa, sendo a utilização dos metais mais presente aqui. 2º Movimento - Scherzo: Allegro Vivace (12m55s) O Scherzo é um movimento Romântico que substituiu o Clássico Minueto. Tal como o Minueto, ele tem partes A-B-A (nesse caso A-B-A-C-A). A Parte B é chamada de Trio, e o de Schumann tem dois desses trios. A diferênça do Scherzo para o Minueto é que ele é bem mais dinâmico e rápido que o outro. Os dois costumam ter compasso de 3 tempos (3/4), mas este aqui apresenta um compasso de 2 tempos (2/4). Scherzo Os Violinos 1 já aparecem apresentando o Tema Principal do Scherzo, baseado no Tema B do primeiro movimento (4m17s). Lembra que esse Tema B tem uma subida cromática? Agora, essa subida é transformada e apressada. O Tema logo é repetido (13m07s), com respostas das madeiras. Como esse movimento não tem desenvolvimento, Schumann trata de variar a melodia (13m24s). Trio 1 Observe que, agora, a música adquire outra personalidade, mais sossegada e burlesca. O Tema do primeiro trio surge (14m32s) nas Flautas, Oboés, Clarinetes e Fagotes, em quiálteras e staccato, com respostas das cordas. Aos 14m42s os Violinos 1 e 2 e as Violas tocam uma frase lírica e, aos 14m54s, as madeiras retomam seu Tema. A frase lírica volta, aos 15m05s, nos Violinos 1. Aos 15m15s as quiálteras do Scherzo começam a voltar, nos Violinos 1. Aos 15m24s o Tema ressurge nas madeiras e aos 15m59s os Violinos 1 o reproduzem, mas de maneira lânguida, com ritenuto (desacelerando) e um pouco modificado. Aos 16m05s ocorre o contrário: a música começa a acelerar. O Tema do Scherzo (16m10s) pode ser ouvido nas cordas antes que acabe o Trio, em crescendo. Scherzo Aos 16m11s voltamos a ouvir o Scherzo, com o Tema tocado pelos Violinos 1. Ele é tocado à guisa de variação da primeira vez. Trio 2 Iniciando aos 17m07s e bem mais lírico do que o Trio 1, este aqui se trata de uma homenagem a Johann Sebastian Bach, sendo escrito em forma Coral (as aulas de Contraponto tiveram serventia). Ele usa um tema conhecido commo BACH (assim chamado por conter as notas si bemol, lá, dó e si natural, que, na nomeclatura alemã, são chamadas de B, A, C, H). Você pode escutá-lo discretíssimo nos Violinos 1, aos 17m14s. Esta sessão é absurdamente linda e bem escrita. A homenagem a Bach é perceptível, o trecho é um Coral (escrita Coral é aquela em que vários instrumentos tocam, simultaneamente, notas diferentes, mas obedecendo mais ou menos o mesmo ritmo e a mesma harmonia do instrumento que faz a primeira voz, ou primeira linha melódica). Durante uma intervenção dos Oboés (18m06s), os Violinos 1 começam a ameaçar o Tema do Scherzo. A célula de semicolcheias ascendentes vai cada vez mais tomando conta até explodir no Scherzo. Scherzo Aos 18m23s o Scherzo volta para sua derradeira apresentação, novamente nos Violinos 1. Trata-se de uma variação ainda mais viva que as outras. Aos 19m20s começa o Coda, todo baseado no Tema do Scherzo (ainda que conte com uma aparição do motivo da fanfarra de metais da introdução do primeiro movimento, aos 19m38s), e que termina a peça de maneira assertiva. 3º Movimento - Adagio Espressivo (20m12s) Parte A O movimento lento da sinfonia é a coisa mais linda em que eu posso pensar. É o único da obra que não é em Dó Maior, sendo em um apropriado Dó Menor. Ele é em forma ternária (A-B-A), embora alguns estudiosos o enxerguem em forma sonata e eu mesmo prefira pensar nele como em forma ternária. Começa com os Violinos 1 e 2 já tocando o Tema Principal, marcado cantabile, (20m12s), que se baseia nas suas 4 primeiras notas, mas segue por quase 8 compassos. Ele será repetido incontáveis vezes, mas nunca cansa. Schumann aplica uma técnica de variação singular: o Tema permanece intacto, enquanto seu acompanhamento é que vai se transformando. O Primeiro Oboé assume, adicionando seu belo e melancólico timbre, com a mesma melodia (20m46s), sendo que, aqui, a variação é o belo contracanto do Primeiro Fagote. Aos 21m39s as Trompas intervêm com um motivo simples, respondido pelas madeiras. No final da sua parte as duas Trompas fazem belos arpejos (21m50s). Aos 22m11s as cordas respondem, começando pelos Contrabaixos e Violoncelos, mas logo seguidos pelo restante do naipe. Os Violinos 1 e 2, especialmente, tocam várias vezes o motivo do arpejo das Trompas, oferecendo coesão temática ao movimento. A Tema A logo retorna, sendo declamado pelo Primeiro Clarinete (23m), entrecortado pela Primeira Flauta e o Primeiro Fagote e utilisando também o Primeiro Oboé. A ideia de usar, frequentemente, apenas um instrumento de cada madeira (ele tem dois de cada) confere uma atmosfera mais desolada, sendo a sonoridade individual dos instrumentos muito bonita. Nos movimentos rápidos, convém usar o par, pois a orquestração costuma ser mais pesada e, só assim, eles são escutados com clareza. Neste trecho o Tema tem várias alterações tonais (modulações). A partir dos 23m36s os Violinos 1 tocam o motivo do arpejo das Trompas, antes de desembocar no Tema (23m56s) em registro agudo, com os Violinos 2 apoiando uma oitava abaixo. Termina com trinados (duas notas repetidas alternadamente com rapidez), enquanto o Primeiro Clarinete e o Primeiro Oboé repetem o Tema. Parte B A Parte B é um fugato, que é como a gente chama um trecho curto e sem o rigor de uma Fuga, mas que tem elementos de uma. Inicia-se no Violino 1, em staccato, em uma frase relativamente comprida (25m01s), derivada dos arpejo ascendente das Trompas. Aos 25m10s os Violinos 2 começam o mesmo Tema, mas as notas estão um grau acima. Aos 25m25s as Violas retornam, executando a frase no mesmo tom dos Violinos 1, e aos 25m42s entram os Violoncelos, no mesmo tom dos Violinos 2. O fugatto continua, mas se transforma em acompanhamento para o Tema A, atacado pela Primeira Flauta, Primeiro Oboé e Primeiro Clarinete. Parte A Assim que o Tema A entrou, retornamos à Parte A, ainda que ecos do fugatto continuem a ser ouvidos nas cordas (25m50s). O Tema A aparece, mais uma vez, variado - lembrem-se, no acompanhamento, que é derivado do fugato, e na estrutura tonal. Aos 26m25s a música modula para Dó Maior, a tonalidade geral da sinfonia. Esta passagem tem caráter de Coda e se baseia na parte final do Tema A, mas o Coda em si começa um pouco mais tarde. Aos 27m12s o Tema A soa novamente, no Primeiro Clarinete, alternando com Primeiro Oboé, Primeiro Fagote e Primeira Flauta. Aos 27m46s os Violinos 1 fazem o motivo do arpejo das Trompas. Aos 28m08s os Violinos 1 e 2, oitavados, executam o Tema A e as madeiras agudas respondem. O delicado Coda começa aos 29m12s, fechando a música de maneira sutil e com as derradeiras aparições do saudoso Tema A, com um acompanhamento e toda sua configuração modificados, mas sem jamais perder seu apelo emocional. A última vez em que ele aparece é nos Violoncelos e Contrabaixos, aos 29m25s. O movimento termina em Dó Maior. Schumann posicionou o movimento lento da sinfonia, de maneira estratégica, de forma a o atepor ao alegre e festivo finale, o quarto movimento. O contraste é gritante. 4º Movimento - Allegro Molto Vivace (30m34s) O Finale é o movimento mais criticado. Barulhento, um tanto artificial, de estrutura confusa, sua forma sonata não é bem explicada... É rapidíssimo, com a Mínima valendo 170 BPM. Sua alegria e seu bom humor podem ser explicados por uma melhora de Schumann, que disse que, desde que começara a escrever a sinfonia, nunca tinha se sentido tão bem. Vou escrever em tópicos, que é como fica mais ágil e interessante. Começa com uma rápida escala de Clarinetes, Fagotes e cordas (30m34s) (essa escala é remanescente da que começa o seu Concerto para Piano) e um teminha que, a princípio, pertence às madeiras; É o Tema A. Ele lembra o Tema principal da Sinfonia Nº 4 "Italiana", de Felix Mendelssohn, nas Flautas e Oboés, aos 30m37s, repetido, aos 30m40s pela orquestra em tutti; Aos 31m12s, uma rápida e virtuosística passagem dos Violinos 1, auxiliados pelas Flautas e demais madeiras; Temas de todos os três movimentos anteriores reaparecem aqui. Considerações finais A peça foi estreada em novembro de 1846, por Felix Mendelssohn, regendo a Orquestra do Gewandhaus de Leipzig. Mas foi escrita em Dresden, para onde a família Schumann havia se mudado em 1844 atrás de bons ares. Ainda assim, o período de composição foi marcado pela dilatação dos problemas de Robert, sobretudo a depressão, a agonia e a quase certeza de que estava enlouquecendo. Mas a Sinfonia não transparece isso nem um pouco. O que temos é uma doce melancolia ecoando no belíssimo terceiro movimento. Esse movimento se baseia principalmente em um motivo de quatro notas, que aparece o tempo todo. Às vezes eu considero este movimento a música mais bonita já escrita. É uma obra quase cíclica (aquela em que os temas de um movimento vão aparecendo nos outros). Na verdade é assim: ela vai acumulando temas dos três primeiros movimentos e os traz de volta no quarto. Fazendo isso, o compositor ganha credibilidade e autoridade, já que ele precisa encontrar temas que se encaixam tanto nos movimentos a que pertencem quanto nos movimentos que os repetirão. Eu, particularmente, acho que a forma cíclica é muito mais valorizada do que deveria, sendo mais simples de fazer do que se costuma pensar. É comum atribuir ao terceiro movimento grande influência sobre o Adagietto da 5ª Sinfonia de Gustav Mahler (de 1902) e sobre o Largo da 5ª Sinfonia de Dmitri Shostakovich (de 1937). Eles têm uma espécie de parentesco metafísico. Gravações recomendadas - Christian Thielemann, regendo a Orquestra Philharmonia - Esta surpreendente gravação de Thielemann é obviamente favorecida pela execução excepcional da Philharmonia, além de sua maravilhosa sonoridade. O maestro também vai muito bem, extraindo da orquestra energia, onde cabe, robustez ou delicadeza. O disco contém, também, a Abertura Manfred e o Konzertstück para 4 Trompas e Orquestra. Acho superior à (também excelente) gravação mais recente (2019) de Thielemann com a Staatskapelle de Dresden. É de 1997. - Leonard Bernstein, com a Filarmônica de Nova Iorque - Muito superior à indulgente gravação de Bernstein com a Filarmônica de Viena, mais de 20 anos posterior, esta gravação, de 1962, é cheia de méritos. Sua contagiante energia nos movimentos 1, 2 e 4, além da impressionante expressividade do terceiro movimento, a tornam inesquecível. O som gravado também é ótimo, especialmente na remasterização desse CD (confira a capa abaixo), que também traz a Sinfonia Nº 1 "Primavera". - Riccardo Chailly, regendo a Orquestra do Gewandhaus de Leipzig - Conforme prometido, aqui está uma gravação da Sinfonia Nº 2 de Schumann reorquestrada pelo compositor Romântico Tardio e tambem regente Gustav Mahler, feitas no começo do século XX. Muitos preferem essa versão, mas existem poucas gravações, prevalecendo amplamente as gravações com a orquestração original. Normalmente eu não recomendaria as reorquestrações, que tendem tornar as peças extravagantes, mas, especificamente na Segunda Sinfonia, as mudanças são pequenas, limitando-se a amenizar os problemas de textura e equilíbrio instrumental e, ao mesmo tempo, tornar a obra mais grandiosa. E graças a um trabalho muito delicado de Chailly e da orquestra (a mesma com que Mendelssohn estreou a peça), que executam tudo com convicção, ardor e uma concepção perfeita, o trabalho é muito bem-sucedido. A gravação é de 2007 e foi lançado em 2009 um disco duplo contendo as 4 Sinfonias. - Thomas Dausgaard, com a Orquestra de Câmera Sueca - Uma gravação seca e de sonoridade grave, o que não é ruim. A sinfonia se beneficia muito com uma orquestra de câmera, que tem o mesmo número de instrumentos de sopro (os que o compositor pediu) e uma quantidade substancialmente reduzida de cordas. O resultado é que a gravação sai bem mais leve, os rítmos são tocados com absoluta precisão. O talento do regente dinamarquês Dausgaard de controlar as dinâmicas e os andamentos é sobrenatural. É de 2005, mas a compilação com as 4 Sinfonias e uma porção de Aberturas foi lançada em 2019. E, como sempre, o/a encorajamos a comentar. Para comentar, continue rolando abaixo e encontre a faixa vermelha, abaixo de "Posts Relacionados". Nosso dever é difundir a música clássica, e não sabemos exatamente se estamos conseguindo. Às vezes parecemos rádio-amadores, transmitindo para as galáxias solitárias (possivelmente solitárias). Seu comentário faria muita diferença. Pode ser de pirraça, de elogio, de desabafo, de conversa. O que for. Agradecemos. Algumas postagens importantes Uma opção para o dilema de tocar ou não Música Russa nos concertos hoje em dia. Um "pequeno" Glossário de termos musicais. Aqui, 10 Livros Sobre Música Clássica Que temos com os vestidos das pianistas? Compreensão Musical Como Ouvir Música Clássica Vamos Entender a Orquestra Sinfônica Música Clássica é Elitista? Preconceito Contra Música Clássica O Movimento HIP (Interpretações Historicamente Informadas) César Franck, o Aluno dos seus Alunos Rachmaninoff ou Rachmaninov? Como se pronuncia e escreve? Música Calada, A Arte de Federico Mompou As Maiores Orquestras do Mundo Vol. 1 - Filarmônica de Berlim Vol. 2 - Orquestra do Concertgebouw, Amsterdã Vol. 3 - Filarmônica de Viena Perfil da pianista portuguesa Maria João Pires, postagem da nossa correspondente prodígio lusitana Mariana Rosas, do Blog Pianíssimo (www.pianissimo.ovar.info). Perfil da violinista francesa Ginette Neveu, falecida aos 30 anos em um acidente de avião, em 1949. Perfil do pianista brasileiro Nelson Freire, considerado um dos maiores dos tempos modernos e falecido em 2021. 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  • Bach: Variações sobre o Nada: Passacaglia e Fuga em Dó Menor

    Por Rafael Torres Venho apresentar uma obra instrumental do compositor germânico Johann Sebastian Bach (1685-1750), o pai de todos os músicos (e pai, mesmo, de um bocado). Trata-se de uma peça para Órgão, chamada Passacaglia e Fuga em Dó Menor, BWV 582. Bach era um organista prodigioso, muito mais famoso por essa função do que pela de compositor. E sua obra para Órgão é vastíssima. A Passacaglia e Fuga é obra de inspiração sobrenatural, comparável àquela da Chaconne em Ré Menor, para 1 Violino. Ou da Missa em Si Menor, ou da Paixão Segundo São Mateus. É uma obra infinita, que você, por mais que contemple, não esgota. Passacaglias e Chaconnes são formas com histórico e formato final muito parecidos. Passacaglia: composição em compasso ternário, cuja principal característica é o fato de toda a elaboração musical estar sujeita a uma sequência de baixos (conjunto de notas graves, repetido sucessivamente, que pressupõem ou, ao menos, sugerem uma harmonia). O que denuncia claramente que a música se trata de uma Passacaglia é justamente o caráter repetitivo de sua sequência de baixos. Chaconne: com significado virtualmente igual, inclusive o compasso em três tempos, tende a ser construída sobre uma sequência de acordes, em vez de baixos. Estes não deixam dúvida sobre qual é a harmonia, pois são eles mesmos e suas interações que a constroem. Mas a principal característica das duas formas é que progridem de uma maneira que lembra a de Variações (do formato Tema com Variações). Mas ao contrário das Variações, não existe, na Chaconne e na Passacaglia, um Tema. São variações sobre o nada. E, em alguns casos, sobre tudo. No Tema Sobre Variações ainda existe, geralmente, algum elemento comum entre variações avizinhadas. Na medida em que a música progride, essas relações são cada vez mais borradas e seu vínculo cada vez mais tênue. Já na Passacaglia e na Chaconne, esse vínculo, se existir, é breve e não progressivo. Há, ainda, outras derivações do Tema com Variações. Famosamente, a Rapsódia, que não precisa ter nada a ver com Variações, mas, quando tem, como no caso da Rapsódia Sobre um Tema de Paganini, de Sergei Rachmaninoff (o tema é de Paganini, trabalhado por Rachmaninoff), a música fica livre a fazer o que quer do seu tema. Na altura da famosa variação 18, já nem o temos mais, mas sua gloriosa inversão. Pois bem, dessa forma, os compositores realmente habilidosos, como Bach, conseguem dar à música uma boa unidade, um certeiro organismo. Você verá que, por vezes, a cada nova seção, uma certa tensão vai se fazendo sentir. E a mesma tensão é quebrada de súbito, surpreendendo o ouvinte com uma passagem mais leve. Primeiramente, acompanhe boas versões que se podem encontrar no YouTube. Como a de Reitze Smits, da Sociedade Bach da Holanda, ao Órgão. Ou a de Andrew Litton regendo a Royal Philharmonic Orchestra, na orquestração de Ottorino Respighi. Por fim, num consorte de Violas da Gamba, no angelical som do conjunto apresentado pelo Early Music Alberta. A Obra A Passacaglia e Fuga em Dó Menor é, teoricamente, já que a datação não é possível, uma obra da juventude de Bach, entre seus 21 e 28 anos de idade. Nessa época ele morava em Mühlhausen, onde havia obtido o emprego na Blasiuskirche (Igreja de São Brás), como organista. Mühlhausen lhe oferecia um melhor salário que o de seu período anterior, em Arnstadt, além de músicos e cantores mais capacitados e, talvez ainda mais importante, a presença de sua prima em segundo grau, Maria Barbara Bach. Que já era Bach. Quando casaram, meses depois da chegada do compositor à cidade, ela apenas manteve o nome. Isso foi no período anterior ao de Köthen, meu favorito. Em 1708 ele vai (pela segunda vez) para Weimar, onde permanece até 1817, que é quando assume o cargo em Köthen (1717-1723). Nesses anos, Maria Barbara morre e Sebastian casa com a jovem soprano Anna Magdalena. Daí, parte para Leipzig, em seu último e mais conhecido período, da Paixão Segundo São João, da Paixão Segundo São Mateus, dos Oratórios de Natal, de Páscoa e da Ascenção, da Missa em Si Menor e até das Variações Goldberg. Em Leipzig ele permaneceu até a morte, em 1750, deixando uma penca de filhos (10), muitos deles músicos importantes, e a viúva, também musicista, Anna Magdalena Bach. A Passacaglia e Fuga, como o nome diz, contém uma Fuga, apresentada sem nenhuma pausa, e que responde por pouco menos de metade comprimento da obra. Trata-se de uma Fuga Dupla, em que o compositor habilmente aproveita a primeira metade do ostinato da Passacaglia como seu Primeiro Sujeito (como é chamado o Tema da Fuga) e a segunda metade como Segundo Sujeito. Há, ainda, um Contra-Sujeito, de importância similar à dos dois Sujeitos. Eles aparecem algumas vezes ao mesmo tempo, sobrepostos. Por exemplo, Sujeito 1 na Segunda Voz, Sujeito 2 na Terceira Voz e Contra-Sujeito na Primeira Voz. Ao mesmo tempo. Quando isso ocorre novamente, de os três sujeitos serem ouvidos juntos, eles já não estão na mesma combinação de vozes, fazendo dessa Fuga uma Fuga com Permutação. São termos técnicos, não essenciais para a apreciação, mas eu os revelo a fim de atiçar a curiosidade de alguns de vocês para que pesquisem sobre o assunto, dando início à cadeia do conhecimento. Mais sobre as formas Passacaglia e Chaconne A Passacaglia originou-se no século XVII, na Espanha, país que também lhe emprestou o nome, formado pelas palavras Pasa (atravessar, passar) e Calle (rua). Isto é: com certa velocidade, como o caminhar usado para se a atravessar uma rua. Iniciou-se como um interlúdio instrumental a ser tocado entre Árias (cantadas). A Chaconne, que, embora adotemos o nome francês, também é espanhola, originalmente era um ritmo forte e alegre, tocado por Violões e Castanholas. Apesar desse berço espanhol foi na Itália que ambos gêneros ganharam características e convenções formais, como a de se basear em uma harmonia ou baixo repetidos, em ostinato (palavra italiana para obstinado, teimoso). Já no tempo de Bach, os dois termos haviam perdido a distinção e eram usados indistintamente. Havia, apenas, a vaga noção de que a Chaconne era mais leve, em tom maior (mas a de Bach, que já vimos, é em tom menor), e a Passacaglia era mais lenta, grave, em tom menor. Devo admitir que enxergo em Passacaglias e Chaconnes uma certa pensão ao enigmático. Uma majestade inerente, talvez. Cheguei a pensar que, para parecer genial, bastava ao compositor criar uma delas. Mas vejam o caso do compositor Romântico norueguês Johan Halvorsen (1864-1935): sua Passacaglia e Sarabanda sobre um Tema de Händel é uma peça virtuosística, para apenas um violino e uma viola, sem qualquer comprometimento em manter a mística da forma. O próprio Barroco Georg Friedrich Händel (1685-1759), em sua Suíte para Teclado Nº 7, incluiu uma Passacaglia (a mesma que inspirou Halvorsen) que, se é bonita, parece não sair do lugar. Parece seguir uma fórmula um tanto vulgar de se fazer variações, além de seguir uma harmonia óbvia. É justamente então que triunfa Sebastian Bach. Sua música, presa ao obstinado baixo, que jamais irá mudar, consegue ter movimento, peso e uma narrativa (peço desculpas por essa e pelas próximas vezes em que usarei o termo ‘narrativa’: é muito caro à música) irresistíveis. Sem contar que a sequência de baixos que ele criou é riquíssima, abrindo possibilidades criativas e exóticas. Mesmo com a tentativa apenas bonitinha de Händel, a Passacaglia já era levada à sério demais, desde muito antes, no tempo do proto-barroco pelo italiano Girolamo Frescobaldi (1583-1643). Sozinho, ele praticamente reformulou o gênero espanhol, atribuindo-lhe características essenciais, como a quase obrigatoriedade de a música ser em compasso ¾, ou seja, com três tempos por compasso, a repetitividade do baixo e a semelhança, na progressão melódica, com a da Variação. Ao lado da de Bach, a Passacaglia mais célebre e poderosa que conhecemos é a que faz o último movimento da Sinfonia Nº 4, em mi menor, de Johannes Brahms (1833-1897). Celebrada quase universalmente (até mesmo pelo moderno Arnold Schoenberg, que considerava Brahms um antiquado), desde que foi apresentada, muito já foi dito sobre ela: “sombriamente intelectual” (maestro Constant Lambert), “é como um poço escuro; quanto mais se olha para ele, com mais força as estrelas brilham de volta” (Eduard Hanslick, crítico musical radicado em Viena, contemporâneo de Brahms), “uma das maiores obras orquestrais desde Beethoven” (Donald Tovey, musicólogo inglês) etc. Essas duas peças, as Passacaglias de Brahms e de Bach, sintetizam a súplica humana ante a morte. Ou algo parecido. A propósito, quando se diz a Passacaglia de Bach, é a essa que estamos a nos referir. O mesmo vale para a de Brahms. Gravações sugeridas Karl Richter – ao órgão; Gravada em 1978 e lançada em CD triplo dedicado a Bach, em 2005, é delicada e cuidadosa. Extremamente musical, é a que recomendo dentre as originais ao órgão, talvez ao lado da de Werner Jacob. Orquestra de Filadélfia, regida por Yannick Nézet-Séguin, na orquestração de Leopold Stokowsky; Em 2013 a Orquestra de Filadélfia e seu maestro Yannick Nézet-Séguin lançaram o CD Stravinsky Stokowski - The Rite Of Spring / Bach Transcriptions, com algumas das famosas transcrições do antigo titular da Orquestra. Orquestra Filarmônica da BBC, regida por Leonard Slatkin; A orquestração de Ottorino Respighi é mais certeira. Feita por um compositor, em vez de um regente. A Filarmônica da BBC está ótima. Tão boa quanto esta é a de Gerard Schwarz e a Sinfônica de Seattle. Risto Lauriala, ao piano, na adaptação de Eugéne D’aubert. É uma transcrição muito bem feita, das mãos de um especialista. A gravação, do pianista finlandês Risto Lauriala, de 1996, é moderna e tem um som excelente. Seu comentário é muito valioso! Aqui, uma lista de nossas postagens. E boa tarde!

  • Saint-Saëns - Sinfonia Nº 3 "Com Órgão" - Análise

    Por Rafael Torres O compositor francês Camille Saint-Saëns (1835-1921) foi responsável pela escrita de várias obras que hoje nos são queridas, como o Rondó Caprichoso para Violino e Orquestra, alguns Concertos para Violino, para Violoncelo e para Piano e o popular Carnaval dos Animais. E por muitas mais (o total é de cerca de 320) que não nos são oferecidas para escutar. Versaremos sobre a Sinfonia Nº 3, "Com Órgão", em Dó Menor, Op. 78, composta em 1886 por Camille Saint-Saëns. É, de longe, a mais popular dentre suas três. E, como para toda a obra de Saint-Saëns, existem duas reações comuns a ela: é considerada melodicamente rica demais para ser boa; ou é realmente boa e os críticos é que ficam apavorados ao ver uma boa melodia. A segunda é a correta. A sinfonia tem a peculiaridade de incluir um Órgão (um Órgão Sinfônico, muito parecido com o Órgão de Igreja - a diferença é que ele fica na sala de concerto). As salas de concerto grandes costumam ter esse instrumento, que custa por volta de 500.000 dólares, infiltrado em sua arquitetura. Camille Saint-Saëns (1835-1921) Compositor Romântico Tardio (esteve ativo a partir da segunda metade do Século XIX), nascido em 1835, em Paris, Saint-Saëns era também pianista, organista e regente. Foi uma criança prodígio, demonstrando muito talento. Aos dois anos ele manifestou ouvido absoluto e já tirava músicas de ouvido ao Piano. Existem três grandes compositores crianças prodígio (os mais famosos): Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), Felix Mendelssohn (1809-1849), e Camille Saint-Saëns. E não há consenso sobre qual era o mais precocemente dotado. Mas o famoso crítico e escritor Harold C Schonberg escreveu que nós costumamos esquecer que Saint-Saëns foi o maior prodígio de todos, incluindo Mozart. O pai dele morreu com um ano de casado, de modo que Camille vivia, em Paris, com sua mãe e sua tia, ambas viúvas. E foi essa tia, Charlotte Masson, que começou a ensiná-lo a tocar Piano apropriadamente, se bem que de forma amadora. Mas aos 7 anos ele passou para um professor de Piano com formação, Camille-Marie Stamaty. Posteriormente passou a estudar, também, composição, com Pierre Maleden, que o incutiu o amor pela música de Johann Sebastian Bach. Estudou também Órgão, com François Benoist. Sua mãe, Clémence, tinha receio de que o filho ficasse famoso muito novo. De modo que, apenas aos 10 anos, Camille deu seu primeiro concerto, na Salle Pleyel, uma das mais prestigiadas de Paris. Tocou o Concerto para Piano Nº 15 de Wolfgang Amadeus Mozart e o Concerto para Piano Nº 3 de Ludwig van Beethoven. O primeiro é considerado um dos mais difíceis de Mozart, mas isso não diz muito. A técnica pianística no Séc. XVIII ainda estava em seu início. Mas sua música exige um toque e uma articulação muito afiados. E o jovem Saint-Saëns escreveu de punho próprio a cadência para o primeiro movimento e outra para o terceiro. Já o de Beethoven, pode ser considerado um concerto virtuosístico (até hoje) especialmente na cadência do primeiro movimento. Na verdade, conceber que um menino de 10 anos tocou aquilo é assombroso. Na escola ele ainda se interessava por literatura francesa, grega, romana e matemática. E geologia, arqueologia, botânica, entomologia (especificamente borboletas), acústica e ciências ocultas. Ainda na infância, Saint-Saëns era capaz de tocar qualquer uma das 32 Sonatas para Piano Solo de Beethoven de memória. São quase 10 horas de música! Aos 13 anos Camille ingressa no Conservatoire de Paris, onde estuda Órgão (sob um conselho retrógrado do diretor, que pensava que Órgão daria mais oportunidades - em igrejas - ao menino do que Piano). Estuda também composição e tem Charles Gounod como mentor. Acabou ganhando o primeiro Prêmio de Órgão do Conservatório e se candidatou ao Prix de Rome de 1852, em que o Conservatório dava ao estudante uma bolsa para estudar música por um ano em Roma. Mas esse ele não conseguiu. Na verdade, compor sempre foi c Aos 18 anos, ao terminar o conservatório, é nomeado organista da igreja Saint-Merri. Curiosamente, é quando começa a compor com mais seriedade, escrevendo sua Sinfonia Nº 1, que lhe rendeu o prêmio da Société Sainte-Cécile. Ele ainda tem mais um cargo de organista de igreja, mas já começa a crescer como compositor, chegando a receber, de um editor, uma boa oferta pelos seus Seis Duos para Piano e Harmônio (um instrumento de teclado semelhante a um Órgão diminuto, projetado para uso doméstico). Em 1867 acontece a histórica Exposition Universelle de Paris, um evento enorme dedicado a expor todos os tipos de arte. Saint-Saëns participa com a cantata Les Noces de Promethée e ganha o Primeiro Prêmio da Exposição Universal de Paris. Em 1870 eclode uma guerra, a sangrenta Guerra Franco-Prussiana. Enquanto isso, a Comuna de Paris, um grupo revolucionário, se propõe a tirar o poder da França do então exilado imperador Napoleão III, neto de Napoleão Bonaparte. Camille se retira, com alguns amigos, para a Inglaterra a pretexto de ir à Exposição Universal de Londres. Em 1875 ele se casa com Marie-Laure Truffot e sai da casa da mãe. Ele tinha 40 anos e ela, 19. Tiveram 2 filhos, que morreram na infância, e o casamento só durou até 1881. Foi um matrimônio extremamente infeliz. Alguns biógrafos sugerem que isso foi agravado por uma suposta homossexualidade adormecida no compositor, mas nada é certo. Em 1875 ele vai a São Petersburgo, na Rússia, apresentar suas obras e reger, junto ao pianista Anton Rubinstein (não confundir com o polonês do Século XX Arthur Rubinstein) e é elogiadíssimo. Em 1881 o reconhecimento finalmente chega. Ele é eleito para a Academia de Belas Artes e, posteriormente, recebe a Ordem Nacional da Legião de Honra, além de compor freneticamente, inclusive a suíte O Carnaval dos Animais (sua obra mais famosa, para 11 instrumentistas), que só foi publicada após sua morte, pois ele temia que a leviandade da peça, que é uma sátira, prejudicasse sua carreira. Saint-Saëns prospera muito, viaja muito (27 países) e vem a morrer em 1921. Sua reputação é mista. É um compositor de obra substancial, mas só se toca um punhado delas. Ainda quando estava vivo foi alvo de críticas insensíveis por parte, por exemplo, de Hector Berlioz: "Ele sabe tudo, mas lhe falta inexperiência". As obras do compositor incluem: 3 Sinfonias (das quais apenas a 3ª, "Com Órgão", é frequentemente tocada); 12 Óperas, das quais Sansão e Dalila é a única conhecida; 5 Concertos para Piano e Orquestra, dos quais apenas o 2º e o 4º costumam ser tocados; 2 Concertos para Violoncelo e Orquestra, dos quais o 1º é considerado um dos grandes concertos para este instrumento; 3 Concertos para Violino e Orquestra, dos quais apenas o 3º é rotineiramente tocado; 1 Concerto para Órgão e Orquestra, que não é tocado; A suíte O Carnaval dos Animais, sua obra mais conhecida; A Introdução e Rondó Caprichoso para Violino e Orquestra, também muito tocada; A Dança Macabra, para orquestra, também uma de suas obras mais bem sucedidas; Muitíssima Música de Câmera, que vem sendo redescoberta. Não se pode dizer que é um compositor esquecido, algumas obras suas são muito tocadas e seu nome é reconhecido popularmente, mas o que há é uma grande negligência com sua música. Críticos esculhambam, por exemplo, a 1ª Sinfonia, então as orquestras têm receio de colocá-la no programa. E o público costuma ser suscetível à opinião dos críticos, principalmente de obras que jamais escutaram. Preciso dizer que os críticos fazem isso por sua própria incompetência: não sabem lidar com música simples, com uma beleza melódica quase folclórica e superlativa e com orquestração relativamente modesta.(mesmo que impecável, tecnicamente). Quando aparece música assim, pode esperar que vem um deles se queixar. Querem Bruckner, Mahler, obras grandiosas, complexas, titânicas, com 2h de duração. Finalmente, ele não era ateu, acreditava em Deus. Mas não acreditava no cristianismo e em nenhuma outra fé. Sinfonia Nº 3, "Com Órgão" Muita gente chama essa sinfonia de "Órgão", mas o fato é que o próprio Saint-Saëns a apelidou de "Avec Orgue", que é "Com Órgão". Formalmente é Sinfonia Nº 3, "Com Órgão", em Dó Menor, Op. 78. Foi composta em 1886. A ideia de uma Sinfonia com Órgão é bastante incomum e essa sinfonia pode ser confusa, por um único fato: os movimentos são interligados. Sobre eles, são 4 movimentos, e o Órgão aparece em 2 deles. Mas para aumentar a confusão, muita gente a divide em 2 movimentos. Porque o 1º e o 2º movimentos são juntos, daí há um corte e o 3º e o 4º são grudados novamente. Ou seja, você escuta 2 grandes blocos de música (movimentos 1 e 2 - movimentos 3 e 4). Como naquela época já se experimentava fazer movimentos interligados, pensou-se que Saint-Saëns havia feito o mesmo. Mas não, no caso da 3ª Sinfonia, os 4 movimentos são completamente distintos e de personalidades singulares. O Piano também aparece, em vários trechos, de duas formas: a 2 mãos e a 4 mãos (em cujo caso aparece um músico da parte das percussões para ajudar o colega). A instrumentação completa, bastante grande, para uma obra romântica, contém. 3 Flautas (1 alternando para Flautim); 2 Oboés; 1 Corne Inglês; 2 Clarinetes; 1 Clarinete Baixo; 2 Fagotes; 1 Contrafagote; 4 Trompas; 3 Trompetes; 3 Trombones; 1 Tuba; Tímpanos, Pratos, Bombo Sinfônico, Triângulo; Piano a duas e a quatro mãos; Órgão; Violinos I; Violinos II; Violas; Violoncelos; Contrabaixos. Foi encomendada e estreada pela Royal Philharmonic Society, de Londres, que estivera encantada com sua ópera Henrique VIII e o ofereceu £30 pela nova obra (que hoje em dia equivale a 4.000 Euros). A primeira apresentação foi em 19 de Maio de 1886, no St James Hall, em sua sala principal, que abriga cerca de 2000 pessoas. Foi regida pelo compositor. Após a morte do compositor húngaro Franz Liszt (1811-1886), Saint-Saëns, que tinha por ele muita admiração e amizade, dedicou a sinfonia à sua memória. É uma música extremamente bem orquestrada e cheia de temas vivos e lindos. É rica e o Órgão é usado de maneira frugal. Mas seu som confere uma verdadeira plenitude sonora à obra. O Órgão é perfeitamente audível, mas o que ele faz não é mais do que tocar gordos acordes para preencher bem os nossos ouvidos. A sinfonia é parcialmente cíclica, fazendo uso de temas do começo, no fim. Aliás, com bastante categoria. Paralelos Imaginários com Beethoven Se ouvirem sobre paralelos e analogias entre esta sinfonia e a 5ª Sinfonia de Ludwig van Beethoven (1770-1827), e que isso foi feito deliberadamente por Saint-Saëns, ignorem, pelo bem do ofício de analisar obras de Música Erudita. Os musicólogos se impressionam com o fútil fato de serem ambas em Dó Menor e terminarem em Dó Maior, como se fosse uma progressão da adversidade ao triunfo (coisa que só existe na sinfonia de Beethoven). Tudo bem, a de Saint-Saëns também percorre um caminho harmônico de Dó Menor a Dó Maior, e ele provavelmente sabia que isso suscitaria comparações, mas, provavelmente, apenas se divertiu com isso. A música é o que é, está escancarado. Se ele quisesse fazer alusões à obra de Beethoven, tê-lo-ia feito de maneira que ficasse perceptível. Não acho que utilizaria sutileza ou comporia algo que soa completamente diferente da obra que quer homenagear. Assista abaixo à hr-Symphonieorchester (Sinfônica da Rádio de Frankfurt), regida por Riccardo Minasi e com Iveta Apkalna no Órgão. Por sinal, preciso comentar que essa execução é incrível, beira a perfeição. Esta orquestra está se tornando uma das melhores do mundo. 1º Movimento (32s) Adagio – Allegro Moderato Vou fazer a análise dividindo-a em 4 movimentos. Faz mais sentido para mim. Saint-Saëns fez, claramente, quatro movimentos distintos e muito bem identificáveis. Só que ele resolveu que a música não pararia entre o Primeiro e o Segundo. E nem entre o Terceiro e o Quarto, de modo que algumas pessoas preferem dividir só onde há corte. Mas para mim são 4 movimentos e pronto. Introdução - Adagio Ela começa com uma trepidante introdução, insegura, com os dois naipes de Violino e o das Violas fazendo um pequeno encadeamento de dois acordes que causa arrepio. Ocorre uma resposta solitária do Primeiro Oboé e, depois, os acordes retornam, no Clarone, nos Fagotes e nos Violinos 1 e 2. Desta vez a resposta vem das 3 Flautas. É um começo lento, calmo, misterioso (ou dolorido, você que sabe). Exposição - Allegro Moderato Em 1m24s os Violoncelos, em pizzicato, realizam a ponte entre a introdução e a exposição. Uma última nota grave dos contrabaixos é o trampolim para que Violinos 1, Violinos 2 e Violas comecem, de cara, com notas rápidas, duplicadas, o Tema A (1m40s). Este tema será explorado por toda a obra. Em 1m50s ouve-se a segunda parte do Tema A, chamada de Frase Resposta. Ela aparece primeiro nos Clarinetes e Fagotes, e depois, nos Oboés, Clarinetes e Corne Inglês. Ouvimos alguns acordes descendentes e a mudança de padrão rítmico nas cordas, agora incluindo os Violoncelos (1m57s). Repare nas intervenções precisas dos metais graves (Trombones e Tuba) (2m03s), apenas dando um colorido na música. No que as cordas continuaram, o Tema A foi se transformando (2m09s) em acompanhamento, pois agora quem toca o Tema A são as 3 Flautas e 1 Oboé (2m18s). Aos 2m55s podemos ouvir o Corne Inglês, por debaixo da textura, apresentando uma nova melodia. A melodia tem belas modulações e vai angariando instrumentos na orquestra, se tornando cada vez mais forte. Aos 3m30s surge um Material Temático, que ainda não é o Tema B. É uma sucessão de escalas descendentes tocadas pelos Violinos 1 e 2 e Violas. Então, volta o Tema A, aos 3m48s, pelas madeiras. A música vai arrefecendo, se tornando mais lenta e tocada com menos força até que, aos 4m24s, surge o agradabilíssimo Tema B, pelos Violinos I. Logo (4m36s) ele é repetido pela Primeira Flauta e pelo Corne Inglês. Em franco contraste com o Tema A, o B traz tranquilidade, depois da primeira parte tão agoniada. Se este movimento estivesse querendo prestar reverência à 5ª de Beethoven, o Tema B não existiria. Aos 4m47s há uma perturbação, pois os Violinos I "capturam" o Tema B e querem deixá-lo angustiado. Para isto eles usam uma técnica familiar e eficiente: tocam-no com notas curtas, dobradas, imitando o que fizeram no Tema A. As madeiras tentam trazer vida e a música vira, brevemente, um duelo sobre quem controla o Tema B. Aos 5m03s você ouve, no Trombone, ecos do Tema A, enquanto as cordas fazem um tremolo sombrio. A partir de 5m13s a orquestra começa a fazer um crescendo que vai desembocar no Tema A (é ele mesmo, mas com um tratamento rítmico diferente), encadeado com o final do Tema B. E a atmosfera fica ensolarada novamente com o Tema B, também alterado em sua estrutura rítmica (5m20s). Primeiro a orquestra quase inteira o declama, logo em seguida são o Trombone e os Contrabaixos que o fazem. Aos 6m08s, as cordas fazem outra variação do Tema A. Ele vem em staccato e em Tom Maior. O Fagote faz uma frase e, logo depois, a Flauta faz outra. Repare nessa da Flauta. Aos 6m31s a Flauta repete, pausadamente, o Tema A, também em Tom Menor, com belos contracantos dos Violinos I e II. A música continua ameaçando ficar soturna, alternando vários trechos de tranquilidade e de perturbação. Aos 7m15s os Trombones e 1 Trompete ameaçam tocar uma melodia muito antiga. Uma melodia que não é de Saint-Saëns. É o Cantochão Medieval "Dies Irae", usado por inúmeros compositores quando querem se referir à morte. Por duas vezes a orquestra os impede de completar o Cantochão, e eles parecem deixar para lá. Aos 7m59s, depois de alguns momentos de maior barulho, aparece, de modo entrecortado, como se as madeiras também estivessem a tentar tocá-lo, mas as cordas as frustrassem, o Tema A. Recapitulação Aos 8m17s, depois de toda essa luta, o Tema A surge de uma maneira que dá pra dizer que estamos na recapitulação. O Tema vem diferente, em legato, mas ainda assim, nota-se que é uma espécie de retorno triunfante dele. A partir dos 9m30s a orquestra começa a tocar mais e mais lento. Aos 9m44s ocorre um trecho de dar calafrios, principalmente pela harmonia e pela orquestração. Ela serve de ponte entre a recapitulação do Tema A e a do Tema B. Quanto o Tema B retorna (10m21s), é com uma atitude mais calma, talvez tímida. Mas ele está lá, belíssimo e sereno. Coda O Coda (11m) é sutil, alheio ao combate mortal que se deu na música e nos leva direto ao Poco Adagio. 2º Movimento (12m07s) Poco Adagio Talvez seja o movimento mais famoso da obra, devido, obviamente, ao fato de seu Tema Principal ser absolutamente deslumbrante. Começa aos 12m07s, quando ouvimos o Órgão pela primeira vez. Primeiro uma nota só, depois um acorde que se abre e que, receptivamente, o Órgão serve de cama para o Tema Principal (12m20s), que é em Ré Bemol Maior (a sinfonia como um todo é em tom menor), nos Violinos I e II, Violas e Violoncelos. Repare, aos 12m46s, na utilização da pedaleira do Órgão, literalmente mais um teclado (o que ela usa já tem três para as mãos), só que nos pés. Sendo um movimento lento, ele precisava de uma melodia precisa e bonita, coisas que Saint-Saëns conseguiu com louvor. O Tema Principal é uma melodia longa, feita de frases longas e que só poderia ser francesa. É extremamente sensual e você fica querendo ouvir mais dele. Estruturalmente o Poco Adagio segue a fórmula A-B-A, com uma sessão central ligeiramente contrastante. Pois bem, depois de sua primeira aparição, o Tema Principal é imediatamente repetido (13m34s), mas por Trompas, Trombones e 1 Clarinete (gerando uma sonoridade curiosa). Ele insere um contracanto nas cordas agudas que é lindo de morrer. O que você ouve aos 14m44s não é um novo tema, mas a Parte B do Tema Principal. Trata-se de pequenas frases, tocadas pelos Violinos I e II, Violas e Violoncelos. Ela é repetida (15m41s) pelos mesmos Clarinete Solo, 2 Trompas e 2 Trombones, mas com desdobramentos: as cordas fazem frases de resposta charmosas e dramáticas. Percba que, pela habilidade do compositor, raramente um tema é ouvido por duas vezes da mesma maneira. Aos 16m40s começa a Seção B do movimento, um jogo de pergunta e resposta entre os Violinos I e II, que, por incrível que pareça, é uma deliberação sobre o Tema Principal. O jogo se repete, mas com mais elementos. No lugar da textura seca dos dois naipes de Violinos, temos, agora, o Órgão, as Violas e os Violoncelos, além dos Violinos I e II. Outra questão é que essa repetição não usa as mesmas notas da primeira vez, e nem por isso deixa de ser facilmente identificada. Trata-se de uma passagem muito bem sucedida, que cria uma atmosfera inacreditável, dinâmica e bela. Quando a Seção B termina, temos uma sessão soturna e quieta nos Contrabaixos, em pizzicato. Eles executam o Tema A do Primeiro Movimento, com intervenções dos sopros. Aos 18m37s escutamos o Órgão. Isso nos leva, aos 19m13s, à volta da Parte A do Tema Principal, desta vez tocado pleno, com confiança, pelas cordas. Os pizzicatos tomaram conta de parte da sessão de cordas e invadiram o que seria nossa recapitução. As pequenas descidas, que ouvimos sobretudo nas madeiras e são repletas de modulações, são, na verdade, frases de finalização. O movimento termina com um longo acorde do Órgão e uma instrução que sempre me emociona, que Pyotr Tchaikovsky (1841-1893) iria usar na sua Sexta Sinfonia "Pathétique" (1893): morendo. 3º Movimento (22m41s) Allegro Moderato O 3º movimento muda de andamento várias vezes, ficando: Allegro Moderato - Presto – Allegro moderato – Presto – Allegro moderato Este agitado movimento faz as vezes de Scherzo da sinfonia. Seu Tema (22m41s), tocado em notas duplas rápidas (até quádruplas), nos faz lembrar do primeiro movimento. E, de fato, são dele as notas que escutamos aos 23m24s nas Flautas, Oboés e Clarinetes. O Tema A é ouvido várias vezes, nas mais diversas instrumentações. Aos 24m21s surge o Tema B, no Trio, bem mais leve, sem agonia, pairando por aí. São umas escalinhas descendentes tocadas pelas madeiras. Durante ele, temos, aos 24m25s, o Piano, executando escalas ascendentes ligeiras, em boa escrita pianística, embora breve. O Tema B aparece novamente, nas madeiras (inclusive o Flautim) e a música descorre de maneira criativa e estimulante. Aos 26m46s o Scherzo retorna, de maneira mais ou menos similar à primeira, com as respostas dos tímpanos. Aos 27m08s ouvimos nova aparição do Tema A do Primeiro Movimento, predominantemente nas Flautas. A peça segue virtuosística até que, aos 28m23s, retorna o Tema B (novamente com Flautim) e é atropelado por um Tema, nos Contrabaixos (28m26s), que vai ser usado no Finale. Esse Tema vai se disseminando pela orquestra, sendo ecoado pelas Violas e Trombones, e vai progressivamente se tornando um Fugato (em que os instrumentos que o tocam passam a tocar diferentes continuações dele de maneira emaranhada). O momento é sublime, mas logo arrefece e dá lugar a uma declamação desolada, triste e doída do Tema dos Contrabaixos (29m06s), desta vez na voz dos Violinos I e II, Violas e Violoncelos. A partir de então a música começa a mancar, estancar, até que para e dá lugar a um luminoso Finale. 4º Movimento - Maestoso - Allegro O Maestoso começa com um estrondoso acorde do Órgão (30m31s), que compele os Contrabaixos, Fagotes e Clarone (o Clarinete Baixo) a iniciar um pequeno fugato com Violinos I e II, Violas e 2 Trompetes. O Órgão faz novo acorde, o da dominante, e a orquestra faz novo fugato. Isso até que surja o luminoso Tema A (deste movimento, sem ligação com o Tema A do Primeiro Movimento) (31m03s), em piano, no Piano a 4 Mãos, auxiliado pelas cordas. Esse será o Tema Principal do movimento e ele carrega, sim, um pouco de triunfo, mas eu vejo mais magia, encantamento, júbilo. Principalmente pelo uso de floreios no Piano. Perceba que a frase sempre termina de modo diferente, em acordes diferentes, criando mais variedade harmônica, é verdade, mas pelas suas características, ele já nasceu assim. Aos 31m44s o Órgão assume o Tema A, que tem, dessa vez, fogos de artifício (no sentido figurado) como resposta. Temos também os finais diferentes. Aos 32m27s os Violoncelos e Violinos II iniciam uma versão apressada e fugada do Tema. Logo entram as Violas, Oboés e Clarinetes, depois os Violinos I, mais para frente, os Fagotes com os Violoncelos e Contrabaixos. Finalmente, entram os Trompetes, Trompas, Trombone, Flautas, Oboé e Clarinete, tocando a fuga, que prosseguirá até se esgotar. Aos 32m52s a textura muda completamente e ouvimos uma Ideia Melódica I no Órgão que vai ganhando tensão, especialmente através de modulações. Mas ele nos encaminha a um lugar mais calmo. Retorna o Tema B (33m04s) tocado pelo Oboé e respondido pela Flauta e pelo Clarinete e, ainda, com belos contracantos dos Violinos I. Aos 33m32s o Oboé repete o Tema B, que, dessa vez, é respondido por 1 Clarinete (esse som quase percussivo que você ouve é produzido pela Trompa com surdina, bem na cabeça do clarinetista. Depois pela Flauta, com resposta do Corne Inglês. Aos 33m48s você começa a escutar, nos Violoncelos, e então ganhando as cordas, um motivo pertencente ao Tema A do 1º Movimento. Aos 33m57s essa célula se agrava com uma modulação. Até que, aos 34m07s há uma nova modulação e a Ideia Melódica II, dos Trombones e o coral de metais, seguidos pela escalada do vigor e da tensão da música, em um momento baseado em apenas três notas do Tema A do Primeiro Movimento. Aos 34m44s as cordas entram com um encurtamento e alteração harmônica desse mesmo Tema, em tom um pouco mais otimista. Essa ideia vai conquistando a orquestra, que cresce e se torna mais expansiva. Aos 35m16s o Órgão retorna à Ideia Melódica I e gera um bom contraste, mas a essa altura o movimento já se revelou bonançoso. É por isso que, aos 35m34s a Flauta ataca o Tema B, tranquilo e sereno, e ouve resposta do Oboé, estando a textura da orquestra bastante esvaziada, por transparência. Depois os Violinos I fazem e a Flauta e o Clarinete respondem. Um lindo jogo de Flautas e Cordas termina a frase. Temos ainda algumas declarações do Tema B até que, de surpresa, os Violoncelos e, logo, as cordas, coeçam a martelar o motivo do Tema A do 1º Movimento. Ele vai crescendo, um tanto intimidante em seu Tom Menor até que é interrompido por 2 Trombones, a Tuba e outros metais (36m30s), tocando a Ideia Melódica II. Os Trompetes entram e fazem uma brincadeira melódica com eles até que vamos parar, aos 36m56s numa modificada célula do Tema A do Primeiro Movimento (dessa vez aumentado), nos Trombones, escorados pelos Violinos fazendo um tremolo nervoso. Sempre com resposta e repetição. E modulação, ele vai ficando mais agudo. Aos 37m18s o Tema A do Primeiro Movimento aparece de maneira mais amigável, nos Violinos I e II, em staccato e accelerando. Aos 37m26s atingimos um momento em que os metais anunciam frases de conclusão. Aos 37m48s há uma espécie de congelamento com a Ideia Melódica I, com a orquestra quase completa e o Órgão. O Coda vem aos 38m19s, com pratos esvoaçando, o Órgão fazendo praticamente uma escala descendente em Dó Maior e os Violinos I e II fazendo rápidos arpejos ascendentes. Na Codeta temos os metais, liderados pelos Trompetes e com os Tímpanos, que chegam a ficar sozinhos, perto do fim (38m37s). Terminamos, mesmo, com um grande acorde (38m44s) da orquestra em tutti mais o Órgão. Recepção e Considerações Finais Há evidências de que Saint-Saëns tinha planos de que a Terceira se tornasse aquela que restauraria, ou a resgatadora da Sinfonia Francesa e da profundidade musical na França. A Guerra Franco-Prussiana e as ideias musicais programáticas de Richard Wagner ecoavam lá da Alemanha diretamente nas preocupações do compositor. O público francês estava, na opinião dele e de seu grupo de amigos compositores, frivolizado pelo bombardeamento de óperas, especialmente as tolas operetas de Jacques Offenbach. E esse público estava começando a cair no conto Wagneriano de que música só tinha valor se fosse programática, isto é, se fosse respaldada ou apoiada em uma história (como a ópera, mas segundo Wagner, mesmo a música puramente instrumental deveria ser assim). E Saint-Saëns pegou os esboços da Terceira Sinfonia e pôs-se a trabalhar. Sua missão era muito maior que a de escrever uma sinfonia de 45 minutos. Era fazer com que essa sinfonia trouxesse de volta a dignidade da música francesa. A calhar, veio o convite da Sociedade Filarmônica de Londres para que escrevesse uma peça. Na Inglaterra, o sucesso foi imenso e, quando retornaram à França, Camille teve certeza de que seu objetivo fora cumprido. Até Hector Berlioz lhe lançou um elogio surreal: "O Beethoven francês!". O fato é que se tocavam sinfonias na França, mas não de compositores Franceses. Mas com a Sinfonia "Com Órgão" e um punhado de sinfonias boas que vieram junto (por exemplo, a Sinfonia em Sol Menor, de Édouard Lalo, A Sinfonia Sobre um Ar Montanhês Francês, de Vincent d'Indy, a Sinfonia em Ré Menor de César Franck e mais Chausson, Dukas...), a França podia finalmente se dizer um país produtor de sinfonias. É uma das poucas obras, não de Saint-Saëns, mas do repertório a fazer sucesso contínuo desde sua estreia até os dias de hoje. Vocês não imaginam como são poucas as obras, sonatas, sinfonias, concertos, óperas, que tiveram a bem aventurança de estrear com sucesso e manter esse sucesso sem interrupções, muito depois da morte do compositor. Sobre a sinfonia, o compositor disse: "Eu dei tudo a ela que eu podia dar. O que eu conquistei, eu nunca conquistarei de novo". É uma obra realmente singular: primeiro, porque exige um Órgão, mas também porque é de inspiração contínua (não há um trecho fraco na obra) e, como foi dito anteriormente, sua popularidade também é contínua, há quase 140 anos. E talvez o principal. É uma obra absolutamente criativa e consistente no que tange às suas geniais transformações temáticas. Acredito que ela só não tenha presença ainda maior nas salas de concerto por causa do Órgão. Toda orquestra de grande porte tem um na sua sala de concertos, mas o problema é que os organistas, sobretudo aqueles especializados em Órgão Sinfônico, são raros. Mesmo as orquestras que ficam em cidades extremamente musicais, às vezes têm que trazer um organista de fora. Rogo para que Camille Saint-Saëns, que nunca foi desconhecido, consiga emplacar mais de suas maravilhosas obras sinfônicas, pianísticas, operísticas e camerísticas no repertório canônico. Gravações Recomendadas - Antonio Pappano regendo a Orchestra dell'Accademia Nazionale di Santa Cecilia, com Daniele Rossi ao Órgão - Gravação extremamente bem tocada. Eles não cometem um erro, um deslize. Pappano começa suavemente, mas não deixa de alcançar picos de dinâmica mais fortes. Os instrumentistas solistas (especialmente as primeiras madeiras) estão fabulosos. Lançado em 2017 e com um som excelente, o disco tem, ainda, a suíte O Carnaval dos Animais, também de Saint-Saëns. com Antonio Pappano e Martha Argerich nos pianos. Sonoridade, colorido, precisão rítmica, elegância e bom gosto. Fazem dessa uma recomendação enfática, de minha parte. - Charles Munch, a reger a Orquestra Sinfônica de Boston. Ao Órgão, Berj Zamkochian - Se Pappano toca com elegância, Munch extrai da orquestra sons que nem são recomendáveis. São crus, sem delicadeza e até desequilibrados. Culpa parcial do som das gravações na época (é de 1959). Parcial porque esse disco foi gravado com a tecnologia Living Stereo, da gravadora RCA, e é excelente. Mas a verdade é que essa nudez, esse som arranhado das cordas e tuttis a todo vapor são o que torna essa gravação tão peculiarmente especial. É como se a orquestra estivesse suando de empolgação e cansaço. A música acaba saindo tempestuosa, romântica, crua como deve ser. O disco ainda traz La Mer, de Claude Debussy e Escales, de Jacques Ibert. - Mariss Jansons, conduzindo a Orquestra Sinfônica da Rádio Bávara, com Iveta Apkalna ao Órgão - Uma gravação do meu regente preferido e orquestra preferida! Já apresentei versões contidas e versões expansivas da obra. Gosto de ambas abordagens. Mas essa aqui, uma das últimas que Jansons fez, está no meio do caminho. As dinâmicas estão muito bem balanceadas e, ao mesmo tempo, a orquestra toca com desinibição. Recomendo deveras. Acompanha o Concerto para Órgão, de Francis Poulenc. Gravado em 2019. - Myung-Whun Chung, com a Orquestra Filarmônica de Seul e Dong-ill Shin ao Órgão - Uma gravação com a escolha perfeita das atmosferas. O som da Filarmônica de Seul é discreto e comedido, mas preciso e possuidor de alguma qualidade interplanetária. Acho que eu deveria dizer elegante. Mas dá no mesmo, você não ouve esses músicos tocando mais forte do que seu instrumento é capaz de soar com compostura. Sempre foi uma das minhas gravações favoritas. É de 2017 e foi gravada ao vivo. Acompanha a Abertura "Leonora III", de Ludwig van Beethoven e a Fantasia "Arirang", de autor desconhecido. - Christoph Eschenbach regendo a Orquestra de Filadélfia, com Olivier Latry ao Órgão - Gravado ao vivo em 2006, no período em que Eschenbach era Diretor Musical da Orquestra de Filadélfia. É um registro da orquestra tocando de modo absolutamente espontâneo. Isso não significa desleixado, é uma espontaneidade muito bem-vinda. Eschenbach construiu sua carreira pelo piano. E é um excepcional pianista. Na regência, é mais polêmico: alguns o consideram arbitrário. Mas aqui está essa gravação: limpinha e com atitude. O disco ainda traz o Concerto para Órgão de Francis Poulenc e a Toccata Festiva, de Samuel Barber. - Yannick Nézet-Séguin regendo a Orquestra Filarmônica de Londres, com James O'Donnell ao Órgão - O atual Diretor Musical da Orquestra de Filadélfia resolveu pegar a igualmente louvável Filarmônica de Londres, em um programa em que consta, pra variar, o Concerto para Órgão de Francis Poulenc. Também foi gravada ao vivo, em 2014. Nézet-Séguin me parece ter controle absoluto das dinâmicas, crescendos, diminuendos. Seu gesto é preciso de modo que a orquestra reage com igual precisão. E eles tocam mais no estilo desvairado do que no comportado. Tragam-nos vossa opinião e pedidos de análise de outras obras (desde que não tenham cantores, por gentileza). Lista das outras postagens aqui. Deixe seu comentário!

  • Ouvindo Fácil: Weber - O Franco-Atirador (Abertura)

    Por Rafael Torres No formato Ouvindo Fácil eu vou apresentar obras de um movimento só, pelo menos a princípio, e de uma forma um pouco diferente. Não vou abrir mão de escrever sobre o compositor, a obra e o contexto. Vai ter vídeo e discografia sugerida. A diferença em relação às postagens de análise é que eu não vou esmiuçar tanto a obra. A ideia é que você assista ao vídeo e leia, de maneira um pouco mais descontraída, os comentarios que eu vou deixar, em pontos (mas com a minutagem). Espero que agrade! Vamos lá? Introdução Carl Maria von Weber (1786-1826) foi um compositor de transição entre o Classicismo e o Romantismo. Foi um músico absolutamente completo, sendo um virtuose quase sem igual ao Piano e ao Violão, bem como maestro e crítico musical. Como compositor, era especialista em Ópera, tendo escrito 10 (mas apenas 6 sobreviveram até os dias de hoje) e Música Sacra (esta, completamente esquecida). 10 Óperas pode parecer pouco, mas acontece que sua vida foi muito curta. Apesar dessa inclinação à música vocal, Weber era um orquestrador nato. Absolutamente brilhante. Possivelmente o melhor de seu tempo, se excluirmos Hector Berlioz. Mas incluindo Ludwig van Beethoven. Atualmente ele é especialmente conhecido pelas Aberturas dessas Óperas, músicas sinfônicas que são tocadas em concertos, e pela sua obra que envolve o Clarinete. Ah, e por uma música que aparece em todo lugar: Aufforderung zum Tanz (Convite à Dança), um Rondó despretensioso para piano que foi um sucesso inesperado em sua carreira. E depois de ser orquestrado por ninguém menos que Hector Berlioz, muitos anos depois da morte de Weber, ganhou a eternidade. Vou falar um pouco sobre essa peça (Convite à Dança), pois ela teve uma importância hoje subestimada no desenvolvimento da música. A começar por ser a primeira Valsa de Concerto, ou seja, uma valsa que não deve ser dançada, mas escutada, apreciada em concertos ou recitais. Também era programática. A música programática foi um galho crucial da Música Romântica. Essa valsa, além de não querer ser dançada, tem pretensões. Ela pinta, veja bem, pinta um quadro imaginário dos seus próprios dançarinos. Isso abriu tantas e tão imensas possibilidades aos vorazes compositores Românticos... E até mesmo aos modernos. Um dos maiores compositores do Modernismo francês, Maurice Ravel, em 1920, escreveu sua La Valse, obra orquestral com uma proposta muito similar. Leia mais sobre La Valse clicando aqui (link da Arara). Agora, sobre o Clarinete. O Clarinete deve muito de sua conservação e elevação ao status de instrumento canônico da orquestra à teimosia de Wolfgang Amadeus Mozart, que, amigo de um clarinetista famoso (de nome Anton Stadler), escreveu para ele peças de valor inestimável. Por sinal, Weber era sobrinho de Mozart por parte de sua esposa, Constanze (anteriormente, Constanze Weber). Weber foi um compositor próspero, contemporâneo de Ludwig van Beethoven, Gioachino Rossini, Giacomo Meyerbeer, Hector Berlioz e outros, e que conseguiu alcançar a notoriedade mundial ainda em vida. É um compositor muito tocado e muito gravado, embora o número de obras que compõem o repertório habitual seja restrito. Você vai ver dúzias de gravações de seus 2 Concertos para Clarinete e Orquestra, do Concertino para Clarinete e Orquestra, das Aberturas e do Concertino para Piano e Orquestra. E talvez uma ou outra Ópera. E, claro, Aufforderung zum Tanz, o Convite à Dança, tanto em sua versão original, para piano, quanto na orquestral, feita por Berlioz. Foi revolucionário no conteúdo musical; foi um dos primeiros regentes a dirigir a orquestra sem um piano ou qualquer outro instrumento, preparando o caminho para o surgimento da figura do maestro como vemos hoje; e, infelizmente teve uma vida muito curta, morrendo aos 39 anos. Para mostrar a vocês, hoje, eu selecionei a Abertura do seu primeiro sucesso operístico mundial (o mundo dele, a Europa): Die Freischütz, O Franco-Atirador, de 1826. A Abertura pode durar qualquer coisa entre 8 e 10 minutos. É um bom exemplo do talento de Weber. A Obra de Weber 6 Óperas que nos chegaram intactas: Silvana, Abu Hassan, Der Freischütz (O Franco-Atirador), Die drei Pintos (Os Três Pintos), Euryanthe e Oberon; 2 Sinfonias; 2 Concertos para Clarinete e Orquestra; 1 Konzertstück (Concertino, um concerto de menor porte) para Clarinete e Orquestra; 1 Konzertstück para Piano e Orquestra (peça dificílima para o solista); 2 Concertos para Piano e Orquestra; 1 Konzertstück para Oboé e Orquestra; 1 Konzertstück para Trompa e Orquestra; 1 Concerto para Fagote e Orquestra; Música para Piano, incluindo 4 Sonatas; Música para 2 Pianos; 6 Sonatas para Violino e Piano; 1 Trio para Piano, Flauta e Violoncelo; 1 Quarteto para Piano, Violino, Viola e Violoncelo; 1 Quinteto para Clarinete, Violino I, Violino II, Viola e Violoncelo; Mais de 10 Aberturas: Abu Hassan; Euryanthe; (Der) Freischütz, Oberon, Peter Schmoll und seine Nachburn, Preciosa, Silvana, (Der) Beherrscher der Geister, Jubel-Ouverture, Turandot, Prinzessin von China; Etc. O Compositor Carl Friedrich Ernst von Weber, que só adotaria o "Maria" mais tarde, nasceu em 1876 no principado-bispado de Lübeck, atual Alemanha. Foi o primogênito de três. Seu pai, Franz Anton von Weber, era violinista e sua mãe, Genovefa Weber, era cantora de Ópera. Nesse berço musical floresceu naturalmente o talento de Weber, que o pai teimou em transformar em criança prodígio, nos moldes de Mozart. E, de fato, aos 4 anos, antes de poder andar, devido a um problema que lhe afetava os quadris, o garoto já tocava piano e cantava com aptidão. Sua primeira educação musical foi dada por seu pai. Mas a família mudava de cidade com uma frequência cansativa, comprometendo a continuidade das aulas. Em passagem por Salzburgo, Weber estudou com Michael Haydn, compositor e irmão do músico europeu mais influente da época, Joseph Haydn; aprendeu litografia com o inventor do processo, Alois Senefelder. No ano de 1800 a família se deslocou para Freiberg, uma cidade importante do estado da Saxônia. Lembre-se sempre que até pouquíssimo tempo atrás não existia a Alemanha. Existiam os povos germânicos, que se comunicavam no mesmo idioma e tinham um forte orgulho nacional, mesmo sem ser uma nação. Esse orgulho, eventualmente, nos traria o mais inimaginável terror e a mais gratuita, feroz e implacável violência que o planeta Terra já viu. Mas por enquanto, era inocente. Weber tinha, então, 14 anos e, em Freiberg, escreveu sua segunda Ópera: Das stumme Waldmädchen (A Silenciosa Dama da Floresta). A primeira, Die Macht der Liebe und des Weins (O Poder do Amor e do Vinho), ele escrevera em 1898. Quanto à segunda, a obra não sobreviveu aos nossos dias, mas devia ser prodigiosa, pois foi montada até em Viena, em Praga, em São Petersburgo! Foi nessa época, também, que Weber começou seu trabalho de crítico musical, escrevendo esporadicamente em tablóides esparsos. Os Weber retornam em 1801 a Salzburgo, onde o jovem Weber retomou brevemente as aulas com Michael Haydn. Foram, depois, para Viena, onde o jovem estuda música com Abbé Vogler, um importante didata, fundador da famosa Escola de Mannheim. Outro aluno de Vogler era Giacomo Meyerbeer, que viria a se tornar um compositor de Óperas leves que levantariam eternamente a ira de Richard Wagner, que ansiava por uma arte nobre e profunda, mas via multidões comparecerem às Óperas "pífias" de Meyerbeer. Mas por enquanto ele era Jacob Liebmann Beer (seu nome de batismo) um jovem judeu um pouco mais novo que Weber. Os dois se tornam melhores amigos. Aos 17 anos, em 1804, Weber viu sua carreira começar, enfim, quando foi convidado a dirigir a Ópera de Breslau. Lá, promoveu reformas, como o pagamento de uma aposentadoria a cantores e músicos antigos e uma rotina de ensaios ambiciosa. Essa rotina foi justamente o que causou irritação nos músicos, de forma que Weber não renovou o contrato de 2 anos. Mas já nesse período ele compunha em profusão. De Breslau, foi para Wüttemberg, de onde foi enxotado por suposto envolvimento em badernas e com prematuras dívidas. Após vagar mais um pouco, Weber se encontrou, em 1811, em Munique. Lá ele estabeleceu uma amizade com o clarinetista da corte Heinrich Baermann. Essa amizade foi importante, porque fez florescerem algumas das obras pelas quais Weber é mais conhecido: o Konzertstück para Clarinete e Orquestra e os 2 Concertos para Clarinete e Orquestra. Weber e Baermann fizeram uma aclamada turnê pela Europa, com as novas peças na mala, o que acabou sedimentando uma boa reputação para Weber. Em 1812, ainda, ele montou sua Ópera Silvana em Berlim. Sua fama foi crescendo e, em 1813 ele foi apontado diretor da Ópera do Teatro Estates, em Praga (atual República Tcheca). Em 1817 assumiu o cargo de Royal Kapellmeister (uma especie de maestro) e diretor da Ópera Germânica no Teatro da Corte de Dresden. Continuava compondo vorazmente e, em 1817, ele casou com Caroline Brandt. Em 1819, enquanto compunha o que viria a ser sua Ópera mais bem sucedida, Der Freischütz, num tempinho livre, escreveu para sua esposa a peça que mencionei acima, Convite à Dança, para piano. Um pouco mais tarde ela se tornaria peça chave no repertório de Frédéric Chopin, de Franz Liszt e muitos outros, sendo tocada continuamente por gerações e gerações. Até hoje. Der Freischütz, uma Ópera que contém diálogos falados, estreou em 18 de junho de 1821 no Schauspielhaus Berlin. E foi um sucesso imenso, ecoando em todos os cantos da Europa, ganhando montagens em Viena, Dresden, Hamburgo, Leipzig, Karlsruhe, Praga, Copenhagen, Riga, Londres e Paris. De uma hora para outra, Weber se torna um compositor mundialmente famoso. Der Freischütz é considerada a primeira Ópera Romântica Germânica e é frequentemente montada hoje em dia, em todo o mundo. Em 1824 ele recebeu da Inglaterra a encomenda de escrever, montar e reger a estreia de uma Ópera em inglês: Oberon. O trabalho foi extenuante. Sua saúde andava frágil. Quando chegou em Londres, dois anos depois, ele já estava com tuberculose. Ele regeu a estreia e mais 12 apresentações subsequentes. À medida em que sua saúde ia piorando, surgiam cada vez mais convites para apresentações privadas nas casas de aristocratas, e Weber não recusou um sequer. Morreu na noite do dia 5 de junho de 1826, aos 39 anos, tendo vivido menos que Beethoven. Permaneceu inacabada sua Ópera Die drei Pintos. A sua esposa pediu que Meyerbeer a completasse e o entregou os manuscritos. Ele não conseguiu. Por 26 anos ele não conseguiu. E devolveu os manuscritos a Caroline pouco antes da morte dela. Apenas em 1887, 65 anos após a morte de Weber, o jovem compositor e maestro Gustav Mahler, que à época era o segundo maestro do Stadttheater Leipzig, atiçado por Max Weber, filho de Carl Maria von Weber, finalizou a obra. Ele a estreou no Neues Stadttheater de Leipzig, em 20 de janeiro de 1888. Após uma recepção positiva, a Ópera, que é cômica, não conseguiu se estabelcer no repertório. Para vocês terem uma ideia, a estreia nos Estados Unidos só ocorreu em 1979. E no Brasil, ainda está para acontecer. Mas é apenas uma Ópera no meio de um punhado de outras que fizeram e fazem muito sucesso e nos mostram como Carl Maria von Weber foi um compositor de importância sempre maior do que a que estamos acostumados a lhe atribuir. Se ele não é tão conhecido hoje, a falha é nossa. A falha é sempre nossa. Brevíssimo Resumo da Ópera e Seus Personagens Ler esta sinopse é ligeiramente importante, pois a Abertura contém o tema de um personagem, de outro, faz alusão a algum evento e praticamente revela o teor do final. Se vencerá o bem ou o mal. Mas confesso que o escrevo a partir de outros resumos que li, alguns, contraditórios entre si. Mas vai servir para que a audição da Abertura seja melhor desfrutada. Mas, se não estiver afim, pule sem culpa essa seção. Max: Segundo Caçador, considerado o melhor atirador da aldeia. É o personagem principal, cantado por um Tenor; Kuno: uma espécie de líder da aldeia onde se passa a ação. É cantado por um Baixo; Agathe: Filha de Kuno, apaixonada e correspondida por Max. Papel cantado por uma Soprano; Kaspar: Primeiro Caçador da aldeia. O Vilão, cantado por um Baixo; Ottokar: o Príncipe da Boêmia, cantado por um barítono; Samiel: o Caçador Negro. Papel falado; Eremita: personagem que todos respeitam e creem ter uma ligação com o divino. Cantado por um Baixo. Der Freischütz se passa por volta dos anos 1650 na Boêmia (hoje, na República Tcheca), em um pequeno vilarejo na floresta. O personagem Kuno tem uma função para a qual não encontrei tradução. É um Hereditary Forester, que presta serviços ao reino, me parece que de tesouraria e outras coisas, e repassa seu título ao primogênito ou, caso não tenha filhos homens, ao marido da filha. Isso é de grande importância no enredo. Primeiro Ato A Ópera começa com um torneio de tiro ao alvo em que Max, um jovem que é considerado o melhor caçador e detém o cargo de Segundo Caçador do pequeno vilarejo em que vive, perde para Kilian, um aldeão rico, mas atirador inexperiente. A pessoa mais velha desse vilarejo é Kuno, chefe dos guardas florestais e pai de Agathe, por quem Max é apaixonado. Kuno promete entregar a mão da filha ao caçador com tiro mais certeiro, o que será decidido em um torneio a ser realizado na presença do Príncipe da Boêmia, Ottokar, já no dia seguinte. Vendo a preocupação de Max, seu colega, o Primeiro Caçador Kaspar, dissimulando uma amizade e disposição de ajudar Max e oferecendo vinhos e conversas ardilosas, estende a Max sua arma. O jovem acerta uma ave a uma grande distância, surpreso, ele mesmo, do feito. Kaspar, então, revela que a arma havia sido carregada com sua última bala mágica. Parêntesis. Kasper é apaixonado por Agathe, a filha de Kuno, mas esta o havia rejeitado em favor de Max. Ocorre que, quem casar com Agathe, será o herdeiro de Kuno, de modo que Agathe é cobiçada, além da beleza, pelo tal dote. Kasper planeja se vingar dela, de Max e de Kuno. Fecha parêntesis. Kasper convida Max para um encontro, à meia-noite, na Toca do Lobo, onde, com seus conhecimentos de magia, vai conjurar as sete balas mágicas. Kasper está tramando algo sinistro. Segundo Ato Agathe conta à sua prima sobre seu encontro o Eremita, em que ele a alertou sobre um perigo que se aproximava. Maus agouros. Ele a oferece uma linda guirlanda de noiva. À noite ela tem um sonho estranh com uma pomba branca, que voa, distraída, até ser abatida por um tiro. Por detrás das árvores, surge uma pomba negra, coberta de sangue. À meia-noite, na Toca do Lobo, Max encontra, além de Kaspar, Samiel, o Caçador Negro. Na verdade, Satanás disfarçado. A cena é dramática, há uma tempestade, Samiel conjura a imagem de Agathe se afogando e Max, desesperado, vê o ritual começar. Kaspar havia feito um trato com o cão. Tendo já vendido sua alma, vendia, agora, a de Max, combinando, em troca, que a bala deste deveria matar Agathe. E que, deseperados, Max e Kuno seriam seu presente ao diabo. Terceiro Ato Já no dia do torneio, o príncipe Ottokar chama Max à sua tenda. À guisa de teste, manda que ele abata uma pomba branca que está a voar. Enquanto ele prepara o tiro, Agathe entra na cena, e quando ele atira, ela cai. Mas sua guirlanda de noiva e o próprio Eremita, que vinha atrás dela, desviaram a bala. Agathe havia desmaiado por pensar na pomba branca abatida por seu amor. Mas a bala vai, maliciosamente, parar no peito de Kaspar, que, traído pelo demônio, cai, sem vida. Pelas regras, nenhum caçador havia se provado capaz, de modo que o casamento não aconteceria. Mas, ao perceber a presença do Eremita, considerado por na região um enviado de Deus, todos se impressionam e se põem a ouvir o que ele tem a dizer. Que é, basicamente, que um torneio de tiro não deveria ser decisivo para um casamento, e sim o amor. Desta forma, o príncipe declara anulado o torneio e se compromete, ele mesmo, a por a mão de um sobre a do outro, no dia do casamento. Abertura Die Freischütz Consta que no dia da estreia, em Berlim, em 1821, foi tocada a Abertura, naturalmente, mas antes de começar a Ópera propriamente dita, o público suplicou que se repetisse a Abertura. O que é muito incomum. Dentre as tão conhecidas e tão gravadas Aberturas de Weber, esta é uma das mais populares e, ouso dizer, a mais interessante. A orquestra requerida consiste em: 2 Flautas, 2 Oboés, 2 Clarinetes, 2 Fagotes, 4 Trompas, 2 Trompetes, 3 Trombones, Violinos I, Violinos II, Violas, Violoncelos, Contrabaixos e Tímpanos. Duração: 8 a 10 min. Abaixo temos o nosso vídeo guia da Abertura de "Der Freischütz", pela excelente Orquestra Sinfônica SWR (Orquestra Sinfônica da Rádio do Sudoeste Alemão), regida pelo talentoso Christoph Eschenbach. Discografia Recomendada Neeme Järvi regendo a Orquestra Philharmonia - Álbum de 1992. O nome do disco é Weber: Overtures. Giuseppe Sinopoli regendo a Staatskapelle de Dresden - De 1996. O disco se chama Weber/Strauss: Overtures & Orchestral Music. Jean-Jacques Kantorow regendo a Tapiola Sinfonietta - Lançado em 2011. Chama-se, simplesmente, Overtures. Christian Thielemann, com a Orquestra Filarmônica de Viena - De 2004. O disco se chama German Overtures. Gustav Kuhn, com a Staatskapelle de Dresden - Gravado em 1985. O nome do álbum é Weber, C. M. Von (sic): Overtures. Roger Norrington regendo a London Classical Players - Gravado em 1988. Chama-se Early Romantic Overtures. Herbert von Karajan, com a Orquestra Filarmônica de Berlim - Disco de 1973. O álbum também tem um nome simples: Overturen (Aberturas). Mas é todo dedicado às de Weber. Leonard Bernstein, com a Orquestra Filarmônica de Nova Iorque - O CD foi compilado em 1993 (Bernstein já estava morto) e é difícil traçar quando essa gravação específica foi feita. Provavelmente nos anos 60. O álbum, ou melhor, a compilação, se chama Overtures: Mozart-Nicolai-Strauss, Jr.-von Weber-Thomas. Comente! Veja, no link abaixo, uma lista organizada de nossas postagens. Postagens Importantes! E muito boa tarde!

  • Cristina Ortiz - A Brasileira que aconteceu fora

    Cristina Ortiz é uma pianista brasileira que encontrou sua carreira no exterior (ao contrário de, por exemplo, Artur Moreira Lima e Miguel Proença , que ficaram por cá). E foi rápido . Estudou com a brasileira Magda Tagliaferro , na França ; venceu o III Concurso Van Cliburn , nos EUA , em 1969 , um dos mais prestigiados do mundo da música; depois, foi para a Filadélfia , onde estudou com Rudolf Serkin , no Curtis Institute of Music e, logo depois, alojou-se na Inglaterra . Vive, hoje, entre, Paris e Bordeaux . Nascida em Salvador , em 1950 , ela transitou entre duas eras do piano. Aquela em que os pianistas tinham muita fama e muito dinheiro (como Horowitz , Gilels , Richter e Rubinstein ) e a atual , em que apenas poucos pianistas conseguem alcançar tamanho êxito ( Yuja Wang , Daniil Trifonov e Lang Lang , e mesmo assim, a gente tem que colocar os dois nomes deles, notem que nos primeiros eu só coloquei o sobrenome ). Cristina Ortiz teve êxito nas duas fases . Na adolescência , tudo com que um pianista sonha é ganhar um grande concurso . Então ela vai para os EUA e ganha o Concurso Van Cliburn , em sua 3ª edição . Nem mesmo Nelson Freire tinha um concurso de tal porte no currículo, tendo ganho o Viana da Mota , em Portugal . Martha Argerich venceu o pai de todos os concursos , o Chopin , de Varsóvia . O Brasileiro Artur Moreira Lima obteve o segundo prêmio no Concurso Chopin ( 1965 , vencido por Martha) e terceiro prêmio na Competição Tchaikovsky ( 1970 ). Antes mesmo de voltar para a Inglaterra, ela fez sua estreia nos Estados Unidos , em 1971 . Sua carreira ascendeu e tocou com as Filarmônicas de Berlim e Viena , com a Orquestra do Concertgebouw de Amsterdã , com a Orquestra de Cleveland , com maestros da força de Vladimir Ashkenazi , Neeme Järvi e Mariss Jansons . De volta à Inglaterra , Cristina aperta os laços com a dupla de pianistas e regentes André Previn e Vladimir Ashkenazy e cria uma associação à Royal Philharmonic Orchestra , uma das melhores de Londres. Gravou com todos. Seu primeiro álbum foi solo: Brazilian Soul ( Alma Brasileira ), de 1974 , todo dedicado a compositores brasileiros , como Heitor Villa-Lobos (de quem é a maior intérprete viva ), Fructuoso Viana , Camargo Guarnieri , Leopoldo Miguez e Oscar Lorenzo-Fernandes . É a consolidação de sua parceria com a gravadora His Master's Voice . Em 1975 , grava, com o maestro finlandês Paavo Berglund e a Orquestra Sinfônica de Bournemouth os dois Concertos para Piano de Dmitri Shostakovich . Continua gravando com muito sucesso. Em 1977 surge, com Ashkenazy e a New Philharmonia Orchestra , um disco com as Bachianas nº 3 e a fantasia Momoprecoce (em versão para piano e orquestra), de Villa-Lobos . Em 1980 , os dois e a mesma orquestra, que nada mais é do que uma fase da Orquestra Philharmonia, gravam o Concerto em Lá Menor de Edvard Grieg , " Les Djinns " e as Variações Sinfônicas de César Franck . Ela gravou, ainda, os Concertos Nos. 2 e 3 de Sergei Rachmaninoff , com Moshe Atzmon e Iván Fische r; a Segunda Rapsódia de George Gershwin , com André Previn e a Sinfônica de Londres ; os 5 Concertos para Piano de Ludwig van Beethoven , com a City of London Sinfonia e Richard Hickox ; e discos de piano solo , com obras de Claude Debussy , Clara Schumann , Ludwig van Beethoven , Johannes Brahms e Robert Schumann . Seu repertório inclui tudo isso e mais: o 3º Concerto para Piano de Béla Bartók ; a 2ª Sinfonia " The Age of Anxiety ", de Leonard Bernstein ; os 2 Concertos para Piano de Johannes Brahms ; os 2 Concertos de Frédéric Chopin ; o Concerto para Piano de Benjamin Britten ; a Burleske de Richard Strauss e muitas outras obras. No mais , Cristina: - Costuma dar Masterclasses na Royal Academy of Music , Londres ; - Cristina costuma oferecer Masterclasses onde toca: Irlanda , Japão , Coréia , e Suécia ; - Ela dá um ateliê anual de piano em sua casa , no sul da França (perto de Bordeaux); - Tem duas filhas ; - Foi casada ( Vladimir Ashkenazy e esposa foram padrinhos ); - Frequenta o Brasil (sempre que convidada a se apresentar em Concertos ); - Baianinha , toca baianinho , com os estrangeiros sempre elogiando seu " fogo " e sua " paixão "; - É musicista de câmara , toca piano solo , duetos e com orquestra ; - Já regeu do teclado : Alguns Concertos de Mozart (em SP , mais o 18ª e o 19º que estão no CD para a gravadora Collins); O Nº 4 de Beethoven (no Rio , quando a OSB esteve em crise ); O 3º de Beethoven e o 2º de Shostakovich (em Orebrø , Suécia, com a Swedish Chamber Orchestra ); E o 2ª de Mendelssohn no Rudolfino , em Praga , e no Musikverein , em Viena (ambos com a Orquestra de Câmara de Viena ). Discografia sugerida - Dmitri Shostakovich - Concertos para Piano nº 1 e 2 - Com a Orquestra Sinfônica de Bournemouth , regida por Paavo Berglund - Os Concertos de Shostakovich são como dois diabinhos enfurecidos . Teoricamente são fáceis , mas pouca gente toca . O primeiro , para " Trompete, Cordas e Piano " tem, no seu 2º movimento ( Lento ) uma das músicas mais arrepiantes que podem vir da imaginação de alguém . O trompete tem uma participação discreta , em que quase nada está escrito (em vez disso, Shostakovich manda o pobre seguir as cordas aqui, improvisar acolá...). O 2º Concerto , em Fá maior , para as gerações mais novas, talvez seja mais conhecido . Apareceu no filme Fantasia 2000 ( Disney ). É uma obra magistral e insanamente bem escrita. Completam o disco as 3 Danças Fantásticas , Op. 5 , para piano solo , obra juvenil, mas muito bem acabada. E Cristina trata Shostakovich com a reverência que merece . De 1975 . - Wilhelm Stenhammar - Concerto nº 2 para Piano - Com a Sinfônica de Gotemburgo , dirigida por Neeme Järvi - Wilhelm Stenhammar não é dos compositores românticos tardios mais conhecidos . Mas é um favorito e uma especialidade do regente estoniano Neeme Järvi . Cristina , Järvi e a Sinfônica (bem melhor, ao menos nessa gravação, que a de Bournemouth) fizeram a peça se derramar por todos nós. O LP original vinha com a suíte para a peça de Rabindranath Tagore , " Chitra ". De 1990 . - Heitor Villa-Lobos - Obras para Piano - Cristina Ortiz - De 1987 , este é o recital perfeito de Villa-Lobos . Ela toca as Bachianas Brasileiras nº 4 (na versão para piano solo), 7 peças do Guia Prático , 2 Cirandas , o Ciclo Brasileiro e peças avulsas . Preste atenção à Caixinha de Música Quebrada , à Valsa da Dor , às Impressões Seresteiras , às Três Marias , à Caixinha de Música Quebrada e às Saudades das Selvas Brasileiras nº 2 . Tudo exala Brasil . Um Brasil que, certa vez, se viu maior e hoje não sabe mais se pode sonhar . - Wolfgang Amadeus Mozart - Concertos para Piano nos. 18 e 19 - Tocando e regendo o Consort of London - Mozart, por Cristina , é uma maravilha . Nem um pouco exagerado ou supercolorido . Tudo na medida do bom gosto . O especial, aqui, é o Concerto nº 19 , uma obra ambígua que deve soar exatamente como soa aqui . Desconheço o tamanho da contribuição da Cristina para com a orquestra , mas esta está sublime . Para Cristina , reger do teclado é como fazer Chamber Music em grande escala. - Alma Brasileira : Panorama du Piano Brésilien au XXe (não confundir com Brazilian Soul , de 1974 ) - Um dos discos mais importantes da pianista é esse , em que ela, mais uma vez, se debruça sob um repertório completamente brasileiro . De 2004 , para a gravadora francesa Intrada , contém obras de Alberto Nepomuceno (como a imortal " Prece "), Mozart Camargo Guarnieri , Oscar Lorenzo Fernandez , Heitor Villa-Lobos e Fructuoso Viana . Cristina fez mais do que qualquer músico (erudito ou popular) na divulgação da música brasileira . Acho que foi a única pessoa do mundo a gravar os 5 Concertos para Piano de Villa-Lobos (com Miguel Gomez-Martinez e a Royal Philharmonic , de Londres). - Cristina Ortiz , Antonio Meneses , Villa-Lobos - L´Oevre pour le Violoncelle et le Piano - Este disco saiu em 2007 e conta com dois dos maiores talentos instrumentais do Brasil. Antônio Meneses é um violoncelista que impressionou ninguém menos que o maestro austríaco Herbert von Karajan , que, nos anos 80 o convidou a gravar " Don Quixote ", de Richard Strauss e o Concerto Duplo de Johannes Brahms (com Anne-Sophie Mutter ao violino e a Filarmônica de Berlim ). Ele entrou e saiu do Beaux Arts Trio , fez 3 gravações das 6 Suítes para Violoncelo de J. S. Bach (Phillips, 1994 ; Avie Records, 2004 ; e Azul Music, 2023 ) e duas dos Concertos 1 e 2 e da Fantasia para Violoncelo e Orquestra de Villa-Lobos . - Heitor Villa-Lobos - Choros nº 11 - Com a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo , regida por John Neschling - O disco contém, ainda, os Choros nos. 5 " Alma Brasileira " (tocado por Cristina) e 7 " Settiminio " (por um septeto da OSESP ). De 2008 , não pode permanecer adormecido nas prateleiras . Falo tanto pelo repertório quando pelas interpretações . O 11 é grandioso , exuberante e gigantesco : são três movimentos , dos quais o último , ultrapassa os 26 min . - Clara Schumann - Música para Piano - Lançar um disco inteiro dedicado às composições de Clara Schumann , esposa/viúva de Robert Schumann , não tem como deixar de ser uma declaração feminista - especialmente em 1996 , ano em que o LP foi lançado. Mas antecipemos o dia em que não mais o será . Não porque o movimento feminista esteja ruim, mas porque Clara (e tantas outras) é uma compositora invejável . Ela merece discos dedicados às suas composições . E este disco, que contém 8 peças chamadas Romances , 2 Scherzos mais virtuosísticos, as 4 Pieces Fugitives e as Variações Sobre um Tema de Robert Schumann , é, realmente diferente de todos dedicados à obra de Clara , pelo repertório (mais tardio) e pela execução perfeita . Comente ! Aqui , uma lista de nossas postagens . E muito boa tarde !

  • Perfil: Alice Sara Ott - Miyazaki do Piano

    A figura esguia, mas segura, da pianista nipo-germânica Alice Sara Ott é imponente. Aprendeu piano com a mãe, a partir dos 4 anos; aos 5 foi finalista de um Concurso Para Jovens em Munique; aos 7 foi vencedora da competição Jugen musiciert; e aos 7 foi nomeada pianista mais promissora, na Competição Internacional de Piano Hamamatsu. Assim como Khatia Buniatishvili, tem uma irmã pianista, com quem faz dueto (Mona Asuka Ott). Para falar em beleza, Alice Sara, se fôssemos dar importância a isso, é uma das pianistas mais belas. Transmite uma tranquilidade... Sei que não ligamos para isso, mas é bonita! Alice Sara Ott Alice Sara nasceu em Munique, Alemanha, de pai alemão e mãe japonesa. Para ela, "música era a linguagem que ia muito além de palavras e que ela queria se comunicar e expressar através da música". Não sei vocês, mas se eu escutasse minha filha falar assim, ela IRIA ser uma virtuose. Os pais dela pensaram o mesmo, colocando a menina em aulas de música aos 4 anos. Alice Sara é tão impressionante que conseguiu, por volta dos 20 anos, se tornar uma concertista com carreira internacional. Mesmo que seu repertório não seja estrondoso. A inferir pelos seus discos, toca Sonatas não muito chamativas de Beethoven; Valsas de Chopin; Peças Líricas de Grieg... Mesmo assim, seu primeiro disco foi um com os 12 Etudes d'Exécucion Transcendante, de Franz Liszt. que estão entre as peças mais incrivelmente complicadas do repertório romântico, e ela tira de letra. Em fevereiro de 2019, divulgou no seu Instagram que tinha sido diagnosticada com Esclerose Múltipla - um distúrbio autoimune que é repleto de sintomas e pode atacar o cérebro. Mas Alice Sara diz que não vai parar de tocar, que seu caso específico pode levar a uma vida normal. Alice, com o maestro Zubin Mehta tocando e regendo o Concerto em Lá menor de Edvard Grieg. Alice Sara Ott - Como um pianista escolhe seu piano? Quando um pianista vai se apresentar, a sala de concerto oferece algo entre 2 e 8 pianos diferentes. Em 2023 lançou o álbum Beethoven, com sonatas e concertos de Ludwig van Beethoven (o concerto nº 1, com a Orquestra Filarmônica da Rádio Holandesa e a maestrina Karina Kanellakis, outra face promissora). Elas vão quebrando uma profunda tradição machista da execução da música clássica: se outrora poderia haver uma pianista mulher, desde que com um regente a lhe domar, agora, temos pianista e regente. Alice Sara com Karina - duas das maiores intérpretes clássicas femininas. Também assim como Khatia, é dada a gravar o que eu considero bobagens, como a trilha sonora do filme "Lara" e "Nightfall", um recital que tem umas obras do francês Erik Satie (sempre as mesmas). Mas gravou a versão para 2 pianos de "A Sagração da Primavera". O crítico inglês Norman Lebrecht escreveu absurdos (transcritos abaixo) a respeito de Alice Sara, que não se conformou e colocou tudo no seu Instagram. Com respostas! Basicamente, ele se queixava (sabe que não é ninguém para se queixar) das obras de Beethoven, a Sonata nº. 17 e o Concerto nº 1, que, para ele, são obras quase infantis, em que o pianista não tem que se esforçar muito para tocar. Ele atribuiu isso à Esclerose Múltipla com que ela fora diagnosticada. E criticou, também, a pianista por ter tornado a esclerose pública. Pura maldade, né? Lebrecht é um crítico insignificante na vida dessas meninas e Alice teria deixado tudo para lá. Mas ela diz que divulgou sobre a doença justamente porque esta é muito incompreendida, cercada de preconceitos. Ela também respondeu às críticas dele porque elas eram muito não-informativas. Lebrecht é também um bully. Como autor, escreveu vários bons livros de fofoca, dentre os quais, recomendo "O Mito do Maestro" e "Maestros, Obras-Primas e Loucuras". Com o maestro norte-americano Lorin Maazel, executando o Concerto em Lá Menor, de Edward Grieg. Sobre Alice Sara Ott: Nasceu em Munique, Alemanha Tem 35 anos É a rainha da simpatia, está sempre sorrindo É endossada pela fabricante de pianos Steinway & Sons Tem contrato com a gravadora Deutsche Grammophon, de Berlim, Alemanha Teve sua epifania musical por acidente: seus pais, sem encontrar babá, a levaram a um recital Já gravou mais de 10 discos Seu primeiro álbum com a Deutsche Grammophon contém os 12 Estudos de Execução Transcendental. Ouça o nº 10, que antes era, por direito, de André Watts É sublime, sua interpretação do Concerto de Grieg Alice é, também, uma talentosa designer e ilustradora Discografia sugerida Liszt - Estudos de Execução Transcendental Tchaikovsky e Liszt - Os Concertos para Piano nos. 1 - Com a Filarmônica de Munique, regida por Thomas Hengelbrock Edvard Grieg - O Concerto e Peças Líricas - Com a Sinfônica da Rádio Bávara, regida por Esa-Pekka Salonen (2006) Chopin - Echoes of Life - A ideia do disco é apresentar os Prelúdios, Op. 24, de Chopin, intercalados com peças que ela acha terem a ver. Vale só pelos prelúdios, que ela toca como ninguém (menos a Martha) Beethoven - Concerto para Piano nº 1, Sonata para Piano nº 14 "Ao Luar" - O disco mencionado acima, com a americana Karina Kanellakis Scandale - A 2 pianos, com Francesco Scandale - Contém a "Sagração da Primavera", de Igor Stravinsky e "La Valse", de Maurice Ravel Comente! Abaixo, uma lista de nossas postagens. Link! E muito boa tarde!

  • DBS - Deep Brain Stimulation - o marca-passo da salvação

    Olá! Nessa postagem vou relatar, na melhor das minhas possibilidades, minha experiência com a DBS (traduzindo: Estimulação Cerebral Profunda), procedimento cuja cirurgia eu fiz dia 13 de janeiro de 2024. Originalmente desenvolvida para pacientes com Mal de Parkinson, Tremor Essencial e Distonia, todos males neuromotores, logo passou a ser testado para tratar condições neuropsiquiátricas: Transtorno Obsessivo-Compulsivo, Epilepsia e, mais recentemente, Depressão. DBS não é, nem mesmo, o nome da cirurgia - a neurocirurgia é para implantação do material físico que tenho que trago comigo. Benéfico ou danoso? Saiba que, na maioria das vezes, DBS é benéfico. Trata-se da implantação de um neuroestimulador, eletrodos, bateria e os fios relacionados. Alguns vão no cérebro. Já a bateria fica sob a clavícula. No tratamento da Depressão, eu a indicaria para quem já tentou de tudo, mas nada funcionou. Mas apenas com suporte financeiro (do plano de saúde). Quem está em um momento "terminal" da doença, inclusive com possibilidade de suicídio, vá atrás. Há bons neurocirurgiões em todos os lugares do Brasil. E do mundo. Primeiro (Como fazer?) Fui ao meu psiquiatra, dr. Joel, que, vendo que nada havia funcionado, sugeriu que eu fizesse uma consulta com um neurocirurgião, dr. Flávio. Este garantiu que meu Plano de Saúde cobriria os absurdos custos com o procedimento e com os materiais: eletrodo, fio (que perpassa a cabeça) e gerador de pulso - estimativa pessoal: isso sairia, com os médicos, entre R$ 300 e 400 mil. Não sem luta, o plano cobriu e partimos para achar um médico especializado no procedimento - dr. Osvaldo, de Goiânia. Então, fale com seu psiquiatra ou com um neurocirurgião. Mesmo que ele não tenha participado de um processo assim, vai conhecer quem possa te ajudar. Por isso e por tudo, agradeço muito a todos os médicos, enfermeiras e auxiliares envolvidos. No final das contas, algo entre 8 e 12 médicos compareceram à sala de cirurgia - meu pai, dr. Henrique, que é médico e fez tudo para que o plano aceitasse arcar com os custos do procedimento, incluso. Sei que fui o primeiro paciente a fazer a cirurgia dupla (talvez do mundo). Parece que o meu psiquiatra, o Joel, compareceu, no final, mas nesta hora eu estava anestesiado e os relatos acerca de sua presença são vagos. É o momento em que implantam, por baixo da pele, o fio que liga a bateria ao estimulador. Tudo, por baixo dela e por uns 30-40 cm. O paciente deve estar inconsciente. Não falo para me gabar - mérito é todo da equipe. Se você entende inglês, sugiro que assista a todos os vídeos e leia todas as matérias que vou sugiro no fim da postagem. Dr. Osvaldo fez a parte técnica da cirurgia, junto com dr. Flávio. Para completar, dr. Osvaldo me ofereceu uma cirurgia dupla - ablação e implante do equipamento que faz o DBS. A única parte dramática foi a implantação de um halo - parafusado - literalmente cercando o cérebro. Ele serve como uma espécie de bússola e é essencial para guiar o cirurgião, que tem coordenadas milimétricas para seguir em uma neurocirurgia. Falo dramática (não, não fiz drama) porque eles vão aparafusando um enorme objeto metálico - e você sente cada centímetro - e você tem que conviver com ele por horas (no meu caso, mais de 8 horas) de intensa dor de cabeça. Horrível, mas não desanime. Se eu suportei, você tira de letra. Halo fixo, cabeça doendo, é hora do implante. Não existe apenas o ponto em que o estimulador ficará, mas todo o caminho por onde ele passará, que o dr. traça a partir de cálculos e uma ressonância magnética transcraniana - feita mais cedo, no mesmo dia. Na medida em que ele vai progredindo em inserir o gerador, que tem o tamanho de, pelo que sei, um mindinho, ele vai pedindo coordenadas para o próximo milímetro à sua colega (dra. Issa). Nessa parte estou bem, nós não sentimos dor no cérebro. O médico que fez a minha cirurgia especializou-se em depressão. São coordenadas diferentes, e a intensidade do aparelhinho, também é. Eu faço esta observação porque é como tratamento para Parkinson que você vai encontrar pela internet, a abertura para depressão é bem recente. Em seguida, os demorados procedimentos são iniciados, com o paciente acordado. Foram 8 horas em que eu não senti nada – só a dor de cabeça, infernal. Depois, sala de descanso (não carece de UTI) e, uma ou duas horas depois, apartamento. E casa, no dia seguinte. Demorados Procedimentos e Resultado Com a minha autorização e do meu pai, o dr. Osvaldo realizou duas cirurgias diferentes em mim - a ablativa, em que uma parte do cérebro é lesionada (queimada à inutilidade), e a DBS, em que os componentes necessários para o tratamento DBS são implantados. Já nessa fase, eu me sentia bem. Digo da depressão. E não me refiro ao DBS, mas à parte ablativa da cirurgia. Sério. Não sinto nada de ruim até hoje. Tudo bem, a memória foi melhorar de maneira simbólica, os movimentos do corpo estão íntegros, mas débeis. Mas, a verdade é que, para todos os efeitos, não tenho mais depressão. Se você tem um bom plano de saúde, ou muito dinheiro (imagine... pessoas pobres têm que conviver com essa horrível depressão), sugiro que ouça um médico e, se for o caso, faça a cirurgia. Mas lembre que é uma neurocirurgia, portanto, há sempre riscos de complicações. O gerador de pulso, veio um homem de preto da Nasa ligar. E ele não faria se não fosse um manual enorme que trouxe. E ficavam dois dos médicos, lá de Goiânia, dando instruções o tempo todo. Mas é quase um milagre. Milagre da ciência. Ainda não recuperei o meu senso de humor, mas estou voltando. Os Efeitos Adversos Eu tive umas complicações que, provavelmente, nada tiveram com a cirurgia. Dor de cabeça aguda, diarréia incontrolável, incontinência urinária, fraqueza muscular, tremores, emagrecimento rápido (40 quilos em 2 meses) e (calma!) falta absurda de memória, dificuldade de concentração, começava uma frase e não sabia terminar, não andava e (juram) fiquei rude. Mas é isso. Quando tive essas reações fui ao hospital (Hospital Regional da UNIMED, que foi terrível, até porque não tinham quartos e eu fiquei improvisado em uma tenda no corredor, e Hospital São Camilo) e detectaram que era carência absoluta de potássio. Fiquei lá por catorze dias, em abril (entendem por que não fiz o relato antes?). Fora uns episódios de moderada agressividade contra a minha amada esposa (pouca) e o descontrole sobre as atividades fisiológicas, o lado bom é que eu estou curado da depressão. Sobre essa última parte, dos efeitos adversos, preciso lhes contar que, mesmo com eles, eu faria a cirurgia de novo. Sou outra pessoa, tenho (acho que literalmente) outra cabeça. E os médicos, todos eles, acharam muito estranho que tudo isso tivesse acontecido logo depois da cirurgia. Todos deram diagnósticos alternativos, que podiam não levar em conta o fato de termos posto um ratinho no meu cérebro. Ou diagnosticaram uma reação em cadeia - primeiro, o emagrecimento, daí, o potássio, anemia etc. Considerações finais Que fique claro, para quem deseja se aventurar (ou não tem alternativa), que o potencial máximo da cirurgia é esperado para um ano após. Mas uma melhora, cada vez mais perceptível, vai se fazendo notar a partir da data da operação. Eu, que tinha certeza que ia morrer com depressão. Talvez de depressão. Esse mundo em que estou bem é novo para mim. E eu vim recomendar a cirurgia, sim. Totalmente! Já falei que estou há quatro meses sem chorar? Sobre a DBS, no site do Instituto de Psiquiatria do Paraná Sobre a DBS, pelo dr. Diego de Castro Vídeo curto (em inglês) Vídeo curto 2 (em inglês) Matéria (em inglês) Vídeo (em inglês) da CNET Espero que o texto seja de auxílio para aqueles que vivem essa infernal depressão. Ele complementa esse aqui. A partir de amanhã, sábado, dia 27/04/2024, devo ir voltando com as atividades normais, sobre música clássica, da Arara Neon! Lista de postagens da Arara!

  • Perfil: Yuja Wang - A Encantadora de Pianos

    Por Rafael Torres Nascida em Beijing, em 1987 e tendo estudado piano desde os 6 aninhos, mudou-se aos 14 para a América do Norte, onde se matriculou no Instituto Musical Curtis (Filadélfia). Lá, estudou com o grande pianista Gary Graffman. É linda, carismática, talentosa, inspiradora, melhor que Lang Lang e uma pianista que quase toca a perfeição. Yuja Wang Yuja Wang (王羽佳) Beijing, China 10 de fevereiro de 1987 (37 anos) Brevíssima biografia Yuja é de uma família de artistas: mãe, Zhai Jieming, dançarina; pai, Wang Jianguo, percussionista. A mãe começou a ensinar-lhe os rudimentos do piano quando ela tinha 6 aninhos. Mas a epifania musical da menina veio quando sua mãe, a fim de despertar-lhe o interesse pela dança, levou-a uma apresentação de "O Lago dos Cisnes" (música de Piotr Tchaikovsky que ganhou várias coreografias ao longo do tempo). Yuja percebeu que não gostava de dançar, mas ficou fascinada pela música. Entre os 7 e os 14 anos teve apenas uma professora de piano, Ling Wan, no Conservatório Central de Música, na mesma Beijing. Segundo Yuja, mais do que uma tutoria, a professora lhe proporcionava uma convivência voltada à cultura, com visitas a museus, concertos... "Era como uma mentora", ela define com carinho. Mas aos 14 anos, Yuja já dava sinais de que ao piano dedicaria todos os seus esforços e que queria se profissionalizar, de modo que, aos 15, ela debandou para o Canadá e, depois, os Estados Unidos. Precisamente, para Curtis Institute of Music, em Filadélfia. Mais precisamente ainda, para as mãos do professor e internacionalmente celebrado pianista concertista Gary Graffman (ainda vivo, mas olha... tem 95 anos), com quem se formou em cinco anos (em 2008) e que até hoje é só elogios à pequena aluna. Sobre Graffman: gravou repertório solo e concertante, este com alguns dos maiores regentes do século XX! Como Charles Munch, Eugene Ormandy, George Szell e Leonard Bernstein. Escute um pouco da arte de Gary Graffman nesse disco que selecionei. Ou seja intrépido e digite no YouTube o nome dele! Voltando à Yuja. Li em algum lugar que seu plano era ultrapassar Martha Argerich. Já vou dizendo, Martha não deve estar longe de se aposentar e Yuja pode, muito bem, ocupar seu trono. Mas, se o plano for esse mesmo, lhe falta algo para poder ser considerada a sucessora da Martha: sua técnica é fenomenal, mas a da Martha é mitológica; sua discografia é estrondosa, mas não tanto quanto a absoluta da Martha; e Yuja tem que afiar ainda mais seu pianismo. Só eu notei que, quando corre mais, ela erra demais? De maneira muito sutil, ela atropela algumas passagens e borra outras. Veja o vídeo abaixo, de Martha Argerich tocando o Jeu D'eau, de Maurice Ravel. E repare na clareza. Veja, abaixo, 6 finalizações impressionantes da Yuja de obras variadas - e, às vezes, a reação do público, que ela tem na palma da mão. A Carreira de Yuja Yuja se formou em 2008, certo? Eu lembro que por volta dessa época eu já escutava falar em seu nome. Meu irmão morava em São Paulo, na época, e, se não me engano, foi a um recital dela. (A propósito, dizemos ter ido a um recital quando a atração é um músico só, ou dois. Quando é um conjunto maior, mesmo que não inclua piano, chamamos de concerto. Você pode até ir a um concerto com orquestra e piano em que eles não toquem Concerto algum). A ocasião em que seu nome se tornou internacionalmente conhecido foi a inclusão, em 2009, no YouTube, do vídeo de uma apresentação sua com o maestro Kurt Masur, tocando o Concerto em Sol Menor de Félix Mendelssohn, filmada no Festival Verbier, Suíça. Meu irmão jurava que Masur gritava com ela. Assim, como os músicos fazem quando querem deixar a marcação de tempo bem clara (mas bem clara, mesmo). Eu sempre achei que o grito fosse para a orquestra. Se tiver ficado curioso, repare na marca de 1m49s. Ele dá um grito, claro. Mas Yuja está perfeitamente no tempo. O flautista é que me parece não estar conseguindo acompanhar o ritmo frenético. Ouça também o Concerto para a Mão Esquerda, de Ravel, com Orchestra dell'Accademia Nazionale di Santa Cecilia, de Roma, junho 2016, sob a regência de Lionel Bringuier. Sim, o concerto é apenas para a mão esquerda. A direita fica relaxadinha, aí. E pronta para o iPad. Muito bem, sobre o álbum. A massa viciada de críticos musicais saudosos do que faziam os músicos 50 anos atrás correu para sua maquininha de escrever, pronta para lançar suas pequenas e disfarçadas injeções de peçonha. Há críticos YouTubers, críticos de revistas virtuais importantíssimas, críticos de jornal, de blog, de bermuda, na sala de casa... Eles deixaram de perceber, ou de acreditar, na própria relevância. Não que o álbum tenha sido desqualificado: a maior parte das críticas é sutilmente positiva. Algumas são francamente calorosas. Mas mesmo as positivas sempre têm uma leve e apurada pitada de pimenta. É algo que simplesmente não pode faltar, se o assunto for: dois músicos jovens não americanos (nem europeus). A gravação pode estar impecável, mas o jogo é mostrar que o crítico está acima. Ele é quem vai decidir se ficou bom. Isso vem por causa da baixa auto estima de grande parte deles. É simplesmente impossível encontrar um crítico que ainda se surpreenda com a técnica da Yuja. Mas a culpa disso não é dela, mas das décadas de gravações que temos (o próprio Rachmaninoff gravou essas peças, com a Orquestra de Filadélfia, regida ora por Leopold Stokowski, ora por Eugene Ormandy). Calma! Vou exemplificar, embora sem revelar o nome dos autores. Um trecho que sempre me chama a atenção é da seguinte categoria: "Ela traz inflexões mais afiadas e uma palpável assertividade às variações mais suaves, embora a meditativa Variação 16 (ele está falando da Rapsódia Paganini) se arraste, enquanto na versão com Abbado, ele a mantém à tona. Mesmo assim, eu sinto falta de Wild/Horenstein e Graffman/Bernstein, com o lépido intercâmbio em estilo concertante entre pianista e regente de suas versões." (É, críticos adoram citar o máximo possível de gravações, para mostrar que têm repertório) (E sim, ele gosta mais de Earl Wild e Gary Graffman - o professor da Yuja porque, basicamente, tocam mais rápido). Gente, Earl Wild e Jascha Horenstein gravaram a Rapsódia em 1977. Faz 46 anos! Gary Graffman e Leonard Bernstein a gravaram em 1964! 1964! Beatles! Não há problema algum gostar, admirar ou até idolatrar versões antigas. Algumas são mesmo imortais. O problema, o enorme problema, está em comparar as versões antigas com as novas nos moldes de uma das duas. O tempo cuidou de fazer com que os intérpretes atuais fossem moldados de outro jeito. Eles são da internet, do smartphone, do encontro às cegas do Tinder, são hiperativos, mesmo que tenham TDAH. Isso não os torna melhores ou piores intérpretes que um intelectual como Claudio Arrau e sua proverbial biblioteca cerebral. Mas muito muito diferentes. Pois bem, o que acontece: antigamente as orquestras não eram tão boas quanto hoje; os regentes eram mais versáteis, sim (e menos especializados); e os pianistas, mesmo os melhores deles, não se comparavam tecnicamente aos maiores da nova geração. Para completar, o som gravado era infinitamente inferior ao de hoje, e isso impacta absurdamente na percepção que temos, tanto positivamente quanto negativamente. Mas não cheguei ao mais importante. Os parâmetros de interpretação mudam sem pudor com o passar dos anos. O que se fazia 30 anos atrás pode parecer brega para uma plateia atual, que já ouviu centenas de gravações e concertos com essas obras e as conhece de cor. Os críticos ignoram gravações sofríveis de pianistas antigos, como Artur Rubinstein, Sviatoslav Richter. Lembro de uma vez em que simplesmente não aguentei escutar a 1ª Balada de Chopin tocada por Vladimir Horowitz porque era um desastre. Mas ponderei e concluí que, no passado, as expectativas eram outras. Veja mais essa, ainda sobre Wang/Dudamel: "Wang gravou o Segundo Concerto para a DG, em 2011, com Claudio Abbado, então eu estava curioso para ver se algo havia mudado ao longo dessa década. O andamento do novo primeiro movimento está mais para lento, quando consideramos versões bem dosadas como Howard Shelley-Bryden Thomson ou Kirill Gerstein/Kirill Petrenko. Se um maior senso de fluidez é desejável, Wang e Dudamel compensam com um som volumoso e uma inegável presença." "Mas é pelo vestido laranja de Yuja Wang que a terça-feira provavelmente será lembrada... Seu vestido de terça foi tão curto e apertado que, se fosse menor, a casa poderia ser forçada a restringir admissão de qualquer amante da música abaixo dos 18..." Esse crítico acha que inovou. Tal qual um adolescente de 18 anos, fez seu artigo a respeito da minusculidade da roupa de uma mulher que não pôde se defender (nem deveria). Essa não devia sequer ser a questão. Mas tudo bem, a crítica foi muito criticada. Caso em questão O recentemente lançado álbum Sergei Rachmaninoff: Os 4 Concertos para Piano + Rapsódia Sobre um Tema de Paganini, interpretados pela pianista chinesa Yuja Wang e pelo regente venezuelano Gustavo Dudamel, que rege a Orquestra Filarmônica de Los Angeles. São gravações ao vivo em uma abarrotada Walt Disney Hall, a sala da Filarmônica. Mas não se percebe. Nem uma tosse, som de cadeira, nada, quase nada. E o melhor: os aplausos são editados, não se ouve uma palmazinha, um bravo, ao fim de um concerto...! Isso me agrada! Leia sobre cada concerto nos links (não sobre estas gravações): Concerto para Piano e Orquestra nº 1, em Fá Sustenido Menor, op. 1, de Sergei Rachmaninoff; Concerto para Piano e Orquestra nº 2, em Dó Menor, op. 18, de Sergei Rachmaninoff; Concerto para Piano e Orquestra nº 3, em Ré Menor, op. 30, de Sergei Rachmaninoff; Concerto para Piano e Orquestra nº 4, em Sol Menor, op. 40, de Sergei Rachmaninoff. Trata-se do projeto mais ambicioso da carreira da talentosa pianista e um bom item no currículo do maestro venezuelano, que se despede da Filarmônica de Los Angeles (foi contratado pela Filarmônica de Nova Iorque) com um tremendo êxito. Isso mesmo. A glória não é por igual. A pianista colhe a maior parte dos louros, mas isso não é arbitrário. É dela o maior trabalho, desde estudar loucamente as cinco peças, todas reconhecidamente dificílimas, montar a concepção e descobrir um jeito de transmiti-la ao público. O regente, se for competente, vai acompanhar cada curva, cada acelerada, cada susto que ela, rindo, furtivamente, largar. A orquestra é excepcional, fantástica, mas um concerto para piano não é feito para a orquestra brilhar, mesmo os de Sergei Rachmaninoff. Ainda assim temos vários momentos em que a orquestra trouxe o peso (ou a leveza) exato. O dicionário não é muito generoso na seção de elogios desvairados. Pois bem, a supremamente talentosa Yuja Wang já havia gravado algumas dessas obras. O Concerto Nº 2 e a Rapsódia Sobre um Tema de Paganini, em 2011, com a Orquestra de Câmera Mahler regida por Claudio Abbado; e o Concerto Nº 3, em 2013, com a Orquestra Sinfônica Simón Bolivar e o próprio Gustavo Dudamel. Na gravação com Claudio Abbado ela, ainda muito nova, acatou a concepção camerística, de som pequeno (mas encantadora) do maestro. Sobre a primeira gravação com Dudamel, vi em algum lugar que ela ficou insatisfeita com o piano que a ofereceram em Caracas. Acreditem, não é bobagem ou estrelismo. Essa ferramenta de trabalho é tão sensível que alguns pianistas preferem viajar com o seu. E, naturalmente, a Walt Disney Hall tinha vários pianos para que ela escolhesse. A empreitada faz parte do projeto Rachmaninoff 150, da poderosa gravadora alemã Deutsche Grammophon (em alusão aos 150 anos que o compositor teria se vivo). As obras foram gravadas em dois finais de semana consecutivos, em fevereiro de 2023 e o disco duplo (ou o álbum digital ou, ainda, o LP triplo) foi lançado em 1º de setembro. Alguns fatos sobre ela: Veja sobre o concerto no Rio! Já tocou no Brasil e sempre se queixou de sons indesejáveis vindos da plateia - da plateia, qualquer som é indesejado. Na última ocasião, em 14 de março de 2024, ela tocou no Theatro Municipal do Rio de Janeiro e, enfurecida com esses sons, chegou a levantar do piano e retirar-se do palco. Como uma tia do 4º ano ensinando bons modos às crianças; É uma notória brigadora, quando o assunto é barulho na plateia e celular; Fala tantos idiomas quantos são exigidos de um concertista internacional; Especula-se que seu cachê seja em torno do 100.000 dólares por concerto; Namorou com o regente finlandês Klaus Mäkelä, mas já terminaram; Seus pais estão vivos e moram em Beijing; Já falei que Yuja é infinitamente melhor que o Lang Lang? Ela também rege; Discografia sugerida Sonatas & Etudes (2009) - O primeiro (ou segundo, pois há outro) disco de Yuja traz, no repertório, as Segundas Sonatas de Chopin e Scriabin e a Sonata em Si Menor de Liszt. Tem, ainda, 3 peças menores: 2 Estudos de Ligety e o famoso arranjo do pianista Arcadi Volodos de um Rondó à la Turca, de Mozart. Tudo tocado com precisão e expressão corretas. Transformations (2012) - Mais um recital, o disco conta com duas peças grandes - 3 Movimentos de Petrushka, de Stravinsky e as Variações sobre um Tema de Paganini, de Brahms, entrecortados por peças menores - Sonatas de Scarlatti e uma adaptação para piano solo de "La Valse", de Maurice Ravel. Brahms (2014) - as Sonatas para Violino e Piano - com Leonidas Kavakos ao violino - Kavakos deve ser o maior violinista vivo. Porque esse disco não é possível. Preenchido pelas 3 Sonatas para Violino de Brahms (+ 2 peças menores), dele você sai achando que é o disco perfeito. Blue Houer - com o clarinetista Andreas Ottensamer - Um recital de piano e clarinete repleto de obras de Mendelssohn (várias Canções sem Palavras) e Carl Maria von Weber (Grand duo Concertant). O duo, mais o violoncelo de Gautier Capuçon, reaparece tocando um trio de Brahms no disco Rachmaninoff & Brahms, de 2022. Gautier é o violoncelista da nossa época, enquanto Ottensamer é o primeiro clarinetista da Filarmônica de Berlim. Rachmaninoff (2023) - Os 4 Concertos para Piano + a Rapsódia Paganini - Com a Filarmônica de Los Angeles, regida por Gustavo Dudamel - Yuja está fantástica, aqui. A filarmônica e o maestro estão bem, mas ela está muito assertiva e incutiu em doses certas romantismo e modernismo (as 5 peças têm dissonâncias). Ela se preparou tanto, que chegou a gravar as obras, o 2º com Claudio Abbado e o 3º com o próprio Dudamel. A presença de Yuja no YouTube é famosa. Abaixo, alguns desses momentos mais célebres. A famosa e dificílima Toccata, de Sergei Prokofiev: O Prelúdio Op. 23 Nº 5, de Sergei Rachmaninoff: Comente, seu comentário é muito importante! Veja, no link abaixo, uma lista organizada de nossas postagens. Links para postagens anteriores! E muito bom dia!

  • Sinfônica de Londres - As Melhores Orquestras do Mundo 6

    Boa tarde a todos. Um texto menor (esticando meus tentáculos) sobre aquela que é, na minha opinião, a melhor orquestra da cidade de Londres e uma das melhores do mundo. Se estão aqui, perceberam que, ao menos essas 6 primeiras orquestras vieram em ordem um bocado arbitrária, não de qualidade. Por exemplo, toque um disco da Orquestra do Concertgebouw Real de Amsterdã e tente me dizer, objetivamente, em que aspectos a de Londres toca pior? Ou melhor. Isso, naturalmente, não vale se há uma discrepância muito grande entre uma e outra. Mas as 10, ou 20 melhores orquestras do mundo podem sempre te surpreender. Precisamos lembrar que, ao ser fundada, nos anos 30, a Sinfônica era a menos refinada entre as 5 orquestras sinfônicas de Londres: Sinfônica da BBC, Filarmônica de Londres, Royal Philharmonic e Philharmonia. Todas agradavam mais os regentes, o público e a crítica. Mas logo a sinfônica começou a galgar sempre mais alto. Resolveu seus problemas financeiros, contratou músicos e regentes de categoria e alterou duas cláusulas de contrato da orquestra que lhe deu origem: a Sir Henry Wood Queen's Hall. O que lhes ofereceu, na nova causa, uma carta de exclusividade (exclusiva por parte dos instrumentistas, que teriam tocar mais, recebendo menos). A instituição da LSO, no lugar, ofereceu um contrato de cooperativismo, com os músicos faturando cachês e honorários de gravação. Os regentes principais já foram Edward Elgar, Thomas Beecham, André Previn, Claudio Abbado e Valery Gergiev. Seus regentes principais recentes incluem: Michael Tilson Thomas Colin Davis Valery Gergiev Simon Rattle Antonio Pappano Sendo uma orquestra londrina, sua sala de concertos, desde 1982, é o Barbican Centre, assim como a Sinfônica da BBC. Custou o que hoje equivaleria a mais de 500 milhões de libras. Especificamente, a orquestra se apresenta no Barbican Hall, que tem capacidade de receber 1943 pessoas. Na tramoia (ou sistema de mosca) do teatro funciona o Barbican Conservatory, na verdade, uma estufa. Nos anos 60 a orquestra contratou por 10 anos o regente francês Pierre Monteux, então com 86 anos! Ele morreu 3 anos depois. Em 1964 o conjunto fez sua primeira turnê mundial, com o maestro húngaro István Kertész, passando por Japão, Turquia, Israel, Índia, Iran, Coréia, China e Estados Unidos. Desde 1966 a orquestra tem o Coro Sinfônico de Londres como parte de seu organismo. O coro é, tecnicamente, amador. Os profissionais que lá haviam foram removidos. Durante o mandato do maestro André Previn (1968-1979), a Sinfônica passou a ser considerada a melhor orquestra de Londres. Eles gravaram, entre outras coisas: O balé "A Bela Adormecida", "O Lago dos Cisnes" e "O Quebra-Nozes", de Piotr Tchaikovsky; O balé "Cinderella", de Sergei Prokofiev; Sinfonias nos. 88 e 96 de Joseph Haydn; Os 4 Concertos para Piano e Orquestra e mais a "Rapsódia Paganini", de Sergei Rachmaninoff, com o pianista russo Vladimir Ashkenazy; A Sinfonia Fantástica + Aberturas de Hector Berlioz; A 1ª Sinfonia de William Walton; "Sheherazade", de Nikolai Rimsky-Korsakov; Os 5 Concertos para Piano de Sergei Prokofiev, com Vladimir Ashkenazy; Eles conduziram o programa de TV "André Previn's Music Night", sobre o qual foi dito: "Mais britânicos ouviram a LSO tocar em Music Night em uma semana do que em 65 anos de concertos". Além de regente, Previn era pianista e compositor. Morreu em 2019. A LSO é a orquestra que gravou "Guerra nas Estrelas" e muitos outros filmes que você conhece. Como "Indiana Jones", "Superman", "Harry Potter" e, mais recentemente, a música de Bernstein para o filme "Maestro", de Bradley Cooper, com o maestro Yannick Nézet-Séguin. Em 1979, o italiano Claudio Abbado sucedeu Previn no posto de Regente Principal. Muitos dizem que foram as melhores temporadas de Abbado. Ele trouxe o repertório contemporâneo à orquestra, repertório com que eu não tenho muita afinidade, mas traz mais qualidade à orquestra, que, antes, só ia até Prokofiev (anos 20-40). Isso também melhora a leitura à primeira vista do grupo, pois muitas obras viriam a ser tocadas pela primeira vez por ele. Adoro Abbado, mas seu mandato teve problemas. Pacato por natureza, ele não sabia impor disciplina aos músicos. Além disso, diz-se que aprendia as peças em Londres e ia gravar em Viena ou Chicago. Era a antítese do comunicativo André Previn. Após Londres, Abbado surpreendeu ao se tornar o sucessor de Herbert von Karajan e assumir a Filarmônica de Berlim, entre 1989 e o princípio da década de 2000. Nos anos 90 o comediante e pianista Dudley Moore, sempre com algum músico prestigiado e a LSO montou o programa de TV "Concerto", que recebeu Grammys. Veja que talento ele demonstra ao não acabar nunca essa paródia de Beethoven. Depois, tivemos: Michael Tilson Thomas (a partir de 1987), americano, um estudante de Leonard Bernstein; Colin Davis (de 1995); inglês, muito bom; Valery Gergiev (de 2007), russo, ainda ativo; Simon Rattle (2017), inglês, ex regente da Filarmônica de Berlim, agora na Bavarian Radio Symphony Orchestra; Antonio Pappano (2024), italiano, ainda ativo. Todos já haviam trabalhado com a orquestra, antes, seja como regentes convidados ou assistentes. Quase todos são aquela bobagem de "Sir" que os ingleses têm. Alguns especialistas a classificam como a mais americana das orquestras londrinas. Pela quantidade de trabalho que realizaram com André Previn (alemão-americano) e Michael Tilson Thomas e por Leonard Bernstein ter sido presidente. Mas a verdade é que muito tempo já se passou. Além do mais, é uma orquestra com qualidade e personalidade próprias. E, principalmente, sonoridade própria. Instituição machista, por muito tempo não aceitou mulheres no seu corpo. Mas hoje, não fazendo mais que sua obrigação, aceita. Grava desde os anos 30 (com Edward Elgar e, posteriormente, a música dele com vários maestros), passando por todas as décadas e os mais importantes regentes dos tempos. Gravações importantes Ludwig van Beethoven - As 9 Sinfonias - Com Josef Krips Sergei Rachmaninoff - Sinfonia nº 2 - Com André Previn Sergei Prokofiev - Os 5 Concertos para Piano e Orquestra - Regidos por André Previn, com Vladimir Ashkenazy ao piano Igor Stravinsky - Os balés "O Pássaro de Fogo", "Petrushka" e "A Sagração da Primavera" - Regidos por Simon Rattle Béla Bartók - Suíte de "O Mandarim Miraculoso", Concerto para Piano nº 3 - Com Yefim Bronfmann, ao piano, e Valery Gergiev Maurice Ravel - Obra Orquestral Completa - Com Claudio Abbado Comente! E confira aqui uma lista com nossas postagens.

  • Um Cogumelo Alucinógeno para Depressão - Psilocibina

    Por Rafael Torres. Editado e Aprimorado em 16 de dezembro de 2023. Este texto, caótico, extenso e detalhado como é, é o exato texto que eu queria ter lido anos atrás, quando comecei o tratamento para Depressão Maior. Ele existe para o leitor, especialmente aquele que sofre deste mesmo mal ou que convive com alguém que sofre. Por esta razão, o leitor que não se enquadra nesse perfil vai se deparar, constantemente, com palavras que parecem se dirigir pessoalmente a si, mas não fazem um sentido absoluto. A lição final, darei logo: nunca desista. O suicídio não é produtivo. Não traz benefícios a ninguém e (sabe-se lá o que vamos encontrar depois da morte), possivelmente, não resolve nada. Por mais profunda que seja a dor e por mais desanimadores, ou até desesperadores, que sejam os pensamentos, há sempre um novo remédio, uma nova terapia, um novo tratamento. Isso (a experimentação constante de remédios, terapias e tratamentos) me manteve vivo até hoje. E haverá de manter mais um bocado. Nós, depressivos, nos entendemos. Sabemos, ou, pelo menos, julgamos saber o que é a verdadeira dor. Aquela que a psicanálise, de maneira tão certeira, alcunha de "dor de existir". Uma dor pior que qualquer tortura. A tortura que vem de dentro. Primeiramente, Alguns Esclarecimentos Drogas Na terminologia que usamos no Brasil, o termo "droga", não descreve, geralmente, medicamentos, ou seja, fármacos. Em alguns países, no entanto, como os Estados Unidos, a palavra "drug" pode se referir tanto a um remédio quanto à mais prejudicial e ilícita substância psicoativa. Nós vamos nos ater ao sentido atual da palavra no Brasil: uma substância cultivada, sintetizada, geralmente de maneira ilegal (mas nem sempre), ou buscada de outro país (traficada), que altera o estado de consciência do usuário. Para o bem ou para o mal. O importante, aqui, é que conheçamos e saibamos diferenciar alguns dos tipos de droga. E, com isso, reduzir nossa natural antipatia e repulsa por alguns deles - e as dilatar, em outros. Temos: O Álcool - mesmo não sendo ilegal, possui características que tornam seu consumo perigoso e viciante. Acredito que a postura social mais correta seria uma dentre as duas a seguir: 1. Seu banimento (que o tornaria ilegal e ele passaria a ser comercializado por organizações perigosas e fortemente armadas, de modo a bater de frente com as forças policiais, e, a pior figura do cenário, o consumo não seria inibido, nem mesmo de maneira sutil). 2. A legalização e regulamentação de outras drogas menos danosas (e apenas as menos danosas), elevando-as ao mesmo status do álcool. Drogas Psicosilépticas ou Depressoras: como o ópio e a morfina, muito usados antigamente. O primeiro, como substância recreativa e o segundo, se formos crer nos filmes de guerra, como uma espécie de anestésico. Mas o membro mais conhecido desse grupo nos dias atuais é a Heroína. Esse tipo de droga causa uma diminuição da atividade cerebral, de modo que todo o organismo (e, naturalmente, o próprio comportamento da pessoa) fica lento. Causa vício após o consumo de poucas doses, tem alto potencial de tornar o usuário inútil socialmente e pode levar à morte; Alucinógenos: podem ser sintéticos, como o LSD e o Ecstasy, ou naturalmente encontrados em cogumelos, como é o caso da Psilocibina e em plantas, como as que compõem o Chá de Ayahuasca (não, a planta não se chama Ayahuasca, ao menos no Brasil); Drogas Estimulantes: Incluem-se a Cocaína, o Crack, a Metanfetamina e até mesmo a Cafeína. Essas substâncias fazem aumentar a atividade pulmonar, podendo proporcionar uma sensação de euforia e diminuição do cansaço, e fazem aumentar a sensibilidade dos sentidos, gerando, em certos casos, um estado de alerta e agitação. Algumas delas são extremamente danosas, destroem facilmente a vida do usuário e dos que o rodeiam, e matam, através da superdosagem. Todos conhecemos a dramática jornada de um usuário de cocaína ou heroína. Ele fica viciado em pouco tempo; precisa de doses cada vez maiores para atingir seu efeito esperado; precisa de doses cada vez mais frequentes, também, já que o efeito vai durando menos tempo, quanto maior for o uso; seu comportamento muda negativamente; torna-se agressivo e difícil de conviver; depois que gasta todo o seu dinheiro com a droga, passa a usar o dinheiro alheio (com ou sem o consentimento da pessoa em questão); finalmente, com o aumento da dosagem e da frequência de utilização, a ocorrência de uma superdosagem (overdose), que pode ser fatal, vai se tornando inevitável. O que a maioria das pessoas não sabe é que os chamados alucinógenos As Drogas que Podem Ser Usadas de Maneira Proveitosa (Proveitosa para algumas pessoas com saúde comprometida, diga-se.) As substâncias com menor potencial danoso, mas que alteram o estado de consciência de quem as usa, vêm sendo estudadas pela medicina, pela indústria farmacêutica e pela neurociência desde os anos 1950, tendo sido detectados promissores materiais para o tratamento de Depressão e outros transtornos mentais. Vários estudos, alguns dos quais estão listados abaixo, apontam que substâncias não viciantes, como a Psilocibina, encontrada em um tipo de cogumelo, trazem benefícios terapêuticos maiores do que os mais modernos medicamentos. Esses estudos mostram com cada vez maior eloquência que alguns alucinógenos podem fazer melhorar dramaticamente a qualidade de vida (potencialmente, inclusive, podendo salvar a vida) de pessoas com Estresse Pós-Traumático, Depressão Refratária (aquela que é resistente a tratamentos), Ansiedade Crônica, dependência de drogas viciantes e outros Transtornos de Personalidade. Vídeo totalmente opcional: Efeitos da Psilocibina Não se sabe ao certo como tudo funciona. A Psilocibina, encontrada em cogumelos alucinógenos, por si mesma, não faz nada. O nosso corpo é que a converte em Psilocina, que é o verdadeiro agente psicodélico. Sabe-se também que a humanidade descobriu e tira proveito de seus efeitos desde muito antes da história escrita. Na Espanha, nas proximidades da cidade de Villar del Humo, foram descobertas pinturas rupestres com 6.000 anos de idade, que, provavelmente, retratam o Psilocybe Hispanica, um dos cogumelos que contêm a Psilocibina e que abunda na região. Os Maias, ainda mais devotos, dedicaram verdadeiras esculturas em pedra à variante mesoamericana do fungo. Os Aztecas o chamavam de teonanácatl. Carne de Deus. Os povos siberianos fazem uso ritual e religioso do seu cogumelo Amanida Muscaria há milhares de anos. Os efeitos comuns da ingestão da Psilocibina, que começam a se manifestar em cerca de 30 minutos, podem variar muito e dependem de fatores como conforto, estado psicológico e até mesmo da música colocada para ouvir. Em estudos realizados desde os anos 60, cientistas constataram que a experiência tende a ser mais prazerosa em pessoas que já fizeram uso de substâncias alucinógenas anteriormente e, também, mais positiva quando feita em grupos de até 5 pessoas. Os estudos foram feitos em grupos e dosagens de vários tamanhos. Voltando aos efeitos. Depois de uma série de sintomas iniciais, que podem incluir tontura, náusea e, até mesmo, vômito, a pessoa passa a ter sensações agradáveis e elevação da empatia. Se administrada em uma dosagem específica, no seu apogeu, o indivíduo vivencia uma experiência mística, que, em seu estado perfeito, é a clara percepção de pertencimento ao universo, de se ter aprendido algo de extremo valor sobre a existência, conversado com o cosmos ou com o seu mais profundo subconsciente, além de alucinações visuais (que o indivíduo tem plena consciência de serem irreais e tem plena capacidade de diferenciá-las da realidade) e, em alguns casos, sinestesia, uma espécie de confusão que ocorre com os sentidos (a pessoa acha que certa música tem cheiro de alecrim ou sente cócegas na mão ao se deparar com a cor lilás, por exemplo). Ao Início Uma história que meu irmão me contou e que nunca saiu da minha cabeça: no colégio, a psicóloga vai até as salas para se apresentar. Quem precisar de ajuda, estiver se sentindo diferente, triste ou raivoso, pode procurar por ela. Para ganhar a cumplicidade e a simpatia dos alunos, ela tem várias frases de efeito. Mas a da escola do meu irmão soltou uma verdadeira pérola: "Psicólogo não é médico de doido!", ela afirma. "Psiquiatra é que é." Falta de preparo total da moça! Mas uma coisa estava certa nessa situação: toda escola tem que ter psicólogos. De preferência, bem esclarecidos. Eu ri muito quando ele me contou, sem prever que, em pouco tempo, eu seria conhecido por todos os "médicos de doido" de Fortaleza. Pesquisas (algumas das quais estão listadas no final do texto) indicam que um cogumelo alucinógeno que contém psilocibina, quando comparado, por exemplo, ao Escitalopram (um de seus nomes comerciais é Lexapro), tem um efeito terapêutico muito superior e mais rápido que o do remédio no tratamento à depressão. Li muitas informações sobre isso, mas o que eu queria era fornecer uma experiência em primeira mão, em primeira pessoa, sem os comprometimentos de uma reportagem. Primeiramente vou fazer uma breve síntese sobre o tratamento, vou tentar explicar leigamente como funciona a Depressão e os remédios e, por fim, me aprofundo na minha experiência, tanto com a Depressão, quanto com o cogumelo. A Psilocibina, agente alucinógeno presente em alguns cogumelos, tem sido testada no mundo inteiro como tratamento para pessoas com Depressão Resistente a Tratamentos (DRT), igualmente conhecida como Depressão Refratária. A primeira coisa que você deve saber é que, assim como o LSD, a Psilocibina não vicia. E, nas dosagens propostas, não causa efeitos colaterais significativos. O paciente deve administrar (engolir, mesmo) os cogumelos na dosagem correta, com o consentimento do médico e, de preferência, em um ambiente controlado, familiar, agradável e escutando seus discos preferidos. Só não posso ajudar o leitor no que diz respeito à aquisição do produto. Não é legal. Ou, de maneira menos ambígua, é ilegal. Mas o paciente não vai comprar esses cogumelos de um traficante armado e perigoso. As pessoas que lidam com isso se definem como "criadores de cogumelos medicinais". São ilegais porque as autoridades não enxergam que se elas, as próprias autoridades, regulamentassem o comércio dessas plantas, tornando-as legais (não apenas para uso medicinal), o benefício para o país e para toda uma sociedade trabalhadora que sofre assaltos, sequestros, assassinatos e os mais diversos crimes, seria imensurável. Sim, porque o assaltante tem arma porque lida com a polícia, já que o que ele faz, que é vender drogas, é crime. E, no fim das contas, quem compra a droga e alimenta essa cadeia nojenta, é o mesmo filhinho de papai que foi assaltado e, no mesmo dia, ganhou um celular novo. E melhor. Pois bem, voltando aos cogumelos sem o amparo de arroubos de discurso sociológico. Após pesquisar um bocado, resolvi tomar a Psilocibina, com a aprovação de dois médicos. Mas em casa. Devo dizer que não tenho nenhuma experiência com drogas recreativas, acho cocaína e heroína as coisas mais decadentes do mundo. Não julgo quem gosta, mas realmente não é para mim. Certa vez passávamos na calçada e a minha esposa falou: "Eita, que cheiro de maconha!". Eu não reconheci, porque nunca estive em rodinhas de apreciação da erva. (Nota mental: lembrar de perguntar à esposa como é que ela conhece o cheiro de maconha.) Esse texto vai tratar: Da minha experiência com Depressão Maior Refratária; Da minha saga em busca da cura, ou do melhor tratamento; Dos diversos tratamentos existentes, lembrando que o texto se destina a pessoas com depressão ou a parentes dessas pessoas; De explicar, no melhor das minhas possibilidades, o que acarreta a Depressão; E da minha experiência com o a terapia com Psilocibina. Passo a passo. Eu me deparei com diversos tratamentos que permitiram que, mesmo uma pessoa portadora de uma variante grave de Depressão, que sou, conseguisse levar uma vida moderadamente digna. Digo isso porque a primeira coisa que algumas pessoas pensam é que o paciente quer tomar uma "droga" para "fugir" da realidade. Mas, embora a Psilocibina possa ser usada como droga recreativa, meu uso foi medicinal. E outra coisa. Tem horas em que a gente não "quer" fugir da realidade. A gente precisa escapar dela com todas as forças. Não recomendo esse tratamento se você quiser simplesmente ter uma experiência mística, como, também, não nego o direito de cada pessoa adulta ter a sua (experiência). Mas aqui o assunto é outro. Se você é depressivo, já tentou de tudo e nada funcionou, considere com seu médico essa opção. A Depressão Tenho Depressão desde muito cedo - criança -, mas ela foi diagnosticada quando eu tive uma crise abrupta e muito violenta, aos 18 anos. Era Depressão Endógena (sem motivo aparente), Crônica, Profunda e Refratária, ou seja, resistente a tratamentos. A parte do "resistente a tratamentos" eu fui descobrindo com o tempo. Alguns antidepressivos até faziam efeito, após os infames 15 dias de espera (quase todo antidepressivo demora, ao menos, duas semanas para começar a ter um efeito benéfico perceptível - e uma miríade de efeitos desagradáveis). Mas os efeitos positivos duravam só alguns meses, no máximo alguns anos. A parte do "endógena" é porque simplesmente não havia motivo algum para eu ter entrado em depressão. Existe, sim, a Depressão causada por um evento externo. Geralmente é mais fácil tratar. Mas, comigo, ninguém morrera, não sofria bullying, não perdera emprego. Nada. Fomos, eu e os meus incríveis pais, tentando dezenas de remédios, enquanto eu passeava pelos melhores psiquiatras de Fortaleza, os médicos de doido. Lembro de sempre ter pensado em o quanto tinha sorte de ter uma família que dava total suporte, era completamente despojada de preconceitos, isto é, era muito esclarecida, e de ela ter dinheiro para os médicos e remédios (alguns, caros como você nem imagina). Uma coisa muito comum é uma pessoa ter depressão e não buscar tratamento porque a família é contra. Ou, ainda, por motivos religiosos. É uma das coisas que mais me revoltam no mundo. O ápice da idiotice em sua quintessência. Um dos meus primeiros médicos já foi me desarmando de qualquer repulsa que eu pudesse ter contra os medicamentos: "Dependente? Você não é dependente de remédios. Você precisa deles, porque eles têm algo que seu corpo deveria produzir, mas não produz. Se você não enxergasse bem, diria ser 'dependente' de óculos? Seria um drama na sua vida?". Parêntesis 1: Neurotransmissores Isso me ajudou a ver com mais clareza que o que eu tenho é uma deficiência física, e que, para ter uma vida normal, preciso repor o que me falta, mas que não falta a uma pessoa saudável. Naqueles que têm Depressão, ocorre a deficiência de uma ou mais categorias de neurotransmissores (guarde essa palavra). Os neurotransmissores são umas Moléculas Sinalizadoras, responsáveis por transmitir mensagens (tecnicamente, impulsos neurais) entre os neurônios. Porque os neurônios são separados uns dos outros Entre eles, há uma zona microscópica, mas repleta de atividade, chamada sinapse. Quem faz a ligação de informações entre eles são os neurotransmissores, liberados por um neurônio e entregando a mensagem ao neurônio seguinte, alojando-se na chamada membrana pós sináptica. Eles também são responsáveis pela "qualidade" da mensagem. Se a mensagem passar por uma abundância de neurotransmissores do tipo Serotonina, por exemplo, ela, de alguma forma que eu não sei explicar, pode adquirir um teor (digamos que seja um pensamento) bem-humorado. Se o pensamento passar pelos neurotransmissores do tipo Dopamina, ele pode vir impregnado de sentimentalismo. Já no casso da Noradrenalina, de certa forma ela ajuda a regular a sensação de estafa, esgotamento. São esses os três principais tipos de neurotransmissores que faltam ao depressivo. Há outros, evidentemente, mas os principais remédios se concentram em tentar regular esses três. Veja: Serotonina: responsável por regular o apetite, o sono, a memória, o aprendizado, o humor, encarregada de funções que auxiliam o sistema cardiovascular etc.; Noradrenalina: regula a liberação da Adrenalina, hormônio responsável pela preparação do corpo para situações de risco, de emergência ou que animam demasiado as emoções, dentre outras coisas; Dopamina: responsável pelo controle dos movimentos, pela sensação de prazer, de motivação, de emotividade etc.; Importante frisar que, pelo menos até onde eu sei, os medicamentos não contêm esses neurotransmissores. Não os repõem, simplesmente. A ciência ainda não chegou ao ponto de sintetizá-los. O que os remédios fazem é estimular, no corpo, a sua produção. Ou, mais comumente, inibir a recaptação de algum deles, processo que vou explicar na melhor das minhas possibilidades. O que ocorre é que, à guisa de exemplo, depois que a Serotonina é lançada de um neurônio para a sinapse (o espaço cósmico entre um neurônio e outro), ela se atrela à membrana sináptica do neurônio seguinte (chamada membrana pós sináptica), transmitindo, desta forma, a mensagem (ela não entra nesse próximo neurônio e não vai carregando a mensagem ao longo de vários neurônios). Uma vez cumprida essa função, o mesmo neurônio que a lançou a recaptura para uma espécie de reciclagem. Essa recaptura é chamada pela ciência de recaptação neuronal. Quando este mecanismo inteiro está desregulado, pode ser que a Serotonina permaneça na sinapse, repassando o impulso neural, por menos tempo do que o normal em pessoas saudáveis, tornando-se, basicamente, ineficaz. Além disso, a recaptação atrapalha a liberação de mais Serotonina. Com o mal funcionamento desse neurotransmissor específico, o enfermo perde as funções que ele exerce, as quais você viu acima. O medicamento que é possivelmente mais adequado a tratar o caso do hipotético exemplo acima é um Inibidor da Recaptação de Serotonina (IRS), ou, mais ainda, o Inibidor Seletivo da Recaptação de Serotonina (ISRS) que, ao impedir essa recaptura, aumenta a disponibilidade de serotonina na sinapse. A diferença entre os dois (IRSs e ISRSs) é que o primeiro, por não ser seletivo, pode inibir, também, a recaptação de Dopamina e de Noradrenalina e outros neurotransmissores, fazendo um trabalho disperso, enquanto o outro se concentra em inibir exclusivamente a recaptação de serotonina, realizando esta função com mais eficácia. Os ISRSs são os medicamentos mais usualmente prescritos para tratar a Depressão, no mundo inteiro. Dentre os ISRSs mais conhecidos, temos o Escitalopram (comercializado com o nome Lexapro), a Fluoxetina (antigamente comercializada como Prozac, mas encontrado atualmente como medicamento genérico produzido por vários laboratórios. Os medicamentos genéricos levam o nome da substância ativa, no caso Fluoxetina), Fluvoxamina (Luvox, que por não ter tido ainda a patente quebrada, é comercializado por apenas um laboratório, o que faz seu preço ser dramaticamente alto) e Setralina (Zoloft e os genéricos). Existem, ainda, os Inibidores Seletivos da Recaptação de Dopamina (ISRDs); os Inibidores Seletivos da Recaptação de Noradrenalina (ISRNs); os Tricíclicos, que são os mais antigos, dos anos 1950, e aumentam a disponibilidade de serotonina e noradrenalina no corpo, mas acarretam muitos efeitos colaterais indesejados; os Inibidores Seletivos da Recaptação de Serotonina e Noradrenalina, que têm papel similar ao dos Tricíclicos mas, mais modernos, causam menos efeitos colaterais; os Tetracíclicos, desenvolvidos nos anos 70 e que se parecem com os Tricíclicos, mas atuam em uma quantidade maior de receptores (vamos lá: receptores são as estruturas proteicas que recebem o neurotransmissor na fenda pós-sináptica. Eles são importantes, com poderes até mesmo de transformar o impulso, a mensagem trazida pelo neurotransmissor, mas não vou me extender no assunto.); e os Inibidores da Monoamina Oxidase, que bloqueiam, não a recaptação, mas o desmantelo dos neurotransmissores. Lembram que eu falei que eles passam por um tipo de reciclagem? Essa reciclagem começa com a degradação dos neurotransmissores. A responsável por essa degradação é uma enzima do tipo Monoamina Oxidase (MAO). Os Inibidores da Monoamina Oxidase (IMAOs), portanto, inibem sua ação, também ocasionando o aumento da quantidade de neurotransmissores no cérebro. Fecha Parêntesis Dificilmente o médico de um paciente com depressão acerta de primeira o medicamento que o fará melhorar. Porque ele tem que se confiar na exatidão, clareza e lucidez da descrição que o paciente faz dos sintomas. Na primeira consulta o próprio comportamento, o linguajar, a disposição para falar e a prolixidade do paciente, que ainda são desconhecidos, podem ter uma influência enganadora. E ele ainda está sujeito a errar por fatores como a presença de sintomas que não são da depressão, mas que ele não tem como saber. Além do relato verbal do paciente, existem, ainda, testes (ou escalas) com questões do tipo "nas últimas 6 semanas, você tem tido dificuldade de dormir?", "você já teve pensamentos mórbidos?" "de zero a dez, sendo dez a melhor, que nota você dá ao seu humor?". Isso vai ajudando a montar um panorama para definir que tipo de tratamento (às vezes não envolve medicamentos) o paciente precisa. Com mais consultas, o panorama vai ficando mais claro e completo. Importante Quero, também, deixar bem claro que, hoje em dia, pessoas pobres têm vários recursos para tratar a Depressão: aqui em Fortaleza, por exemplo, o Hospital da Universidade Federal do Ceará está sempre selecionando pessoas para testes dos tratamentos mais modernos. Comandados, muitas vezes, pelo Dr. Fábio Gomes de Matos e Sousa, um dos maiores especialistas em psiquiatria do Brasil. Além disso, na Unifor, o Núcleo de Atenção Médica Integrada (NAMI) oferece à comunidade diversos tratamentos gratuitos. Por fim, o Sistema Único de Saúde (SUS) disponibiliza medicamentos, inclusive antidepressivos, gratuitamente. Então, voltemos à minha história. Concomitantemente aos remédios, tentei também TCC (Terapia Cognitivo Comportamental), com a qual não me dei bem, depois, EMT (Estimulação Magnética Transcraniana). Também nada. Por fim cheguei à psicanálise, cheio de preconceitos e impaciente com a constatação de que o efeito era a longo prazo. Mas a doutora, logo a primeira a que eu fui, era boa. Resolvi muita coisa com ela. E sustento, até hoje o que ela costumava dizer, que todas as pessoas têm demanda de análise. Depois, tive que parar, porque as sessões semanais eram caras e também porque eu sentia que estava me repetindo. Como se o processo estivesse se esgotando. Posteriormente, vi que não. A necessidade de análise pode ser permanente. Ainda vou voltar. O caso é que, ao longo dos 25 anos desde que fui diagnosticado, passei por muita coisa. O que vou relatar, o faço porque acho que pode ajudar quem está passando pela mesma agonia. Descrição e Episódios - Na primeira grande crise, aos 18 anos, a tristeza era infinita, eu não conseguia parar de chorar. Tente lembrar ou imaginar a perda de um parente muito querido. Essa dor não se compara à da Depressão (pelo menos nos casos graves como o meu). Pra você ter uma ideia, eu cheguei a perder dois avôs muito queridos e nem senti. Uma tristeza maior sufocava a tristeza da perda. Essa tristeza pode ser definida como angústia, desesperança, desespero. Você não aguenta a própria existência. Quando estou em crise, tenho certeza que nunca vou sair dela. Se sair, não será por cima. No máximo, por baixo. - Tive choros diluvianos. Às vezes, na frente de gente querida. Gente que eu não queria que me visse chorando. E sem razão alguma, posso lhe assegurar. Eles vêm do nada, geralmente, mas podem ser desencadeados por falas de um certo ex-presidente Bols*¨&% ou por um evento triste, assim. Mesmo assim, eu sempre tentei e vou tentar esconder as crises de choro. - Meu caso é crônico, ou seja, sempre terei que tomar medicamentos. Não me venha com história de que isso é balela, armadilha da indústria farmacêutica etc. Eu não tenho paciência para argumentar. E sinto muita pena das pessoas que têm preconceito com medicamentos e, acima de tudo, das que precisam de remédio, mas a família proíbe. - Se você tem Depressão e não quer tomar remédios, você está apenas alimentando seu déficit neurológico. Pessoas com Depressão simplesmente não têm capacidade de lutar contra a insuficiência de um ou mais dos neurotransmissores que, nas pessoas saudáveis, têm seu funcionamento e quantidade regulados. Você não deve negar tratamento médico. Nesse caso, estaria apenas adicionando tristeza ao mundo. E a todos que convivem com você. Mas, principalmente, a você mesmo, que passa a ter uma qualidade de vida muito baixa. - Claro que os remédios são caros e têm variados efeitos colaterais, mas eles ajudam muito a melhorar a qualidade de vida. Em alguns casos, mas não no meu, a pessoa os utiliza por uns meses, depois para. - Esses efeitos colaterais, eu senti. Hoje já me acostumei. Dor de cabeça, secura na boca, dificuldade quase surreal de urinar, hipotensão postural (você levanta de uma vez e tudo escurece, às vezes chegando a desmaiar), além de, em muitos casos, afetar dramaticamente a clareza dos pensamentos e da fala. E a libido. - Fico pensando em uma pessoa pobre que tenha uma Depressão tão forte. Eu sempre defendi que Depressão Maior é um problema de saúde pública, e que os tratamentos deveriam ser fartamente oferecidos pelo estado. Muitos recorrem às drogas e ao álcool. O que você faria? - Desde o começo da crise maior (18 anos, em 1999), eu só pensava na necessidade de dormir para a dor passar. Eu tenho insônia, então tinha (ainda tenho) que tomar doses altas de Zolpidem pra me derrubar. Houve um tempo em que isso se tornou doentio, um vício, mas eu superei. Foi assim: eu desenvolvi tolerância ao remédio, de forma que tinha que tomar vários comprimidos para conseguir adormecer. Depois de duas horas, acordava e tomava de novo. Eu devia passar umas 6 horas por dia acordado. Tinha que dar aulas (sou professor de violão e flauta). Mas assim que elas terminavam, voltava a dormir. - Um médico me explicou que o Zolpidem, que eu sempre usei para dormir, é um depressor do sistema nervoso, ele só estava me ajudando a ficar mais deprimido, nessa quantidade. - Uma outra médica teve que tomar uma atitude drástica: eu iria desmamar do Zolpidem. Teria que dormir só com a Razapina e a Gabapentina que são antidepressivos, mas têm leves efeitos sedativos. O Zolpidem e qualquer vestígio seu desaparecem do corpo em sete dias. Depois disso, o combinado era que eu voltaria a tomá-lo. Dessaturado, meu corpo reagiria melhor a uma dose muito menor. Foi a pior semana da minha existência. Não conseguia dormir senão por algumas horas. Estava no meio de uma crise terrível, em que chorava muito, sentia uma tristeza existencial sem limite e difícil de descrever, sentia a clara sensação de afogamento, puxando com força o ar, como se ele fosse me salvar... Odiei a médica por um tempo. Não só pelos inacreditáveis sintomas da abstinência, que foram muitos (e destaco vigorosamente a letargia), mas também porque ela me fez tomar um remédio específico. Eu tinha tentado suicídio havia pouco tempo, e esse remédio matava a possibilidade de eu tentar de novo. Risperidona, o nome do troço. Só que a verdade é que, se ele tira de você a vontade de se matar, ele tira de você a própria vontade. Você esquece, extravia-se no seu próprio vocabulário, a palavra querer. Seja levantar da cama, ler, assistir a coisa que seja, ouvir música (minha mãe achava estranhíssimo que, enquanto eu tomei esse bendito remédio, eu nunca estava de fone. Em outras condições eu sempre tenho um fone no ouvido.)... Meu estado, nessa semana, foi de insuportável aflição. Como se eu estivesse dentro de uma panela muito quente. Não conseguia ficar parado, mas não tinha forças para levantar, então me revirava pateticamente na cama. Eu implorava por coisas que nem lembro mais e recusava outras que serviam para me dar prazer (como a música, comida...). Mas o que a médica fez foi absolutamente correto e necessário. - Eu acredito que a grande intenção cósmica, a eterna questão humana, o motivo de estarmos aqui é capturar vivências, informações e sensações para ele, o universo. Para ele. E, no final de tudo, o que ele quer é resolver a dualidade. Saber se, depois do infinito, prevalece o positivo ou o negativo, o esquerdo ou o direito, o certo ou o incerto. Ou o errado. Se o bem é mais forte que o mal, para colocar de uma maneira mais humana. Toda a nossa existência, dos animais, de sabe-se lá qual vida interplanetária, toda a realidade, enfim, tem o único propósito de fazê-lo chegar a uma conclusão de um bit. Sim ou não? Valeu ou não valeu? Pois depois dessa experiência eu digo: nenhum universo, nem toda a experiência humana na terra, nada disso valeu à pena se, para acontecer, alguém teve que passar pelo que eu passei nessa semana de 2017. Horas e horas me revirando na cama de olho arregalado, sofrendo, sofrendo, sofrendo... Foi na época em que saiu o disco "Caravanas" do Chico Buarque. Eu não tive interesse em escutar, no momento (o que, comigo, é muito estranho). Eu lembro de, uma hora (no primeiro dia!), não aguentar mais e pedir para minha mãe ligar para a médica. Qualquer coisa que ela conseguisse pensar para me ajudar. Conseguiu tirar a Risperidona. Ufa. - Até da Ketamina, de que falo adiante, eu perdi o interesse. O que, no final, foi bom, porque eu passei uns 5 dias sem tomar, desintoxicando e, quando tomei, no sexto dia, ela milagrosamente me animou um pouco. Pouco, mas muito bem-vindo. - Já tive muita coisa esquisita. Desenvolvi uma terrível enxaqueca com aura. Para quem não sabe, aura é um fenômeno que ocorre com algumas pessoas com enxaqueca forte. No meu caso os sintomas dessa aura (que duravam dolorosos 20 a 30 minutos) eram: eu perdia a capacidade de falar (na verdade eu tentava falar uma palavra, mas saia outra, incompreensível) e perdia o movimento de metade do corpo - o que me levou a uma UTI para tentar diagnosticar, pois nas primeiras vezes eu não sabia que era enxaqueca, pensava que era AVC. Faz alguns anos que eu não sinto esses sintomas, ainda bem. - Certa vez, em uma aula de Natação para Bebês, eu estava na piscina com minha filha, 2 professores e mais uns 3 ou 4 pais com seus filhos. E o meu cérebro estancou. Eu estava segurando a Beatriz e, a última coisa consciente que fiz, foi entregá-la ao professor. Depois, já um pouco melhor (foi muito rápido) fui andando lentamente até junto dos meus pais e da minha esposa, ficando aos pés dela, que estava na beira da piscina. Saí, com ajuda, sentei, bebi copos e mais copos d´água, fui auxiliado por meu pai, médico, e por um outro, dentre os pais. Eles atribuíram tudo à hipotensão postural. Mas eu estava de pé, e em uma piscina. Eu sei o que foi. Foi a Depressão tentando me dar um golpe de estado. - Tive dias em que a tristeza e a angústia foram tão fortes, que me marcaram até hoje. Lembro de um DVD do Cocoricó que eu punha para a minha filha. Criei ojeriza, mesmo sabendo que se trata de um produto bom. Palavra Cantada, Pingu, Pocoyo... A música do "Rato, meu querido rato", tudo me causa, ainda, um misto de aconchego e repulsa. A Galinha Pintadinha a gente colocava pouco, por achar que não era tão interessante para ela, mas, às vezes, ela pedia. Não queira imaginar o que é uma pessoa com Depressão ter que ouvir Galinha Pintadinha por horas. - A Bia, minha filha, a Flaviana, minha esposa e minhas sobrinhas são o brilho da minha vida. E meus pais são os pilares mais fortes que alguém pode pedir. Eu tento poupar a Bia da minha doença, mas muitas vezes ela percebe. De qualquer forma eu sou bem claro com ela (tem 13 anos) sobre tudo, inclusive a Depressão e a minha certeza de que ela não vai ter - é acompanhada semanalmente por uma psicóloga desde muito cedo. A psicóloga não é para tratar a minha filha. É para ajudá-la a desenvolver um suporte emocional para a vida inteira. Somos sensíveis. - Quanto à minha esposa, depois de mim, é quem mais sofre com a minha condição (minha mãe e meu pai também sofrem muito). Na época do Zolpidem ela tentava esconder o remédio até que chegamos a um acordo: eu podia tomar o tanto que quisesse, desde que não fosse escondido, estando subentendido que eu estava em desespero. Às vezes eu implorava. - O Zolpidem está mais controlado. Porque fiz o desmame do apocalipse, mas logo voltei a tomar, sendo que com mais parcimônia. Considerando que eu cheguei a tomar duas caixas (40 comprimidos) por dia e hoje tomo 6 comprimidos diários, estou no lucro (Editado em 16 de dezembro de 2023: estou tomando 15 comprimidos por dia). Ele ainda é essencial, porque, para mim, um dos piores momentos da depressão era (e ainda é) ficar me revirando na cama sem conseguir dormir. Parece que a dor vem dilatada, nessas horas. Atualmente, eu tomo o remédio (mastigo e ponho debaixo da língua por uns segundos, para, quem sabe, entrar mais rápido na corrente sanguínea) e durmo em pouco tempo. Caso se passem 15 minutos e eu não tenha dormido, peço outro. E mais: de dia, tomo meio comprimido de manhã e meio de tarde. Eles me acalmam, deixam a mente menos confusa e reduzem a perene dor de cabeça. Prefiro tomar esses dois "meios" Zolpidem do que tomar Benzodiazepínicos, como Rivotril e Alprazolam. Estes têm um efeito calmante, mas me deixam completamente amortecido. Além do mais, Benzodiazepínicos têm muitos efeitos colaterais indesejáveis, viciam e fazem você querer tomar cada vez mais. Em casos raros, você pode morrer. - Cheguei a fazer, em 2011, 12 sessões de Eletroconvulsoterapia (ECT). O famigerado eletrochoque, que, no século XX, era empurrado em qualquer tipo de paciente psiquiátrico. Nessa época, os pacientes, sem qualquer anestesia, recebiam uma carga elétrica na cabeça para tentar reiniciar o cérebro. Era tão desumano que a técnica quase foi deixada de lado, mas alguns resultados positivos levaram os médicos a, em vez de abandoná-la, torná-la menos traumática e otimizá-la. No século XXI, que é quando estou, fiz em hospital, eu ficava anestesiado e sedado durante o processo, e podia ir para casa pouco depois. Só que as memórias desse ano e dos imediatamente anteriores e posteriores são bem esparsas e vagas. É que o efeito colateral máximo do ECT é causar esse tipo de amnésia. Eu me formei em música e não lembro direito da faculdade. Se bem que acho que, aos poucos, fui recuperando algumas lembranças (ou então me contentando com o que tinha), porque, no começo, me incomodou muito, essa perda de memória. Mais ou menos de 2005 a 2014 as memórias são bem fragmentadas. E o pior é que a ECT não me ajudou em absolutamente nada (essa terapia de fato ajuda muita gente, veja bem, não a contraindico). Era o último recurso, e não funcionou. - De forma quase milagrosa, depois da última sessão de ECT, o médico, que viria a se tornar meu psiquiatra principal, teve a ideia de experimentar um tratamento que ainda estava em situação experimental. A infusão de Ketamina (ou Cetamina, ou, ainda, Quetamina), um anestésico que se usa (ou usava) em bebês (em adultos dá lombra) e em animais. Foi tudo controlado, eu me internava numa espécie de cabine (aliás, a mesma em que fazia os ECTs) e 1ml de Ketamina era injetado na veia, diluído em meio litro de soro, ao longo de 30 minutos. Reitero que 1ml foi uma dosagem calculada com base no meu peso, 90kg. Foi salvador. Eu me senti bem por semanas. O problema desse tratamento é que a melhora, que é substancial, dura só uns 15 dias. Aí eu tomava de novo. Foram umas 4 vezes no hospital. Depois passei um tempo sem fazer e o hospital onde eu fazia foi vendido para a Amil, escapando do escopo do meu médico. Mas consegui me manter por uns meses. Eventualmente, voltei a cair e precisei tomar de novo, semanalmente, agora em casa (tenho um anestesista na família). Aos poucos o efeito foi diminuindo (sou extremamente resistente a tratamentos). - Hoje, tomo a mesma Ketamina, só que de modo sublingual. Sim, eu passo meia hora com 1ml de Ketamina debaixo da língua. Mais ou menos 2 ou 3 vezes por semana, atualmente. Consigo o produto com amigos veterinários. Na maior parte das vezes ela só me dá uma tontura e uma leve melhora, agora. Mas tem vezes em que, não sei por quê, ela simplesmente está em um dia bom e faz milagre. Perdi a conta de quantas vezes esse tratamento me salvou a vida. - Mas nas primeiras vezes com Ketamina eu tinha alucinações, sensação de relaxamento, tontura (quando, eventualmente, me levantava), sensação de dissociação entre o corpo e a mente, sensação de ser "um com o universo", "conversar com o cosmo", "falar com Deus" (no caso, eu disse a ele que não acreditava nele, ao que ele concordou). E depois, quando passei a tomar por minha conta, como ainda não sabia dosar, experimentei (mais de uma vez) o temível buraco da Ketamina (já pesquisei sobre isso, em inglês se chama K Hole). É uma experiência de que algumas pessoas gostam, até buscam (sim, a Ketamina é usada como droga recreativa, especialmente nos Estados Unidos). Mas eu nunca gostei de alterar meu estado mental. Nunca bebi. Nunca sequer cheguei perto de maconha. Jamais pensei que um dia eu viveria a experiência máxima de um alucinógeno. -O K Hole (leia aqui)  parece um buraco, mesmo. Não importa se ele é para cima ou para baixo, porque isso nem existe mais. Pode ser um túnel. Eu cheguei a levitar na mente e ver o meu corpo, abaixo. O tempo era infinito. Eu já não era eu, mas toda a existência. Já vi esse efeito ser comparado ao de uma experiência de quase morte. É a completa dissociação entre corpo e mente. Nesse estado, é impossível interagir com outras pessoas. Acho inacreditável que alguém fique desse jeito de propósito, porque é uma experiência, acima de tudo, desagradável. E pode chegar a ser desesperador, tenho vagas memórias de escuridão e desalento, no K Hole. - Foi triste quando ela perdeu o efeito. Numa ocasião desesperada, lá por 2016 ou 2017, eu não tive efeito no sub lingual. Então, tentei injetar sozinho (jamais faça isso). Peguei uma agulha que nem sei se estava esterilizada, coloquei um pouco de Ketamina e injetei na mão direita. Acho que não pegou veia. Então, tentei na mão esquerda. E pegou, sim. Foi a última vez em que entrei no K Hole. Mas melhorei da crise imediatamente. O problema é que as duas mãos infectaram, ficaram absurdamente inchadas e ardidas. Fui ao hospital (não contei para a minha família que tinha feito tal inconsequência, inventei algo sobre uma queda) e, sem querer, esbarrei a mão direita, que estava menos inchada, numa ponta de algum balcão. Isso abriu um pequeno buraco na pele. Houve uma drenagem ali, mesmo, na recepção. Saiu tanta secreção! Mas, na verdade, isso foi bom, porque a outra, a esquerda, eu tive que operar para drenar. Fiquei meses com um buraco do tamanho de uma seriguela na mão, visitando uma estomaterapeuta samurai japonesa para limpar (dava para ver um tendão branquinho, que a samurai, habilmente e sem cerimônia, friccionava com gaze) e para trocar os curativos. - A Depressão vive em perene oscilação. A pessoa corre o risco de achar que está boa e, meses depois, ter uma recaída. O ciclo completo dessas oscilações pode durar até mais de um ano (entre você estar bem, cair, e voltar a ficar bem). E, além das oscilações, existe o que eu classifico como micro oscilações. Essas podem durar desde uma manhã até alguns meses. O melhor cenário é você estar no pico da oscilação e, ao mesmo tempo, no pico da micro oscilação. É o que eu chamo de 60%, porque é, mais ou menos onde fica a minha sensação de bem estar. Consequentemente, o pior cenário é o vale da oscilação junto com o vale da micro oscilação. O zero. É desesperador e sua vida entra em colapso. - Em um dos infinitos vales na oscilação da Depressão, eu consigo lembrar que acordava, toda noite, tendo estado dormindo (por opção) em um colchão no chão, colado na cama em que dormiam a minha esposa e a minha filha, sentindo um frio que não era desse mundo. Todos os pelos do corpo eriçados. E me tremendo convulsivamente. Preparado, eu já deitava agasalhado (eu moro no Ceará, dois anos atrás foi a primeira vez em que eu tive conhecimento e senti temperatura abaixo dos 22 graus em Fortaleza!). Uma calça jeans sob uma calça moletom, uma blusa, uma camiseta de botão e manga longa, um suéter e dois pares de meias grossas. Mas acordava. E não para ir ao banheiro, mas pelo frio, que ninguém mais sentia. - Eventualmente tive que parar de dar aulas e suspender a minha vida social. - Lembro de, várias vezes, nas gravações do disco "Jangada Azul", dos Argonautas, - e gravar é a coisa que eu mais gosto de fazer - eu pedir para o Bob (o Ayrton) assumir o controle da produção para eu ir embora mais cedo. Porque sentia angústia, solidão e tristeza exorbitantes. - Sou uma pessoa bastante empática, mas a maior parte das pessoas me acha, no mínimo, antipático. Às vezes eu penso que estou sorrindo e não estou. Já olhei no espelho. O que eu penso que é um sorriso, na verdade é uma leve, quase imperceptível, contração muscular labial... Isso já me causou muitos problemas e a perda de muitas oportunidades profissionais. E devo já ter irritado um monte de gente. Retirada forçada dos remédios Por fim, antes ainda de falar sobre os cogumelos, preciso dizer que tive um problema de saúde em 2021. Ele tem importância na história. Nessa época eu estava relativamente bem, tinha uma rotina legal, estava mais vivo. Mas um dia, sem avisar, sem dar um telefonema antes, manifestaram-se pedras na vesícula. Só que elas acarretaram uma infecção generalizada e eu quase morri. Ano passado eu morri, mas esse ano, até agora, ainda não. Foi assim: um dia eu senti uma dor extrema no estômago, tomei um remédio para gases, que fez melhorar um pouco, mas logo a dor voltou. Era na barriga inteira. Dormi naquela noite graças ao Zolpidem, mas acordava várias vezes, meus pais e esposa checando minha temperatura. Tive febre de 40 graus, o que não era bom sinal. Mas a gente ainda achava que era Covid. Podia ser, certo? Mas não era. De manhã fomos ao hospital e o médico falou que teria que abrir minha barriga. Lembro de ter entrado na sala de cirurgia e também lembro de quando acordei, pensando que estava tudo bem. Aos poucos, minha família foi me contando, nas visitas à UTI, que tinha sido quase um desastre. Que eu tinha ficado 4 dias sedado e intubado (agora, da desintubação, que foi horrível, evidentemente, dessa eu lembro bem direitinho, mas não passava pela minha cabeça perguntar por que eu estava entubado pra começo de conversa). Pois quando abriram, estava tudo infectado. Eles começaram a remover as pedrinhas, mas o médico chegou a dizer ao meu pai, que acompanhou a cirurgia (é médico), que se eu não reagisse à retirada das pedras, tudo o que ele podia fazer era fechar novamente e esperar por la muerte. Driblando, estranhamente, as expectativas dos médicos, comecei a reagir, e a infecção pôde ser controlada. Tive que tomar antibióticos por meses, fazer sessões diárias de hemodiálise (os rins, que eu agora chamo de ruins, foram muito prejudicados, tendo hoje apenas 39% da capacidade original). Algumas dessas sessões de hemodiálise duravam 4 horas, outras, 8 horas. Depois de uma semana na UTI, fui para um apartamento (compartilhado, porque, na época o hospital estava tomado por pacientes de Covid). Depois de mais algumas semanas, consegui um apartamento só pra mim. Na fase do apartamento eu sempre estava acompanhado, fosse pela minha esposa ou pela minha mãe e meu pai. Mas onde é que eu quero chegar? Aqui: eu estava tomando muitos antibióticos e outros remédios e tratamentos, de forma que, para evitar conflitos e interações medicamentosas indesejadas, precisei quase zerar os antidepressivos. No começo, imóvel (só conseguia mexer um braço, mas com muita dificuldade) e atarantado, não me incomodou muito. Estava grogue. Depois de, acho, dois meses, voltei para casa, ainda imóvel. E nem sentia depressão. Meu cunhado arranjou uma cadeira de rodas para me levar para as sessões, dia sim, dia não, de hemodiálise. Eu tinha que ser abraçado, erguido e colocado na cadeira. Fiz fisioterapia com uma craque. Fazia xixi num saquinho, deitado na cama, com a ajuda da minha esposa. Após mais um mês, estava me levantando e caminhando, ainda que de maneira canhestra. E foi aí que começou a tormenta de novo. A Depressão regrediu a um nível perigosamente desconfortável em poucas semanas. Fomos reintroduzindo os remédios, mas, mesmo quando já estava tomando o exato coquetel de antes da cirurgia, não conseguia atingir o patamar em que eu estava antes dela, que era, (vamos chamar de) "até bom". Digamos, 60% de sensação de bem-estar. Eu voltei todos os remédios (tomo 3 antidepressivos em doses equinas) e não consegui voltar ao nível desejado. O "até bom". O 60%. Nunca mais. As Opções - DBS e Psilocibina É aí que entram os cogumelos. Porque eu, nesse estado, só tinha três opções: deixar-me enlouquecer; fazer uma cirurgia no cérebro para implante de uma espécie de marcapasso cerebral - o nome da técnica é DBS, Deep Brain Stimulation (Estimulação Cerebral Profunda); ou experimentar alucinógenos. LSD, o chá de Ayahuasca ou a Psilocibina. A cirurgia DBS é caríssima, de forma que eu só tinha, de verdade, a opção de pirar e a do cogumelo. A ciência ainda não compreendem completamente como os alucinógenos ajudam em doenças psiquiátricas. Há correntes que pregam a microdosagem diária, caso em que o paciente não sente nenhum tipo de delírio, nem nada. Quase nada, digo. Outra corrente sugere que se tome por duas vezes uma dose capaz de fazer a pessoa ter uma experiência mística. O que algumas pesquisas indicam é que essa própria experiência mística está ligada à melhora. Essa segunda corrente é mais bem pesquisada e embasada. Não me pergunte como eu consegui o cogumelo. Fomos pesquisando, eu, meus pais e meu médico, e chegamos ao acerto de eu tomar duas doses, em semanas consecutivas, de 3,5 miligramas de Psilocibina, que estão presentes em cerca de 3,5 gramas do cogumelo em si. Melhorei. Um tanto. Mas não taaanto. Quando eu falei para o meu médico, posteriormente, que tinha saído dos 20% para os 40% ele foi curto e grosso: tenta de novo. Porque suspeita-se que o efeito pode ser cumulativo. Mas eu paro aqui, na terceira. Descrevo abaixo o resultado de cada tomada. 1ª Dose - (Cerca de 3,5mg) Não tive nenhum efeito alucinógeno. O gosto do cogumelo é horrível. Algumas pesquisas dizem que o efeito terapêutico depende de você ter uma experiência mística, que você tem que "viajar" para ter uma melhora na Depressão. Li em algum lugar (e abaixo, no texto, coloquei vários links para artigos sobre o assunto, alguns dos quais, bem detalhados) a opinião de um médico que dizia que, possivelmente, ao cair no efeito alucinógeno, o paciente se via em controle de tomar decisões que antes julgava impossíveis. E que podia se enxergar de uma maneira inédita e perceber a vida de um outro ponto de vista. Com o acúmulo dessas novas experiências, o paciente se via empoderado (fiquei com peso na consciência por usar essa palavra) e capaz de, simplesmente, decidir se livrar da Depressão. Ou se safar no labirinto da mente e driblá-la. No meu caso, não viajei, mesmo tomando uma dose entre média e alta. Mas eis que, dois dias depois: puf, acordei melhor. Bem melhor, um alívio arrebatador. Lembro de dizer para minha filha: "Bia, sabe o que eu estou? Melhor!" (e do sorriso lindo que ela deu como resposta). Tomei numa segunda-feira. Na quarta, tinha progredido, como disse, dos 20% para os 40% (de percepção de bem-estar). Mas, na sexta, fui voltando a cair. 2ª Dose - (3,5 a 4mg, não tinha como medir) Uma semana depois, comi, de novo, o fungo. Mesma coisa da outra, melhorei um pouquinho, mas não passei dos 40%. Já estava me dando por satisfeito, porque a maioria dos estudos fala em apenas duas doses. Mas o médico pediu que eu tentasse novamente (o "tenta de novo"). Numa dose um pouco maior, de 4mg. Expliquei a ele que era plenamente possível que eu tivesse tomado, já na primeira vez, esses 4mg, já que não tinha uma balança de precisão. Vieram 5 gramas do cogumelo em um saquinho. Eu descartei o que supus ser, mais ou menos, 1,5g e tomei. Foi assim nas duas vezes. Então, se fosse para haver uma terceira, eu queria tomar uma dose maior, uma que não deixasse dúvida. Só que não queria que ele me receitasse essa dose. Profissionalmente, seria irresponsável. Então, por minha conta (mas, como tenho tentado explicar aqui, foi por uma vastidão de fatores, de modo que não aconselho ninguém a agir sem o acompanhamento médico), fiz mais umas pesquisas, suspeitoso de que tenho resistência à lombra por causa do meu uso da Ketamina e a terrível experiência com o K Hole, e vi o caso de um sujeito que teve uma experiência muito forte tomando 10g do cogumelo. Lembrando, 10 gramas do cogumelo têm, em média, 10 miligramas da Psilocibina, a substância encarregada do efeito alucinógeno. Não tente fazer isso. Enfaticamente, repito: não tente. 3ª Dose - (9mg de Psilocibina, em 9g do cogumelo) Eu me vi com uma dúvida. Tomava 4mg? E, se não funcionasse ia subindo gradativamente até chegar a uma dose que me pusesse em contato com a sopa cósmica? Eu não queria isso. Queria que fosse a última dose por, pelo menos, um ano. É que os estudos apontam que os benefícios dos cogumelos alucinógenos duram, pelo menos, um ano. Mas pode durar muito mais, ninguém sabe. Eles dizem um ano porque os estudos acompanham os pacientes, geralmente, por esse período. A verdade é que os cientistas não conhecem um prazo certo, por uma série de fatores. Os estudos com alucinógenos são bem recentes. Além do mais, dificilmente um ramo de pesquisas ainda tão incipiente e experimental vai ser subsidiado por mais do que um ano. Voltando à minha experiência. Tomei 9 miligramas de Psilocibina. Essa dose foi, para mim, mais satisfatória. Dose igual, em outra pessoa, acarretaria perigosas e complicadas complicações. Tomei na cama, ouvindo essa playlist. As Variações Enigma, de Edgar Elgar, me pareceram a coisa mais mágica e perfeita do mundo. As outras doses me deram uma baita dor de cabeça. Essa, não. Mas também não consegui sentir qualquer efeito alucinógeno. Agora, tenho certeza que tenho tolerância cruzada a isso com a Ketamina. O fato é que melhorei muito. Senti uma calma, uma paz e um relaxamento super agradáveis. Mas reitero, essa dose não é recomendável, principalmente se você nunca tomou na vida uma substância que altera a consciência. Na verdade, o que fiz foi o exagero do exagero. Eu tomei por causa da resistência a experiências psicodélicas que desenvolvi com por causa da exposição repetida à Ketamina (e seu famigerado K Hole). A dose recomendada pelos estudos é sempre de 3,5 miligramas de Psilocibina, ou seja, 3,5 gramas do cogumelo. O que eu fiz foi a loucura da vez, digamos. Foi uma quantidade exorbitante, mas eu, que sempre fiz tudo isso de maneira cuidadosa e estudada, tive que arriscar. Principalmente para não ter que ficar tomando mais e mais. A verdade é que eu não gosto de efeitos psicodélicos, nem da Ketamina, nem da Psilocibina, e tenho certeza que não gostaria de drogas recreativas. Não experimentei Psilocibina por diversão, mas pelo efeito posterior, que é de reequilibrar os neurotransmissores. De forma bem resumida, é isso que o cogumelo, ou melhor, a experiência alucinógena, faz. De alguma misteriosa forma ela reorganiza os neurotransmissores, isso é cientificamente comprovado. Regiões inteiras do cérebro literalmente crescem em tamanho. Isso só funciona em quem tem depressão ou algum mal neurológico, pois o cérebro dessa pessoa está corrompido, fisicamente deformado. Mas não. Não tive melhora significativa, no final das contas. Como estou hoje Escrevo esse texto alguns dias depois dessa travessura (que hoje percebo como irresponsabilidade) de terceira dose. Considero que estou melhor. Estou mais ativo, resolvendo minhas coisas, voltei a compor e tocar violão, não tenho mais crises de choro. Mas não tive, também, uma remissão. Continuo tomando os remédios: O triplo da dose normal de Fluvoxamina (300mg); Uma dose surreal de Lisdexanfetamina (140mg); 45mg de Mirtazapina; Ketamina sublingual 3 vezes por semana; Zolpidem (até 60mg por dia); Um bocado de outros fármacos cujo nome eu nem lembro. Tudo isso pode levar a crer que eu abuso dessas substâncias. Na verdade, não abuso, não. São as chamadas prescrições off label, aquelas em que o médico prescreve uma dose superior à recomendada na bula, em casos muito graves e que não respondem a doses comuns. Lembrem-se que eu estou nesse caminho há 25 anos, sem contar os anos de infância e adolescência, em que eu não estava diagnosticado, mas tinha severas crises. Eu sabia onde estavam escondidos os 4 revólveres aqui em casa, do meu avô. O meu caso é muito sério. Ele justifica medidas drásticas. Só eu sei. Tentei tudo, foram dezenas de medicamentos diferentes e em combinações diversas. E sei que muita gente no Brasil, em Portugal e no mundo tem Depressão nessa mesma gravidade. A essas pessoas, eu encorajo, sim, conversar com o médico sobre essas metodologias exóticas. Nunca fiz algo que não estivesse cientificamente bem evidenciado. Também nada fiz sem acompanhamento do médico e da família. E jamais fiz algum tratamento antes de ler exaustivamente sobre. Portanto, se você se encontra em situação de desespero emocional (especialmente se não houver nenhum motivo aparente), procure um psiquiatra. E não, ele não é médico de doido. É o médico da consciência. É sempre bom já ir ao médico munido de informações sobre esses tratamentos. Um bom psiquiatra (como o meu, que virou um bom amigo) sabe tudo o que está acontecendo no mundo das pesquisas científicas para o tratamento de Depressão. Um mal psiquiatra vai mandar você meditar, fazer exercícios físicos, pegar sol, mesmo se o seu caso for claramente mais do que uma Distimia ou uma Depressão Menor e for eletivo para tratamento com medicamentos. Se o seu médico julgar que não é o seu caso, tudo bem, até certo ponto. Porque ele deve, então, aparecer com uma solução melhor. Existem dois tipos de psiquiatra incompetente: aquele que, imediatamente, prescreve um monte de remédio, tendo ouvido apenas um breve relato dos seus sintomas; e o que não quer passar remédio de jeito nenhum, porque acha que "você é tão jovem, tão bonito... vai curtir essa vida!". Se fosse para ouvir isso, eu ligava para minha tia. Procure outro. Que leve a sério a sua condição. Só digo uma coisa: não aceite ficar mal. Depressão é uma distorção química, um defeito, às vezes, genético, até. A qualidade de vida de um portador pode variar de baixa a insuportável. Eu nunca me conformei e continuarei não me conformando. Graças a essa atitude, fui até os confins do universo atrás de melhorar. E melhorei e piorei alternadamente em várias épocas, mas consegui escapar do maior problema na vida de um depressivo e de sua família: o suicídio. Não que eu não tenha tentado, ou idealizado, mas, às vezes, quando não tinha mais o que fazer, quando a dor de existir estava me matando, eu vinha para a internet pesquisar sobre novos tratamentos. Sempre tem um. E tudo o que eu queria era ler um texto como esse que você está vendo aqui. Que dissesse, enfim, que, antes do suicídio, existem muitas coisas que você pode fazer para melhorar. E, se você estiver considerando o suicídio, então nada custa tentar medidas extremas para evitá-lo. O telefone do Centro de Valorização da Vida é 188. Ele está disponível 24 horas por dia, grátis. Eles têm 3.500 voluntários atuando em 20 estados brasileiros, mais o Distrito Federal, dispostos e capacitados a ajudar. Também atendem pelo endereço de e-mail apoioemocional@cvv.com.br. Editado 16 de dezembro de 2023. O resultado a longo prazo da ingestão do cogumelo que contém Psilocibina não foi satisfatório. Pouco a pouco, mas de maneira obstinada, incansável, a depressão foi voltando. Lentamente, seus efeitos, velhos conhecidos meus, foram ressurgindo e se intensificando até se tornarem insuportáveis. A tortura vem de dentro. Estou, no entanto, moderadamente esperançoso. Meu Plano de Saúde acatou cobrir os astronômicos custos da cirurgia de DBS, Deep Brain Stimulation (Estimulação Cerebral Profunda). Se eu fosse fazer no modo particular, gastaria mais de 300 mil reais. Mas, graças à insistência do meu pai com o Plano de Saúde, à sua tenacidade e à sua crença na possibilidade de uma melhora significativa, a cirurgia vai acontecer. E em menos de um mês. A Estimulação Cerebral Profunda é feita com o implante de dois eletrodos e um neuroestimulador em uma localização específica, altamente precisa e profunda, do cérebro. Os eletrodos, chamados de Geradores de Impulso Implantados, ficam produzindo pulsos elétricos de alta frequência. Por algum motivo, que a própria medicina admite obscuro, a continuidade dessa estimulação elétrica reorganiza os neurotransmissores. Por suas características o DBS recebeu o apelido de Marca-Passo Cerebral. A terapia foi desenvolvida para o tratamento da Doença de Parkinson, da Síndrome de Tourette, da Dor Crônica, da Distonia Focal, da Epilepsia e de outros problemas neuromotores. Desde 1997, quando foi aprovada nos Estados Unidos para tratamento de Parkinson, os resultados foram acima do esperado. Pouco a pouco o DBS foi se ramificando e se especializando também em doenças neuropsiquiátricas, ainda que em condição experimental. Aliás, é experimental até hoje, para depressão. A eficácia é maior do que qualquer combinação de remédios (eu tomo 3 tipos de antidepressivos, Carbolitium no dobro de sua dosagem usual e medicamentos para dormir). Para cada doença que se deseja tratar, há um protocolo diferente e a região do cérebro a ser estimulada é milimetricamente definida, através de um mapeamento preciso feito na hora do implante. Os eletrodos não ficam lá, soltos, dentro do seu querido cérebro. Dele saem fios que conduzem a um aparelhinho, que fica fora do corpo e guarda as baterias. Estas precisam ser trocadas em uma periodicidade ainda a se ver. Pois vamos. É mais uma jornada. Quem sabe, a última. Ou melhor, penúltima, de um jeito ou de outro. Sinceramente espero que esse texto esclareça, especialmente, sobre a Depressão Maior em si e sobre a infinidade de tratamentos disponíveis, para que o leitor que esteja passando por isso se sinta encorajado a não desistir. A propósito, eis que, recentemente, me deparo com o vídeo a seguir, a respeito da terapia com Psilocibina. O cientista menciona o que ele chama de "Dose Heroica", aquela que tem melhor efeito, nos estudos dele. 40mg de Psilocibina! Veja alguns links em português, em linguagem leiga: https://pebmed.com.br/a-perspectiva-do-uso-de-psilocibina-no-tratamento-da-depressao/ https://revistagalileu.globo.com/Ciencia/Saude/noticia/2021/11/alucinogeno-tem-resultados-positivos-contra-depressao-em-ensaio-clinico.html https://canaltech.com.br/saude/psilocibina-melhora-sintomas-de-depressao-por-pelo-menos-3-semanas-estudo-213798/ https://www.bbc.com/portuguese/geral-61150145#:~:text=Cientistas%20brasileiros%20tamb%C3%A9m%20est%C3%A3o%20pesquisando,em%20reportagem%20publicada%20em%202020. https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2019/03/20/estimulacao-cerebral-alivia-sintomas-de-depressao-resistente-a-tratamentos.htm https://www.cnnbrasil.com.br/saude/implante-cerebral-consegue-reduzir-depressao-em-paciente-mostra-estudo/ https://ibneuro.com.br/blogs/noticias/estimulacao-cerebral-profunda-melhora-os-sintomas-da-depressao Abaixo, uns links para o caso você entender inglês. Estes são mais científicos/acadêmicos: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3308357/?_escaped_fragment_=po=63.5135 https://link.springer.com/article/10.1007/s13311-017-0542-y https://www.hopkinsmedicine.org/news/newsroom/news-releases/psychedelic-treatment-with-psilocybin-relieves-major-depression-study-shows https://www.hopkinsmedicine.org/news/newsroom/news-releases/psilocybin-treatment-for-major-depression-effective-for-up-to-a-year-for-most-patients-study-shows#:~:text=Patients%2C%20Study%20Shows-,Psilocybin%20Treatment%20for%20Major%20Depression%20Effective%20for%20Up%20to%20a,for%20up%20to%20a%20month. https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/02698811211073759 Comentem aí! À vontade. Só não permito comentários com discurso de ódio, de preconceito e com palavreado chulo. As postagens da Arara Neon, nós resolvemos dispô-las em lista, em uma única postagem. É só clicar aqui.

  • Neeme Järvi - O Maestro Mais Interessante do Mundo

    Por Rafael Torres O trabalho de um regente é um dos mais valorizados e, certamente, mais bem pagos no universo da Música Clássica. Mesmo sendo o mais incompreensível, enigmático e misterioso. Quando uma grande Orquestra anuncia o fim do contrato de seu maestro corrente, os admiradores dessa orquestra manifestem-se calorosamente em fóruns pela internet, enumerando candidatos com suas vantagens e desvantagens. O ritual de escolha de novo regente principal da Filarmônica de Berlim parece, de verdade, com um Conclave para escolha de um papa. Forma-se uma multidão do lado de fora da Sala de Concertos, com jornalistas transmitindo ao vivo, enquanto os músicos deliberam. Ao final, um deles sai com um papelzinho e anuncia o nome, para espanto de alguns e admiração de outros. Mas O Que uma Orquestra Procura? Isso depende de, basicamente, três fatores: o tipo de repertório que ela já domina e o que deseja dominar (se a Orquestra peca, por exemplo, no repertório de vanguarda, tende a contratar um regente que seja forte nesse quesito); o orçamento de que dispõe; e o "barulho" que quer causar com a contratação. Há, ainda, um quarto fator, mas este pode ter tanto uma grande importância quanto ser insignificante: a relação prévia da Orquestra com o candidato, adquirida através de concertos em que ele a regeu como convidado. Vamos a um exemplo de contratação recente que demonstra claramente as intenções da Orquestra. A Filarmônica de Nova Iorque contratou, em 2023, o maestro-sensação venezuelano Gustavo Dudamel. Sabemos que ele é um excelente músico, mas é possível especular que o que a orquestra buscava era causar comoção, gerar notícia, chacoalhar a cena musical da cidade. A Filarmônica, uma das maiores e mais poderosas dos Estados Unidos, conseguiu, desde a saída da estrela Leonard Bernstein, ainda em 1969, manter seu nível de excelência, com regentes do porte de Pierre Boulez, Zubin Mehta, Kurt Masur e Lorin Maazel. Mas desde a saída deste último, em 2009, vinha sofrendo com contratações de regentes excelentes, mas que não entregavam o que ela precisava. Alan Gilbert e Jaap van Sweden não conseguiram atrair público novo; tiveram, mesmo, dificuldade em manter o público velho; não tiveram grandes contratos de gravação e não lançaram grandes discos. Daqueles antológicos! E, para piorar, nesse período, por algum motivo a Orquestra apelou para a estratégia de lançar majoritariamente discos gravados ao vivo, em concreto. Isso desagrada os ouvintes, há barulho do público, aplausos e gritos de bravo e, embora a Orquestra aproveite pra demonstrar seu controle de sua sonoridade, com intervenções mínimas da tecnologia, a experiência não é a mesma de se ouvir um disco cuidadosamente talhado em estúdio. Mas acontece que é muito mais barato gravar um concerto que já seria tocado de qualquer maneira, do que mobilizar todos os músicos para ensaios e gravações fora do horário habitual. A Orquestra Sinfônica de Londres, a Orquestra Filarmônica de Londres, a Orquestra Sinfônica da Rádio Bávara e a Orquestra do Concertgebouw Real de Amsterdã têm lançado muitos discos ao vivo. Na verdade, a maior parte dos lançamentos recentes dessas e de quase todas as orquestras, são relançamentos de discos lendários, em novas masterizações (algumas das quais, pouco mudam o som - ou melhor, dá para perceber a mudança, mas muitas vezes não dá para dizer se foi para melhor ou pior). A Filarmônica de Nova Iorque chegou a demitir seu CEO e agora, com Dudamel, certamente vai alcançar o que quer: público novo, maior poder político (caso queira uma nova sala de concertos, terá (isso é altamente hipotético e improvável); caso queira novas audições para músicos, para substituir aquele flautista tão sibilante ou para aveludar mais as Violas, o que seja, poderá) e o repertório... Bom, será o mesmo de sempre. Sinfonias e Concertos de Beethoven; umas três Sinfonias de Mozart; muito Mahler e Bruckner; as três últimas Sinfonias de Dvořák, quem sabe; Sibelius; música de compositores norte-americanos, especialmente John Adams e, ainda, uma pitada de especiarias "latinas", pecinhas alegres, de três minutos, que Dudamel introduzirá com gosto. Precisamos compreender que esse "congelamento" do repertório acontece pela manifestação passiva do público. Se comparece ou não para o concerto quando tocam a 6ª Sinfonia de Bohuslav Martinů. Ou se a bilheteria do concerto em que tocaram a 9ª Sinfonia, "Do Novo Mundo", de Antonín Dvořák lucrou o triplo da primeira. Mas quase não foi isso o que vim falar hoje. Apenas mantenham em mente o que acabaram de ler. O fato é que, se nos Estados Unidos é assim, na Europa a situação tende a ser um pouco diferente. A começar pelo repertório: é mais espesso. O público escuta a quadragésima primeira Sinfonia de Mozart no despertador do celular ou no comercial de seguro de vida. Seus pais, avós, bisavós, sua árvore genealógica conhece os meandros mais secretos da obra. Por isso mesmo estão dispostos a desbravar um repertório menos restrito. Especialmente no norte, na Escandinávia. E nas margens do Mar Báltico. Estônia, Letônia e Lituânia têm intrigado o mundo. Assim como Finlândia e Suécia. Esses países não param de gerar músicos do mais alto calibre. Especialmente compositores e maestros. E, de sobra, desvelar compositores interessantíssimos de séculos atrás. Dos Países Bálticos saíram: a mezzo-soprano Elina Garanča, os maestros Mariss Jansons e Andris Nelsons, o compositor Pēteris Vasks e os violinistas Gidon Kremer e Baiba Skride (Letônia), o compositor Arvo Pärt (Estônia), o compositor Balys Dvarionas e a potencialmente revolucionária regente Mirga Gražinytė-Tyla (Lituânia) e tantos outros. O Mais Interessante Maestro do Mundo Pois bem. É aí que entra o maestro mais interessante do mundo. Nasceu em Tallinn, capital da Estônia, em 1937 (ele ainda está vivo em 31 de dezembro de 2023). O sofrido país era, desde o Século XVIII, parte do Império Russo. Houve a Revolução Comunista em 1917 e a Estônia passou a ser parte da União Soviética. Conseguiu, de alguma maneira, a independência em 1920, mas em 1940 foi anexada novamente à União Soviética e, no mesmo ano, ocupada pelo regime Nazista. Quando acabou a guerra, seguiu com a União Soviética até o período de desmanche desta, em 1991. Neeme Järvi é impressionante não apenas pelo seu talento, mas porque acumula superlativos. Patriarca de uma família de músicos (Paavo Järvi e Kristjan Järvi, regentes e Maarika Järvi, flautista), sua carreira está no topo. Um topo que ele atingiu tardiamente - a partir dos anos 80 - e com muito esforço. Seu filho Paavo Järvi é ainda mais requisitado, talvez um dos 5 maestros mais reconhecidos no mundo todo. Como Descobri Já havia ouvido falar, ele é famoso. Tenho até alguns discos, de que gosto muito. Ocorre que, entre janeiro e agosto de 2023, estive acamado (era em uma rede, portanto arredado?) por uma doença misteriosa. Mais uma manifestação oculta e astuta da perene Depressão. Foram meses e meses em que não conseguia sequer levantar para comer. Meu passatempo passou a ser montar playlists no Spotify. De todos os maestros, compositores, violinistas, pianistas e orquestras que podia lembrar e que tivessem uma discografia significativamente grande. Tinha algumas regras, como a de excluir música cantada, como Óperas, Sinfonias com vozes, Lieder etc.; de excluir gravações muito antigas, anteriores aos anos 50, com som muito ruim, chiado e sem peso etc. Estou na lista 437. E aconteceu que, quando resolvi fazer a playlist de Neeme Järvi, tive muito mais trabalho do que supusera. Eu organizo as listas por ordem cronológica do nascimento dos compositores. Nos compositores, vêm primeiro as obras para orquestra de câmara, depois as sinfônicas (Aberturas, Poemas Sinfônicos), depois, Suítes, então Sinfonias, Concertos para Piano, para Violino, Instrumentos das Madeiras, dos Metais e, por fim, Música Sacra. Raramente, em um só maestro, encontro tudo isso, do compositor que seja. Todas as Suítes, todas as Sinfonias e todos os Concertos. Talvez de Beethoven e Brahms. Mas Järvi gravou tudo de um número impressionante de compositores. Quando ele se propõe a gravar Medtner, não grava um Concerto para Piano. Grava todos! De Busoni, grava obras esquecidas. Porque ele resgata obras e elas passam a participar do repertório comum. Ninguém gravou como ele. Järvi já gravou mais de 400 discos! A minha playlist com suas gravações tem 271 horas e 14 minutos. A de Herbert von Karajan, para comparação, tem 147 horas e 9 minutos; Georg Solti, 100 horas e 28 minutos; Claudio Abbado, 142 horas e 42 minutos. Até Daniel Barenboim, que é pianista e regente, portanto lida com os dois repertórios, tem menos, com 219 horas e 4 minutos. A Carreira de Neeme Järvi Järvi gravou muito com orquestras não muito conhecidas. Seus principais cargos, que geraram mais gravações icônicas, foram com a Orquestra Sinfônica de Gotemburgo, na Suécia (de 1982 a 2004) e com a Orquestra Real Nacional Escocesa (cargo este que manteve concomitantemente com o de Gotemburgo, de 1984 a 1988). Com ambas as orquestras ele mantém relações e títulos até hoje. É Principal Regente Emérito da primeira e Regente Laureado da segunda. E foi com elas que gravou seus projetos mais ambiciosos. E ajudou as duas a atingirem notoriedade mundial, especialmente a escocesa, que é uma das maravilhas do mundo moderno. Seus postos seguintes foram nos Estados Unidos, para onde havia migrado em 1980, com toda a família, angariando, em 1985, a cidadania daquele país. Primeiramente, na Orquestra Sinfônica de Detroit, de 1990 a 2005; depois, da Orquestra Sinfônica de Nova Jérsei, entre 2005 e 2009. Também em 2005 foi nomeado Regente Principal da Orquestra da Residência de A Haia, na Holanda, cargo que ocupou até 2012. Por fim, entre 2012 e 2015, esteve Diretor Artístico e Musical da Orchestre de la Suisse Romande, em Geneva, Suíça. Depois de 2015 preferiu reger orquestras como convidado, sem vínculos, e tem aparecido com as mais importantes do mundo, como a Filarmônica de Berlim, a Filarmônica de Viena, a Filarmônica Tcheca, a Orquestra do Concertgebouw Real de Amsterdã, a Orquestra do Gewandhaus de Leipzig, a Orquestra Sinfônica da Rádio Bávara e outras. Sua discografia quase não tem Mozart, Beethoven, Schumann... Mas tem tudo de Piotr Tchaikovsky, muito mais do que qualquer outro regente já gravou; de Nikolai Rimsky-Korsakov, uma vastidão de Suítes de suas Óperas, mais o Capriccio Espagnol, Scheherazade e as 3 Sinfonias; as 8 Sinfonias de Alexander Glazunov, mais as Suítes Raymonda, Da Idade Média, Cenas de Balé e As Estações; as Sinfonias, as Suítes e os Concertos de Dmitri Shostakovich e de Sergei Prokofiev; as 9 Sinfonias, os Poemas Sinfônicos, o Réquiem e o Te Deum de Antonín Dvořák; música de balé francês, como Le Roi S'Amuse, Coppélia e Sylvia, de Léo Delibes e Espada, de Jules Massenet; música de Arthur Honegger, Albert Roussel, Jacques Ibert, Béla Bartók, Richard Strauss, Leó Weiner, Bohuslav Martinů (inclusive as 6 Sinfonias), Jean Sibelius, Alexander Scriabin, Sergei Rachmaninoff, Igor Stravinsky além de compositores norte-americanos, nórdicos e do Báltico que não eram gravados por ninguém antes dele. Se eu quisesse montar uma playlist com repertório idêntico, precisaria pescar da discografia de mais de 20 maestros. E se eu quisesse que essa playlist tivesse a mesma qualidade da original, sei não. Acho que não poderia. Estilo De maneira completamente positiva, ele não busca um som muito polido e aveludado nas cordas. A sonoridade que tira delas é mais rugosa, mais selvagem. Sua precisão rítmica é prodigiosa e a concepção das obras que rege, muito bem desenhada. Neeme Järvi constantemente abre abre do polimento e da elegância em nome da naturalidade e da discrição. Ainda assim, parece gostar de obras festivas, marchas e Aberturas com instrumentação ampla e pratos martelando, como em bandas militares. Seu estilo não é de modo algum grosseiro, apenas um pouco rudimentar, propositalmente, pois é como ele extrai sua característica espontaneidade das orquestras. Gravações Recomendadas Decidi (como não tinha pensado isso antes?) apresentar o nome do disco em inglês. Não porque sou fã do idioma, mas porque é como vão encontrá-los no Spotify, no YouTube e demais. - Ibert: Orchestral Works - Com a Orchestre de la Suisse Romande - Todo dedicado à obra sinfônica do compositor modernista francês Jacques Ibert, o álbum contém sua famosa Escales... (o nome é esse, Escales reticências), de 1922, que, em três movimentos, narram suas impressões no mediterrâneo durante seu período na marinha. Os movimentos são Roma, Tunis-Nefta e Valência. Há também o Divertimento, de 1930, e a imponente Suíte Sinfônica "Paris". Um disco excepcional, que destaca a obra de um dos compositores mais importantes da primeira metade do século XX. A Orchestre de la Suisse Romande é, depois da Sinfônica Real Nacional Escocesa, a mais segura e multifacetada que Järvi regeu, além de ser, provavelmente a mais experiente. - Alexander Glazunov - As 8 Sinfonias - Com a Sinfônica da Rádio Bávara e com a Sinfônica de Bamberg - Esse foi um dos projetos mais importantes de Neeme Järvi. Poucas vezes as 8 Sinfonias haviam sido gravadas em conjunto. A gravação de Järvi não só foi a maior responsável pela inclusão dessas Sinfonias no repertório tradicional, como fez muito para resgatar a reputação do compositor Romântico russo Glazunov, manchada desde 1891, quando, regendo, arruinara a estreia da Primeira Sinfonia de Sergei Rachmaninoff, levando o jovem compositor ao um bloqueio criativo apenas superado com análise e hipnose. As Sinfonias foram gravadas entre 1983 e 1984, e lançadas agrupadas em uma caixa, em 2019. - Atterberg: Orchestral Works, Vol. 4 - Com a Orquestra Sinfônica de Gotemburgo - Parte de um apanhado da obra sinfônica do compositor Romântico Tardio sueco Kurt Atterberg (até agora, no 5º volume), este álbum, o 4º volume, contém sua Sinfonia de que mais gosto, a Terceira, "Västkustbilder" (Retratos da Costa Oeste), de um total de 9 Sinfonias. Completada em 1916, é uma obra que dá clara e digna sequência à tradição de Jean Sibelius. Tem, ainda, Três Noturnos para Orquestra e o Poema Sinfônico "Vittorioso" (na verdade, o final descartado de sua Sétima Sinfonia). O disco é de 2016. - Bartók: The Wooden Prince, The Miraculous Mandarin, Hungarian Sketches & Concerto for Orchestra - Com a Orquestra Philharmonia - Na verdade, a junção de dois discos, esse álbum contém 3 das mais importantes obras do compositor Modernista húngaro Béla Bartók: dois balés-pantomimas, O Príncipe de Madeira (1917) e O Mandarim Miraculoso (1924) e o Concerto para Orquestra (1945). As duas primeiras são peças do auge do modernismo, com as quais se pode perfeitamente traçar um paralelo com obras de Igor Stravinsky dos anos 1910, como A Sagração da Primavera. O Concerto para Orquestra é diferente. Encomendado pelo maestro da Orquestra Sinfônica de Boston, Sergei Koussevitzky, o pedido encontrou Bartók em uma fase em que estava disposto a escrever música mais acessível, mais inteligível para o público em geral. Havia migrado para os Estados Unidos em 1940 por sua oposição violenta ao regime nazista. Ele recebeu a encomenda, diretamente de Koussevitzky, em um hospital, onde tratava leucemia, em 1943. Finalizou e estrearam no ano seguinte. Em 1945 Bartók retrabalhou o finale e concluiu a obra. Morreu naquele mesmo ano. É uma de suas peças mais famosas, de dificuldade árdua para todos os instrumentos da orquestra. Quanto às 5 peças curtas que formam a Suíte "Figuras Húngaras", completada em 1931, são orquestrações de peças para piano de cerca de 20 anos antes. Alternadamente singelas e agitadas, são espirituosas e delicadas, mesmo nos momentos mais bárbaros, e simplesmente encantadoras. O disco é de 1991. - Sibelius: The Symphonies; Tone Poems - Com a Orquestra Sinfônica de Gotemburgo - Em uma das mais importantes integrais das 7 Sinfonias do compositor Romântico Tardio finlandês Jean Sibelius, Järvi faz a Sinfônica de Gotemburgo tocar dessa vez com refinamento, precisão e sutileza. Vocês precisam escutar essas Sinfonias, que não carecem de guia, são pura experiência sonora. Dentre os Poemas Sinfônicos temos Finlândia (evidentemente), Pohjola's Daughter (A Filha de Pohjola), Nightride and Sunrise (Cavalgada Noturna e Alvorada), En Saga (que pode ser traduzido como Um Conto de Fadas, Uma Saga...), Spring Song (Canção da Primavera), Valsa Triste, O Bardo e Tapiola. Além de Suítes e outras obras orquestrais. Gravado ao longo de um período de 9 anos (1996-2005), o álbum com 7 CDs foi lançado em 2007. - Tubin: Complete Symphonies - Com a Orquestra Sinfônica da Rádio Sueca e a Orquestra Sinfônica de Bamberg - Outro álbum importantíssimo, contém as 10 Sinfonias do compositor Modernista estoniano Eduard Tubin, além da Toccata para Orquestra e da Suíte Kratt (Goblin). A maior parte das Sinfonias tem 3 movimentos, mas a 9ª, "Sinfonia Semplice" tem 2, a 4ª e a 8ª têm 4 movimentos, e a 10ª tem apenas 1 (longo, com 25m35s). É música de altíssima qualidade e que, ainda mais, foge do lugar comum. A caixa com os 5 discos foi lançada em 2002. - Tchaikovsky P. I.: Symphony No. 6 "Pathétique"/Francesca da Rimini - Com a Orquestra Sinfônica de Gotemburgo - Quando se trata de lugar comum, Järvi se mostra igualmente inspirado e disposto a entregar seu melhor esforço. Ele gravou todas as Sinfonias de Tchaikovsky, os Balés "O Lago dos Cisnes", "A Bela Adormecida" e "O Quebra-Nozes" (completos, não as Suítes), as 4 Suítes Orquestrais, inúmeros Poemas Sinfônicos e Aberturas e mais. A Sinfonia Nº 6, "Pathétique" vive momentos angustiantes e carregados, nas mãos dele. O longo Poema Sinfônico "Francesca da Rimini", dos mais admirados de Tchaikovsky, recebe um tratamento brilhante, sobretudo no trabalho de equilíbrio da sonoridade da orquestra (percebam como os metais, por vezes, se contêm em nome da clareza do discurso). A gravação é de 2004. - Stenhammar: Piano Concerto Nº 2/Chitra Suite - Com a Orquestra Sinfônica de Gotemburgo e Cristina Ortiz ao Piano - Wilhelm Stenhammar é outro compositor que deve muito de sua recente e tardia redescoberta a Järvi. Tendo vivido entre 1871 e 1927, o compositor sueco de Estocolmo deveria ser um Modernista, mas sua música pertence à tradição Romântica Tardia, sendo seus principais influenciadores Jean Sibelius, Carl Nielsen e Franz Berwald - todos compositores escandinavos. No início de sua carreira ele escrevia música plenamente romântica, mas se viu em crise ao compor duas Óperas fracassadas e, especialmente ao escutar a 2º Sinfonia de Sibelius. Isso o conduziu a um longo período de busca de identidade musical. Foi então que Stenhammar compôs seu 2º Concerto para Piano e Orquestra, que está gravado neste disco. Levemente soturno, inquietante e, ao mesmo tempo, belo, ele inaugurou uma nova fase na carreira do compositor. Pianista excepcional que era (de acordo com relatos, o maior da Suécia), mostra-se também um excelente orquestrador. O Concerto Nª 2 se tornou uma de suas peças mais celebradas. Neeme Järvi e a pianista brasileira Cristina Ortiz demonstram uma sintonia e um bom gosto invejáveis. A Suíte "Chitra", com 7 movimentos curtos, extraída da sua Ópera de mesmo nome, de 1921, é escrita apenas para cordas (Violinos 1, Violinos 2, Violas, Violoncelos e Contrabaixos) e é obra da maturidade do compositor, maestro e pianista, que morreria alguns anos depois. Interessante pontuar que ele foi Regente Principal da mesma Orquestra Sinfônica de Gotemburgo que gravou esse disco com Neeme e Cristina. Foi o segundo titular da historia da orquestra, entre 1907 e 1922. Esse disco foi lançado em 1990. Seu comentário é muito importante para nós. É logo abaixo, na faixa vermelha! As postagens da Arara Neon podem ser visualizadas melhor nessa página, em que coloquei todos os links. É só clicar aqui.

  • Presente de Natal: Bach - Oratório de Natal

    Por Rafael Torres Feliz Natal! Hoje, sem muita conversa (mas alguma, ainda) vou lhes apresentar um dos marcos da Música Universal, o Oratório de Natal (Weihnachtsoratorium), BWV 248, de Johann Sebastian Bach. Tem seis partes, cada qual, uma Cantata, e reúne textos sacros e profanos. Peça gigantesca, pode durar 2h30m. Pertence a um pequeno grupo de Oratórios escritos entre 1734 e 1735, que inclui o Oratório de Páscoa, BWV 249 e o Oratório de Ascenção, BWV 11. Mas é o Oratório de Natal o mais conhecido, ambicioso e bem-sucedido dos três. Sua escrita é para 1 Soprano Solista, 1 Contralto Solista, 1 Tenor Solista, 1 Baixo Solista, Coro SABT (com Sopranos, Contraltos, Tenores e Baixos) e uma Orquestra potente, com 2 Flautas, 2 Oboés, 2 Oboés d'Amore, 2 Oboés da Caccia, 2 Trompas, Violinos 1, Violinos 2, Violas, Grupo de Baixo Contínuo (que geralmente inclui Violoncelos, Contrabaixos, Fagotes, Órgão e/ou Cravo e outros) e Tímpanos. Nem todos esses instrumentos, especialmente as madeiras e os metais, aparecem em todas as 6 partes. As duas Flautas, por exemplo, tocam nas partes 1, 2 e 3. As duas Trompas, apenas na parte 4. O que se mantém constante são os dois grupos de Violinos, o grupo de Violas e o Grupo do Baixo Contínuo. Por fim, quanto a esses grupos, não têm número de executantes determinado. Algo entre 2 e 6 violinistas podem tocar a linha do Violino 1, com um número ligeiramente menor de músicos tocando a linha do Violino 2. O Baixo Contínuo também é incerto, cabendo a escolha dos instrumentos que o executarão ao maestro (hoje em dia) ou ao Kapellmeister (na época). Listei os mais comuns. O primeiro vídeo contém as partes (ou Cantatas) 1, 2 e 3. E o segundo, naturalmente, as partes 4, 5 e 6. A execução é da (Orquestra) Concentus Musicus Wien, com o Coro de Meninos de Tölzer, o Tenor Peter Schreier, o Baixo Robert Holl, os solistas Soprano e Contralto são destacados do coro infantil, prática comum na época de Bach. O maestro é o lendário Nikolaus Harnoncourt, falecido em 2016. A gravação, para VHS e que, depois, apareceu em DVD, é de 1982. A Se Observar na Estrutura Cada uma das 6 Cantatas que compõem o Oratório de Natal é dividida em seções. São Coros, Árias e Recitativos, com ocasionais duetos (de solistas) e trios. Coros são as seções em que o coral domina e entrega a letra, a quatro vozes (cada voz tem uma linha melódica específica), acompanhado pela Orquestra. Árias são os momentos em que os solistas, que muitas vezes representam personagens, cantam, também acompanhados pela Orquestra. Os duetos e os trios (e quartetos, quintetos) são cantados por dois, três ou mais solistas. Recitativos, para quem não é acostumado, podem parecer bem semelhantes às Árias. Um determinado solista canta, também, mas de forma alterada. Emulando o ritmo da fala, ele entrega a letra de forma rápida, acelerando o enredo, com uma melodia desprovida de grandes embelezamentos. Existe também o recitativo secco, em que o solista não é mais acompanhado pela Orquestra, mas apenas pelo Baixo Contínuo. Se você não tiver condições de acompanhar a letra, que é em alemão (mas tem traduções, ao menos em inglês, na internet), dê mais atenção às Árias e aos Coros. Recitativos servem, literalmente, para que a música não fique absurdamente longa, e seu interesse musical é limitado. Recepção Não existe motivo real para falarmos sobre como a música for recebida. Na época de Bach, especialmente com a Música Sacra, que era a maior parte do seu trabalho em Leipzig, o Kapellmeister era um assalariado, encarregado de treinar o coro e os músicos e liderá-los em apresentações semanais na igreja. Além de compor. Em um determinado período, ele chegava a compor uma Cantata por semana. Os Oratórios eram mais importantes, reservados a ocasiões de celebração religiosa. Desse modo, Bach tocava as 6 Cantatas, cada uma em um dia diferente, durante a missa, entre natal e o novo ano; não havia aplausos; não havia críticos, ninguém o elogiava. No mês seguinte, recebia seu salário e prosseguia com a vida. O manuscrito original, tanto da música completa quanto das partes (cada grupo de instrumentos recebia exclusivamente a partitura daquilo que deveria tocar, como é ainda hoje), foi herdado pelo filho de Bach, Carl Philipp Emanuel Bach. Eventualmente, em 1854, foi adquirido pela Biblioteca Real de Berlim. A obra só foi redescoberta pelo público em 1857, quando a Sing-Akademie zu Belin, dirigida por Eduard Grell a executou completa, pela primeira vez desde a morte de Bach. E em uma sala de concertos, não em uma igreja. Mas a notoriedade e o reconhecimento de sua genialidade são fenômenos mais recentes, a partir dos anos 50. E se devem muito aos músicos adeptos da Interpretação Historicamente Informada (HIP), de que tanto falo aqui. Um desses músicos, e dos mais importantes, era Nikolaus Harnoncourt. Gravações Recomendadas - René Jacobs, regendo a Akademie für Alte Musik Berlin, o RIAS Kammerchor e solistas - Não vamos encontrar boas gravações de orquestras modernas dessa obra tão antiga. René Jacobs, que começou a carreira como cantor, é um regente afiado e, nessa gravação, de 1997, pegou um grupo excelente para uma execução dentro de todos os moldes das Interpretações Históricas. E isso não é nada ruim. - Nikolaus Harnoncourt, regendo o Concentus Musicus Wien, o Coral Arnold Schoenberg e solistas - A primeira gravação de Harnoncourt da peça data de 1973 e tem sérios problemas rítmicos, como se a orquestra (a mesma Concentus Musicus de Viena) estivesse a se adaptar, ou não tivesse ensaiado o bastante. É uma gravação muito estranha, mas ajudou a colocar o Oratório no mapa. Sua segunda gravação é para VHS, a que você confere acima. Esta aqui, de 2007, é a terceira, e a experiência de Harnoncourt teve um papel importantíssimo na qualidade excepcional do produto final. Não temos mais instrumentos atravessados, sonoridades ríspidas ou um conjunto desequilibrado. Excepcional. - Jordi Savall, a conduzir Les Concerts des Nacions (orquestra), La Capella Reial de Catalunya (coro) e solistas - O caçula da nossa coleção, de 2020, tem, por isso mesmo o melhor som. Você parece escutar cada consoante de cada cantor do coro. Savall, um gambista que se tornou regente, tem interpretações bastante excêntricas. É um peculiar em meio aos peculiares do Movimento HIP. Mas até agora, não vi nenhuma manifestação negativa dessa excentricidade. Ele parece, simplesmente, querer (e conseguir) buscar o som mais agradável. Gravação impagável. - Masaaki Suzuki, regendo o Bach Collegium Japan (coro e orquestra) e solistas - O movimento de Interpretação Historicamente Informada encontrou no Japão um competente aliado. Suzuki não toca de forma alguma um "Bach oriental", apenas faz a música mais mais pura, cristalina e elegante concebível. Conceitos, estes, universais. A gravação é de 1998. Comentem à vontade! À vontade. Só não permito comentários com vestígios ou claros sinais de ódio, de preconceito e com palavreado baixo. As postagens da Arara Neon, nós resolvemos dispô-las em lista em uma única postagem. É só clicar aqui.

  • Brahms - Sinfonia Nº 4 - Análise

    A quarta e última sinfonia de Johannes Brahms (1833-1897) é de 1885. É seu Op. 98, em Mi menor. Foi estreada em Meinigen, em 25 de outubro de 1885 com o próprio compositor regendo. É uma obra prima em todos os seus detalhes. Acumula beleza, grandeza, criatividade e uma dignidade única. É a penúltima obra orquestral do compositor, a última sendo o Concerto Duplo para Violino e Violoncelo, de 1887. É uma obra um tanto atormentada, ainda que segura. Apresenta momentos de beleza, de fúria e até de doçura. Uma sinfonia romântica, certamente uma das maiores. Brahms era uma pessoa reticente, antissocial, alguns diriam até rude. É famosa a anedota de que ele, ao sair de uma festa, olhou novamente pra sala e disse: "Se tem alguém que eu não ofendi hoje, peço desculpas." Eu sou assim num dia simpático. Mas sua música conquistou a Europa. Em termos de música instrumental, foi o compositor mais bem sucedido da segunda metade do século XIX, sendo reverenciado como o sucessor de Beethoven. Seu grande antagonista foi Richard Wagner, que escrevia óperas e defendia que o futuro da música era se tornar cada vez mais descritiva e programática. A música de Brahms não tem nada de programática, em vez disso, é apegada às velhas formas: sonata, rondó etc. É o que se chamava de música pura, pois não tinha um enredo por trás de si. Apesar disso, não era inimigo de Wagner, os dois até que se davam bem. Só que cada um tinha uma facção que odiava a do outro. A 4ª é uma sinfonia em que a forma, mais que os temas, segura a narrativa. Ou seja, o fato de que ele repetiu isso aqui ou omitiu ali é, por vezes, mais importante que a melodia em si. Mas isso não significa que ela seja pobre de beleza musical. Muito pelo contrário. É pungente, com cada movimento tendo uma força extraordinária. É centrada no último movimento, que é uma Passacaglia de extrema engenhosidade e beleza. A orquestra tem: Violinos I Violinos II Violas Violoncelos Contrabaixos 2 Flautas (1 virando flautim) 2 Oboés 2 Clarinetes 3 Fagotes (1 virando contrafagote) 4 Trompas 2 Trompetes 3 Trombones Tímpanos Triângulo Abaixo, o regente Andrés Orozco-Estrada com a Sinfônica da Rádio de Frankfurt. 1º Movimento - Allegro non troppo Repare: duas notas descendentes nos violinos (24s) (ecoadas pelas madeiras); duas notas ascendentes (ecoadas novamente). Com esses pequenos grupos de duas notas monta-se já o primeiro tema, que já dá uma ideia de luta, de cá e lá. Aos 56s isso é repetido com ornamentos. Temos então (1m53s) uma chamada dos oboés, clarinetes e fagotes, que não é um tema em si, mas que será trabalhado no movimento. Esta figura antecipa o tema 2 (1m59s) nos violoncelos. É uma melodia de notas longas, cantantes, imediatamente repetida e elaborada pelos violinos. 2m23s. Aos 2m33s eles fazem um jogo com pizzicati e madeiras. Repare com isso se assemelha ao primeiro tema. Aos 2m57s, as flautas, depois os oboés, fazem soar o tema 3. A trompa dá continuidade antes que a orquestra caia em um acorde tenebroso. Aos 3m24s ouvimos ecos da chamada. Até que aos 3m38s ela é tocada integralmente. Aos 4m07s eles se preparam para o desenvolvimento. O desenvolvimento se inicia com o tema 1 (4m22s), muito parecido com o início da música. As madeiras* conduzem, em terças, essa parte (4m42s), que deriva do tema 1, lembrando uma melodia fragmentada. Aos 5m os violinos repetem a ideia, com as cordas graves respondendo. Aos 5m26s atingimos um ponto de suspensão, com alusões ao microtema da chamada. Depois temos um episódio mais acalmado (6m22s), em que os clarinetes trabalham, também em terças, sobre um ponteado de golpes do tema 1. As madeiras todas trabalham nessa parte. É então que 4 notas do final do tema 1 (o último compasso da partitura acima) abre uma espécie de discussão. Os instrumentos parecem debater sobre a tonalidade até que caem na recapitulação. A recapitulação começa meio hesitante, como se ainda estivéssemos no desenvolvimento. Mais uma vez as madeiras assumem (7m12s). Tocam as duas notas descendentes e, então as duas ascendentes. Segue-se um novo momento de suspense, então novamente entram as notas do tema 1. É como se o tema estivesse tateando o caminho pra saber se pode pisar, para então derramar-se (7m38s) sem medo, é lindo. O tema 2 entra aos 8m42s nos violoncelos. A chamada acontece várias vezes. Aos 9m47 entra o tema 3, na trompa e no oboé. A coda é longa e solene, além de muito bem construída. * flautas, oboés, clarinetes e fagotes 2º Movimento - Andante moderato Aos 13m05s tem início o calmo e sereno 2º movimento. A trompa anuncia o tema, que é logo capturado pelas madeiras, sob pizzicatos das cordas. A orquestra faz uma bela transição (15m50s) que nos leva adiante. O segundo tema aparece nos violoncelos (16m50s), com nobreza e seriedade. Cheio de contracantos, que adicionam riqueza musical à passagem, é um tema longo e cantábile. E então temos uma nova transição para a recapitulação. E a trompa volta aos 19m40s. É uma mistura de recapitulação e desenvolvimento. O movimento não é em forma sonata estrita. Aos 21m03s o segundo tema reaparece, numa escrita mais coral e ainda mais solene. Aos 21m59 ele e repetido com quebras de oitava. Um compositor menor insistiria em repetir o coral, mas Brahms não abre mão da originalidade. Novo momento de suspensão aos 22m45s, uma pausa e a volta da melodia, dessa vez com tristeza no clarinete (23m16s). Aos 23m35s começa o dramático coda, que encerra esse belo movimento. 3º Movimento - Allegro giocoso Iniciando aos 24m40s, esse movimento, análogo a um Scherzo, é muito alegre. Deve ser uma das músicas mais alegres do repertório de Brahms. Mas sem ser frenético. É bem agradável. Esse tema aparece de cara, mas repare como ele aparece de cabeça para baixo logo em seguida (25m14s). Nesse movimento aparecem o triângulo, assim como o flautim e o contrafagote. Por volta dos 27 minutos inicia-se uma passagem mais lenta, contrastante. Brahms mostra habilidade ao prolongar notas, dobrar ritmos e inverter acordes. Até que, de chofre, aos 28m10s, a música volta a ficar agitada. De escrita brilhante, especialmente na orquestração, esse movimento adiciona leveza à sinfonia. 4º Movimento - Allegro energico e passionato Esse é o movimento mais importante da obra. Um dos movimentos mais importantes da escrita sinfônica do romantismo. Trata-se de uma Passacaglia, ou seja, ele lida com variações. Não que ele toque um tema e faça variações a partir desse tema. Ele toca uma sequência de acordes e varia a partir dela. Fica repetindo sempre os mesmos acordes e inventando coisas novas sobre eles. A sequência é tocada logo de cara: Am - F#º - Em - F#/E - Em/G - F7(b5) - E Ele fez essa sequência inspirado em uma cantata de J S Bach ("Nach dir, Herr, verlanget mich"). A música começa (31m) com os acordes chapados (que vão nos servir de tema 1), tocados por toda a orquestra menos as cordas. A seguir (31m18s) já temos a 1ª variação, com os tímpanos, metais o as codas em pizzicato. Aos 31m31s as madeiras assumem a 3ª variação, que é um tanto misteriosa. A 4ª variação é um pouco jocosa, alternando pequenos stacattos das madeiras e dos metais. Aos 31m59 as cordas assumem a 4ª variação, em registro grave com uma frase longa, que traz um caráter de urgência. A 5ª (32m13s) e a 6ª (32m26s) variações parecem ser uma continuação desta, nas madeiras e, depois, com texturas de toda a orquestra. Aos 32m39s entra a 7ª variação, e aos 32m53s, a 8ª, que vai acalmando a orquestra. A 9ª segue a mesma tendência. Aos 33m08s, a 10ª variação ameaça um agito, mas a variação 11 (33m23s) é bem plácida, assim como a 12ª (33m38s). O conjunto já se prepara para o belíssimo solo de flauta que é a variação 13 (33m56s). É uma passagem gélida e sutil, de extrema delicadeza. O tempo chega a dobrar. A 14ª variação (25m19s) também é de beleza impressionante, nos metais e fagotes. As madeiras repetem isso (35m54s), mas com uma harmonia diferenciada. Aos 36m33s temos uma repetição dos acordes chapados da abertura. E mais variações vão se acumulando, mostrando o exímio compositor que era Brahms. Ele alterna estados de espírito às vezes de uma hora para outra, sem preparo. E quando prepara é da maneira mais apropriada possível. Tudo com bom gosto e técnica invejável no domínio da orquestra e da forma sonata. Considerações finais A sinfonia foi estreada em 1885 em Meinigen, Alemanha, com Brahms regendo. Algum tempo antes, Brahms deu um recital privado em que tocou, com um amigo, uma versão para dois pianos. Um critico musical muito respeitado da época, Eduard Hanslick calhou de estar virando as páginas para um deles. Ele teria dito: "Parecia que eu estava sendo espancado por duas pessoas incrivelmente inteligentes". Naquela era de romantismo apaixonado e febril, Brahms era considerado ultrapassado e até estóico. Digamos, pouco empolgante. Mesmo assim, era considerado o sucessor de Beethoven e o maior sinfonista de sua época. Gravações recomendadas - Eugen Jochum regendo a Filarmônica de Berlim - Jochum talvez fosse o maior intérprete de Brahms da sua época. Talvez de todos os tempos. Em 1954 pegou a Filarmônica ainda não inteiramente adocicada pelo som de Karajan e fez essa gravação certeira. - Carlos Kleiber, com a Filarmônica de Viena - De 1981, ano em que eu nasci, essa é considerada uma das gravações mais importantes não só dessa sinfonia, mas de qualquer. Carlos, filho do também regente Erich Kleiber, era especialista em ópera e extremamente hesitante em gravar. Todos os seus discos são considerados clássicos. - Rafael Kubelik regendo a Sinfônica da Rádio Bávara - De 1983, essa gravação me impressionou muito recentemente. Saiu em uma caixa - The Munich Symphonic Recordings - cheia de maravilhas. A presença do lendário Kubelik na orquestra Bávara, nos anos 60 e 70, contribuiu imensamente para o posicionamento desta entre as 5 melhores do planeta. Essa gravação, especialmente o último movimento, é um absurdo de expressividade. A flauta parece Romeu declamando seu último monólogo. - Carlo Maria Giulini, com a Filarmônica de Viena - Essa foi a peça que Carlo Maria Giulini mais regeu em sua carreira, cerca de 180 vezes. Essa gravação, de 1990, é, como tudo que Giulini regia: lenta, lerda, mas sem ser pesada. O que lhe falta em agilidade e articulação dos fraseados, sobra em clareza de ideias e bom gosto, além de um elegante toque trágico. - Herbert von Karajan, regendo a Filarmônica de Berlim - É de 1988, um ano antes de sua morte. A orquestra estava começando a se desprender de Karajan, mas ainda tinha seu som - cheio e pleno de legato, com ênfase nas cordas. Ele gravou várias vezes o ciclo (as 4 sinfonias de Brahms), e eu não ouso dizer que este é o melhor. Mas me soa excelente, com uma concepção sempre centrada da peça. - Manfred Honeck, regendo a Sinfônica de Pittsburgh - Tive que editar para colocar essa novíssima gravação de Honeck. Está simplesmente fantástica! É a mais bonita que já ouvi. Clássica e Romântica na dose ideal. É de 2021.

  • Renascença - Os períodos da História da Música II

    Por Rafael Torres Se não o fez, leia a parte 1 - Idade Média aqui! Atenção, os vídeos que colocarei serão sempre curtos, como uma amostra. Aproveite o texto! Agora é tempo de versar a respeito deste período que tem tanto em comum com a Idade Média e, ao mesmo tempo, tão pouco. É infinitamente mais complexo, cheio, sonoro; usa 4 vozes, quando, na Idade Média, costumavam usar 3 (estou me referindo a linhas melódicas, chamadas vozes, não a cantores: 1 só voz pode ser cantada por toda uma sessão de cantores). E, ainda assim, soa natural aos ouvidos. A sociedade da Idade Média estava, digamos, em um estado de escuridão. Imagine as cidades sujas, cheias de doenças, esgoto passando nas ruas, ladrões, assassinos, moscas, comida estragada, poças de lama, porcos por todo lado, pobreza em todo lugar e, ainda por cima, guerras eclodindo sem parar. Por mais que eu goste da Idade Média, eu não queria estar lá. Várias pendências medievais na evolução musical, foram pormenorizadamente sanadas na Renascença, tais como: o aprimoramento na criação da melodia, harmonia, ritmo, forma e, até mesmo, notação (a escrita da partitura); a consagração do Contraponto e seu melhor regramento; a melhor interação entre Música Sacra e Profana, que passaram a compartilhar uma evolução cúmplice; várias famílias de instrumentos foram aperfeiçoadas (e algumas novas, surgiram). A Música Renascentista intriga e fascina músicos desde a época do Barroco, e musicólogos, desde o Século XX, é fonte incessante de descobertas e raiz de inesgotável deleite. Notação Mensural Agora, o compositor é capaz de produzir uma partitura mais amigável e pode pôr nela instruções mais detalhadas. Fizeram evoluir, do final da Idade Média, um tipo de escrita musical extremamente preciso. Chamava-se "Notação Mensural" (leia direito), pois, com ela, os músicos eram capazes de anotar e ler até mesmo as menores medidas de tempo. Este tipo de escrita foi usado até o Séc. XVII, quando, no Barroco, foi substituída pela "Notação Moderna". Observe, abaixo: A Renascença Trata-se de um período que, ele sim, é transicional entre a Idade Média (Sécs. V a XV) e a Idade Moderna (a partir dos Sécs. XVII e XVIII, com o "Iluminismo"). Digo isso porque os Renascentistas ficavam fazendo pouco caso da Idade Média, dizendo que ela tinha sido uma mera pausa entre a Antiguidade Clássica e seu "Renascimento". Para eles, o mundo ia bem até a queda do de Roma e depois era caos de Idade Média. Sim, eles acreditavam que estavam fazendo Renascer os áureos tempos das Antigas Roma e Grécia. Como eu tinha explicado, períodos como o Classicismo e o Romantismo da música não correspondem às divisões históricas que damos a esses mesmos períodos. Por exemplo, o Classicismo, historicamente, é a antiguidade clássica (entre os Sécs. VIII a.C. e V d.C.), enquanto que, na música, é em entre 1750 e 1810. O Romantismo, na música, equivale a todo o Séc. XIX (até mais), quando, na literatura, foi mais ou menos de 1780 a 1840. Mas a Idade Média e a Renascença, não. Estes são períodos históricos tanto quanto períodos na história da música (e outras artes). Humanismo O Humanismo Renascentista era uma movimento intelectual muito popular nos Sécs. XIV, XV e XVI. O Humanismo Renascentista, que tinha pensadores como Erasmo de Roterdã, Dante Alighieri e Petrarca, serviu de suporte filosófico e mentor moral ao povo europeu. Eles almejavam a purificação e reciclagem de Igreja Católica. Desejavam, também (sendo o Humanismo Renascentista inspirado no conceito de Humanitas Romano) o retorno às leituras bíblicas e a tentativa de compreender melhor, traduzir melhor os Evangelhos, o Novo Testamento, tudo isso sem ter que ficar preso às regras cada vez mais complicadas e aos grilhões da Igreja Católica. Essa teoria valoriza o ser humano como, antes, nunca. Através dessa prática, ele descobre que, ao simplesmente raciocinar (sobre uma pedra, que seja), ele é capaz de compreender e capturar o que antes não era possível. Isso, reunido com a redescoberta da literatura clássica dos Antigos Gregos (Sócrates, Platão e Aristóteles) os levou a uma receptividade mental que se transformou na sua arte - a música, a poesia, a arquitetura, a literatura, a pintura... Muitos se declararam adeptos do Humanismo, desde Papas até a Nobreza. Essa corrente de pensamento se originou no Séc. XIV, na Itália, e, de lá, foi se alastrando. A sua maior contribuição ao homem Renascentista está em seu próprio nome. Assim como o Heliocentrismo prega que o Sol é o centro do universo; e, no Geocentrismo, a Terra é que está, o Humanismo propôs que, no centro do universo, está o homem. Esse poderoso pensamento dota o ser de confiança, podendo questionar a natureza, a realidade, e se dando a oportunidade de se valorizar. Traços da Renascença A Renascença surgiu em Florença, possivelmente devido à grande concentração de intelectuais (inclusive graças à migração de Eruditos Gregos refugiados da queda de Constantinopla), aliada à estabilidade política da região, e os seus grandes patronos, a Família Medici, que apreciava patrocinar as artes); Na Renascença existiram Leonardo da Vinci e Michelangelo; Também viveu William Shakespeare; Johannes Gutemberg criou a imprensa (!); Cristóvão Colombo e Pedro Álvares Cabral esbarraram nas Américas; Aconteceram a Reforma Protestante e a Contrarreforma; A Guerra dos 100 Anos terminou; Joana d'Arc foi covardemente massacrada; O Individualismo era uma corrente de pensamento que punha o indivíduo no centro de suas próprias preocupações, em vez de Deus, como sempre havia sido; Com o Individualismo, o ser passa a olhar para si e ser capaz de se compreender e de compreender o mundo; O Universalismo existiu no começo da Renascença, um período de construção e expansão de escolas e universidades; A doutrina reconhecia o valor humano em suas mais diversas formas de saber, inclusive estimulando o saber em várias áreas, possibilitando o surgimento dos Polímatas, aqueles que exercem vários ofícios (como Leonardo da Vinci, que foi pintor, botânico, poeta, geólogo e muitas outras coisas); Outros artistas (não músicos) que apareceram na Renascença foram: Dante Alighieri, Miguel de Cervantes, Luís de Camões, Nicolau Maquiavel, Caravaggio, Sandro Botticelli, Rafael Sanzio, Jan van Eick, Ticiano, Hieronymus Bosch, Fra Angelico, Tintoretto, Donatello, entre outros; Técnicas de pintura desenvolvidas na Renascença: Chiaroscuro, Perspectiva, Proporção, Sfumato; As mulheres estavam em péssimas condições: não podiam ser vistas pela janela para não despertar o interesse dos homens; não podiam tocar instrumentos de sopro, pois, acreditava-se, deformava os lábios, sendo que uma mulher só era valorizada se fosse bonita; eram meros acessórios que pertenciam legalmente aos maridos; os ajudavam, quer eles tivessem um restaurante (elas cozinhavam) ou uma alfaiataria (elas costuravam); as que não se casavam jamais, adquiriam emancipação (ficavam na casa dos pais ou viravam freiras); Assim como hoje no Brasil, existia um punhado de muito ricos e um número absurdo de pobres. Humanismo O Humanismo Renascentista era uma movimento intelectual muito popular nos Sécs. XIV, XV e XVI. O Humanismo Renascentista, que tinha pensadores como Erasmo de Roterdã, Dante Alighieri e Petrarca, serviu de suporte filosófico e mentor moral ao povo europeu. Eles almejavam a purificação e reciclagem de Igreja Católica. Desejavam, também (sendo o Humanismo Renascentista inspirado no conceito de Humanitas Romano) o retorno às leituras bíblicas individuais e a tentativa de compreender melhor, traduzir melhor os Evangelhos, o Novo Testamento, tudo isso sem ter que ficar preso às regras cada vez mais complicadas e aos grilhões da Igreja Católica. Essa teoria valoriza o ser humano como, antes, nunca. Através dessa prática, ele descobre que, ao simplesmente raciocinar (sobre o céu, que seja), ele é capaz de compreender e capturar o que antes não era possível. Isso, reunido com a redescoberta de um montante de literatura clássica dos Antigos Gregos (Sócrates, Platão e Aristóteles) os levou a uma receptividade mental que se transformou na sua arte - a música, a poesia, a arquitetura, a literatura, a pintura... Muitos se declararam adeptos do Humanismo, desde Papas até a Nobreza. Essa corrente de pensamento se originou no Séc. XIV, na Itália, e, de lá, foi se alastrando. A sua maior contribuição ao homem Renascentista está em seu próprio nome. Assim como o Heliocentrismo prega que o Sol é o centro do universo; e o Geocentrismo, em que a Terra é que está, o Humanismo propôs que, no centro do universo, está o homem. Esse poderoso pensamento dota as pessoas de confiança, podendo questionar a natureza, a realidade, e se dando a oportunidade de se valorizar. A Música Renascentista A Música Renascentista não apagou a da Idade Média e nem a ignorou. Na verdade, ela evoluiu a partir da outra. Os coros ficaram maiores, os instrumentos, mais eficientes (em termos de afinação e durabilidade) e os estilos foram sedimentados. Na escrita contrapontística, as vozes ganharam maior independência melódica e rítmica. Evoluiu o Cantus Firmus, que é quando uma melodia preexistente é usada como base para a confecção de outra(s). Outra técnica herdada da Idade Média foi o Fauxbourdon, ou Faux-Bourdon (Falso Bordão), que consiste na aplicação de saltos de oitava e ornamentação para embelezar a música. A Música Instrumental começou a ser feita por compositores sérios. Quanto aos instrumentos, muitos deles têm origem na Idade Média e foram evoluídos na Renascença. Alguns deles eram: A família de Violas da Gamba Renascentistas, instrumentos de Corda com Arco com 6 cordas (ou 7, dependendo da região). Pesquise sobre os instrumentistas modernos Hille Perl, John Dornenburg e Jordi Savall. O som é doce, menos áspero e rouco que o da família dos Violinos; A das Flautas Doces Renascentistas, que cresceu descontroladamente (veja vídeo abaixo). A Flauta Doce Renascentista tem uma construção mais arquitetônica, som mais forte e mais versatilidade do que a Medieval; O Cravo, que, na Renascença, tornou-se um instrumento potente que tanto acompanhava quanto tocava solo. Na Renascença se utilizava um sistema de afinação diferente, que, para os nossos ouvidos atuais, parece desafinado; O Órgão de Igreja, com dois ou mais teclados e uma pedaleira. O suntuoso Órgão tem metros e metros de tamanho, já que seus tubos não ficam necessariamente perto do teclado; A Sacabuxa, o antepassado do Trombone; A Mandora, um pequeno Alaúde Soprano; O Alaúde, o mais importante instrumento de cordas pinçadas da Renascença; O Cistre, análogo a um Alaúde com o fundo reto; A Charamela, instrumento de sopro de palheta dupla que foi, no Barroco, substituído pelo Oboé; A Flauta Transversa, que ainda era de madeira, mas havia ganho em potência e afinação; O Virginal, instrumento da família do Cravo, mas bem menor e com apenas um teclado. O instrumento para o qual compuseram William Byrd, John Bull e Orlando Gibbons; A Espineta, uma espécie de Cravo compacto. Sua cauda fica na diagonal, tornando-a ainda menor; O Violino. Surgiu no final da Renascença, mas só foi crescer em popularidade no Barroco. O Alaúde A família das Flautas Doces Renascentistas A Mandora O Órgão de Igreja As Flautas Transversas O Virginal O Consort (família de instrumentos) da Viola da Gamba O Cravo Renascentista Divisões da Música da Renascença A Música Renascentista costuma ser dividida em partes. A divisão mais comum a reparte por séculos, mas tem que ser em italiano: trecento (Séc. XIV), quattrocento (Séc. XV) e cinquecento (Séc. XVI). Mas não me apetecem, pois não explicam absolutamente nada. Até porque muitos compositores viveram nas viradas dos séculos. Portanto, decidi apresentar os compositores após o outro, sem divisão, sem período. No máximo um começo e o resto. Que acham da minha transgressão? Por falar nisso, a partir de agora, é mais prudente contar a história da música a partir de seus compositores. Enquanto na Idade Média a música parecia evoluir à sua revelia, agora eles assumem o protagonismo. O Início O início se caracteriza pelo fato de que alguns dos compositores também eram ativos no final da Idade Média. Um deles é o inglês John Dunstaple, famoso, que havia sido crucial na Música Medieval. Outros incluem Johannes Ockeghem, Oswald von Wolkenstein, Gillles Binchois e Guillaume Du Fay. A música, nessa época, ainda era marcada por formas antigas, como as Chansons (Rondeau, Ballade e Virelai), Antífonas, Motetos e outros, mas utilizando técnicas novas, como o acréscimo de vozes em intervalos de terça e sexta no Oganum (de Dunstaple) e o Fauxbourdon. Dentre os outros compositores, Leonel Power era um veterano da Idade Média, como Dunstaple e, como Dunstaple, tinha ajudado a estruturar e formar a Escola da Borgonha; Oswald von Wolkensteit foi um dos mais importantes compositores da Primeira Renascença alemã e Gilles Binchiois era um compositor Holandês, também da Escola da Borgonha, que propunha obras simples e claras. A Escola de Borgonha foi uma reunião de compositores que punham em prática certos preceitos e conferiam o prevalecimento das Formes Fixes (Rondeau, Ballade e Virelai). A escola foi a primeira etapa na implantação da Escola Franco-Flamenga, que, esta sim, se disseminou por toda a Europa e tratou de fazer evoluir o contraponto e, também, o modelo de harmonia. Abaixo, de Guillaume Du Fay, da Escola de Borgonha, o Moteto "Je Me Complains Piteusement", na interpretação do Grupo Gilles Binchois. Todos os exemplos que colocarei aqui serão curtos, como amostras. As obras dos compsitores na Renascença costumam durar mais de meia hora. John Dunstaple (1390-1453) Nascido na Inglaterra e ainda na Época Medieval, Dunstaple foi o compositor mais famoso de Europa, quando estava no auge de sua atividade. Sua obra é apenas vocal, polifônica e repleta de Isorrítmos (explicados adiante). Ele foi um dos pioneiros em utilizar, na escrita do Organum, os intervalos de terça e sexta. Antes eram quarta e sexta. Era influente até mesmo no continente, sendo muito importante na criação da Escola da Borgonha. E era um dos principais defensores de um certo estilo que apelidaram de Contenance Angloise, o Maneirismo Inglês, (que ninguém sabe direito o que é, mas possivelmente se refira a) uma forma de escrever Música Polifônica com acordes bem cheios, utilizando seus intervalos favoritos, o de terça e o de sexta. Era um homem de rigorosa e refinada educação, tendo, também, sido astrônomo e matemático. Sua obra consiste em Chansons, Motetos e Missas. Entre suas obras principais estão os Motetos: Ave Regina Celorum, Descendi in Ortum Meum, Quam Pulchra Es, Sancta Maria, Speciosa Facta Es, Veni Sancte Spiritus. Observe este Moteto a Três Vozes chamado Quam Pulchra Es, interpretado pelo Hilliard Ensemble. Repare como as vozes já têm (ao contrário do que ocorria na Idade Média) sua independência. Uma linha vai se trançando na outra de forma sublime. Ah, e não fiquem confusos com o nome dele: aparece em várias grafias. As mais comuns: Dunstaple e Dunstable. Guillaume Du Fay (1397-1474) Se John Dunstaple era o compositor mais conhecido de sua época, Du Fay viria a se tornar um dos grandes nomes da história da música. Enquanto hoje Dustaple é pouco conhecido, apreciado principalmente por músicos e estudiosos, Du Fay (ou Dufay) continua sendo mais e mais apreciado desde que a música antiga voltou a aparecer em concertos (a partir dos anos 1950). Nascido na França, Du Fay era compositor e musicólogo. Foi uma das primeiras pessoas no mundo que podiam se considerar apenas e simplesmente um compositor. Recebeu sua educação na Velha Catedral de Cambrai e foi ordenado padre em Bolonha. Estabeleceu-se em Roma em 1428 como cantor no prestigiado Coro Papal. Em Roma ele escreveu vários Motetos. Retornou a ao Papa em 1434, que dessa vez estava fixado em Florença. Criativamente, passou a alternar entre a escrita de Motetos e grandes Missas Cíclicas. A participação no Coro do Papa o tornou conhecido em toda a Europa - travava-se da principal organização de execução de música da época. Quando o Papa Eugênio se estabeleceu com sua comitiva em Bolonha, Du Fay debandou novamente e foi formar-se em direito. A partir de 1437, Du Fay conseguiu o apoio de um grande Mecenas, o Sr. Nicolò III, Marquês de Ferrara. Isso ainda seria útil. Até por que, anos depois, quando Nicolò III morreu, em 1441, Du Fay visitou a Casa de Este, que o pertencia, e ficou surpreso em saber que o próximo Marquês havia, não apenas, dado continuidade ao patrocínio como havia copiado e distribuído algumas de suas obras. Du Fay morreu em 1774. Em seu velório foi executado o seu lendário Réquiem (um dos primeiros Réquiens do mundo), que agora está perdido. Ele deixou composições em todos os estilos comuns na época: Missas, Motetos, Magnificats, Hinos, Antífonas e, falando agora em Música Profana, Rondeux, Ballades e Virelais. Todas as suas obras são corais, algumas delas, com possibilidade de acréscimo de instrumentos. Suas obras mais emblemáticas são: Rondeux e Ballades, as Missas Se La Face Ay Pale, L'homme Armé, Ecce Ancilla Domini, Ave Regina Celorum; e vários Magnificats e vários Motetos, como Ave Maris Stella, Apostolo Glorioso, Flors Florum, Nuper Rosarum Flores, Aurea Luce, Vasilissa Ergo Gaude, Virgo Virga Virens, dentre tantos outros. Fique com o sensacional Moteto "Nuper Rosarum Flores", de Guillaume Du Fay, que em sua época foi interpretado por 120 músicos. Aqui, a interpretação é do Cantica Symphonia. É uma peça relativamente comprida, mas eu sugiro que ouça, pois temos uma peça de grande porte, com instrumentos, genial e muito bem interpretada. Johannes Ockeghem (1419-1497) Nascido na atual Bélgica e conhecido por ter escrito o mais antigo Réquiem que chegou a nós, Ockeghem foi uma necessária influência musical entre as vidas de Guillaume Du Fay e Josquin des Prez. Talvez você não perceba, mas quando eu digo que um compositor é importante, é porque ele já passou por umas duas triagens, aqui na minha cabeça. Esses de que eu escrevo aqui, são os mais importantes diante de uma lista enorme. Perceba a dimensão da lista de compositores da Renascença. A da Idade Média era igual. Quando eu seleciono um para falar, é sabendo que estou omitindo dezenas. Mas que, pelo menos, selecionei os mais importantes. Por sinal, nesta sessão vou falar um pouco de outro músico, que era amigo de Ockeghem, o compositor, cantor e poeta francês Antoine Busnois (1430-1492) Então, Johannes Ockeghem. Ele foi um dos compositores, junto a Busnois, da Escola Franco-Flamenga, assim como havia sido Guillaume Du Fay. Essa escola se caracterizava pela produção de Motetos a 4 vozes (o normal sendo três), de textura bem grave, bem como pela igualdade entre essas vozes (não havia uma principal). Em uma boa parte de suas Missas ele fazia uso do Cantus Firmus (uma melodia preexistente que servia de base para a criação de outras vozes de uma composição polifônica). Busnois também usava essa técnica nas suas Missas. Nos dois, as vozes faziam várias variações rítmicas, como foma de manter o interesse. As maiores contribuições técnicas de Ockenghem para a música foram a Missa Prolationum, que utiliza apenas Cânons de Medição *. E a Missa Cuiusvis Toni, que vai variando os Modos (escalas) que utiliza ao longo da execução. * Em um Cânon normal, uma voz principal começa a cantar e vai sendo progressivamente imitada com exatidão pelas outras vozes. No Cânon de Medição, as vozes seguem a primeira, mas com diversas variações rítmicas, cada uma. As obras mais importantes de Antoine Busnois são: a primeira Missa L'homme Armé de verdadeira influência, a Missa O crux lignum triumphale, os Motetos In Hidraulis Quondam Pythagora, Anima Mea Liquefacta Est, Bel Acueil Le Sergent d'Amours, o Madrigal Fortuna Desperata e dezenas de Chansons, como Accordes Moy, Advegne Que Venir Pourra, Amours, Amours, Amours Nous Traite, Au Pauvre Par Nessecité, Bonne Chére e L'autrier Que Passa. Ja as obras mais importantes de Johannes Ockeghem são: a Missa Prolationum, a Missa Cuiusvis Toni, a Missa 'Mi-Mi', as Chansons Flors Seulement, Ma Bouche Rit, L'autre d'Antan, Ma Maistresse, Prenez Sur Moi, um Salve Regina, um Ave Maria, o Motet-Chanson Mort tu as navré e o Réquiem. Como exemplo, ofereço esse Cânon a 36 Vozes (!), chamado Deo Gratias a 36, interpretado pelo Huelgas Ensemble. É um Cânon (as vozes vão entrando e se acumulando) a 36 vozes, ou seja, existem 36 linhas melódicas nesta minúscula obra. Josquin des Prez (1455-1521) Josquin montou seu estilo em cima dos de Guillaume Du Fay e Johannes Ockegheim. Ele era francês e pertencia (adivinha) à Escola Franco-Flamenga de música. Era reputado como O Maior Compositor da Europa em vida. Josquin deixou completamente para trás a música homofônica Medieval e foi abrindo novas veredas. Foi (além de tudo) o compositor mais influente de contraponto na Renascença. No Barroco (Séc. XVIII), seria superado nesse quesito por Johann Sebastian Bach. Josquin não era partidário do canto melismático (você canta notas e mais notas, mas a letra permanece na mesma sílaba, a letra não avança) que era característico da Parte I da Renascença e acabou adotando um estilo próprio, com frases curtas e repetidas. Foi funcionário de três Papas, Inocêncio VIII, Alexandre VI e Luís XII. Também foi empregado do Duque Hércules I do Leste. Grande parte de suas obras foram publicadas pelo impressor italiano Ottaviano Petrucci (que hoje dá nome a um site que distribui a partitura de milhares de obras, com um acervo monstruoso). Petrucci sempre inseria obras de Josquin em antologias, além de fazer uma antologia só sua. É considerado o primeiro compositor a permanecer influente mesmo após a morte. Mas voltando ao seu estilo: ele utilizava o Cantus Firmus e, nos Motetos, começou a se aproximar do tonalismo (a música vigente era e sempre havia sido modal), fazendo uma verdadeira revolução nos Motetos. Na Música Modal há os Modos da Igreja que nada mais são do que escalas distintas. São 8 escalas, cada uma com uma combinação de notas diferente. Dórico (Ré Mi Fá Sol Lá Si Dó Ré); Hipodórico (Lá Si Dó Ré Mi Fá Sol Lá - Uma Escala Menor); Frígio (Mi Fá Sol Lá Si Dó Ré Mi); Hipofrígio (Si Dó Ré Mi Fá Sil Lá Si); Lídio (Fá Sol Lá Si Dó Ré Mi Fá); Hipolídio (Dó Ré Mi Fá Sol Lá Si Dó - Uma Escala Maior) Mixolídio (Sol La Si Dó Ré Mi Fá Sol); Hipomixolídio (Ré Mi Fá Sol Lá Si Dó Ré). A Música Modal é utilizada ainda hoje, mas de outros jeitos, as escalas são vagamente diferentes e algumas têm outros nomes. Agora, deixe-me explicar: vê o Dórico, ali? E o Hipomixolídio? São iguais. Mas o fato é que eles têm uma diferença crucial: todos os modos cujo nome começa em Hipo, recebem o tratamento harmônico dos não Hipo. Outra coisa. Não há sustenidos e bemóis? Há, nas transposições das escalas. Elas são apresentadas de modo a mostrar apenas seu modo natural. Sobre Josquin, suas obras principais são as Missas Missa ad Fugam, Missa de Beata Vergine, Missa Gaudeamus, Missa Lá Sol Fá Ré Mi, Missa Pange Lingua e outras; Motetos Ave Maria, Ave Maria Virgo Serena, Inviolata, Integra Et Casta Es Maria e Miserere; e as Chansons Seculares Adieu Mes Amours, El Grillo e La Déploration de Johannes Ockeghem, uma Chanson Fúnebre em lamentação à morte de Johannes Ockeghem. Apresento abaixo a Chanson linda de morrer "Mille Regretz", interpretada magistralmente pelo grupo Profeti Della Quinta. O Restante Chamo de Restante essa parte que vai de 1530 a 1600, mas não de modo pejorativo. Aqui vivem os maiores compositores que a Renascença produziu. Tem o nascimento de um lendário coro com orquestra, em Veneza. Seu estilo era o Policoral Veneziano. Seu nome era Capela São Marco. Tão magnífico era, e tão grandiosa sua sonoridade que compositores de toda a Europa queriam compor para ele. Os músicos tocavam e cantavam de vários pontos da cidade, gerando um som quadrafônico que deve ter sido surreal escutar. Em Roma, tem também a volta da Igreja Católica a tentar regrar e controlar novamente a música. Havia um grupo de compositores, a Escola Romana, que tinha ligações com o Vaticano. Seu compositor de maior destaque histórico foi Giovanni Pierluigi da Palestrina. Giovanni Pierluigi da Palestrina (1525-1594) Palestrina, juntamente com Orlande de Lassus e Tomás Luis de Victoria, formava o trio de compositores mais disputados da Escola Romana. Palestrina teve grande influência no desenvolvimento da Música Sacra e da Música Profana. Ele nasceu na cidade de Palestrina e seu primeiro emprego foi o de organista na Catedral de São Agapito. Após 7 anos, o Papa o nomeou como Diretor Musical da Capela Giulia, que fica na Basílica de São Pedro, no Vaticano. Seu primeiro casamento lhe trouxe 4 filhos, mas o que nos interessa é o segundo casamento. Ele se casou com uma viúva. E ela tinha dinheiro suficiente para que ele pudesse parar de circular de capela em capela e finalmente pudesse bancá-lo como compositor. Em 1594, quando morreu, Palestrina nos deixou 105 Missas, 140 Madrigais e 300 Motetos. Sua maior causa, como músico, foi tentar fazer a igreja banir a polifonia, que ele via como complexa e ininteligível, por um estilo mais consonante e claro. Inclusive ele costumava escrever dissonâncias apenas nos tempos fracos, com isso em vista. Outra característica sua é era a de utilizar o Cantus Firmus com notas longas (semibreves). O Contraponto estilo Palestrina que aprendemos na faculdade é, na verdade, uma recriação do compositor Barroco Johann Joseph Fux, que, partindo de seus estudos da obra de Palestrina, elaborou o Contraponto em Cinco Espécies no seu influente livro "Gradus ad Parnassum". Dentre as obras principais de Palestrina estão as Missas In Festis Apostolorum, In Semiduplicibus Majoribus, Tu Es Petrus, Ecce Ego Joannes, Assumpta Est Maria, Missa Brevis, os Motetos Beata Es Virgo Maria, Regina Coeli, a série de Motetos Canticum Cantocorum, o Stabat Mater e 2 Livros de Madrigais Espirituais a 5 vozes e mais 3 Livros de Madrigais Profanos. Observe que maravilha é o Madrigal Cruda Amarilli, interpretado pelo Concerto Italiano. Orlande de Lassus (1532-1594) Orlande De Lassus teve grande influência no desenvolvimento da Música Sacra e da Música Profana. Seu nome pode ser grafado (e pronunciado) de várias formas, as mais comuns sendo Orlando di Lasso e Orlande de Lassus. Ele nasceu em Mons, na atual Bélgica e sempre foi musical. Conta-se que, enquanto trabalhava de corista, foi sequestrado 3 vezes por conta da beleza de sua voz. Aos 12 anos, saiu do seu país e foi para a Itália, em Milão. Lá ele conheceu músicos famosos. Andou por Nápoles, onde teve seu primeiro emprego, como compositor e cantor, depois foi a Roma, onde, em 1553, ele conseguiu um emprego sério. Era o posto de Maestro di Cappella (uma espécie antiga de regente e preparador de coro) da Basílica de São João de Latrão. Lassus tinha 21 anos e o emprego tinha muito prestígio. Mas ele não queria emprego fixo, ele gostava de viajar. Falava francês, italiano, alemão, latim e outras. Em uma dessas viagens, para Munique, em 1558, ele passou a trabalhar para o Duque da Baviera. Acabou flertando e, depois, casando com a filha de uma Dama de Honra da Duquesa, Regina Wackinger, com quem teve dois filhos (que acabariam se tornando músicos). As viagens terminaram quando, em 1563, ainda em Munique, foi apontado como Maestro di Cappella de Alberto V, o próprio Duque da Baviera. Lassus assentou lá e lá ficou para o resto da vida. Ele ainda seria feito Cavaleiro do Esporão de Ouro pelo Papa Gregório XIII e pelo Rei da França, Charles IX e recebeu um Título de Nobreza pelo Imperador Maximiliano II, um Imperador Sagrado Romano que se tornou rei, de fato, da Boêmia, da Alemanha, da Hungria, da Croácia e, no final, Rei do Sacro Império Romano. Isso tudo atesta o alcance da fama de Lassus, mesmo fora dos meios musicais. Lassus é autor de 2000 obras, dentre as quais se incluem: vários Madrigale Spirituale, sendo o mais famoso "Lagrime di San Pietro"; 530 Motetos; 150 Chansons (no estilo francês e em francês), 90 Lieder (no estilo alemão e em alemão). Agora a música sacra: 60 Missas, dentre as quais, "Missa Entre Vous Filles", "Tous les Regretz", "Missa Osculetur Me", "Missa Vinum Bonum" e "Missa Vanatorum"; os Motetos que formam o livro "Prophetiae Sibyllarum"; "A Paixão Segundo São Mateus", "A Paixão Segundo São Marcos", "A Paixão Segundo São Lucas" e "A Paixão Segundo São João"; "De Profundis" (salmos) e muitíssimo mais. Ouça abaixo a bela e multipolifônica "Musica Dei Donum Optimi", um Moteto para 2 Sopranos, Contralto, 2 Tenores e Baixo. Lembrem-se que cada uma dessas vozes pode ser cantada por mais de uma pessoa. A obra é de 1576 e ele já usa polifonia avançada, com elementos de contraponto e de escrita harmônica. Aqui temos o grupo coral Tenebrae, regido por Nigel Short. William Byrd (1540-1623) E agora, para algo completamente diferente. William Byrd é outra coisa. Embora tenha uma vasta obra coral, ele é o primeiro compositor instrumental que veremos. Pertencia à Escola Virginalista Inglesa (que escrevia para um instrumento de teclado chamado Virginal). A forma musical pela que ele é mais lembrado são as Pavanas e Galhardas para Virginal. A Pavana é inspirada em uma dança muito lenta da Renascença, quase estática, enquanto a Galharda também é uma dança, mas apressada e alegre. Byrd nasceu em Londres, em uma família abastada e em que corria a música. Não se sabe muito a respeito de sua infância (de nenhum deles, na verdade - mal sobreviveram as músicas!). Provavelmente foi aluno de Thomas Tallis na Chapel Royal, a Capela Real Britânica, que é um lugar em que se produz música para cerimônias religiosas e da realeza. E, segundo evidências, assim que Byrd mudou a voz ele assumiu o cargo de assistente de Tallis. Em 1563 ele assumiu o posto de organista e mestre dos coristas da Catedral de Lincoln, em Lincoln, outra cidade. Em 1569 William casou com Juliana Birley, com quem viria a ter sete filhos e uma vida feliz. Mas em 1572 ele volta a Londres, onde foi nomeado Cavalheiro pela Chapel Royal e, depois, organista. Sendo que o de organista não era um cargo pago. Byrd foi mudando de cargos, adquiriu, ao lado de Tallis, o monopólio da impressão de música em Londres, foi conhecendo a realeza, inclusive a rainha Elisabeth I. Ele viveu na época de William Shakespeare! Muito estudioso, aprendeu grego, latim e provavelmente francês, italiano e hebreu. Mas, em um mundo todo voltado à religião, ele demorou muito a adquirir sua fé. Quando adquiriu, ela veio na forma de Católica. Acontece que a Inglaterra era oficialmente Anglicana (protestante). Escrever missas musicais era proibido. Ele jamais abandonou a fé, que chamavam de recusante, e veio a escrever muita música sacra. A sua família chegou a ser acusada de seduzir pessoas para a causa católica. A própria música de Byrd era "tão fora de moda quanto sua fé". No final das contas ele acabava escrevendo 2 tipos de Música Sacra: a anglicana e a católica. Apesar de estarmos aqui dando o perfil religioso de sua música, ele é muito mais conhecido por suas músicas seculares, especialmente as instrumentais. Vou perfilar primeiro suas obras para coro e, em seguida, as instrumentais. Suas principais obras corais incluem: a Missa a 4 Vozes, a Missa a 5 Vozes, a Missa a Três Vozes, 2 Livros de Canções Sacras, dezenas de Salmos, e muitas outras obras, predominantemente, canções. Suas principais obras instrumentais incluem: "My Ladye Nevells Booke", de obras para teclado; "Fitzwilliam Virginal Book" para Virginal, mas hoje se toca ao Cravo ou ao Piano; e obras para consort. Geralmente, consort de Violas da Gamba. Escute abaixo "In Nomine à 4", para consort de Violas da Gamba, em uma bela interpretação do grupo The Voice of the Viol, que pertence ao grupo Voices of Music. E aqui, uma Galliard, do Livro Fitzwilliam de Virginal, interpretada por Ernst Stolz. Tomás Luis de Victoria (1548-1611) Um dos mais conhecidos compositores do período final da Renascença, o espanhol Victoria era padre. Por isso mesmo, sua música é toda coral, polifônica, sacra e sob textos em latim. Sua música era considerada intensa como raramente se via na época. Mas vamos do início. Tomás nasceu nas beiradas da cidade de Ávila, em Castela, na Espanha Contrarreformista. Ele foi menino cantor, aos 7 ou 9 anos, na suntuosa Catedral de Ávila. Era um exímio organista. Em 1565, aos 19 anos, Victoria partiu, a pedido do Rei Philip II da Espanha. Partiu para Roma, como cantor e estudante no Collegium Germanicum et Hungaricum, fundado por Santo Inácio de Loyola e a mais antiga Universidade da cidade de Roma. Lá ele estudou Filosofia, teologia e, possivelmente, música com o grande Giovanni Pierluigi da Palestrina. Em 1573 Victoria fica se desdobrando com dois empregos: um como professor no Collegium Germanicum e o outro no Pontifício Seminário Romano. Lá ele foi Maestro di Cappella e professor de Cantochão. Victoria foi ordenado padre em 1574 e, em 1975, foi nomeado Maestro di Capella da Igreja de São Apolinário. Depois, voltou à Espanha, quando Felipe II o chamou para ser Capelão de sua irmã, a Imperatriz Viúva Maria. Ele a acompanhou até a morte dela, por 17 anos. É dito que sua música reflete sua personalidade, expressando seu misticismo e sua religião, sendo uma obra quase íntima demais. Ele tinha como característica a tendência de sobrepor e dividir coros com muitas vozes. As suas linhas melódicas em si eram complexas e o órgão sempre tinha grande importância, acompanhando o coro. Ademais, ele preferia que a obra soasse harmônica, pensando sempre na vertical, aos contrapontos elaborados de seus contemporâneos. Por fim, Victoria fazia uso abundante de dissonâncias. Sua última obra é um Réquiem para a Imperatriz Maria. Seus trabalhos mais importantes incluem: as Missas "Laetatus Sum", "Quarti Toni", "De Beata Maria Virgine" e "Vidi Speciosam"; vários "Magnificat"; várias "Lamentações"; 54 Motetos para 4, 5, 6, até 8 vozes; uma "Paixão Segundo São Mateus"; uma "Paixão Segundo São João" e os "Tenebrae Responsories", que são uma série de 18 Motetos a 4 vozes acappella. Escute, abaixo, o Moteto a 4 vozes "O Vos Omnes", em interpretação do coral Tenebrae regido por Nigel Short. John Dowland (1563-1626) John Dowland foi um compositor, alaudista e cantor elizabetano que viveu no final da Renascença. Suas peças mais conhecidas costumam ser as para voz e alaúde, assim como as para alaúde solo, que, hoje, são tocadas majoritariamente ao violão moderno. É famoso, sobretudo, por suas Canções de Melancolia. Do pouco que se conhece sobre sua infância, é possível supor que tenha nascido em Londres - mas pode ter sido em Dublin. O que se sabe é que, em 1580, foi para Paris para servir ao Embaixador da Corte Francesa. Nesse período ele se tornou católico. Neste momento ele já compunha bastante e publicava suas obras na Inglaterra. Em cerca de 1584 ele voltou à Inglaterra e, logo, casou e teve um filho, Robert. Em 1588, John é graduado Bacharel em Música pela Universidade de Oxford. Assim como William Byrd, é um católico em um país protestante. Isso trazia dificuldades. Por exemplo: em 1594 surge uma vaga de alaudista na corte. Mas sua aplicação foi deferida e ele sempre pensou ter sido por causa do seu Catolicismo, frente ao Protestantismo da Rainha Elizabeth I. Quatro anos depois assume uma vaga na corte do Rei Christian IV, da Dinamarca. O rei era fascinado por música e o salário que ele entregava a Dowland era fabuloso. Mas, certa vez, Dowland, a pedido da corte dinamarquesa, foi à Inglaterra para comprar instrumentos musicais. Ocorre que, resolvendo problemas de publicação de suas obras, acaba ficando tempo demais em Londres, desagradando os patrões. Foi demitido em 1606 e voltou, mais uma vez, a Londres. Em 1612 ele conseguiu o cargo de alaudista na corte de James VI, rei da Escócia. A partir daí suas composições começaram a escassear e John morre em 1626. Suas obras principais incluem: 1 Livro de Salmos; 3 Livros de Canções para Alaúde e Coro ou Alaúde e Voz; Lacrimae, or Seven Tears, um Livro de Músicas Instrumentais para 5 Violas da Gamba e Alaúde e a sua última obra, A Pilgrim's Solace, para Violas da Gamba, Alaúde e Voz ou Coro. Ouça abaixo a linda e famosa "Flow My Tears", uma de suas Canções de Melancolia, extraída do Segundo Livro de Canções. Os intérpretes são Phoebe Jevtovic Rosquist, a soprano e David Taylerdo, alaúde, eles pertencem ao grupo Voices of Music. Claudio Monteverdi (1567-1634) Claudio Monteverdi foi um compositor, regente de coro e instrumentista de corda do que agora podemos chamar de Transição de Renascença para o Barroco. Alguns estudiosos já querem catalogá-lo como Barroco. E tudo isso por causa de uma invenção que ele trouxe. Algo que era completamente inesperado enquanto ele estava vivo - não que ele tenha criado. Algo que encantaria multidões por, pelo menos 400 anos. A Ópera. Mas vamos a Monteverdi. Ele nasceu em Cremona, Itália. Teve 5 irmãos e irmãs. Sua educação musical é toda incerta. Mas em 1613 ele foi Mestre do Coro da Capela de São Marcos, em Veneza. Aos 15 anos já havia composto 23 Motetos e outras obras. Entre 1604 e 1646, Monteverdi escreve óperas. Muitas delas. L'Orfeu, uma de suas mais gravadas e tocadas nas salas de ópera, foi composta em 1607. Suas partituras não foram bem conservadas, de modo que das dez óperas que lhe são atribuídas, apenas 3 nos chegaram intactas: L'Orfeu, Il Ritorno d'Ulisse in Patria (de 1640) e L'incoronazione di Poppea (de 1643). Das outras, faltam pedaços da música ou do libretto. Mas ele era consistente, também, em Música Sacra. Escreveu 8 Livros de Madrigais e Selva Morale e Spirituale, constituída por Motetos, Salmos, três Salve Regina, duas Missas e dois Magnificat. Monteverdi morreu doente, em Veneza, em 29 de Novembro de 1643. Foi um músico respeitado, famoso e com a reputação de não ter medo de quebrar regras. E era moderno. Veja, abaixo, trecho de Vespro Della Beata Vergine, com o Coro Monteverdi, regido por John Eliot Gardiner. Maneirismo Maneirismo foi um estilo artístico que apareceu na Itália e se desenvolveu entre (cirurgicamente) 1520 e 1600. Ou seja, nos últimos suspiros da Renascença. Era uma expressão, em especial, da escultura, da pintura e da arquitetura, mas se alastrou por todas as artes e também por toda a Europa. É possível que o movimento tenha sido engatilhado pela descoberta, em 1506, de uma escultura helenística em Roma (sim, helenística em Roma), chamada Laocoön. Também foi influenciado por artistas da própria Renascença e ainda vivos, especialmente Michelangelo e Benvenuto Cellini (este, converteu-se em um magistral escultor Maneirista). Calcado no Humanismo Renascentista e naquela velha vontade que eles tinham de reviver, em muitos aspectos, a Antiguidade Clássica, e, também, em uma autopercepção de intelectualidade explícita, o Maneirismo era uma abordagem exagerada de elementos da arte. Tomemos a escultura como exemplo. A conduta Maneirista consistia em distorcer as características físicas do objeto (da escultura), muitas vezes com apuro técnico bastante alto, em aplicar artificialidade nas expressões e na aparência do objeto, em utilizar a técnica "Figura Serpentinata", que se originou ainda na Grécia Antiga e consistia em fazer, aplicando movimento à escultura, com que sua forma geral fosse espiralada e repleta de curvas. Tudo isso com o objetivo de tornar a obra mais expressiva, elegante ou autoritária. Na música o Maneirismo tinha pouco cabimento: o contraponto estava em seu auge, e era uma técnica altamente regrada, quadrada e com pouco espaço para expressão. E aconteceu que o Maneirismo foi menos sentido pelos compositores. O que não significa que não tenha sido sentido. Mas é confuso. Denominar um compositor ou uma obra de Maneirista chega a ser polêmico. Não há consenso entre os musicólogos. Há quem sugira que é Maneirista a música que utilize intervalos anômalos, harmonias experimentais e até que ensaie implantar o Temperamento Igual (tema que será abordado no Barroco). Mas não seria isso, simplesmente, a música tentando evoluir? De fato, encontramos esses elementos na música da época, assim como encontramos evoluções em todas as décadas desde o final da Idade Média. De modo que eu vou lhes deixar um exemplo de música nesses moldes e vocês decidirão se é ou não Maneirista. Fique com o Madrigal do Sexto Livro de Madrigais a Cinco Vozes do excepcional compositor e infame feminicida (link externo) Carlo Gesualdo. É "Io Parto, e Non Più Dissi". Nesse trecho tão mínimo de música você encontrará dissonâncias, algumas altamente radicais, e mudanças súbitas e igualmente futuristas na harmonia. A interpretação é do grupo Les Arts Florissants, dirigido por William Christie. Considerações Finais Se a Idade Média viu séculos de estagnação, a Renascença foi objetivamente mais inovadora. Hoje se enxerga a Idade Média com mais cautela e contextualização, tirando o veneno que, em boa parte, foi aplicado pelos Renascentistas. Mas, como disse, não há como negar a potência dos novos ares, parece que, bastou virar do ano 1399 para 1400, e o excesso de tragédia foi suavizado e as pessoas se tornaram mais pensadoras, progressistas e perfeccionistas. Ponderando que as mudanças ocorreram gradualmente, desde o fim da Idade Média até o fim da Renascença. Gostaria de lembrar alguns progressos obtidos durante a Renascença (no que tange à música): Maior utilização e organização da Polifonia, sobretudo do Contraponto; Aprimoramento dos instrumentos musicais e surgimento de novas famílias; Inovações na harmonia; Utilização mais ampla e certeira das dissonâncias; Melodias mais elaboradas; Aprimoração da notação (escrita de partituras); Surgimento da ópera; Surgimento da editoração musical. Mais do que podemos exigir de um período de apenas 200 anos. A Música Antiga é um período fascinante. De estudar, mas, principalmente, de ouvir. Em uma próxima postagem veremos o Barroco. Discos Interessantes de Música Renascentista - Johannes Ockeghem - Réquiem, Missa "Mi-Mi", Missa Prolationum, 2 Salve Reginas e algumas obras menores, interpretados pelo Hilliard Ensemble, regido por Paul Hillier - O Réquiem mais antigo cuja partitura sobreviveu é uma obra fantástica. Apenas para coro, a obra tem 9 movimentos e dura cerca de 37 minutos. Embora não seja dramática, emotiva, é muito bonita. A Missa "Mi-Mi", curta e melismática, é uma maravilha. A Missa Prolationum, para 4 vozes, tal qual as anteriores, é uma obra ainda mais séria, comprida e digna de atenção. - Guillaume Du Fay - Missa "Se la Face ay Pale", Magnificat "Quinti Toni", Missa "Ecce Ancilla Domini", na interpretação do Boston Church of the Advent Choir conduzido por Edith Ho - O Coro Adventista de Boston faz um trabalho impecável interpretando obras complicadas de Du Fay. O som do disco, de 2015, foi capturado com muito zelo e, ao mesmo tempo, deixando o coro se expressar. "Se la Face ay Pale" é uma obra tão complexa que é difícil acompanhar. O Magnificat, com menos de 6 minutos, tem igual complexidade e talvez uma pitada a mais de profundidade. Já "Ecce Ancilla Domini" é uma missa cheia de contraponto e com um caráter luminoso. - Giosquino: Josquin des Prez in Italia - "Praeter Rerum Seriem", Missa "Hercules dux Ferrariae", "Tu Solus qui Facis Mirabilia", "Fortuna d’un Gran Tempo", "O Virgo Prudentissima", "Inviolata, Integra et Casta", "La Bernardina", "Salve Regina", "Huc Me Sydereo", com o Odhecaton, o Gesualdo Six e a direção de Paolo da Col - O contraponto de Josquin tem um tempero. As harmonias também contêm momentos bem complicados. São obras que representam muito bem a Renascença. O disco é de 2021. - Thomas Tallis - "Spem in Alium" (moteto a 40 vozes), Missa "Salve Intemerata" e outras obras menores, interpretados pela Oxford Camerata, dirigida por Jeremy Summerly - Com coro masculino e feminino, o Moteto "Spem in Alium" é uma daquelas peças em que você parece que vai flutuar, pela meditatividade e pura beleza da obra. A Missa "Salve Intemerata" é engenhosa, utilizando às vezes apenas dois cantores, e outras vezes o coro inteiro (também misto). Imagino que a Oxford Camerata seja famosa pela sua sessão de baixos. Tem expressividade e precisão. O disco é de 2005. - Giovanni Pierluigi da Palestrina - Livro de Madrigais Sacros, Vol. 2, com o Corvina Consort, regido por Zoltan Kalmanovits - Também aplicando o coro misto, Palestrina cria Madrigais que podem soar menos cheios, como se as vozes estivessem esvaziados, mas eu digo isso no bom sentido. A textura é mais clara e se entende perfeitamente o que cada voz está cantando. O disco é de 2014. - Orlande de Lassus - Inferno: "Cantica Sacra Sex et Octo Vocibus", "Audi Tellus", "Ad Dominum Cum Tribularer", "Media Vita in Morte Sumus", "Circumdederunt Me Dolores Mortis", "Libera Me Domine" e outros, interpretados pela Capella Amsterdam, regida por Daniel Reuss - Essa miscelânea de Motetos Profanos macabros, reunidos pela temática da penitência, nos traz música de qualidade ímpar. A interpretação do coro misto Capella Amsterdam é impecável, sóbria e pálida sem, jamais, soar apagada. O álbum é de 2020. - William Byrd - Música Virginal e para Consorts (incluindo Pavanas e Galhardas), interpretadas por Skip Sempé, tocando no cravo, e pelo Cappricio Stravagante - Um disco mais vibrante, este aqui tem, também, maior variedade timbrística, variando entre um belo consort de Violas da Gamba e o lépido cravo de Sempé. Boa parte das músicas está no formatos mais cultivados por Byrd e pelos compositores de Música Virginal Elizabetana: a Pavana e a Galharda. O repertório, secular, é mais leve do que o de outros discos da lista, mas também não lhe falta profundidade e intimidade. É de 1997. - Tomás Luis de Victoria - Réquiem, interpretado pelo Musica Ficta, regido por Raúl Mallavibarrena - O Requiem a 6 vozes de Victória é ainda mais organizado e encaixado que o de Ockeghem, gerando momentos de beleza ainda maior. O coro é misto e as vozes femininas estão próximas da perfeição. Contendo apenas o Requiem, o disco é curto, com 10 movimentos e quase 39 minutos de duração. É de 2017. - John Dowland - Mel da Colmeia: Canções para Seus Patronos, cantadas por Emma Kirkby, acompanhada ao alaúde por Anthony Rooley - Cantado pela excelente soprano inglesa Emma Kirkby, especialista em música anterior ao Romantismo, o disco traz uma seleção de canções de Dowland, em vez de interpretar livros inteiros dele, como geralmente se faz. O canto de Emma e de cantores de sua linhagem não utiliza o vibrato, recurso tão comum e levado ao exagero por cantores modernos de ópera, música sacra ou lied. Isso vale para compositores a partir de Mozart. É de 2005. - John Dowland - Lachrimae, ou Sete Lágrimas, com o grupo de Jordi Savall - Lachrimae ou Seven Tears é uma ambiciosa obra instrumental de Dowland. A música tem 21 movimentos, para Cinco Violas da Gamba (ou instrumentos da família do Violino) e alaúde. Foi composta em 1606 e é uma peça profunda e melancólica. As Sete Lágrimas são sete Pavanas (danças lentas, preguiçosas) que permeiam e sustentam a obra. Por entre as Pavanas, temos movimentos um pouco menos estáticos, como Allemandes, Galhardas, mais Pavanas e o funeral. Dowland disse: "As Lágrimas que a Música chora podem ser prazerosas. Nem são as lágrimas de tristeza, mas de felicidade e alegria." O disco é de 1987 e Savall e sua turma estão perfeitos. Espero que esse texto seja útil. Teremos: Idade Média, Renascença, Barroco, Classicismo, Romantismo e Modernismo (e, talvez, Música Contemporânea). Lista de outras postagens aqui. Deixe seu comentário!

  • Barroco - Os Períodos da História da Música III - Parte 3

    Por Rafael Torres O Fim da Música Barroca Tendo existido no período suspeitamente redondo entre 1600 e 1750, a Música Barroca evoluiu e inventou vários formatos musicais, como a Cantata e o Oratório, a Música para Teclado, a Música Orquestral e a Música de Câmera. Mas o fato é que a maior parte desses formatos não se sedimentou. Como se aquele determinado formato estivesse inacabado. E como se a própria linguagem Barroca não tivesse dado conta de levá-los ao apogeu. Algum distraído poderia insinuar que não aconteceu nada no Barroco que já não estivesse preparado desde a renascença, e que a história da música progrediria tranquilamente sem ela. Eu explico. A Música Barroca não é o primeiro parágrafo de uma nova era, nem o último da era anterior. Quando se fala em inovação, no Barroco, geralmente é alguma coisa inventada na Renascença. Mas isso é apenas uma confusão. Acontece com todos os períodos da música, das artes, da ciência... A Música Barroca é inevitável como aquelas melodias de Bach, que parecem ter nascido prontas. E ela inventou algo, sim: a grandeza, o que salta aos olhos e que não se pode definir. Isso não é nem um pouco pouco. Ela foi terminando assim como foi começando. Uma mudança na Itália, outra na Alemanha, uma ideia nova na França. E quando a música olhou para si, já não era mais Barroca. O Estilo Galante, ou a Música Rococó (veja aqui, perto do final da página) evidenciou a vontade do público de ouvir música mais simples, menos elaborada, sem traje de gala. Talvez, mesmo, em casa - falo da aristocracia. Se olharmos direito, era como se a Música Barroca tivesse dado os primeiros passos na música da modernidade (e, de fato, o foi). O formato Concerto tinha agradado, precisava-se elaborar sobre ele, assim como a Ópera, o Oratório, a Sonata e até mesmo a Suíte, de certo modo. E, de fato, o que viria a seguir faria com que o Barroco parecesse sempre uma arte gloriosa, espetacular, mas antiga. Nós atribuímos o ano de 1750 como o fim do Barroco, mas lembrem-se que isso é mais por uma vontade de homenagear Johann Sebastian Bach, que morreu nesse ano, do que uma data precisa. Na verdade, surgiram compositores com características do Classicismo ainda no Barroco, outros continuaram compondo com características Barrocas já em pleno Classicismo. Foi uma transição obviamente gradual. Mas, de maneira geral, serve. Serve dizer que bem no meio do Século XVIII acabou-se uma escola e outra começou. No próximo capítulo vamos chafurdar a Música Clássica de Joseph Haydn e de Wolfgang Amadeus Mozart, e ver como eles foram os principais compositores a estabelecer a forma sonata, uma maneira de fazer música que perduraria até os dias atuais. Sobre Apreciação Uma das maneiras em que mais gosto de escutar Bach é ao Piano. Acontece que as obras não foram escritas para o instrumento. Geralmente eram para Cravo ou Órgão. Se forem para Cravo, é relativamente fácil adaptar, imagino que envolva articulação, dinâmica e dedilhado. Mas se o original for para Órgão, a situação é mais delicada. Especificamente porque ele tem duas mãos a manipular os teclados e os dois pés tocando a pedaleira. A transcrição tem que ser feita por um compositor ou um musicólogo que seja, também, organista, e as notas da pedaleira têm que ser milimetricamente encaixadas nas duas mãos. Também gosto de transcrições para Violão, e estão surgindo transcrições de cada vez mais obras; e para Orquestra Sinfônica moderna. No começo era um tanto assustador ouvir o compositor que eu havia me acostumado a ouvir tocado por pequenos conjuntos em arranjos grandiloquentes e extravagantes, mas logo me acostumei. Pode até ser uma maneira um tanto charlatã de desfrutar a sua obra, quando temos conjuntos que adotam todo o costume de interpretação musical da época, com orquestras com 6 a 12 músicos (as atuais têm 80), tocando com a articulação, as dinâmicas, a afinação (no Barroco se afinava tudo um semitom abaixo, a música pede um dó, você escuta um si) e instrumentos da época (ou cópias). Mas eu acho tão legítima uma coisa quanto a outra. No Piano, as notas estão todas lá e os músicos geralmente fazem um esforço para usar uma articulação com menos legato, menos variações de dinâmica e, às vezes, sem usar o pedal. Escutá-lo no Cravo original, e até no Órgão, embora este possa soar estridente, também é uma experiência transcendental. Desde criança fui acostumado a gostar do timbre dos dois instrumentos. A Música Barroca é complexa, tem várias coisas acontecendo ao mesmo tempo, usando sempre o Contraponto e sendo, ao mesmo tempo, intimista e extrovertida. Seja como for que você a aprecie, estará trazendo enorme benefício ao cérebro e à mente. Comparativo Vou explicar novamente o movimento HIP (Historically Informed Performance). A tradução é Performance Historicamente Informada e o nome é problemático, mas foi o melhor que surgiu. A orquestra Barroca já é uma evolução dos Consorts da Renascença (grupos instrumentais, geralmente com instrumentos de uma mesma família). Essa orquestra contava com formações variadas, como sempre seria desde então. Mas podemos falar de uma orquestra base. Ela continha alguns Violinos, em número que podia varia de 4 a 24 (como a orquestra de Jean-Baptiste Lully, Les Vingt-quatre Violons du Roy). Por sinal, o compositor italiano Arcangelo Corelli chegou a trabalhar com 150 músicos ao mesmo tempo. Mas sigamos. O mesmo Lully foi responsável pela consagração dos Oboés e Flautas (geralmente em pares) na orquestra. Posteriormente, foram adicionados os Fagotes (geralmente 3), Trompetes Naturais e Trompas Naturais (chamados naturais porque não tinham chaves e a mudança entre notas era produzida por variações no sopro - geralmente apareciam em pares). E, além disso, havia o Basso Continuo (Baixo Contínuo): um pequeno grupo, responsável pela harmonia (acordes) que, nem mesmo, lia de uma partitura, mas de uma escrita chamada baixo cifrado. O Basso Continuo podia variar, quanto à instrumentação, contendo alguns desses instrumentos: Cravo, Teorba, Viola da Gamba, Violoncelo, Alaúde e outros. Por fim, algumas peças pediam percussão, geralmente Tímpanos. Quando o Barroco foi terminando e o Classicismo se apresentando, compositores como Franz Joseph Haydn padronizaram o tamanho e a formação dos conjuntos. A família inteira do Violino foi adotada, ficando: Violinos I, Violinos II (um grupo de Violinos independente do primeiro), Violas, Violoncelos e Contrabaixos; e haviam as Flautas, Oboés, Fagotes, Trompas e, ocasionalmente, Tímpanos, Trombones e Clarinetes ou Basset Horns (esses últimos foram usados por Wolfgang Amadeus Mozart). Em 1770, nasce, na Alemanha, o compositor Ludwig van Beethoven. Já no século XIX, entrando no Romantismo, ele e outros de sua geração foram sentindo a necessidade de acrescentar ainda mais instrumentos à orquestra. Na sua 6ª Sinfonia, "Pastoral", ele usa 1 Flautim, 2 Flautas, 2 Clarinetes, 2 Oboés, 2 Fagotes, 2 Trompas, 2 Trompetes, 2 Trombones, Tímpanos e a família dos Violinos. O Romantismo foi adentrando e vieram compositores como o francês Hector Berlioz, que, na sua genial Sinfonia Fantástica (de 1830) introduziu o Corne Inglês (parente intermediário do Oboé e do Fagote), o Clarinete em Mi Bemol, mais agudo, chamado aqui no Brasil de Requinta, os Oficleides (instrumentos de metal que tiveram carreira curta), a Harpa; e ampliou as sessões dos Fagotes, passando a 4, das percussões, pedindo 8 músicos e das cordas, sendo bem específico (não é comum o compositor especificar quantos de cada instrumento de cordas ele quer): 15 Violinos I, 15 Violinos II, 10 Violas, 11 Violoncelos e 9 Contrabaixos. O que ocorria era que, com a entrada de mais sopros, que são instrumentos que, sozinhos, são capazes de se sobrepor à orquestra, passou-se a necessitar de mais cordas para equilibrar. No final do século XIX, o austríaco Gustav Mahler já usava, na sua Primeira Sinfonia, "Titan", uma orquestra gigantesca, com 4 Flautas, Flautins, 4 Oboés, Corne Inglês, 3 Clarinetes, Clarinete em Mi Bemol, 3 Fagotes, 7 Trompas, 5 Trompetes, 4 Trombones, Tuba, Tímpanos, Percussão e as cordas (que, por aí, já passavam de 64). Agora reparem que, nesse tempo todo, a música de Johann Sebastian Bach, de Georg Friedrich Händel, de Haydn e de Mozart continuava sendo tocada pelas orquestras. Quando eram Mozart e Haydn, elas geralmente respeitavam o compositor e mantinham o número de madeiras que eles haviam pedido (mas as cordas permaneciam inflacionadas). Mas quando eram Bach, Händel e outros compositores Barrocos, os maestros, instintivamente, faziam verdadeiras "reorquestrações", dobrando madeiras, tocando com 30 Violinos. Faziam isso porque vinham seguindo uma tradição. Faziam o que o seus antecessores faziam, não por querer adulterar a música que tanto amavam. Mas alguns exageros, justamente em gravações de Oratórios de Bach e Händel, levaram um grupo de músicos, como os ingleses David Munrow e Christopher Hogwood, o austríaco Nikolaus Harnoncourt e o holandês Gustav Leonhardt (e muuuuuitos outros) a questionar essa abordagem, ou seja, tocar música muito antiga como se toca música moderna, e agiram. Fizeram extensas pesquisas a respeito de como se tocava na época. Exemplificarei com o Violino. No Barroco ele era posicionado mais para baixo, quase no peito do músico; além disso (eles garantiam), não usavam o vibrato a não ser com muita cautela - esse quesito gerou muitas polêmicas, de musicólogos se perguntando a partir de qual momento histórico o vibrato era "permitido" (vibrato é uma técnica que, no Violino, consiste em cambalear o dedo na corda, produzindo um som pulsante - é o que os cantores líricos fazem, ás vezes com uma técnica fenomenal, mas que não me encanta); o arco era totalmente discrepante do atual, sendo menor, de materiais diferentes, segurado menos na ponta... Nas orquestras que cada um fundou, usam-se instrumentos originais da época da música que interpretam, ou, mais comumente, cópias. Hoje, há um verdadeiro mercado para Luthiers (construtores de instrumentos) especializados em instrumentos antigos. O processo de fabricação em si, envolve desde medições precisas e decifração dos materiais de um modelo que tenham à mão, até o uso de esquemas deixados por Luthiers antigos. Um caso curioso é o da gravação do clarinetista Anthony Pay e do maestro Christopher Hogwood, com a Academy of Ancient Music, do Concerto para Clarinete, K. 622, de Mozart, em 1990. A partitura pedia notas que o Clarinete não alcançava, graves demais. E ficava estranho, também, no Basset Horn, que é primo dele. Até então, os clarinetistas adaptavam as passagens mais graves, tocando-as uma oitava acima. Até que se descobriu que Mozart havia escrito a música (o manuscrito está perdido) para um instrumento bastante exótico, provável especialidade de seu amigo clarinetista Anton Stadler: o Clarinete Basset. Eles reconstruíram o instrumento, descrevendo o que queriam ao Luthier e gravaram o concerto na sua forma original. (Conste aqui que essa não foi a primeira vez em que isso foi feito. Em 1973, o clarinetista Hans Deinzer e o grupo Collegium Aureum, que toca sem regente, já haviam gravado desse jeito. Eu mencionei a de Pay/Hogwood porque a conheço, e conheço a história, desde criança.) Vale dizer que isso tudo, refiro-me a tudo que está relacionado a essa nova maneira de interpretar música, gerou muita polêmica. Lembro de ler o seguinte argumento: a banda de Duke Ellington se reuniu, depois de 30 anos sem tocar junta, e o resultado foi estranhíssimo. Os críticos foram quase unânimes. Não tinha nada a ver com o som que eles tiravam, com o mesmo repertório, outrora. Então, como é que alguém pode sequer conceber que vai conseguir atingir a sonoridade de orquestras de 200, 300 anos atrás? E que, ainda por cima, não foram gravadas e não têm testemunhos vivos? isso, para mim, resume o problema. Quanto a gostar ou não do som, geralmente, eu gosto. Mas depende do resultado, do mesmo jeito que com as orquestras modernas. Muito mais importante é que a interpretação traga valor musical. Nos dias de hoje, as grandes orquestras e os grandes regentes adotam um estilo, digamos, híbrido. Não se cometem mais os excessos dos anos 50 ao se interpretar Música Barroca e Clássica. Aliás, pouco a pouco as orquestras sinfônicas foram criando uma espécie de "inibição". E hoje mal tocam música anterior a Beethoven., relegando-a às orquestras com instrumentos de época. É o lado um pouco triste dessa história toda. Podemos ser práticos e ver a diferença que há entre a interpretação de uma mesma obra, o famoso Canon e Giga de Johann Pachelbel, com práticas modernas (o primeiro vídeo, com Herbert von Karajan regendo a Orquestra Filarmônica de Berlim) e com parâmetros que simulam a execução da época (o de baixo, com o Musica Antiqua Köln, regido por Reinhard Goebel). Vai se surpreender. Discos Recomendados Por questões puramente de ditatorial afinidade vou favorecer os discos de música instrumental. - Johann Sebastian Bach - A Arte da Fuga, interpretada pelo Emerson String Quartet - A Arte da Fuga não especifica sua instrumentação, na partitura, apenas 4 pautas separadas. Já foi gravada ao Órgão, ao Cravo e ao Piano inúmeras vezes cada, orquestra, Quarteto de Flautas Doces, Quarteto de Violões, Quarteto de Cordas e uma infinidade de outras combinações. Obra inacabada, impedida de progredir pela doença, consiste em 14 fugas e 4 Cânons. A versão que escolhi para vocês foi para quarteto de cordas, executada pelo Emerson String Quartet em 2003. É uma obra que, mesmo sendo quase mecânica, resvala em todas as emoções em que você puder pensar, todas as sensações. Há algo na Arte da Fuga. Que nos aprisiona e a todos encanta. - Johann Sebastian Bach - Variações Goldberg, interpretadas ao Cravo por Pierre Hantaï - As Variações Goldberg são mais daquelas peças que parecem ter vindo prontas. O caderno consiste em 2 Árias (que têm o tema - uma tocada no início, outra no fim) e 30 Variações. Duram quase 1 hora e 20 minutos. Foram escritas para Cravo, mas hoje se ouve mais ao piano. O que pega na peça é sua engenhosidade. Consta que foram compostas por encomenda de um conde que não conseguia dormir. Ele queria que Bach compusesse uma obra para que seu protegido, Johann Gottlieb Goldberg, aluno de Bach, tocasse na antecâmara do seu quarto nas noites insones. Consta, também, que Bach nunca foi tão bem pago em toda sua vida e que o conde ficou apaixonado pelo que ele chamava de "minhas variações". As variações foram gravadas por Rosalyn Tureck, por Glenn Gould, por Lang Lang, por Beatrice Rana, por Wilhelm Kempff, por Joanna McGregor, por João Carlos Martins, por Daniel Barenboim, por Christiane Jaccottet, por Claudio Arrau, por Gustav Leonhardt, por Alexis Weissenberg, e muitos outros, tanto ao Cravo quanto ao Piano. Também foi gravada em arranjos para uma impressionante variedade de instrumentações. Pierre Hantaï é o cravista perfeito, o som de seu Cravo ajustado à perfeição para o som mais suave. Ele gravou as variações 2 vezes. Prefira a última, de 2004. - Johann Sebastian Bach - Sonatas e Partitas para Violino Solo, interpretadas por Julia Fischer - Mais uma obra (com 6 peças) em que esse "minúsculo instrumento" se põe a falar, e acaba falando do infinito. Eu escolhi essa versão porque a prodígio Julia Fischer não pestaneja, não parece que vai arredar o pé por um segundo sequer. Aos 39 anos, já gravou tudo, Música de Câmera, Música Concertante e Música Para Violino Solo. Tinha diversos concorrentes, principalmente Hilary Hahn, Viktoria Mullova e Christian Tetzlaff. Mas Julia tem surreal bom gosto, potência e uma clareza absurda. As 3 Sonatas têm os 4 movimentos típicos de uma sonata barroca. Já as 3 Partitas têm os movimentos clássicos da suíte de dança (mesmo que não sejam para ser dançados), tal como a Alemanda, a Courant, a Gavota, a Sarabanda e a Giga. Uma nobre exceção é a Chaconne da 2ª Partita: com 15 minutos, ocupa quase metade da sua suíte. Além disso Julia toca equilibrado entre o Moderno, mas sem excessos, e o Barroco, mas sem as neuras. Disco de 2005. - Johann Sebastian Bach - Missa em Si Menor, regida por John Eliot Gardiner - Grande Missa, para cantores solistas, coral (aqui, o Monteverdi Choir) e orquestra (English Baroque Soloists), a Missa em Si Menor tem a mesma importância que A Paixão Segundo São Mateus, o Oratório de Natal e o Magnificat em Ré Maior. Estão entre as obras de mais alta significância em toda a história da música. A versão dirigida pelo maestro (e pugilista) John Eliot Gardiner é clara, tanto nas articulações, quanto pelo fato de usar uma orquestra menor (ele utiliza uma orquestra Barroca, com instrumentos da época). É uma gravação discreta, sem vibrato, com andamentos acertados. De 1985. - Johann Sebastian Bach - As 6 Suítes para Violoncelo Solo, interpretadas por Antônio Meneses - O brasileiro Antônio Meneses é um mago do Violoncelo. Comparei mais de 20 versões e a dele se sobressai ao aglutinar alguns atributos essenciais: é bem microfonada (isso é importantíssimo); conta com uma sonoridade grave, cheia, ligeiramente rouca; e seu Staccato é na medida e os fraseados, milimetricamente dosados. É de 2009. Tenho, ainda, outra gravação favorita. A do violoncelista francês Pierre Fournier, um pouco mais antiga, de 1960, mas igualmente impressionante. - Georg Friedrich Händel - Oratório Messias, regido por Paul McCreesh - McCreesh, com seu afiadíssimo conjunto, o Gabrieli Consort, extrai a última gota de emoção do Oratório de Händel. Mas tudo discretamente, em tons pastéis. Os solistas cantam com tamanha intimidade que é que é como se conhecessem atalhos, para evocar cada uma dessas emoções. Que possamos desfrutar da música assim, tão crua e, ainda, definitiva, é um privilégio dos tempos. Se tentássemos escutá-la nos anos 60, teríamos uma sucessão de sons ensurdecedores encadeados. Essa obra contém o célebre coro "Hallelujah". O Oratório precisa de 2 CDs: são coros, solos, duetos, recitativos e tudo o que torna a obra grandiosa. Gravação de 1997. - Georg Friedrich Händel - Concertos Grossos, Op. 6, com a Händel & Haydn Society, regida por Christopher Hogwood - Dentre as obras instrumentais de Händel, destacam-se os Concertos Grossos e, dentre esses, mais ainda, os 12 Concertos do Caderno Op. 6. A obra é formada por 12 concertos para 2 ou 3 Violinos solistas e ripieno (um conjunto com número variável de instrumentos que executam 4 partes, aos quais é adicionado um Cravo). Hogwood tem a vez, aqui, mesmo fora da sua orquestra de praxe (a Händel e Haydn Society eram seu braço nos Estados Unidos), porque rege com confiança, com direção, mas sem perder luz da delicadeza. É de 1993 e, como a maioria aqui, usa instrumentação de época. - Georg Philipp Telemann - Música Aquática, com o Musica Antiqua Köln regido por Reinhard Goebel - Esse, conheço de cor. O Cravo fluido, os oboés onipresentes e, ao mesmo tempo, dosados, as cordas virtuosísticas e, quando entram, as flautas doces mágicas. É uma verdadeira orquestra barroca. De 1984, o CD agrega uma Suíte de Abertura (chamada "Hamburger Ebb") e mais três Concertos avulsos e bem encaixados. Foi uma das primeiras vezes em que realmente me impressionei com o Movimento HIP. - Georg Philipp Telemann - 12 Fantasias para Flauta Solo, com Jasmine Choi - O que temos aqui? 12 peças (preenchem um CD) que têm, cada qual, seu caráter. O flautista terá que simular o que seu instrumento não faz: tocar múltiplas e polifônicas vozes. Isso mesmo, o instrumento deverá conseguir, com os recursos da respiração, da articulação e da intensidade do som, criar a ilusão de que a flauta se multiplicou. É o Contraponto Monódico. As Fantasias podem ser apreciadas na Flauta Doce (tente Tommaso Rossi, 2017) ou na Flauta Transversa (recomendo Jasmine Choi, 2015, com sua sonoridade despojada de exagero e interpretação discreta). - Georg Philipp Telemann - Concertos e Suíte com Flauta Doce, interpretados por Michala Petri, acompanhada pela Academy of Ancient Music, regida por Iona Brown - A linda, brilhante e rica (eu disse rica?) flautista doce dinamarquesa Michala Petri tem uma vasta discografia e um currículo surpreendente. É uma autoridade em Telemann e Vivaldi. Este lindíssimo disco tem concertos para diversas formações. O primeiro é para Flauta Doce, Fagote (com o fagotista alemão Klaus Thunemann) e orquestra; o seguinte é para Flauta Doce, Flauta Transversal e orquestra e, por fim, há uma dramática suíte para Flauta Doce e orquestra. Todos executados com perfeição. Alguns críticos insinuam ver perfeição em excesso (acham Michala ascética, com o que sou obrigado a discordar) mas eu pergunto: existe excesso de perfeição?. É de 1985. - Domenico Scarlatti - Sonatas Para Teclado, Andrea Molteni ao Piano - Molteni, que é mais esperto que parece, selecionou 18 sonatas completamente diversas das de Hantaï e fez um CD claramente mais leve e suspensivo. Além disso, optou pelo piano, mas utilizando pouquíssimas inflexões. Até mesmo a Sonata em Dó Menor, Op. 126, epicentro do disco, não nos causa angústia ou vontade de fugir pra Hungria. É um disco iluminado. É um rapaz muito talentoso. Seu disco é de 2021. - François Couperin - Avec le Basse Chiffrée e Les Goûts Réunis, com Mikko Perkola, Aapo Häkkinen e Markku Luolajan-Mikkola - Esse repertório, dividido em 2 livros (Avec le Basse Chiffré e Le Goût Réunis), apresenta a obra de Couperin para (nesse caso) Viola da Gamba Baixo, Cravo e Contrabaixo. Os músicos finlandeses tocam com intensidade invejável, o que poderíamos chamar de paixão. Esses dois cadernos, Couperin os escreveu em seu último ano, 1728, quando já havia perdido seu caro amigo Marin Marais. Talvez daí sintamos as notas de melancolia e profunda reverência. Foi gravado em 2007. Lindíssimo! - François Couperin - Recital de Cravo, por Pierre Hantaï - Hantaï reuniu, aqui, peças que pouco têm a ver entre si, mas que juntas, revelam muito. Como a desconcertante intuição e o perfeito tino de Couperin para talhar a harmonia, trabalhando acorde por acorde até que o resultado final seja o desejado. Pessoalmente, acho essas músicas extremamente atraentes, mas de um jeito quase assombrado, por vezes. A interpretação de Hantaï é meticulosamente primorosa. Gravado em 2007. - Jean-Marie Leclair - Musique de Chambre, Obra Tardia para Orquestra, com o Musica Antiqua Köln, regido por Reinhard Goebel - Goebel e o Musica Antiqua Köln estiveram na vanguarda do Movimento HIP (Performance Historicamente Informada). Junto com Nikolaus Harnoncourt e o grupo de David Munrow (o Early Music Consort, que se dedicava à música anterior ao Barroco) mudaram completamente o som erudito dos anos 1960. E, com eles, um repertório novo, colorido e rico como o lado oculto da lua. Esse disco nos apresenta a música mágica de Jean-Marie Leclair. O compositor nasceu em 1687, em Lyon, França. O disco que proponho apresenta uma Abertura, 3 sonatas e a Abertura de um Trio. Tudo executado com o maior rigor, seguindo as novas diretrizes. O Musica Antiqua Köln já se desfez, e Goebel perambula por aí. Mas seu legado jamais será esquecido. De 1979. - Antonio Vivaldi - As 4 Estações (Concertos para Violino e Cordas), com Janine Jansen e orquestra de solistas - As 4 Estações...! Que curioso agrupado de 4 Concertos para Violino e Orquestra. Quando aplicadas as normas da "Performance Historicamente Informada", restam-nos o Violino Solo; a Orquestra, com 2 Violinos e uma Viola; e o Baixo Contínuo, com Violoncelo, Teorbo e Cravo. Meros 8 músicos. Claro que se pode tocar com bem mais, mas hoje em dia é de bom tom não extrapolar. A interpretação da fabulosa violinista alemã Janine Jansen, que aqui é a solista, e sua turma é embasbacante. Conseguiram trazer novidades a uma obra que já foi engessada, tocada por orquestrinhas infantis e profissionais! Eles injetam uma fartura de acentos, crescendi, diminuendi, cortam as frases onde não esperamos... O resultado é que a música aparece nova, ali, pulsante. Um prodígio, de fato, o que fizeram com as 4 Estações! E é o perfeito exemplo de como ficaram as coisas: os músicos mais novos adotam algumas das práticas do Movimento HIP, mas sem exagero, sem obrigações e sem aquele peso funesto que às vezes eu ouço em, por exemplo, Nikolaus Harnoncourt (apesar disso, o amo demais). O disco é de 2004. - Antonio Vivaldi - Concertos para Flauta, com Patrick Gallois e a Orpheus Chamber Orchestra, uma das mais prestigiadas orquestras sem regente do mundo - Gallois e a Orquestra tomam uma abordagem bem relaxada. O flautista francês jamais toca forte demais, e a orquestra o acompanha nessa atitude. Os contrastes são dosados. Eles nem usam Cravo! (Para o oposto do que estou falando, com interpretações extrovertidas e exuberantes, encontre os flautistas Jean-Pierre Rampal e Emmanuel Pahud.) É um disco discreto, mas que nessa discrição, nos dá a melhor versão de 6 dos principais Concertos para Flauta do compositor italiano. Não é música fútil, é de primeira categoria. Temos os famosos concertos "La Tempesta di Mare", "La Notte" e "Il Gardelino". Gravado em 1992. - Georg Muffat e Heirich Ignaz Franz von Biber - Suítes e Sonatas para Orquestra, Nikolaus Harnoncourt regendo o Concentus Musicus de Viena - Se existem discos seminais na história da música, cá há um. Você chega a estranhar, de cara, as harmonias tronchas e insólitas que ouve. Georg Muffat publicava suas músicas em cadernos chamados Florilegia (Florilegium Primum, Florilegium Secundum...). Nesses dois, precisamente, ele teve a ideia de escrever também um tratado sobre a técnica violinística de então. A calhar para os músicos que pretendiam emular, só com essas (e outras, também da época) instruções, o "verdadeiro" som barroco. Não digo que foram bem sucedidos ou que não. Mas uma coisa é certa, criaram um som diferente, muito diferente do das Orquestras Modernas. Agora, é bonito, sim. O disco abre com o Fascículo 8 do Florilegium 2. É uma suprema sonata, chamada "Indissolubilis Amicitia". Como disse, é ousada e soaria moderna mesmo hoje. Em seguida temos um concerto: "Bona Nova", em que os oboés se destacam. E então passamos para as três peças de Bibber: uma sonata; a 8ª sonata do "Fidicinium Sacro-Profanum"; a Sonata "Battalia a 10". Todas peças de compositores maduros e comprometidos em fazer arte no mais alto padrão. O disco é de 1965 e o som é muito bom. - Jean Gilles - Réquiem, com Philippe Herreweghe regendo solistas, o coro Collegium Vocale Gent e a orquestra Musica Antiqua Köln - Nessa gravação, de 1981, temos o que há de mais precioso na música. A delicadeza. O Réquiem não é nem um pouco dramático, no máximo um pouco resignado. No século XVIII, a morte não era vista como uma tragédia, as pessoas conviviam com ela o tempo todo. A música é linda, para cantores solistas, coro e orquestra. Repare logo no primeiro tenor que entra: não faz vibrato e sua atitude geral é discreta e elegante. O mesmo acontece com os outros cantores, o coro e a orquestra. Todos solenes, falando da inevitável morte. É uma das interpretações mais belas da carreira eminente e quase impecável do maestro francês Philippe Herreweghe, um dos maiores expoentes da Performance Historicamente Informada. - Jean-Philippe Rameau - Suítes Orquestrais, com Frans Brüggen a reger a Orchestra of the 18th Century - Brüggen é uma lenda do Performance Historicamente Informada tanto quanto Hogwood, Goebel, Harnoncourt e Herreweghe. Aqui eles se debruçaram sobre duas óperas de Rameau: "Acante et Céphise" e "Les Fêtes D'Hébé". Mas não são as óperas que escutamos, são trechos instrumentais catados de cada uma e agrupados em suítes orquestrais. O disco simplesmente prova por que Rameau é um dos compositores barrocos mais importantes. Por se tratar de música derivada de Ópera, a orquestra é maior que o de costume e a interpretação é brilhante. Maravilhoso! Disco de 1998. - Le Parnasse Français, com música orquestral de Marin Marais, Jean-Féry Rebel, François Couperin e Jean-Marie Leclair - com Reinhard Goebel regendo a Musica Antiqua Köln - Esse é o outro disco seminal de que lhes falava. Desde o início, com baixo ostinato na Sonnerie de Marin Marais, somos tragados a um planeta onde apenas lá tal música é possível. Depois temos o expressivo "Le Tombeau de Monsieur Lully", de Jean-Féry Rebel, a carismática Sonata "La Sultane", de François Couperin, uma Abertura de Jean-Marie Leclair (dividida em três faixas, no disco). Depois de uma peça de Michel Blavet, temos o maravilhoso "Concerto Comique" Nº 25, de Michel Corrette, peça de encantadora sagacidade. O disco é um passeio pelo barroco francês, mais que qualquer outro. De 1978. - Dietrich Buxtehude - Membra Jesu Nostri, com coro, solistas e Andoni Sierra a reger o Conductus Ensemble - Essa pungente e ambiciosa obra de arte une 7 cantatas dedicadas aos membros e órgãos (sim, falo de partes do corpo, mesmo) de Jesus na cruz. Mas que isso não venha lhe dissuadir: a obra toda dura não mais que 1 hora. A interpretação é fabulosa e os cantores são da mais alta estirpe. De 2019. - Arcangelo Corelli - Concerti Grossi, Op. 6, com Federico Maria Sardelli a reger a orquestra Modo Antiquo - Os 12 Concertos Grossos que compõem este fantástico CD estão entre os mais importantes da história da música, ladeados pelos Op. 3 e Op. 6 de Händel. São orquestrados para (concertino, que são os instrumentos principais, os solistas: Violino I, Violino II e Violoncelo); (ripieno, instrumentos de acompanhamento: um conjunto de cordas) e Baixo Contínuo (a parte dos acordes, para a qual se pode selecionar a instrumentação). A interpretação é assertiva, confiante e brilhante. A gravação, com masterização suave, é de 1998. - Girolamo Frescobaldi - Obras para Cravo, por Enrico Baiano - A peças (para Cravo ou Órgão, e eu optei por uma gravação ao Cravo) de Frescobaldi têm elevado caráter improvisativo, e isto quer dizer que as frases e escalas se tornam abundantes, enquanto a estrutura não é, na concepção, tão elaborada. É das obras mais importantes da literatura de instrumentos de teclado. A gravação de Enrico Baiano é mais que clara, é didática. O disco é de 2002. - José Maurício Nunes Garcia - Réquiem, por coro (o Morgan State College Choir), solistas e orquestra, a Filarmônica de Helsinque regidos por Paul Freeman - O belíssimo Réquiem do padre e compositor carioca Nunes Garcia é de 1799. Começa manso, até lembra um pouco Mozart (às vezes, um bocado). É uma partitura muito inspirada, que ganhou dos Finlandeses essa interpretação muito refinada. A execução da peça dura cerca de 36 minutos. É música de beleza transcendental que recebeu uma interpretação de luxo. Não falo isso simplesmente porque é uma orquestra europeia, mas vocês precisam saber como essa música é negligenciada no nosso país, salvo por honrosos esforços individuais. A gravação é de 1975, mas o som é muito bom. - Johann Pachelbel - Obras de Câmara, incluindo o Cânon e Giga, com o London Baroque Players, dirigido por Charles Medlam - Disco todo instrumental, vai chamar a atenção pela 10ª e última faixa, o Canon e Giga do compositor, também conhecida como Canon de Pachelbel. Mas os encorajo fortemente a escutar o disco todo, que dura 1h15m. Quanto ao Canon, foi uma concessão que fiz por vocês, para que pudessem ter um sopro de familiaridade em uma discografia tão densa. De 1995. - Giuseppe Tartini - Obras para Violino Solo, incluindo a Sonata "Devil's Trill", por Andrew Manze - O prato principal deste álbum é a Sonata para Violino em Sol Menor, conhecida como "Devil's Trill", ou "Trinado do Diabo", que pode ser tocada pelo Violino desacompanhado ou com um instrumento acompanhante. A peça tem história: o compositor e violinista italiano (na verdade, da República de Veneza) Giuseppe Tartini recebe, em sonho, a visita do diabo. Este se oferece para lhe dar uma aula. Ao cabo desta, Tartini lhe estende seu violino, a fim de testar as habilidades do cão. Pois o diabo toca com tanta volúpia, paixão e fogo que deixa Tartini sem fôlego. Ele acorda e se põe imediatamente a anotar a música com que sonhou. E a apelida de Trinado do Diabo. Este ocorrido foi habilmente adaptado e recontado em Cordel pelo nosso cordelista Eduardo Macedo (Cordel: O Rabequeiro do Brejo e o Trinado do Diabo). Escolhi a interpretação de Andrew Manze, pois este escolhe tocar com as diretrizes usadas no Barroco (lembram?: uso quase nulo do vibrato, utilização de Violino da época, com cordas de tripa de bode e um modo de tocar completamente peculiar para quem é acostumado ao Violino Moderno). O britânico Manze, que também é regente e já foi diretor da Academy of Ancient Music, após Christopher Hogwood, entrega uma interpretação quase perfeita, sem acompanhamento e que, ao mesmo tempo nos expõe as qualidades e limitações sonoras do Violino Barroco. É a sua segunda gravação da peça, feita em 1997 (a outra, em 1980). O Trinado do Diabo, que contém tantos trinados quanto qualquer outra peça da época, dura cerca de 15 minutos e tem três movimentos. O álbum acompanha outras obras do autor, como as Variações Sobre Uma Gavota, do Opus 5 de Corelli (Deu para entender? São variações de Tartini sobre uma Gavota de Corelli) e a Pastoral para Violino em Scordatura. Violino em Scordatura era uma técnica muito comum entre os virtuoses do Barroco. E também, assombrosa, de doer a cabeça só de pensar. Consiste em afinar uma ou mais, das 4 cordas do Violino, em notas que não são as habituais Mi-Lá-Ré-Sol. Pode ficar, por exemplo, Mi-Sol-Mi-Sol. E o músico, acostumado a achar seu dozinho lá na corda Lá, tem que reprogramar todo seu cérebro, neurônios e sistema nervoso central para poder redefinir onde fica cada nota. Eles faziam isso não por masoquismo, mas porque, quando em Scordatura, novas possibilidades melódicas se revelam no instrumento e fica fácil sair do lugar comum. Fazemos isso no Violão, também, agora, a Viola Caipira é a rainha da Scordatura. Ela não tem uma afinação padrão, e o violeiro tem que se acostumar com várias afinações (que têm apelidos: Cebolão em Ré, em Mi, Rio-Abaixo, Rio-Acima, Boiadeira etc.). Só lembrando que a versão de Andrew Manze da Sonata "O Trinado do Diabo" é sem acompanhamento e, embora seja raro ouvir assim, é, provavelmente, a mais autêntico, pois nenhum manuscrito de Tartini contém qualquer tipo de acompanhamento. - Marin Marais - Les Voix Humaines, peças para Viola da Gamba e Cravo, com Hille Perl à Gamba e e Lee Santana ao Teorbo - Um álbum quase New Age, mas é barroquíssimo e centrado na obra do compositor francês Marin Marais (1656-1728), um aprendiz de Jean-Baptiste Lully que compôs pouca música vocal. Sua paixão era a Viola da Gamba, que hoje é um instrumento de corda histórico, tendo sido, ainda no Barroco, superado pela família dos Violinos. O repertório é fascinante e a virtuose alemã Hille Perl é uma das mais magníficas executantes e defensoras da Viola da Gamba. O disco foi gravado em 2008 e os dois instrumentistas usam vários modelos da família das Violas da Gamba, o Alaúde e o Teorbo (uma espécie de Alaúde com uma extensão para cordas graves). É imperdível, aposto que você vai adorar músicas como "La Badinage" e "Le Labyrinthe". - Gregorio Allegri - Música Sacra, inclusive o Miserere, por The Choir of the King's College London, regido por David Trendell - Você conhece, não conhece? Essa história aqui? Vou resumir: em 1638 o compositor proto-barroco italiano Gregorio Allegri compõe seu Miserere, que é basicamente a transformação em música de um Salmo Bíblico (o de número 51, salvo engano), para coro. Foi composto a pedido do Papa Urbano VIII pra ser cantado exclusivamente na Capela Sistina durante a Semana Santa. A música não saía de lá. Muito tempo depois, Allegri já no túmulo, a Capela é visitada por um jovem de 14 anos chamado Wolfgang Amadeus Mozart, acompanhado por seu pai Leopold. Wolfgang escuta a música uma vez (tudo bem, depois ele retorna para conferir) e a anotou inteira. Compreenda, são 9 vozes, ou 9 melodias simultâneas, a escrita é repleta de armadilhas, notas vizinhas, dissonâncias e dura 14 minutos! Agora repita: "Jamais deverei subestimar Wolfgang Amadeus Mozart!". A música de Gregório Allegri é divina e esse disco, todo coral e graciosamente cantado pelo Coro do King's College de Londres, dirigido pelo excelente David Trendell, contém muitas provas disso ("Missa Mectulo Meo" e "Missa Christus Resurgens", por exemplo). A obra de Allegri se situa na saída da Renasença e entrada do Barroco. É de 2012. - Henry Purcell - A Purcell Songbook, cantado por Emma Kirkby - A voz de Emma Kirkby é um patrimônio não só da Inglaterra, mas da humanidade. Já foi dito por aqui que eu não gosto de música cantada. Foi dito também que, no Barroco, cantava-se completamente diferente, com mais discrição, menos gritos, berros e, principalmente, menos vibrato. Dá até pra saber exatamente que nota o cantor quer alcançar. Bom, Dame Emma Kirkby parece ter sido transportada de lá para cá. Sua voz tem, digamos, prerrogativas especiais. Suspeito que ela tenha feito um implante do mais porteño Doce de Leite em suas cordas vocais. Enfim, assim como a Mônica Salmaso, ela canta suave, manso e com a certeza de que a pura beleza de seu timbre haverá de encantar. O repertório desse disco contém, sobretudo, Árias de Óperas do inglês Henry Purcell. Kirkby é acompanhada por formações diversas, como Christopher Hogwood, ao Cravo, Anthony Rooley, ao Alaúde ou ao Teorbo e até por uma pequena orquestra. Trata-se, excepcionalmente (para nós), de uma coletânea da cantora. Não deixe de conferir essa gigantesca soprano e este repertório especial. O disco é de 1983. - Louis Couperin - Suítes para Cravo, por Alan Curtis - Louis Couperin era um músico talentoso, que despontava em Paris como cravista, organista e gambista. Mas morreu muito cedo, aos 35 anos. Era tio do muito mais famoso, nos dias de hoje, François Couperin (veja acima). Eu trago esse disco porque ele é a mais peculiar das joias. O cravista estadunidense Alan Curtis, um estudioso da Música Barroca, gravou o disco inteiro em um Cravo afinado em um sistema anterior à adoção do Temperamento Igual, afinação que usamos até hoje. Eu pincelei sobre isso na Parte 1 do nosso mergulho no Barroco, mas não quis me aprofundar porque ficaria técnico demais. Pois bem, o Temperamento Igual divide a oitava em 12 partes iguais, em que, quanto mais se vai subindo, aplica-se uma razão matemática para determinar a próxima nota. O sistema que Curtis usava mantinha as terças puras. Mas basta saber que, para o nosso ouvido, o disco de Couperin soa completamente desafinado. Não está! Apenas está usando um sistema de afinação mais rústico. Quando você se acostuma, vê que é muito interessante. Talvez seja o disco Barroco mais Barroco que eu recomendei aqui. É que Curtis queria ser "radicalmente autêntico". Conseguiu. Disco de 1976. Está sendo proveitoso? Comentem aí! À vontade. Só não permito comentários com discurso de ódio, de preconceito e com palavreado baixo. As postagens da Arara Neon, nós resolvemos dispô-las em lista em uma única postagem. É só clicar aqui.

  • Mozart - Réquiem - A Obra que Matou o Compositor?

    Por Rafael Torres Talvez o Réquiem em Ré Menor, K. 626, chamado de "Missa Pro Defunctis" de Wolfgang Amadeus Mozart, sua derradeira obra, seja a peça mais emblemática da história da música. Especialmente da música sacra, ao lado da Paixão Segundo São Mateus e da Missa em Si Menor, ambas de Johann Sebastian Bach (1685-1750). O Réquiem, para Coro, Orquestra e 4 Solistas (soprano, contralto, tenor e baixo, formação conhecida com SABT) é a obra mais madura de Mozart (1756-1791), já que é sua última. Mozart não a completou. A doença e a morte o impediram. Os debates acerca da porcentagem da música que é, de fato, de Mozart, não diminuem a sua grandeza. O que Mozart compôs está perfeito, e o que foi completado por seu colega e amigo Franz Xaver Süssmayr é digno de uma composição de tal porte - embora musicólogos apontem "erros" e "inconsistências" na escrita de Süssmayr. Mozart compôs dez movimentos: não encontrando forças para completar a Lacrimosa, tendo composto apenas oito compassos desta, seguiu adiante e ainda conseguiu nos deixar o Domine Jesu e o Hostias. Suspeita-se que ele tenha deixado instruções e anotações para seu colega completar a obra, já que a inventividade dos movimentos atribuídos a Süssmayr é notável - ele não era considerado um compositor muito experiente. Logo, apontavam os estudiosos antigos, a única explicação para a alta qualidade dos movimentos que lhe couberam é que Mozart houvesse, de fato, deixado diretrizes. Isso é apenas uma hipótese, no entanto. Os estudiosos mais sérios já apontam há séculos para os perigos dessa linha de pensamento: "se é bom e está bem escrito, é de Mozart; do contrário, é de Süssmayr". Sabemos que o próprio Süssmayr garantiu ter composto do zero três movimentos: Sanctus, Benedictus e Angus Dei. O Agnus Dei tem uma construção muito própria de Mozart. Benedictus é um movimento da mais pura delicadeza, certamente inspirado em passagens operísticas de Mozart. Sanctus, é um movimento menos ambicioso, mas absolutamente condizente com outros Sanctus de missas anteriores de Mozart, como o da Grande Missa em Dó Menor, peça de extrema humildade adornada por música da mais alta categoria. O Réquiem A propósito, uma Missa de Réquiem é a transformação em música de certos trechos bíblicos, em homenagem aos mortos, destinada a ser cantada, por exemplo, em uma missa de sétimo dia. O nome vem da primeira palavra de seu Introit: Requiem aeternam dona eis Domine (Dê-lhes descanso eterno, Senhor). A escolha de algumas seções pode variar, mas há trechos que não podem faltar. Originalmente, desde muito tempo antes de Mozart, a música era cantada apenas por homens durante uma missa, (por muito tempo mulheres foram proibidas) sem acompanhamento instrumental. Aos poucos, foi ganhando importância e complexidade, de modo que, nos séculos XIX, XX e XXI, passou a ser uma peça comumente executada em uma sala de concertos e aplaudida (o que não ocorre na igreja). A orquestra foi adicionada por volta do ano 1600. Os trechos mais comuns, especialmente no Barroco (Mozart é do Classicismo, movimento posterior ao Barroco), ou seja, as passagens bíblicas que eram praxe ser musicadas eram: Introit (Requiem Aeternam); Kyrie Eleyson (o único trecho em Grego, em oposição aos outros, todos em latim); Gradual (um salmo); Tract; Sequência (contendo o Dies Irae, o Tuba Mirum, Rex Tremendae, Recordare, Confutatis e Lacrimosa); o Offertorium (que também tinha suas partes); Sanctus; Agnus Dei; Lux Aeterna; Pie Jesu; Libera Me e In Paradisum. A História O que levou Mozart a escrever um Réquiem, uma missa fúnebre, às vésperas de quando ele sabia que estava para morrer, foi uma encomenda generosa: o conde Franz von Walsegg, em julho de 1791, enviou um de seus empregados (a fim de permanecer anônimo), todo vestido de cinza, à casa dos Mozart com uma oferta. Mozart deveria compor um Réquiem. Havia um porém, porém. Ele não deveria se revelar o compositor da obra, deixando que o encomendador tomasse a glória para si. Walsegg costumava fazer isso, tendo encomendado inumeráveis Quartetos de Cordas que fingia serem seus (e seus amigos fingiam acreditar). Era, ele mesmo, músico amador. E maçom, como Mozart. O Réquiem em questão seria um memorial para sua esposa, a condessa Anna Walsegg, falecida aos 20 anos, pouco antes. O conde, que tinha 28 anos, sofreu verdadeiro pesar com a morte da amada e jamais casaria novamente. O pagamento era generoso (600 florins, que hoje correspondem a quase 100.000 euros!) para um endividado Mozart, e, mesmo assombrado pela figura do "Mensageiro Cinzento", como apelidou o homem que fazia a intermediação, o compositor eventualmente aceitou. Supõe-se que Mozart ao menos suspeitasse que quem encomendava a peça era Walsegg, sendo este já famoso em Viena por essas estripulias. Acontece que Mozart recebeu apenas metade desse pagamento, sendo o restante prometido para quando ele entregasse a obra. Admirador inflexível do Réquiem do irmão do famoso Joseph Haydn, Michael Haydn, que compusera o seu em 1771, Mozart e seu pai presenciaram a estreia e mais duas apresentações subsequentes. Tendo a filha de Michael morrido no começo daquele ano, seu Réquiem (que foi encomendado pela morte do Arcebispo Sigmundo, de Salzburgo) adquiriu uma força, uma dramaticidade, um contato inesperado com a dor que cativaram Leopold e Wolfgang. Mozart faria uma missa nos moldes da do colega. Nos moldes de Michael Haydn e de Georg Friedrich Händel. Ficou de entregar o Réquiem em 3 meses, mas sofreu atrasos: uma visita a Praga, onde supervisionou a estreia de sua ópera La Clemenza di Tito - a ópera foi um sucesso absoluto, mas foi em Praga que Mozart começou a se sentir mal, de doença esta que permanece desconhecida e que o levaria à morte. De volta a Viena, outro atraso: a estreia de seu Singspiel (uma ópera com passagens faladas) A Flauta Mágica, em 30 de setembro de 1791 - outro absoluto sucesso. Em 20 de novembro a saúde do compositor se agravou drasticamente e ele foi acamado, com muita dor, vômitos e um violento inchaço (seu filho Karl Thomas Mozart relataria, depois, que Mozart passou a ocupar toda a cama de casal e que o cheiro do quarto era insuportável). Ele foi cuidado por Constanze, sua esposa, e Sophie Weber, irmã desta. E tinha visitas constantes de um médico. As frequentes aparições do "Mensageiro Cinzento" o apavoravam. No fim, a ele foi permitido mais um mês para a entrega do Réquiem. Mas ele não conseguia trabalhar muito tempo na obra. Ela o afetava. Tanto que, enquanto a escrevia, compôs seu célebre Concerto para Clarinete. Foi nesse último mês que ele passou a confidenciar a Constanze, às lágrimas: "Eu sinto definitivamente que não durarei muito mais. Tenho certeza de que fui envenenado. Não consigo me livrar dessa ideia." E que tinha certeza que escrevia o Réquiem para si mesmo. Ele já estava muito doente e deprimido, sabia que a morte se aproximava. Segundo Benediky Schack, um amigo próximo do compositor, para quem o papel de Tamino, da Flauta Mágica, foi escrito, Mozart convidou um grupo de amigos para uma leitura dos manuscritos do Réquiem. Isso teria acontecido na tarde anterior à sua morte. Mozart cantou a parte do Contralto. Quando começaram a Lacrimosa, Mozart desandou a chorar, deitou a partitura de lado e interrompeu o ensaio. Esse testemunho nos mostra bem o cenário. O compositor doente (consta que ele teve delírios) mirando sua própria obra e sabendo que ela o estava matando. Ele entregava ao mundo a música que vinha dos céus, mas ele mesmo não poderia desfrutar de mais nada. * Se não me engano, foi Otto Maria Carpeaux, ou o grande musicólogo Mozart de Araújo, que disse algo parecido com: "A música de Beethoven quase toca o céu; a de Mozart vem de lá". Mozart morreu em 5 de dezembro de 1791, aos 35 anos, de misteriosa doença. A medicina atual provavelmente detectaria com facilidade a enfermidade e a trataria. Ele deixou o Réquiem incompleto, mas em estado bastante avançado. A anedota de que Mozart foi enterrado em vala comum, como um mendigo, ou coisa parecida (e de modo a impossibilitar o encontro posterior de sua ossada) é apenas meio verdade. O termo "vala comum" não se referia àqueles buracos no chão em que se jogavam dezenas de corpos para serem esquecidos na eternidade. Era, de fato, uma vala individual, e apenas era chamada de vala comum por se tratar do sepulcro de alguém não pertencente à aristocracia. De qualquer forma, a cidade de Viena tinha direito de, após 10 anos, esvaziar a vala para usá-la em outro enterro. Consta, também, que Mozart desprezava rituais pomposos, incluindo enterros. Ele os enxergava como mera superstição. Além disso, lembremos que, em 1791, os ideais da Revolução Francesa estavam arraigados na sociedade europeia e que o luxo era malvisto. O enterro em si foi em um dia de chuva torrencial. Compareceram diversos músicos, dentre eles Antonio Salieri e Franz Süssmayr. Constanze não compareceu, porque estava doente. Em 1896, chegou a Viena um abade, músico e admirador de Mozart, chamado Abbé Stadler. Ele ajudou Constanze a organizar as óperas e publicações do compositor e regularizou a situação da casa dos Mozart. Mas, principalmente, em 1802 ele analisou e estudou cada cópia existente em manuscrito ou publicada do Réquiem, fez correções e apontou quais partes eram de Mozart. Mais do que isso, tornou-se incansável defensor da autenticidade do Réquiem, isto é, advogava que a obra era, sim, de Mozart, e não um espúrio, como estavam tentando retratar desde que se soube que Süssmayr a tinha completado. Escreve, a esse respeito, vários livros. Posteriormente O conde Walsegg regeu o Réquiem, fazendo-o passar por seu, em 14 de dezembro de 1793, em memória da falecida esposa Anna. Verdade que Constanze quase estragou a farsa, tendo apresentado dois movimentos em memória de Wolfgang Amadeus Mozart na Igreja de São Miguel, em Viena, em 1791. Agora, olhemos pelo lado de Constanze. O marido a havia deixado com dívidas e dois filhos. Aconselhada por ele mesmo, ela passou a se empenhar em encontrar algum compositor amigo que completasse a obra para que recebesse o restante do pagamento. Interessante constatar que Süssmayr não foi sua primeira escolha, mas isso pode significar qualquer coisa, inclusive que ela não o encontrou na cidade. Ela recorreu primeiramente a Joseph von Eybler, mas, depois de trabalhar um pouco na peça, ele acabou recusando, sentindo-se incapaz - era realmente um trabalho difícil: compor sobre uma obra já começada; com vários rabiscos que só Mozart poderia decifrar; faltando ora o coro, ora a orquestra... Só então ela pediu a Franz Xaver Süssmayr, um jovem que havia sido aluno de Antonio Salieri e que, por indicação de um amigo, havia sido copista das óperas La Clemenza di Tito e A Flauta Mágica, de Mozart, em 1791. Süssmayr jamais foi aluno de Mozart, mas os dois adquiriram intensa camaradagem e consta que Mozart tinha por ele muito afeto. É por isso que são possíveis duas coisas: que Süssmayr tenha ajudado Mozart a copiar o Réquiem em algum momento; e que Mozart tenha pedido a Constanze que pedisse a ele para completar a peça. Quanto Süssmayr apanhou o Réquiem, este já tinha passado por duas mãos: a do maior compositor do mundo, Mozart, e a de Eybler, que, no final, não fez pouca coisa. Ele aproveitou algo do trabalho de Eybler e tentou ser o mais fiel possível a Mozart. Da forma que Constanze o entregou, a obra estava assim: I. Introitus Requiem Aeternam - Completo por Mozart, tanto o coro como a orquestra; II. Kyrie Kyrie - Inicia sem pausa (Attacca). Completo por Mozart, coro e orquestra; III. Sequentia Dies Irae - A partir deste movimento, até o Hostias, do Offertorium, o que Mozart de fato escreveu começa a ficar mais escasso, exibindo, por vezes, apenas o coro e a linha do baixo. Tuba Mirum - este arrepiante movimento é para 4 solistas (Soprano, Contralto, Tenor e Baixo) e orquestra. Mozart compôs, também, a belíssima linha de Trombone, que começa sozinha e, depois, faz dueto com o Baixo (cantor); Na última nota do baixo, entra o tenor. Na última nota deste, entra a contralto. Na última desta, a soprano. No final, todos se juntam. Rex Tremendae - Belíssimo e dramático movimento para coro e orquestra. É de Mozart, podendo Süssmayr ter preenchido alguns espaços em branco. Recordare - Para solistas e orquestra. Os 6 primeiros compassos têm beleza sobrenatural, na introdução dos Basset Horns e Violoncelos. É um dos movimentos mais lindos da obra e nos dá o gosto (para quem não gosta de ópera) de ouvir como soa a milagrosa ópera de Mozart. Confutatis - Para coro e orquestra, ele tem duas partes altamente contrastantes. O coro masculino canta sobre os malditos condenados lançados às chamas. O coro feminino, então, entra quando a música muda completamente de comportamento, cantando "Oro, suplicante, o coração pesaroso e quase em cinzas: toma conta do meu fim". É todo de Mozart. Lacrimosa - Para coro e orquestra. Famosamente, Mozart escreveu até o oitavo compasso. Mas, ao contrário do que se pode pensar, esses 8 compassos deixam poucas dúvidas sobre como ele queria que a música prosseguisse. Süssmayr finalizou de maneira impecável. IV. Offertorium Domine Jesu - Aparentemente o Lacrimosa o afetava demais, de modo que Mozart pulou para o Domine Jesu. Mozart o deixou praticamente completo; Hostias - Último movimento em que trabalhou, Mozart o deixou quase completo. O suficiente para que qualquer compositor habilidoso pudesse completar sem complicações; Süssmayr acrescentou as "partes que julgava a apropriadas para constar em um Réquiem", sendo, no seu julgamento, estas: Santus; Benedictus; Angnus Dei. Para finalizar, e seguindo provável orientação de Mozart, terminou o último movimento, Communio: Lux Aeternam com a musica que Mozart havia criado para o começo (Requiem Aeternam e Kyrie Eleison). O efeito é arrepiante e mostra o claro empenho de Süssmayr em interferir o mínimo possível na criação de Mozart. Tal empenho também pode ser constatado no Agnus Dei, em que Süssmayr faz citações de várias obras de Mozart. O Tino de Constanze O que ninguém esperava era a esperteza da viúva Constanze Mozart. O conde Walsegg havia sido enfático ao dizer que apenas uma cópia deveria ser feita da obra. Mas ela, de alguma forma, fez três e ficou com duas. E o que fez com as duas? Vendeu uma para o Rei Friedrich Wilhelm II, da Prússia, e com a outra, fez um golpe de mestre. Vendeu à editora Breitkopf & Härtel, em 1799, para imediata publicação, garantindo, assim, que o mundo pudesse apreciar o Réquiem de Mozart (obra que, a esta altura, era uma lenda). Entendam que, se ela não tivesse feito isso, o manuscrito do conde, tido como do conde, iria parar em algum porão empoeirado por séculos e jamais ocorreria a algum estudioso sequer folheá-lo. O conde ficou furioso, sua mentira teria um fim. Mas, vendo-se derrotado, resignou-se e aceitou. Constanze, corretamente, publicou a peça como sendo de Mozart, completada por Franz Xaver Süssmayr. Foi um acerto que acabou gerando enormes debates. As Outras Completações Se ninguém tivesse dito nada, deixado o povo pensar que a obra era só e unicamente de Mozart, músicos e musicólogos, apaziguados, não teriam achado defeito algum na peça. Mas como todos souberam que tinha sido mexida por Süssmayr, resolveram se indignar. Alguns disseram que Mozart jamais encerraria a obra como começou; outros juravam que o Agnus Dei fora ditado por Mozart, devido à sua aparência com o Gloria da Missa Brevis Nº 5; alguns músicos, ainda, se aventuraram a fazer suas próprias completações: Sigismund von Neukomm (enquanto morava no Brasil), Robert Levin, Franz Beyer, Simon Andrews, Masato Suzuki, Benjamin-Gunnar Cohrs, Michael Ostrzyga, Duncan Druce dentre uma infinidade de outros. Mas quando uma orquestra vai gravar, o que é que ela grava? A versão completada por Süssmayr. Além de ser uma proeza de compreensão da linguagem de Mozart, é a versão que está na cabeça e no coração de todos nós. A situação teria degringolado não fosse o trabalho incansável de músicos e musicólogos como o mencionado Abbé Stadler. Que seja dito, também, que a reputação de Franz Xaver Süssmayr como compositor, não foi afetada, permanecendo positiva. Ele morreria pouco mais de uma década depois de Mozart, em 1803, de tuberculose. Há, ainda, algo que deve ser mencionado. A Fuga "Amem" Nos anos 1960 foram encontrados os esboços quase completos (eu disse quase) de uma Fuga de Mozart para coro feminino e orquestra apenas com a palavra amem. Estudiosos, como Robert Levin se apressaram em clamar que ela certamente era a peça que Mozart pretendia usar para encerrar o Lacrimosa. O Lacrimosa, tal como finalizado por Süssmayr, encerra com uma simples cadência plagal, com terça de picardia e a palavra "amem", bem prolongada. É perfeitamente convincente e eficaz, com um efeito dramático categórico. Enfim, é simples, direta e certeira. Ocorre que existem vários argumentos a favor da teoria de Levin. Se tocarmos o tema do primeiro movimento do Réquiem em inversão, a melodia será exatamente a da Fuga (o que não pode, de jeito nenhum, ser acidente); a Fuga foi encontrada na mesma página de um esboço do Rex Tremendae (um dos movimentos do Réquiem). Isso é importante porque a coloca necessariamente no ano de 1791 e, nesse ano, o único trabalho de Mozart que pedia a palavra "Amem" era o Lacrimosa. Há poucas dúvidas de que Mozart tenha, pelo menos em algum momento, pretendido usar essa fuga. Prefiro não entrar nessa discussão. A verdade é que o "Amem" em forma de fuga e como um movimento separado não me agrada. Também não me agrada o próprio "Amem", a música. Mas isso, obviamente, seria sanado caso eu a escutasse mais vezes (sou assim). Apenas me permito uma observação: se Mozart quisesse que o "Amem" fosse incluído, ele o teria feito. Bastaria avisar a alguém. A pequena Fuga "Amem" foi gravada junto com o Réquiem em 1984 por Christopher Hogwood, sua orquestra, a Academy of Ancient Music e o Coro da Catedral de Westminster. Após esta gravação surgiram outras, mas não se pode dizer que virou unanimidade. A completação do compositor austríaco 22 anos mais jovem que Mozart, Sigismund von Neukomm, na verdade um movimento Libera Me, para finalizar a obra, foi feita para estrear a peça no Rio de Janeiro (possivelmente a primeira audição do Réquiem em todo o continente americano, ocorrida em 1819). Ela é bem aceita e recebeu boas gravações. Considerações finais Eu sou partidário de deixar o Réquiem como está, sem essa preocupação com as supostas instabilidades dos movimentos atribuídos a Süssmayr. Afinal, Constanze Mozart, a viúva do compositor, o procurou para finalizar a obra. Enfim, quanto ao que "é" de fato Mozartiano, ou o que um tarimbado Süssmayr inferiu a partir de seus manuscritos, nunca teremos certeza. Nem mesmo nos trechos em que temos manuscritos autografados pelo compositor. Para manter a "autenticidade" de Mozart, tão pleiteada pelo conde, Constanze pediu a todos que trabalharam na peça que escrevessem nas mesmas páginas do compositor. De preferência preenchendo espaços vazios onde eles estivessem. E, no fim, restam-nos, no máximo, palpites. E os meus dizem que o Réquiem é de Wolfgang Amadeus Mozart. Vejam bem, o próprio trabalho que Süssmayr fizera com Mozart, na ópera La Clemenza di Tito, consistia em prover recitativos secos, um tipo mais simples de recitativo (um baixo contínuo e o texto cantado à maneira de fala). Ou seja, há música de Süssmayr em La Clemenza di Tito e ninguém se incomoda. Também não seria nenhuma forçação (caramba, uma palavra com duas cedilhas) de barra supor que Süssmayr tenha escrito suas partes germinando ideias do próprio Mozart. Eles trabalharam, provavelmente, de maneira intensa, nesse período, pois tinham que finalizar duas óperas. E é consenso absoluto, hoje, que, antes de partir para o trabalho duro na partitura, ele escrevia notinhas em pequenos papeizinhos (apelidados de Zettelchen). Constanze Mozart, mesmo, em carta, nos conta que ele deixou: "alguns rabiscos de papel com música neles... encontrados na sua escrivaninha após sua morte..." Eram do Réquiem e ela os entregou a Süssmayr. Mozart estava moribundo, a morte era certa. E era importantíssimo entregar o Réquiem completo ao seu misterioso encomendador, pois isso garantiria dinheiro bastante para o sustento temporário de Constanze e de seus dois filhos: Karl Thomas Mozart e Franz Xavier Wolfgang Mozart, que ainda era um bebezinho. É bem fácil pensar que ele passou, sim, instruções ao seu copista mais próximo. E que desistiu do famigerado "Amem" quando viu que ele dificultaria e atrasaria as coisas. Mozart e Salieri, ou Amadeus (lenda, peça, ópera, filme) Um dos mitos mais fortes, que surgiram algumas décadas depois da morte de Mozart, é o de que Antonio Salieri, antigo compositor da corte de Habsburgo, em Viena - e, teoricamente, inimigo de Mozart, pois havia uma rivalidade entre os compositores de ópera italianos e os germânicos - fosse, ele sim, o misterioso encomendador da peça. E que tivesse forçado para que Mozart completasse o Réquiem, mesmo sabendo que isto acabaria por matá-lo. Não ajuda em nada para ele a forte propagação de um boato que afirmava que, em 1824, muitos anos depois, Salieri, em um sanatório, gritava a plenos pulmões: "Eu matei Mozart! Mozart, me perdoe!". Daí é um prato cheio para conversa. Mozart e Salieri (peça curta de Alexander Pushkin) Em 1830 o escritor e dramaturgo russo Alexander Pushkin escreveu uma peça curta, chamada Mozart e Salieri, em que alimentava essa visão, de que Salieri era o verdadeiro assassino de Mozart. Consumatum est. "Se Salieri não matou Mozart, Pushkin certamente matou Salieri", disse um crítico. Mozart e Salieri (Ópera de Nikolai Rimsky-Korsakov) Já em 1897, o famoso compositor russo Nikolai Rimsky-Korsakov escreve uma ópera também denominada Mozart e Salieri, em um ato e duas cenas, amplamente baseada na peça de Pushkin. Mozart e Salieri (peça de Peter Shaffer) Em 1979 o dramaturgo Peter Shaffer, também baseado na peça curta de Pushkin, escreveu uma peça que também chamou de Mozart e Salieri e que também retratava Salieri como um velho amargo, invejoso do talento de Mozart, tramando planos para matá-lo. Mozart e Salieri (Filme Longa-Metragem de Miloš Forman) Em 1984, o diretor Miloš Forman dirigiu uma adaptação cinematográfica da peça, com Tom Hulce no papel de Mozart e F. Murray Abraham no papel de Salieri. Os dois concorreram ao Oscar de melhor ator, que no final ficou com Abraham. O filme é uma obra prima da fantasia histórica. Ganhou 8 Oscars em 1985 - diretor, melhor filme, melhor ator, direção de arte, figurino, som e roteiro adaptado. Amadeus contém atuações fabulosas e momentos quase simples, em que Salieri apenas descreve a obra de Mozart com tanta invejosa paixão, que é impossível não se comover. Observe o trecho abaixo (não encontrei em português): A Verdade A verdade é que Salieri, se não era amigo de Mozart, tinha boas relações com ele. Mozart, é claro, tinha algumas reclamações, como o fato de achar que os italianos estavam atravancando sua carreira em Viena. Mas, musicalmente, eles se respeitavam. Salieri não faltou a uma ópera de Mozart sequer. O verdadeiro Salieri, rico, mesmo depois da Revolução Francesa, dava aulas de graça a estudantes que tinham talento e não tinham dinheiro para pagar. Foi professor de compositores importantíssimos, como Ludwig van Beethoven, Franz Liszt, e Franz Schubert. No fim da vida adoeceu e foi parar em um manicômio. Morreu em 1825, velho e demente. Ainda assim, um milagre: se Pushkin, com seu Mozart e Salieri, matou a reputação de Salieri, Miloš Forman, com seu Amadeus, iniciou uma lenta, mas importante, recuperação desta. Hoje podemos encontrar discos e mais discos com suas obras e elas timidamente começam a voltar aos palcos. A Obra O Réquiem em Ré Menor, K. 626 foi a última obra de Mozart, e até hoje se discute o que se deve atribuir (especialmente no final da obra) a ele. Como dito, houve várias outras tentativas de se refazer o que havia sido feito por Süssmayr, sob a presunção de que não estava bom. Existem livros, jogos (!) e incontáveis gravações da obra: Audição Tomemos como guia a versão abaixo, da Orquestra Nacional da França, sob a regência de James Gaffigan. Você perceberá que a obra é extraordinária em todas as suas partes. O Réquiem tem 50 minutos de duração, de modo que eu recomendo que você vá escutando aos poucos. A filmagem começa com uma prévia da Lacrimosa, não ligue. O Réquiem começa depois. Instrumentação: 2 Basset Horns (instrumentos aparentados ao Clarinete, populares em Viena, à época, mas que não vingaram), 2 Fagotes, 2 Trompetes, 3 Trombones, Tímpanos, Violinos 1, Violinos 2, Violas, Baixo Contínuo (Violoncelos, Contrabaixos e um Órgão); Coro SABT (soprano, contralto, tenor e baixo) e vozes solistas: Soprano, Contralto, Tenor e Baixo. Às vezes os Violoncelos e Contrabaixos têm partes importantes, que os alçam do seu posto de Baixo Contínuo. I. Introitus - Requiem Aeternam (1m19s) A introdução nas palhetas (Fagotes e Basset Horns) nos dá a impressão de que não se trata mais de uma obra do Classicismo, mas uma que já prevê o Romantismo - que começaria, de fato, mais de dez anos depois, com Beethoven. A 1m54s os trombones agressivamente explodem, indicando o fim da introdução. O coro vai entrando de maneira fugada, primeiro os baixos (2m), depois os tenores (2m03s), então as contraltos (2m06s) e as sopranos (2m10s). Repare como a melodia que eles cantam evoca a melodia da introdução. A música cai em Fá Maior para o "Et lux perpetua", que faz um diálogo entre as cordas e as vozes (2m38s). Em Si Bemol Maior, a soprano entra para fazer o "Te decet hymnus". Repare que, como se trata de música sacra, e não de ópera, os cantores solistas são mais reverentes e comedidos, cantando de maneira bem mais agradável. Aos 3m40s, o coro canta o "Exaudi". Aos 4m10s temos uma nova interferência instrumental, que serve para fazer a modulação de volta para Ré Menor, recomeçando o trecho "Requiem Aeternam" (4m21s). Aos 5m08s começa o coda, com "Et lux perpetua", e a música termina calmamente no acorde da dominante. II. Kyrie (5m46s) O Kyrie começa sem pausa (attacca), e é uma dupla fuga de alta complexidade textural. As palavras repetidas são simples: "Kyrie eleison, Christe eleison, Kyrie eleison" (Senhor, tende piedade de nós, Cristo, tende piedade de nós, Senhor, tende piedade de nós). Depois de uma pausa, a peça termina em um acorde sem terça, o que nos deixa sem uma resolução: nem Ré Maior (otimista) e nem Ré Menor (pessimista). III. Sequentia III.1 - Dies Irae (8m13s) Os dias de ira são sempre movimentos agitados e amedrontadores. O de Mozart é assim, com o coro e a orquestra tocando forte (f). A música parece perder força na segunda aparição dos versos "Quanto tremor est futurus" (8m58s), mas aos 9m27s ganha nova vitalidade. Aos 9m35 temos o coda. A peça termina em uma simples nota ré no contratempo. III.2 - Tuba Mirum (10m09s) Um movimento melodiosamente generoso, o diálogo entre o Trombone e o Baixo é encantador. A entrada do Tenor (11m03s) traz drama ao movimento (o tenor é um que, mesmo nas versões mais discretas, canta de maneira espalhafatosa). O drama é mantido com a entrada da Contralto (11m47s). Apenas a entrada da Soprano (12m04s) é mais plácida, isto porque é em tom maior. O clima esfria um pouco até o fim, com belos corais do quarteto. Repare como Mozart mescla as intervenções da orquestra com as do quarteto. III-3. Rex Tremendae (13m29s) O Rex Tremendae é uma das peças mais interessantes do Réquiem. Começa com uma introdução assertiva das cordas e metais. O coro grita "rex" (13m40s) ainda na introdução. Os versos "Rex tremedae majestatis qui salvando salvas gratis salve me fons pietatis" (Rei de majestade tremenda, que salva e salva gratuitamente, salva-me, fonte de piedade) são distribuídos pelo coro de maneira engenhosa e comovente. O Salva me (14m48s) provoca uma ruptura na dinâmica da música, tornando-a singela e angelical. Esse espírito permanecerá até o fim da obra. III-4. Recordare (15m31s) Outro movimento comovente, o Recordare é com o quarteto de solistas (provavelmente o momento mais importante para eles, fiando-se o Réquiem mais no coro do que nos solistas). Assim como o Rex Tremendae, ele usa o Cânon, um recurso em que um cantor começa a cantar uma frase e é logo seguido por outro. Observe a entrada da contralto (15m59s), seguida imediatamente pelo baixo (16m01s). Logo depois, soprano (16m12s) e tenor (16m14s) repetem o gesto. É um daqueles movimentos que só Mozart. Plácido, não parece que foi composto por alguém atormentado pela doença. É uma das mais belas páginas do repertório sacro. III-5. Confutatis (29m27s) O famoso Confutatis foi dissecado no filme Amadeus, numa cena impagável em que Salieri ajuda Mozart a compor. A cena deixa bem claro o uso de texturas pelo compositor. As vozes, em cânon, os Trompetes e Tímpanos marcando o ritmo e as cordas, em uníssono, fazendo um movimento ligeiro e atormentado. Já o "Voca me" é novamente surpreendente, cortando a música e nos atingindo com a melodia mais angelical no coro feminino (20m48s). O Confutatis retorna, no coro masculino (20m59s), meio de cabeça pra baixo. Mais uma vez o "Voca me" retorna nas vozes femininas (21m21s), trazendo paz. O que se segue (21m51s) é "Oro supplex et acclinis, cor contritum quasi cinis, gere curam mei finis" (Eu me ajoelho com um coração submisso, minha contrição é como cinzas, ajuda-me na mina condição final), que é absolutamente assustador. A música parece vir da voz de uma angústia perfeita, inquieta, e assim segue até o fim. Para terminar, um acorde de lá com sétima (22m45s) nos prepara para o mais belo movimento da obra. III-6. Lacrimosa (22m49s) Começando com um encadeamento harmônico na orquestra, a obra parece se abrir ao céu quando o coro entra com as palavras "Lacrimosa dies illa, qua resurget ex favilla judicandus homo reus" (Aquele dia de lágrimas, quando das cinzas surgirá julgando toda a humanidade). Até a palavra reus, temos certeza de que foi Mozart que escreveu. Está anotado no seu papel, com a sua letra. E para, subitamente. Aqui começa a confusão, porque aqui entra Süssmayr. Harmonicamente, a música é complicada, repleta de micromodulações. O que me indica que Süssmayr fez um belo trabalho ao completá-la. Ele o fez com dignidade e fidelidade. Ele terminou a música com um Amem simples, uma cadência plagal. Mas há indícios de que Mozart previa uma fuga para esse amem, como discutido anteriormente. Uma fuga só com a palavra amem. Eu prefiro sem, do jeito que você está escutando, mas a verdade é que isso tudo tem pouca importância ante a grandeza desta obra magistral. IV. Offertorium IV-1. Domine Jesu (25m52s) O Domine Jesu volta a ser composto por Mozart, pelo menos parcialmente. Ele escreveu o esqueleto, digamos assim, da peça. Tudo que Süssmayr tinha a fazer era completar a orquestração. Além disso, Mozart deixa, nesse movimento, melodias que Süssmayr poderá aproveitar depois. É o caso de "Libera eas de ore leonis" (Liberta-os da boca do leão) (26m29s), cantada pelo coro feminino. "Sed signifer santos Michael" (Deixe que o porta-estandarte, São Miguel) (27m13s), cantada pela soprano em cânon com os outros solistas, é exatamente a mesma melodia, mas em tom menor. Outra melodia que será aproveitada posteriormente é "Quam olim Abrahae promisisti" (Conforme prometeste a Abraão) (27m42s), no coro masculino. Sempre achei esse momento arrepiante. Nos outros, ele está pedindo perdão e que Deus o aceite no Céu etc. Nesse, ele está apelando, recorrendo à chantagem emocional "cumpra o que você prometeu a Abraão"! IV-2 Hostias (29m29s) O Hostias ainda é um produto da imaginação de Mozart. Ele escreveu as partes do coral e uma espécie de baixo contínuo, que situa a harmonia. Süssmayr também teve que orquestrar essa, e o fez com simplicidade, sem correr riscos. A música é repleta de modulações (mudanças de tom) e tem uma escrita coral perfeita. Aos 31m02s temos a retomada do "Quam olim Abrahae promisisti", de chofre. Ele encerra o movimento. V. Sanctus (32m52s) Aqui começa o que Süssmayr garantiu que compôs do zero. Esse movimento e os dois seguintes. Devo lembrar, mais uma vez, da similaridade desse Sanctus com o Sanctus de Mozart para a Grande Missa em Dó Menor. Não acho que seja coincidência. Süssmayr novamente se recusa a tomar riscos (e acho que isso é o que era esperado dele). A escrita é modesta, mas eficaz. Aliás, um bom regente faz toda a diferença aqui: mal conduzido, pode ser um movimento barulhento e cansativo. Ele termina com uma pequena fuga sobre "Osanna in excelsis" (Hosana nas alturas) (33m39s). VI. Benedictus (34m30s) É o movimento mais ousado de Süssmayr, com três partes distintas, coros elaborados e uma suave melodia Mozartiana desde o começo. Mas é também o que mais entrega a ausência do gênio austríaco. Há vários momentos de enchimento de linguiça que dificilmente veríamos em um movimento genuíno de Mozart, além do ritmo estrutural da música ser um tanto mal pensado. No geral, porém, vale a pena. É uma bela contribuição. VII. Agnus Dei (38m52s) Das contribuições de Süssmayr, essa é a mais bem-sucedida. Embora a maneira como ele estruture as frases longas da melodia não seja condizente com o estilo de Mozart, a instrumentação é convincente. Ele usa várias técnicas de Mozart, como modulações, quebras de andamento, cadências e mais. VIII. Communio (41m44s) Obedecendo ao desejo de Mozart, Süssmayr faz a música terminar exatamente como começou (a partir do solo de soprano). Apenas as palavras são diferentes. A fuga do Kyrie também é repetida e também tem outras palavras. E também acaba sem nos dar a satisfação de ouvir um acorde maior ou um menor. É um ré com quinta aberta. O trabalho de encaixar a nova letra em uma música que foi escrita com outra letra em mente pode ser infernal, mas parece que ele teve sorte e as sílabas se conciliavam. E, onde isso não ocorria, Süssmayr tirou de letra. Considerações finais Preciso começar afirmando que essa "Missa Pro Defunctis" é a obra mais genial do mais genial dos compositores do Classicismo. A importância que ela tem hoje, principalmente como música de concerto (mas também tocada em igrejas, em rituais fúnebres) é indescritível. O Réquiem não cansa de nos surpreender e nos privar do fôlego. Mesmo após a milésima audição, o mais insensível dos miseráveis ainda se comoverá. É, sem dúvida, a música inacabada a levantar mais debates entre estudiosos e executantes. Se olharmos cuidadosamente, veremos que Süssmayr, na melhor das suas possibilidades, nos deu um complemento digno e que, por vezes, realça a composição, além de uma orquestração que, se não tem nada de especial, também não tem grandes pecados. Eu sou a favor de que o Réquiem fique como está, outras tentativas de completá-lo só fazem piorar a música. Até mesmo o Amem que encerraria a Lacrimosa, é melhor sem. Mesmo ele sendo uma música comprovadamente de Mozart. Acho o Réquiem perfeito como está, e é uma das músicas mais assombrosamente geniais que já se compôs. Gravações recomendadas Fuja das versões Nutella de Karl Böhm, Leonard Bernstein, Georg Solti e Sergiu Celibidache. Especialmente a de Böhm, que é considerada um clássico, mas que é uma bomba. - Carlo Maria Giulini, regendo a Orquestra e Coro Philharmonia e solistas - Foi a gravação com que conheci a obra. Passava horas escutando numa rede, no meu Discman. Simon Estes é o baixo perfeito para a obra. A gravação é de 1989 e como todas as de Giulini, repleta de suavidade e candura. - Christopher Hogwood, regendo o Coro e a Orquestra da Academia de Música Antiga, o Coro de Meninos de Westminster e solistas - Quando ouvi essa gravação, de 1984, fiquei impactado. A começar pelo coro. Em vez de usar vozes femininas, ele usa vozes de crianças, como era praxe na época de Mozart (mulheres não podiam cantar na igreja). Esse produto do machismo religioso acaba por nos dar uma versão arrepiante. Ouvimos a introdução, belamente tocada pelas madeiras da Academy, e, aos poucos, somos invadidos pelas palavras, primeiro com os baixos, depois, os tenores e, então, as crianças, que parecem anjos cantando. Outra novidade é que Hogwood usa o Amem completado por Robert Levin para encerrar a Lacrimosa. E outra coisa, essa versão tem a cantora de voz mais bonita que eu conheço, a soprano Emma Kirkby. Esta gravação adota os procedimentos da chamada "interpretação historicamente informada". - Peter Schreier, regendo a Orquestra do Staatskapelle de Dresden, o Coro MDR da Rádio de Leipzig e solistas - Um belo dia, um amigo (o Nílbio, co-editor da Arara) me emprestou um vinil com esta interpretação. Eu não botava muita fé, pois nunca tinha ouvido falar no regente. Mas quando coloquei para escutar foi uma surpresa. A gravação é extremamente discreta, equilibrada, beirando a perfeição. É de 1983. - Nikolaus Harnoncourt, com o Concentis Musicus de Viena, o Coro Arnold Schoemberg e solitas - Essa é a segunda gravação de Harnoncourt da peça, a primeira tendo sido em 1982. Para esta, de 2003, ele foi mais moderado em suas visões de "interpretação historicamente informada", com os contrastes entre fraco e forte ainda bem destacados, mas menos deselegantes que na versão anterior. Essa versão é para o caso de você querer conhecer o Réquiem da maneira que, juram eles, era tocado na época. Não acredito muito nisso. Mas acredito em boas interpretações, e essa é uma. - Herbert von Karajan, com a Filarmônica de Viena, o Wiener Singverein e solistas - Karajan, em suas últimas gravações, regia com uma segurança e soberania que poucos conquistaram. Conterrâneo de Mozart, de Salzburgo, tinha a música nos ossos, como dizem. É a gravação lançada em 1987. - Mariss Jansons, regendo a Orquestra Sinfônica da Rádio Bávara, o Coro da Rádio Bávara, e solistas - Esta gravação, com um dos meus regentes favoritos e uma das minhas orquestras favoritas, foi feita em 2017, sendo uma das últimas gravações dele (Jansons morreria dois anos depois). E o disco só foi lançado, postumamente, em 2021. É uma aula de como se fazer cento e tantas pessoas tocarem e cantarem com beleza e compostura. O disco só tem um (para mim) problema: é ao vivo, o que significa que, no final, ouvimos aplausos. Mas nem pra mim, que tenho aversão a gravações com aplausos no fim, isso reduz a magnitude deste grande momento capturado no tempo. Gostou? Comente! Revisado, ampliado, apanhado e reconstruído após certeira e justíssima critica de um leitor chamado Pedro. As postagens da Arara Neon, nós resolvemos dispô-las em lista em uma única (ahm...) postagem. É só clicar aqui.

  • Martha Argerich - A Pianista Maioral

    Por Rafael Torres Nascida em 5 de junho de 1942, em Buenos Aires, Argentina, e hoje (fevereiro de 2023), com 81 anos, a pianista Martha Argerich ainda toca com a mesma precisão dos áureos tempos. Hoje ela tem cidadania Suíça, país onde nasceram suas três filhas, de três relacionamentos. Martha demonstrou interesse pelo piano antes dos três aninhos, iniciando o estudo do instrumento nessa idade. Foi uma criança muito precoce, começando o jardim de infância aos 2 anos e 8 meses, sendo a mais jovem da turma. É famosa a história dessa época, que diz que um amiguinho a desafiou a tocar piano. Ela simplesmente escalou o banquinho e tocou com perfeição, de ouvido, uma música que a professora havia tocado, para espanto de todos (inclusive da professora). Estreou aos 8 anos de idade, com orquestra acompanhante, executando o 20º Concerto para Piano e Orquestra, em Ré Menor, do austríaco Wolfgang Amadeus Mozart e o 1º Concerto para Piano e Orquestra, em Dó Maior, do alemão Ludwig van Beethoven. Aos 20 anos ela teve seu primeiro contrato de gravação, quando registrou o Scherzo Nº 3 e a Barcarola do polonês Frédéric Chopin, 2 Rapsódias, Op. 79 do alemão Johannes Brahms, a Toccata Op. 11 do russo Sergei Prokofieff, o Jeux D'eau do francês Maurice Ravel e a Rapsódia Húngara Nº 6 do húngaro Franz Liszt. Foi gravado em Hanôver, Alemanha, em 1960, pela gravadora Deutsche Grammophon. Voltando um pouco. Aos cinco anos ela foi estudar com o professor italiano (mas ainda na Argentina) Vincenzo Scaramuzza. A família toda se mudou, em 1955, para a Europa, fixando-se, primeiro, em Viena, Áustria, onde Martha estudou com o genial pianista vienense Friedrich Gulda, que ela considera sua maior influência e fez com que ela gostasse de jazz (pô, sacrilégio, Gulda). Posteriormente, foi aluna de Bruno Seidlhofer, que também era professor de Nelson Freire (e havia sido do próprio Gulda). Foi nessa época que sua amizade com Nelson começou, e eles viriam a ser melhores amigos e sua parceria musical seria profícua, tendo gravado ao menos oito discos juntos, a maioria com obras para apenas dois pianos (que tem um repertório diferente e mais sério do que o piano a quatro mãos). Mais tarde, estudou também com Stefan Askenase e Maria Curcio, tendo, também, breves períodos de aulas com Madeleine Lipatti (viúva do grande pianista romeno Dinu Lipatti) e até com famoso pianista russo Nikita Magaloff. Martha chegou a ter uma crise criativa, por volta dessa época, e partiu para Nova Iorque para tentar aulas com Vladimir Hotowitz. Ela estava, então, há três anos sem tocar. Não conseguiu as aulas e, quando voltou à Europa, Madeleine Lipatti, sua antiga professora, insistiu e a encorajou a voltar a se apresentar nos palcos. Chegou, ainda, a ter um ano e meio de aulas com o grande e lendário pianista italiano Arturo Benedetti Michelangeli, mas não foram muito proveitosas e ela largou. Mas sua carreira já estava encaminhada ao vencer, em 1957, a Competição Internacional de Genebra para Pianistas, e o Concurso Internacional de Piano Busoni, na Itália, também em 1957. Mas a grande consagração, a maior que um pianista pode ter, foi quando ganhou o principal deles: o Concurso Internacional de Piano Frédéric Chopin, em sua sétima edição, em Varsóvia, Polônia, terra do compositor. Martha Argerich já era uma lenda! Depois de vencer o Concurso Chopin (aos 24 anos) sua carreira internacional decolou. O Concurso faz isso com os ganhadores até hoje. Ela não participava mais de concursos, ela presidiria a banca julgadora dos concursos. Como é o caso do próprio Concurso Chopin, em sua 10ª edição. O fato é que, quando era jurada desse concurso, em 1980, viu, no candidato Ivo Pogorelić o que os outros jurados não viram. Ele foi eliminado da terceira etapa. Argerich abandonou o concurso proclamando "Ele é um gênio". O Iuguslavo (tinha isso, na época), de Belgrado, Ivo Pogorelić hoje é um dos grandes e mais celebrados pianistas da humanidade. No momento em que Martha Argerich irrompeu do palco, a carreira de Pogorelić estava mais garantida do que se ele tivesse levado o troféu. Mais 3 fatos sobre o Concurso Chopin: Na edição em ela ganhou, a VIIª, o vice-campeão foi o nosso Arthur Moreira Lima (e depois ele seria 3º lugar no Concurso Tchaikovsky, em Moscou, que, junto ao Concurso Chopin, é o mais importante do mundo). O Concurso é televisionado e, hoje em dia, transmitido pelo YouTube. Os pianistas ganhadores saem de lá celebridades, com contratos de gravação e turnês; O super pianista brasileiro Nelson Freire abandonou o júri da edição de 2021 por problemas de saúde. Ele havia caído na calçada, no Rio de Janeiro, quebrado o braço e feito uma cirurgia complicadíssima que podia até mesmo deixá-lo inabilitado a tocar. Nelson entrou em depressão, estava fisicamente debilitado e não conseguia tocar, sua atividade favorita do dia. Pouco tempo depois, em novembro de 2021, ele morreu. A carreira de Martha é estranha. Ela costumava gravar muita música para piano solo, mas hoje se queixa da solidão que isso acarreta. A totalidade de suas gravações, agora, são de Concertos (Piano e Orquestra) ou Música de Câmara com Piano. Ela tem uma aversão arisca à imprensa e detesta publicidade. Isso fez com que, mesmo considerada a maioral, ela tivesse passado boa parte da carreira em um leve (eu diria até saudável) ostracismo. Isso porque, a partir dos anos 80 ela foi evitando os recitais de piano solo. Ela é uma apoiadora tenaz de alguns pianistas, como a venezuelana Gabriela Montero, o também venezuelano Sergio Tiempo e o italiano Gabriele Baldocci. Em 1963 ela engravidou do regente chinês Robert Chen, com o qual tem a filha Lyda Chen-Argerich, uma violista. Eles se casaram antes do bebê nascer, mas o casamento durou pouco, apenas alguns meses. Entre 1969 e 1973 ela foi casada com o regente suíço Charles Dutoit, com quem tem a segunda filha, Annie Dutoit, atriz e produtora. Mesmo depois da separação de Dutoit, eles continuaram tocando juntos (e fizeram gravações) até hoje. Ela namorou, nos anos 70, o pianista americano Stephen Kovacevich, com quem teve sua terceira e última filha, Stéphanie Argerich, uma fotógrafa. Com Kovacevich ela também dá concertos até hoje, ainda que divorciada. Em 1990 Martha descobriu um câncer de pele. O primeiro tratamento parecia ter tido êxito, mas não teve: houve metástase em vários órgãos. Ela decidiu, então, ir aos Estados Unidos para tentar um tratamento experimental. Desta vez ela se curou. Está boazinha ainda hoje. Em 2005, Martha foi agraciada com o Praemium Imperiale, o mais importante da música. Ela fuma como uma Caipora. Seu Pianismo Argerich é uma pianista modelada pela Tradição Romântica. Não que ela toque à guisa "daquela" tradição do polonês Ignacy Paderewski, do polonês Ignaz Friedman, do francês Alfred Cortot, ou mesmo do polonês Arthur Rubinstein. Essa tradição já havia passado. Mas Martha tem um pé na Tradição Romântica, sim, que é calcada em um toque expansivo, sonoridade grande (eram trovões, aquelas oitavas no Tchaikovsky), rubatos salientes e, principalmente, a capacidade de colorir o som, adaptando-o a cada variação de humor que a Música do Romantismo propõe. Mas ela e os pianistas de sua geração anularam os exageros, tocando com mais objetividade, mais rapidez, mesmo nos movimentos lentos, Apesar disso, seu repertório abrange obras de compositores do Barroco, Classicismo e Modernismo. Ela toca desde Johann Sebastian Bach a Carlos Guastavino, passando por Wolfgang Amadeus Mozart, Ludwig van Beethoven, Franz Schubert, Robert Schumann, Frédéric Chopin, Franz Liszt, Piotr Tchaikovsky, Claude Debussy, Maurice Ravel, Sergei Rachmaninoff, Dmitri Shostakovich, Sergei Prokofiev, Béla Bartók, Astor Piazzolla e outros. Mesmo assim, seu repertório é razoavelmente pequeno, de maneira paradoxal. Há compositores nesta lista, de que ela gravou apenas 2 ou 3 obras (gravou várias vezes, mas, ainda assim...). Não gravou, a título de exemplo, todas as Sonatas para Piano Solo de Beethoven (gravou somente 3 das 32), gravou apenas 1 dos 4 Concertos para Piano e Orquestra de Rachmaninoff. Gravou por duas vezes a Burleske para Piano e Orquestra, de Richard Strauss, depois disse que a peça era muito estressante e não mais a tocaria. Do italiano Domenico Scarlatti, gravou, repetidas vezes, apenas uma pecinha, a Sonata em Ré Menor (e ninguém toca isso como ela). Seu compositor favorito, eu já ouvi em alguma entrevista é Schumann. E, de fato, ela gravou muito dele, além do que, a afinidade musical que tem com ele é perceptível nas interpretações. Continuando, quando Martha toca na dinâmica piano (p), parece que o universo está te contando um segredo. É ele que murmura em piano. Seu forte (f) é outra história, podendo ser estrondoso, quase cataclísmico, de um poder que assombra plateias. Sua abordagem é quase sempre lírica. A obra de Schumann é concebida em dois polos (eufórico e taciturno, arrebatado e contemplativo, Florestan e Eusebius, como vimos nesse artigo). Talvez sua mais impressionante qualidade seja a de tocar com uma desconcertante naturalidade, como se nada, na música, a assustasse. Martha é, por vezes, considerada a maior pianista do mundo. É respeitada por todos, parece se dar bem com todo mundo (dá-se bem com seus ex-maridos, o que é um bom sinal). E, aos 81 anos continua nos embasbacando a cada concerto e gravação. Daniel Barenboim Desde pequena, Martha é amiga do pianista e regente também argentino, Daniel Barenboim. Ela lembra da sua mãe perguntando "Por que você não toca um repertório como o de Daniel?". O Repertório de Daniel era enorme. Ele gravou as 32 Sonatas de Beethoven, de cor, ao menos 4 vezes, incluindo uma em DVD. Como maestro, rege de cor suas 9 Sinfonias. E ainda toca piano enquanto rege seus 5 Concertos para Piano, ou os 27 de Mozart. Muito recentemente, em meados da década de 2010, os dois fizeram uma série de apresentações no Teatro Colón, em Buenos Aires, que resultaram em vários CDs ao vivo, tanto de eles dois ao piano (2 pianos) quanto dele regendo sua orquestra, a West-Eastern Divan Orchestra, com ela ao piano. Claudio Abbado Outro que foi seu amigo durante anos foi o maestro italiano Claudio Abbado. Curiosamente ela o conheceu como pianista (foi a época em que ele estava decidindo se se dedicaria ao piano, à regência ou à composição). Em um Masterclass em Salzburgo, Áustria, ela disse que tudo o que o professor queria ouvir era Abbado, dono de um toque suave. Posteriormente, quando a carreira de regente dele rapidamente escalou, eles fizeram diversas gravações de piano e orquestra, especialmente com a Sinfônica de Londres e a Filarmônica de Berlim. Nelson Freire O saudoso pianista mineiro, falecido em 2021, Nelson Freire, foi amicíssimo dela. Acredito que, por causa dele, ela tenha aprendido português (fala 6 idiomas). No documentário Nelson Freire, de João Moreira Salles (2003), ela aparece em várias cenas, demonstra ter muita intimidade e afinidade musical com ele. Em todas essas cenas ela fala português, que, por uma falta de cortesia por parte da produção, foi legendado. Não precisava mesmo, sua articulação é clara, nítida, e seu vocabulário dá plena conta do recado. Juntos no palco eram impecáveis e implacáveis. Lembro de ter visto em DVD sua interpretação da Suíte Para Dois Pianos Nº 2, de Rachmaninoff. Gidon Kremer O violinista letão tem muitos e muitos discos gravados com ela, o que pressupõe uma saudável amizade. Gravaram Sonatas para Piano e Violino de Ludwig van Beethoven (as 10), Robert Schumann, Béla Bartók, Sergei Prokofiev. Trios e mais Trios para Piano, Violino e Violoncelo - isso para falar apenas em gravações de estúdio. Mischa Maisky O violoncelista letão-russo, um dos grandes do mundo, também foi parceiro constante de Martha. Talvez o maior parceiro musical. Ele é excêntrico, tanto na maneira de tocar quanto na de vestir. Lembro quando, no começo dos anos 90, saiu algum de seus discos e, na capa, ele estava todo vestido de couro (não que isso tenha me gerado alguma reação). Ele sempre quis ser essa persona meio heavy metal no mundo erudito. Mas isso é irrelevante. O que importa é se ele toca bem e adequadamente. Tocar bem, é óbvio que toca, é um solista respeitado e requisitado em todo o mundo. Se toca adequadamente, isso vai depender do que o ouvinte considera adequado. Por exemplo, ele toca com bastante rubato e muito vibrato, mesmo interpretando Bach. Mas eu, particularmente, que acho as Interpretações Historicamente Informadas são profundamente superestimadas, acho Maisky bem agradável. Gravou muito com Martha, por exemplo: Sonatas para Viola da Gamba e Cravo de Johann Sebastian Bach (adaptadas para Violoncelo e Piano); as 5 Sonatas para Violoncelo e Piano de Ludwig van Beethoven; Fantasiestücke para Violoncelo e Piano, de Robert Schumann; Sonata para Violoncelo e Piano de Frédéric Chopin; Sonata para Violino e Piano (transcrita para Violoncelo e Piano) de César Franck; Sonatas para Violoncelo e Piano de Claude Debussy, Sergei Prokofiev; Dmitri Shostakovich e muito mais. Os Festivais Martha Argerich é participante especial em alguns Festivais de Música. Ela até fundou um. Observe: Festival de Lugano No Festival de Lugano, que ocorre na cidade de mesmo nome, na Suíça, Martha encaixou um projeto, o "Projeto Argerich", que ela comandou entre 2005 e 2016. Nele, ela agregava amigos e jovens músicos do mundo inteiro pelo prazer de fazer música juntos. Foram lançadas várias caixas, com múltiplos CDs, com um repertório em parte perfeitamente normal, em parte composto por obras um tanto menos conhecidas de compositores famosos. Alguns desses CDs têm Martha em poucas faixas. Um muito bom, o de 2005, conta com a presença de Martha no Quarteto com Piano Nº 3, de Ludwig van Beethoven (com Renaud Capuçon, Gautier Capuçon e Lyda Chen, sua filha); a Sonata para Piano Nº 16, de Wolfgang Amadeus Mozart (transcrita por Edward Grieg para 2 pianos, em que ela é acompanhada por Piotr Anderszewski); a Segunda Suíte para Dois Pianos de Sergei Rachmaninoff (com Gabriela Montero); As Variações sobre um Tema de Haydn, de Johannes Brahms (para 2 pianos, sendo a outra, Polina Leschenko) e 3 Romances Argentinos, de Carlos Guastavino (para 2 pianos, sendo o outro, Mauricio Vallina). Esses CDs contribuíram muito para que o nome de Martha Argerich continuasse falado no começo do século XXI. Festival de Verbier O Festival de Verbier vem, desde 1994, todos os anos, por duas semanas entre julho e agosto, encorajando jovens músicos a fazer participações em uma das três orquestras de que dispõe. Ocorre na bela cidade de Verbier, nos Alpes Suíços. Em CD, há um com repertório do compositor Rodian Schendrin, em que ela e Mischa Maisky tocam o Concerto para Violoncelo e Orquestra, chamado "Oferta Romântica", com a Orquestra do Festival, regida por Neeme Järvi; e outro em que ela toca o Trio para Piano, Violino e Violoncelo de Joseph Haydn e o Concerto Nº 3 para Piano e Orquestra de Sergei Prokofiev, com a Orquestra do Festival, regida por Yuri Temirkanov. Argerich Music Festival and Encounter in Beppu Um festival que ela criou e dirige, em Oita, Japão. A finalidade do festival é fofa: em um ambiente caseiro, receber músicos estudantes do mundo inteiro, dar-lhes aulas, fazê-los tocar e, quem sabe, ter uma oportunidade de tocar com Martha Argerich e outros músicos famosos. O público é constituído também por crianças. Gravações Importantes - Shostakovich, Concerto para Piano, Trompete e Cordas (Concerto para Piano Nº 1) e Música de Câmera - um disco impecável, gravado em 1994 e lançado (essa compilação) em fevereiro de 2023. O Concerto de Shostakovich, que ela já havia gravado diversas vezes, tem aqui sua versão definitiva. Parece que combinaram ela, o trompetista, o regente e a orquestra. Ninguém entra um passo à frente ou atrás. O trompetista, que toca quase tudo com surdina, se chama Guy Touvron; a orquestra é a Orquestra da Câmara Heilbron de Wutemberg e o regente, Jörg Faerber. As obras de câmera, todas de Shostakovich, são o Trio com Piano Nº 2, com Gidon Kremer e Mischa Maisky; e a Sonata para Violoncelo e Piano, com Mischa Maisky. Todos encontram em Shostakovich a oportunidade para tocar de modo soturno e misterioso. Um dos melhores álbuns da história do disco. - Frédéric Chopin - Martha Argerich - Em 1965 ela havia ganhado o Concurso Chopin (em que se toca apenas Chopin). Rapidamente, em 1967, gravou este maravilhoso disco, pela Deutsche Grammophon, também só com obras do Polonês. Tem a Sonata para Piano Nº 3, os Scherzos Nos. 2 e 3 (ou Scherzi), a Barcarola, 3 Mazurkas, o Andante Spianato e Grande Polonaise Brilhante e a famosa Polonaise-Heroïque em Lá Bemol Maior. Tudo tocado com inspirada juventude, confiança absoluta e andamentos ligeiramente rápidos. O ponto alto é a Sonata Nº 3, Os 2 Scherzos e a Barcarola. - Wolfgang Amadeus Mozart - Concertos para Piano e Orquestra Nos. 20 e 25 - Com Martha Argerich, ao piano e Claudio Abbado regendo a Orchestra Mozart - Gravado no Festival de Lucerna, em 2013, o maestro estava em seus últimos meses de vida - ele viria a morrer no ano seguinte, de câncer no estômago. Não se enganem, é uma interpretação deslumbrante. Eles invertem a ordem cronológica, colocando o Nº 25 antes do Nº 22. O Concerto Nº 25, em Dó Maior, K. 503, de 1786 e é uma peça carismática. Ela nos passa a indelével sensação de otimismo. Na época de Mozart era considerado o Concerto para Piano mais difícil já escrito. Abbado e Martha fazem um trabalho incrível (embora se possa pensar que o piano está microfonado muito perto, mas creio que isso se deva à potente sonoridade da pianista contra uma orquestra de câmara). No segundo movimento, não podemos esperar de Martha um toque leve. Sutil, sim, mas não leve. Mas fica belíssima, a interação piano/orquestra. Já o Nº 20, em Ré Menor, K. 466, foi escrito no ano anterior, 1785. É uma peça fugidia, com uma atmosfera trágica. É um dos concertos mais famosos de Mozart. A Orchestra Mozart foi uma das que Abbado supervisionou a montagem, assumindo, desde o início, o posto de Regente Titular, ficando, também, responsável pela seleção e os testes dos músicos. - Robert Schumann - Kinderszenen e Kreisleriana - Mais um disco de piano solo, este de 1984. Se você quer ouvir Martha tocando com delicadeza, às vezes quase com medo de fazer barulho, é este aqui. Mas, claro, como são Florestan e Eusebius, você vai ouvir a constante alternância entre dois estados de espírito completamente diversos, isso porque as duas peças têm múltiplos movimentos. Kinderszenen (Cenas Infantis), Op. 17, é uma peça relativamente juvenil, de 1838, e tem treze movimentos bem curtos (entre 28s e 2m23s). É uma obra muito adorada, até hoje. Preste atenção nos movimentos 1. Von Fremdem Ländern und Menschen; 4. Bittendes Kind; 5. Glückes Genug, que parece ter sido escrito por Ernesto Nazareth; 6. o famoso Träumerei; 10. Fast zu Ernst e sobretudo a 12. Kind im Einschlummern. A Kreisleriana, Op. 16 também foi escrita em 1838 (foi revisada em 1850). Tem oito movimentos, e são mais longos (entre 2 e 8 minutos). É uma peça mais séria, considerada, hoje, uma das mais difíceis e complexas que Schumann escreveu. Acredita que ele enviou uma cópia da partitura para aquele em cuja homenagem escreveu a peça, Frédéric Chopin? E que este, sem um pingo de tato ou até com hostilidade, elogiou apenas a qualidade do desenho da capa? Ô, seu Chopin, me faz favor! A Kreisleriana, que deve esse nome a um dos personagens (e um romance) de E. T. A. Hoffmann, começa agitada (e Martha faz mais rápido ainda), mas logo nos mostra toda a doce contemplatividade do personagem (este de Schumann) Eusebius. Repare nos movimentos 2. Sehr innig und nicht zu rasch; 4. Sehr langsam; 6. Sehr langsam e 7. Sehr rasch. É um dos melhores discos da Martha, porque ela não se incomoda nem um pouco com as passagens difíceis: toca como se fossem fáceis. - Maurice Ravel - Concerto para Piano em Sol, Sonatina e Gaspard de la Nuit - Este aqui talvez seja o meu disco predileto da Martha Argerich. Gravado em 1967 (o Concerto) e 1975 (Sonatina e Gaspard de la Nuit), foi lançado tudo junto, quando passaram para CD. Acompanhada finamente por Claudio Abbado e a Filarmônica de Berlim no Concerto, ela toca como uma deusa. O segundo movimento é mais expressivo do que o da gravação de Michelangeli, ela dosa com cuidado e, ao mesmo tempo, calculado desleixo, as mudanças de dinâmica e de andamento. É incrível. Mas o Concerto (escrito em 1932), por mais belo que seja, é uma peça descomplicada e direta, o que torna as duas peças restantes as mais importantes do álbum. Gaspard de la Nuit, de 1908, é completamente mergulhada no Impressionismo, movimento do qual os maiores expoentes eram Claude Debussy e Maurice Ravel. É uma peça complexa, áspera e difícil. De fato, hoje em dia é considerada uma das peças mais difíceis já escritas para piano. Ela tem 3 movimentos - Ondine, Le Gibet e Scarbo - e a dificuldade é progressiva. Todos os três foram inspirados em poemas de Aloysius Bertrand. Ondine já começa com uma alternância de notas, na mão direita, que é muito mais difícil do que parece. Le Gibet (A Forca) é uma paisagem desolada, com uma nota sempre repetida na mão direita e os graves e medonhos acordes na esquerda. Scarbo, precisamente, é considerada a mais difícil. Ravel a queria mais difícil que a Islamey, de Mily Balakirev. Começa assustadora como Le Gibet, mas logo irrompe em passagens ágeis e em dinâmica mais forte. E as melodias vêm em pequenos recortes. Seu coda, o último minuto, é notavelmente árduo. Por último temos a Sonatina, peça de 1905 que é de pura beleza. Beleza que Martha atinge naturalmente. - Salzburgo - Recital de Martha Argerich e Nelson Freire - Gravado no Festival de Salzburgo, Áustria, em 2009, este disco reúne os dois pianistas na primeira gravação ao vivo em que constam apenas os dois. Primoroso, altamente elogiado, premiado e com os dois pianistas tocando como nunca. Nelson Freire estava no auge de sua notoriedade, com um contrato com a gravadora DECCA em que lançava praticamente um disco por ano (embora Salzburgo tenha saído pela Deutsche Grammophon, acho que por conta da Martha). Abre com as Variações Sobre um Tema de Haydn, de Johannes Brahms. Veja bem, (o Romântico) Brahms pegou um tema que pensou ser do (Clássico) Joseph Haydn e escreveu, com ele uma série de 8 variações. São 10 faixas: o tema, as 8 variações e o finale. Compôs duas versões, idênticas em conteúdo, uma para orquestra e outra para dois pianos. A orquestral é muito mais gravada e tocada, mas obviamente não é a que vemos aqui. Acabou que o tema, chamado "Coral de Santo Antônio", não era sequer de Haydn. Até hoje não se sabe de quem é. As Variações formam uma peça encantadora, tranquila e pacífica. Depois, vêm as Danças Sinfônicas, de Sergei Rachmaninoff, essa, sim, uma peça orquestral arranjada para dois pianos, se bem que pelo próprio compositor. Escrita em 1940, sendo a última peça composta por Rachmaninoff (morreu em 1943), a suíte tem 3 movimentos: I. Non Allegro, II. Andante con Moto e III. Lento Assai – Allegro Vivace. A suíte é muito bem sucedida, bem estruturada e bem adequada aos instrumentos, sejam eles os dois pianos ou a orquestra. Então ouvimos o doce Grande Rondó em Lá Maior, do último ano de vida (1828) de Franz Schubert. É uma peça graciosa e pouco ambiciosa. Mas muito atraente. Por fim, eles tocam outra peça sinfônica adaptada para 2 pianos. É La Valse, de 1920, do moderno Maurice Ravel. Incorrigivelmente orquestral, sua partitura para dois pianos foi escrita pelo próprio Ravel como uma demonstração da música, que ainda não estava orquestrada, para quem a encomendou, o empresário musical e dono da companhia Ballets Russes Sergei Diaghilev. Diaghilev, ao ouvir essa versão para dois pianos, teria dito "É uma obra prima, mas não é um balé, é uma fotografia de balé". E nunca montou a dança, que só teria sua primeira encenação em 1926, pelo Balé Ida Rubinstein. Que se deixe estar, a obra aparece muito mais como peça de concerto, sendo uma das obras mais aclamadas de Ravel. Desde a época, apocalíptica La Valse foi enxergada por muitos como um retrato da 1ª Guerra Mundial, devido ao fato de ela começar comportada e quietinha e ir se distorcendo, virando um monstro dissonante e arrepiante. Ravel sempre sustentou que ela era, na verdade, uma homenagem à valsa vienense. Sobre as interpretações de Nelson e Martha, são de dois músicos lendários, que sabem extrair da partitura a última gota de sensibilidade, carisma, potência e delicadeza. A própria La Valse é um exemplo disso. Ela tem todas essas qualidades, ao longo de seus 12 minutos. Com os dois pianistas, ela se torna quase a versão orquestral, com todo seu colorido, sua riqueza e integridade sonora e sua majestade. - Outras gravações importantes de Martha Argerich (ou eu vou ficar aqui o dia todo): - Sergei Rachmaninoff - Concerto para Piano Nº 3 e Piotr Tchaikovsky - Concerto para Piano Nº 1 - com a Orquestra Sinfônica Alemã de Berlim, regida por Riccardo Chailly (no Rachmaninoff) e a Sinfônica da Rádio Bávara, dirigida por Kirill Kondrashin. Os dois concertos foram gravados em épocas diferentes e reunidos nesse CD-Coletânea. - Ludwig van Beethoven - Concerto para Piano Nº 1 (junto à Sinfonia Nº 1) - Com a Orquestra de Câmara Mito, regida por Seiji Ozawa. - Frédéric Chopin - Sonatas para Piano Nos. 2 e 3. - Frédéric Chopin - Os 26 Prelúdios (os 24 do ciclo e mais 2, escritos separadamente). - Música para Dois Pianos - Wolfgang Amadeus Mozart - Sonata em Ré Maior para Dois Pianos; Franz Schubert - Variações Sobre um Tema Original e Igor Stravinsky - A Sagração da Primavera. - Johann Sebastian Bach - Sonatas para Viola da Gamba e Cravo Nos. 1 a 3 (transcritas para Violoncelo e Piano) - Com Mischa Maisky. - Johann Sebastian Bach - Tocata em Dó Menor, Partita Nº 2 em Dó Menor e Suíte Inglesa Nº 2 em Lá Menor. Lista de outras postagens aqui. Deixe seu comentário!

  • Quanto ganha um músico ou maestro de orquestra?

    Primeiro, a diferença entre Orquestra Sinfônica e Filarmônica O nome orquestra vem do grego ὀρχήστρα (orquestra), que era o nome do local, em frente ao palco, nos teatros gregos antigos, reservado ao coro. Existem alguns tipos de orquestra, dentre eles: a Orquestra Sinfônica, grande, que chega a ter 100 ou mais músicos; a Orquestra de Câmera, que é um bocado menor, geralmente com dois de cada instrumento de sopro e um número também reduzido de cordas; e a Orquestra Barroca, menor ainda, toca com instrumentos feitos no século XVIII ou cópias deles e, obviamente, é especializada em Música Barroca, aventurando-se, vez por outra, no Classicismo. A mais comum é a Sinfônica, que hoje é definida assim: pelo tamanho. Uma orquestra sinfônica pode se chamar Orquestra Sinfônica ou Orquestra Filarmônica (pode, também, ser uma Orquestra de Ópera). Dá no mesmo. O conjunto escolhe o nome: às vezes já existia uma Sinfônica de Chicago, daí eles têm que optar por Filarmônica de Chicago. Algumas orquestras ignoram essas denominações, como a Orquestra de Cleveland e a Orquestra de Filadélfia. Outras utilizam denominações bem antigas. É o caso da Staatskapelle de Dresden, da Staatskapelle de Berlim etc. Essa denominação vem desde o Barroco, quando o conjunto era dirigido pelo Kapellemeister. Isso é o que ocorre hoje, porque as orquestras mais antigas, no seu início, se nomeavam de acordo com o modo com que eram financiadas. Filarmônicas eram patrocinadas por Sociedades Filarmônicas, um grupo de ricaços que, literalmente, doava seu dinheiro para a orquestra. Sinfônicas eram geralmente patrocinadas pelo governo. Mas, como eu disse, isso ficou no passado, já que a maioria das orquestras é, hoje, subsidiada por várias fontes, como o governo (seja em forma de patrocínio direto ou de incentivos fiscais), recebendo doações da comunidade e até retirando um lucrozinho extra com venda de CDs, livros, calendários e memorabilia. Evidente que a maioria delas vende ingressos, mas só com isso elas não se pagam. Em termos de organização, as orquestras costumam ter um corpo fixo, de, digamos, 80 músicos, que toca em todos os concertos. Quando são necessários músicos adicionais, eles contratam freelancers. A orquestra tem, por exemplo, 4 Trompas fixas, mas tem partitura que exige até 12. Daí entram os freelancers, que recebem por hora. Isso acontece com outros instrumentos, que não têm necessariamente tocadores especializados na orquestra, como Tuba de Wagner, Teremim, Saxofones e Eufônios. Sim, mas afinal, quanto ganha um músico de orquestra? A orquestra sinfônica é uma instituição muito organizada, que coordena várias outras instituições, como a Sala de Concerto (joia da arquitetura), os Coros, Quartetos de Cordas, Quintetos de Cordas, Quinteto de Sopros, além de ser responsável por alguns instrumentos - não aqueles dos músicos, que eles que compram, mas aqueles como o piano, por exemplo (algumas salas oferecem 8 modelos de piano para seus solistas convidados), o gigantesco órgão, o cravo, a celesta e muito mais. Uma orquestra próspera, com as contas acertadinhas, tem possibilidade de pagar exorbitâncias como salário de seus membros. Mas quanto? Primeiramente dar-lhes-ei o valor do salário médio (de orquestras, obviamente, de grande porte e fama), sem levar em consideração a sessão ou a posição a que um músico pertence. Uma boa média seria uma que diz que esses músicos ganham cerca de US$ 50.000 por ano. Os músicos mais importantes, como os líderes de sessão, podem chegar a US$ 78.000. Mas a variação salarial é tão grande, que um músico, especialmente o spalla (o primeiro violinista, que senta logo à esquerda do maestro) de uma orquestra grande, ainda nos EUA, pode ganhar algo próximo a 500 mil dólares por ano. Uma orquestra celebrada, como a Filarmônica de Los Angeles, paga, ao spalla, US$ 564.237 anuais. Lembrando que tudo isso vem com plano de saúde, bônus salarial, comissões e, potencialmente, uma participação no lucro de alguns eventos. E que eles ganham, também, por gravação, de modo que, em um mês com muito estúdio, em que eles ganham US$ 69 por hora, o bônus é significativo. E na Europa? Li, no blog de Norman Lebrecht (link externo), que, em Londres, os músicos nem chegam perto dos valores dos conjuntos americanos, com o mínimo de £ 22 (mas é por hora), a média de £ 46 por hora e o máximo de £ 56 por hora. Nas super orquestras o caso é mais sério. Na Orquestra Filarmônica de Viena, o salário médio é de US$ 96.000 por ano. Já na Filarmônica de Berlim, o salário médio é de US$ 128.000 por ano. Na Gewandhaus de Leipzig, os ganhos médios são de US$ 72.000 por ano. Na Orquestra do Concertgebouw de Amsterdã também se paga US$ 72.000 ao ano. Na insuperável Filarmônica de Berlim, a média salarial é de EUR 114.000 por ano. E no Brasil? A principal orquestra brasileira, a Orquestra Sinfônica Estadual de São Paulo (OSESP), regida pelo suíço Thierry Fischer, paga, para músicos de tutti, R$ 14.900 por mês. A esses valores são acrescidos benefícios, como 13º salário, 30 dias de férias, FGTS, plano de saúde e vale transporte. A Orquestra Sinfônica Brasileira, do maestro Pablo Castellar, uma orquestra famosa, mas que tem nos feito ouvir repertório estranho, paga entre R$ 9.000 e R$ 18.000 por mês. Na Amazonas Filarmônica, fundada pelo sempre guerreiro maestro Júlio Medaglia, oferece-se cerca de R$ 5.500 por mês. A Orquestra Filarmônica de Goiás (uma excelente orquestra, regida pelo inglês Neil Thomson) paga em torno de R$ 4.000 a R$ 5.000 por mês. A Orquestra Filarmônica de Minas Gerais, que também tem feito um belo trabalho, sob a batuta do paulista Fabio Mechetti, oferece, inicialmente, cerca de R$ 9.000 por mês aos seus músicos. Todos esses salários estão sujeitos a constantes aumentos. Um músico recém-ingressado na orquestra certamente ganhará mais ao longo de sua carreira. Spallas Como eu já disse, as orquestras se organizam de forma hierárquica. É regra, por exemplo, o primeiro flautista ganhar mais que os outros flautistas. E esse padrão se repete em todos os naipes. O único músico de orquestra que ganha substancialmente mais que todos os outros é o spalla (ou concertmaster). O primeiro violino, que senta logo à esquerda do maestro. Vejamos alguns. Os números são por mês (correção apontada pela leitora Clau): Daishin Kashimoto, perdi a fonte de informação sobre todos os salários europeus. Frank Huang, spalla da Filarmônica de Nova Iorque: US$ 52.000; Robert Chen, spalla da Sinfônica de Chicago: $ 44.000; David Kim, spalla da Orquestra de Filadélfia: $ 39.208; Alexander Kerr, spalla da Sinfônica de Dallas: $ 27.500; Emmanuele Baldini, spalla da Sinfônica Estadual de São Paulo: R$ 36.000; Alexander Barantschik, spalla da Sinfônica de San Francisco: $ 49.000; Martin Chalifour, spalla da Filarmônica de Los Angeles: $ 47.019; Malcolm Lowe, spalla da Sinfônica de Boston: $ 42.700. Percebe-se que o spalla é um músico especial. Isso porque ele deve ser o melhor músico da sessão dos 1os. Violinos, tem uma leitura á primeira vista mais calibrada, aprende música nova com facilidade, tomam decisões que afetam a execução de todas as cordas, elegendo as arcadas (isso, se em certa frase os músicos devem começar subindo ou descendo o arco) e, principalmente, auxilia o maestro, regendo com a cabeça e o movimento do arco a sessão de cordas. Outra coisa que é responsabilidade dele é tocar a parte do Violino Solo, quando a partitura pede. Ele entra no palco depois do restante da orquestra e a ajuda a afinar. Deixem-me falar um pouco, ainda, sobre a estrutura da orquestra. Os Violinos 1 têm um líder, que é o spalla. Mas os Violinos 2 também têm seu líder. Ele se chama "Líder dos Segundos Violinos". O mesmo ocorre com as Violas: temos um "Líder das Violas". Nos Violoncelos, o líder também é chamado de "Líder dos Violoncelos". Por fim temos o "Líder dos Contrabaixos". Nos sopros, por serem sessões menores, nem todo naipe tem um líder. Mas tem as primeiras cadeiras. Lembra que eu falei que o Primeiro Flautista ganha mais que os outros? É porque ele é o líder da sessão de madeiras. Nos metais, o líder é o Primeiro Trompetista. Os músicos restantes são chamados músicos de tutti. Hierarquicamente, são os que ganham menos. Por fim, alguns exemplos de maestros: Facilmente o maestro ganha 10 vezes mais que o mais bem pago músico da orquestra. Isso não é apenas pela sua técnica e musicalidade. Um maestro da moda tem viabilidade de comercial, carisma e faz boas gravações, de modo que atrai atenção e dinheiro à instituição. Com esses exemplos abaixo dá para se ter uma ideia de quanto ganham os mais famosos. Os salários são por temporada, que acaba sendo o mesmo que por ano. Riccardo Muti, diretor da Sinfônica de Chicago: $3,420,804 Gustavo Dudamel, ex-diretor da Filarmônica de Los Angeles: $2,857,103 Andris Nelsons, diretor da Sinfônica de Boston: $1,787,000 Yannick-Nézet-Séguin, diretor da Orquestra de Filadélfia: $1,672,167 Lista de outras postagens aqui. Deixe seu comentário!

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