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  • A redescoberta da cozinha

    Colaboração: Marise Rocha Lima Thé Nós seres humanos somos muito diferentes uns dos outros. Mas é importante a gente pensar que, apesar de todas as diferenças que temos, carregamos ainda mais coisas em comum do que pensamos. Inclusive com outros seres vivos, como por exemplo o fato de que precisamos nos alimentar. É algo fisiológico. Agora, como preparamos esse alimento, aí vêm uma série de questões culturais que envolvem, sobretudo, o lugar e a época em que estamos. Atualmente, com o isolamento social (que também é algo totalmente relacionado com o nosso lugar e a nossa época) ao qual estamos submetidos, aparentemente muita gente descobriu e redescobriu a culinária. Cozinhar é algo que nos beneficia de inúmeras formas, afeando tanto nossa saúde mental, como física. De acordo com uma pesquisa feita pela consultoria em alimentação fora do lar Galunion, em parceria com o Instituto Qualibest (e que pode ser consultada nesta matéria aqui), mais de 90% dos brasileiros estão cozinhando suas próprias refeiçõs durante o isolamento social decorrente da pandemia de Covid-19. Ainda também de acordo com outra pesquisa realizada em 13 cidades brasileiras e comentada pela famosa escritora e apresentadora de culinária Rita Lobo (que pode ser conferida neste outro link ), 61% dos entrevistados aprendeu a cozinhar (ou aperfeiçoou suas técnicas culinárias) durante o período. Ainda de acordo com a pesquisa, cerca de 90% dos entrevistados pretende continuar fazendo refeições em casa. Do ponto de vista psicológico, cozinhar enquanto se está trancafiado em casa é uma forma de matar o tempo, aprender, experimentar e ainda ser produtivo sem perceber que está sendo produtivo, ou seja: é um ótimo hobby. Aliás, esse foi um dos pontos comentados por Rita, porque cozinhar exige concentração, afinal estamos lidando com fogo e objetos cortantes. Então você acaba esquecendo um pouco do caos provocado pela pandemia dentro do microcosmos da cozinha. Em termos de saúde física, o ato de cozinhar promove um distanciamento dos alimentos prontos ou semi-prontos, enlatados e ultra-processados e faz com que a gente, naturalmente, desenvolva uma atenção maior ao que estamos colocando dentro de nosso corpo. É claro que ela também pode ser estressante, sobretudo quando temos que cozinhar para outras pessoas (que muitas vezes têm gostos diferentes dos nossos, como as crianças) e quando não dispomos de oportunidade de planejamento de nosso tempo de atividade na cozinha. Então, alguns fatores podem ajudar se levados em consideração e que podem ajudar a cozinhar tanto para si como para uma família: 1. Ordem: A gente acha que não pode ter tempo de planejamento. Mas tem. Justamente porque quando planejamos, aparece tempo pra um monte de coisa. Então, planejar na cozinha pode ser pensar antecipadamente um cardápio pra semana, que seja funcional (alimente), gostoso e prático. Por exemplo, designar o dia de cozinhar as bases da semana toda, como o arroz e o feijão; planejar antecipadamente quais serão as proteínas e já as deixar temperadas. Folhas, verduras e legumes já devidamente lavados. Deste modo deixamos para preparar no dia por completo somente as saladas, as folhas, e etc. 2. Utensílios corretos: Outra coisa importante também é ter os utensílios corretos, por exemplo: boas panelas e do tamanho adequado, depósitos de armazenamento com boa vedação, além de geladeira e freezer condizentes com o tamanho da casa. 3. Entender as bases da cozinha: Conhecer os alimentos importanes (pra isso, é legal consultar o Guia Alimentar para a População Brasileira que, aliás, está sob ataque); saber como cozinhar grãos e proteínas (e para quem não sabe ou não conhece o guia, não se preocupe porque a gente vai falar detalhadamente sobre ele em breve aqui nessa mesma coluna. Mas enquanto isso, você pode baixar aqui). 4. Entender os gostos da familia, mas procurar um denominador comum, ou seja, desencucar de querer fazer a comida que cada um gosta. Seria conscientizar as pessoas ao seu redor de como é importante conciliar o momento da refeição, inclusive, pra passar a comer com variedade. 5. Participação: Por ultimo, talvez, é envolver os membros da familia no preparo das refeições e na manutenção da limpeza da cozinha. E por fim lembramos que dicas são dicas, não regras inflexíveis ou imposições ortodoxas fortes, o essencial é fazer apenas o que conseguir e dar sempre o seu melhor. É tentar tomar consciência do que e como estamos comendo, valorizar o esforço necesário para que o alimento chegue ao nosso prato e sermos dignos dele, comendo sem avidez e, claro, aproveitando ao máximo os momentos ao redor da mesa como fonte de bem-estar e felicidade, porque como diria o grande poeta Odair José em sua emblemática canção A Noite mais Linda do Mundo: a "Felicidade não existe. O que existe na vida são momentos felizes", boa alimentação! Kerla Alencar Puro charme. Padeira, jornalista, cozinheira e mulher. Seu maior sonho é a paz mundial, mas só depois de matar os fascistas de raiva. Nílbio Thé Editor do site.

  • CARMEN MIRANDA E SUA CARREIRA NO BRASIL

    Há 65 anos o Brasil chorava a morte de Carmen Miranda. Morando nos Estados Unidos desde 1939, a artista havia sofrido um fulminante ataque cardíaco na madrugada de 05 de agosto de 1955, em sua casa na Califórnia. Muitas homenagens foram feitas à nossa Pequena Notável desde então, tendo ela continuado a influenciar a moda e a cultura mundial com sua imagem icônica de baiana estilizada. Mas o que muitas pessoas desconhecem, mundo afora e até no Brasil, é a fase artística de Carmen Miranda aqui em nosso país, que durou de 1929 até 1939, quando ela foi a cantora de mais destaque nos meios de comunicação e uma sambista de primeira grandeza. Nascida em Marco de Canaveses, distrito da cidade do Porto, em Portugal, no dia 09 de fevereiro de 1909, veio ao Brasil, com mais ou menos um ano de idade, acompanhada da mãe, Maria Emília, e da irmã mais velha, Olinda. As três vinham encontrar José Maria, esposo de Maria Emília e pai das meninas, que já estava estabelecido em nosso país. Já adolescente, Carmen Miranda passou a trabalhar em lojas de moda e buscar oportunidades no meio artístico, fazendo ponta em um filme por volta de 1926. Mas somente em 1928, ao conhecer o violonista e compositor baiano Josué de Barros, é que sua carreira artística teria início. Josué, vendo o talento da jovem, apostou em sua carreira como cantora, levando-a a se apresentar em 28 de agosto de 1928 em um espetáculo beneficente no Instituto Nacional de Música, em benefício ao Orfanato do Sagrado Coração de Jesus. Meses depois, em 07 de janeiro de 1929, ela voltaria ao Instituto Nacional de Música em um evento em homenagem ao compositor Ernesto Nazareth. Por muito tempo, pensou-se que essa fora a primeira aparição em público de Carmen Miranda como cantora. O ano de 1929 foi bastante promissor para a jovem cantora iniciante. No primeiro semestre, participou de alguns programas em rádios, como a Rádio Educadora do Brasil, Rádio Sociedade e Rádio Mayrink Veiga. No segundo semestre, Josué de Barros levou Carmen para que ela gravasse seu primeiro disco, pela gravadora Brunswick. Carmen Miranda gravou duas músicas de Josué de Barros, "Se o Samba é moda", choro, e "Não Vá Simbora", samba. Como o disco demoraria a ser lançado, o compositor levou sua afilhada artística para um teste em outra gravadora, a Victor. Na Victor, Carmen Miranda foi logo aprovada pelo diretor artístico, o compositor e violonista Rogério Guimarães. Em 04 de dezembro de 1929, ela gravava o segundo disco de sua carreira e o primeiro na nova gravadora, com as músicas de Josué de Barros, "Triste Jandaya", canção toada, e "Dona Balbina", samba. A forma como Carmen interpretava as músicas, coloquial, sem arroubos líricos, inserindo “cacos” ao final dos versos, chamou a atenção da crítica e do público, que gostou bastante dessa nova forma de cantar. Para a crítica especializada em música, a jovem tinha It na voz, ou seja, um carisma, um diferencial, que a tornava especial. Em seu terceiro disco na Victor, Carmen Miranda lançou uma marcha-canção que a tornaria conhecida nacionalmente, sendo uma música lembrada até hoje. Trata-se de "Pra Você Gostar de Mim", do médico e compositor Joubert de Carvalho, que escreveu especialmente para ela. A marcha ficou conhecida como Taí, devido a seus versos: “Taí, eu fiz tudo pra você gostar de mim/ Oh, meu bem não faz assim comigo, não/ Você tem, você tem/ Que me dar seu coração”. Gravada em 27 de janeiro de 1930, às pressas para o carnaval deste ano, a música faria sucesso ao longo dos carnavais seguintes. A partir de então, cantora nacionalmente conhecida, gravando discos com frequência, Carmen Miranda passou a investir em sua carreira, escolhendo as músicas que gravaria, quais compositores interpretaria, assinando contratos com publicidade e, em poucos anos, firmando um contrato de alto valor com a Rádio Mayrink Veiga, como cantora exclusiva. Por volta de 1931, começou a excursionar, indo para uma temporada em Buenos Aires e, em 1932, percorrendo várias cidades do Nordeste brasileiro, em apresentações antológicas em Pernambuco e na Bahia. Antes da metade da década de 1930, Carmen Miranda já era a cantora mais popular do Brasil e a mais bem paga, recebendo salários maiores que de muitos homens em uma época em que às mulheres era reservado o espaço do lar, para cuidar da família. Carmen não escapou do preconceito por ser uma mulher que se exibia publicamente, por ser financeiramente independente e por cantar sambas. Alguns críticos achavam absurdo uma sambista ganhar mais e ter mais projeção do que uma cantora lírica, por exemplo. Porém, Carmen Miranda seguia sua carreira, entre esses rumores, conquistando mais espaço no meio artístico, prestígio, fãs e altos contratos. Sua forma de cantar, tão especial, influenciaria outras garotas que tentavam a sorte no rádio e no disco no começo da década de 1930. Muitas imitavam seu estilo e até sua voz. Algumas tinham carreira efêmera, outras conseguiam encontrar estilo próprio e seguiam em carreiras bem sucedidas. Uma cantora que nunca imitou Carmen Miranda e fez muito sucesso na década de 1930 foi sua irmã Aurora Miranda. Possuidora de uma extensão vocal maior que a de Carmen, com talento e estilo próprios, Aurora foi a segunda cantora que mais gravou discos durante os anos 30 do século XX. A cantora que mais gravou? Carmen Miranda... Em 1935, Carmen deixa a Victor e passa a gravar na Odeon. Surge uma nova fase em sua carreira, na qual ela passaria a contar com novos instrumentistas, músicos e maestros. Seu repertório, graças ao seu talento, continuou com uma qualidade excepcional, tal qual na Victor, tendo ela lançado, igualmente na Odeon, dezenas de clássicos do nosso cancioneiro popular. Carmen Miranda não parava. Atuava em discos, no rádio, fazia shows nas excursões e em cassinos, aparecia em reportagens nas revistas e ainda fazia cinema. Ao todo, Carmen atuou em cinco filmes no Brasil, só chegando aos nossos dias Alô, Alô Carnaval, dirigido por Adhemar Gonzaga, em uma produção de 1936 da Cinédia. Nesse filme, ela canta a marcha "Querido Adão", de Benedito Lacerda e Oswaldo Santiago, e "Cantores de Rádio", marcha cantada ao lado de sua irmã Aurora Miranda, de autoria de João de Barro, Alberto Ribeiro e Lamartine Babo. Seria em Banana da Terra, de 1939, dirigido por Ruy Costa, que Carmen Miranda novamente daria início a uma nova fase em sua carreira. Nesse filme, pela primeira vez, ela aparecia vestida de baiana. Embora há 50 anos as atrizes já usassem essa fantasia, seria a partir de Carmen Miranda que o mundo conheceria um dos símbolos culturais (mesmo que estereotipado) do Brasil. Com a fantasia de baiana estilizada, Carmen Miranda seguiria para os EUA em 1939, com o Bando da Lua, tendo entrado para a história de nosso país, até então, como sua mais bem sucedida cantora popular. Abaixo, gravações de domínio público extraídas diretamente de discos de cera de 78 rotações do Arquivo Nirez de algumas das canções citadas. MARCELO BONAVIDES DE CASTRO é historiador, pesquisador musical, jornalista e ator. Desde 1988 pesquisa a MPB e a vida das atrizes-cantoras e artistas do teatro musical, rádio e disco no Brasil, durante o período de 1859 a 1940. Autor do blog Arquivo Marcelo Bonavides (marcelobonavides.com).

  • Disco: Bolling - Suíte para Flauta e Jazz Piano Trio - Rampal

    Não sou muito do mundo do jazz (não sei mesmo se sou de algum), mas quando se trata de música com pouco improviso, como a do francês Claude Bolling, especialmente as suas suítes, estou dentro. Ele inventou essa série que são discos com Suítes para instrumento solista e Piano Trio. A ideia deu super certo. Ele sempre chamava um músico erudito: Jean-Pierre Rampal para a flauta; Yo-Yo Ma para o violoncelo; Pinchas Zukerman para o violino; Alexandre Lagoya para o violão. Tinha também uma suíte para Orquestra de Câmara e Piano Trio. A música de Bolling tem um forte: a criatividade. É inventiva, faz com que você pense: como ninguém compôs isso antes? A primeira suíte foi justamente essa para Flauta e Piano Trio. Foi um sucesso absurdo, tanto na Europa, quanto nos Estados Unidos e no Brasil. Não há flautista que nunca tenha tocado. Nós mesmo, os Argonautas, tocávamos algumas. Os movimentos são: Baroque and Blue - a mais conhecida. Evoca música barroca nos seus cânones entre piano e flauta. Sentimentale - a mais bonita e minha favorita. Quando a gente ensaiava, muito tempo atrás, sempre o meu avô vinha até a sala de música só pra dizer que a música era linda. O final é transcendental. Javanaise - é em compasso 5/4 (5 tempos por compasso). Isso é o mais ousado que Bolling vai. Mas é muito charmosa. Fugace - é fugada, ou seja, tem características de fuga, mas não é uma. Irlandaise - outra belíssima. Lenta como a Sentimentale. Versatile - nessa, ele usa a flauta baixo, que Rampal toca divinamente, com aquele sonzão cheio dele. Veloce - o finale da suíte. Tinha que ser uma peça bem empolgante e para cima. Os amantes mais raiz de jazz consideram Bolling uma distração descompromissada. Isso porque sua música é muito tradicional, até antiquada, nunca passando de técnicas dos anos 40. Sendo que ele fez sucesso a partir dos anos 60. Eu sempre achei bobagem essa de ter que ser moderno, avant garde. Alguns dos meus compositores favoritos, como Mozart, Bach, Rachmaninoff e Brahms, nada tinham de revolucionários. Alguns, aliás, eram criticados por serem retrógrados. O fato é que o conteúdo, pelo menos pra mim, não sei pra você, é mais importante que a estética. A música de Stravinsky sempre foi moderna, mas sempre foi boa, também. Hoje ela não é mais moderna e continua sendo boa. Mas sim, Claude Bolling pode ser um tanto superficial. Sua música não tem intenção senão de divertir. Mas escute que beleza!

  • Desenho Coisinhas #2

    Por Lele Reis Lele Reis Meu nome é Lele, eu desenho coisinhas e não tenho interesse suficiente em mim mesma ou no meu trabalho pra dizer qualquer coisa além disso! :-D Curadoria de quadrinhos Nílbio Thé e Isabelle Prado.

  • Ela foi e ele continua. Um ensaio sobre Rubem Valentim e Regina Duarte

    Meses atrás, Regina Duarte assumiu a Secretaria Especial de Cultura (que era um MINISTÉRIO) de forma extremamente rápida, talvez até batendo um recorde de menor tempo de permanência na atual gestão de nosso país. Rápida, breve, fugaz, mas não sem bastante estardalhaço, sobretudo ao conceder entrevista à rede CNN Brasil. E é sobre isso que escrevi e que adapto agora para a nossa Arara Neon. Vamos lá! Do lado da vida tem a morte. Algo assim que a Regina Duarte falou. E ela está certa. Afinal isso é biologia básica. Mas também é a base de muitas coisas além da biologia. Falei disso pros meus filhos, sobre a vida e a morte, quando enterramos nosso cãozinho embaixo de um ipê que eu plantei uns quinze anos atrás. E pra enfatizar a vida que vem da morte, ainda fizemos um jardim em cima da cova do nosso pequeno guardião canino em sua homenagem. Pois é. A Regina está certa nisso. Mas sua precisão parou aí. Não, espera! Ela também está certa ao falar – aparentemente a única coisa útil em termos de política pública para arte, mas ainda assim com muitas ressalvas – que ligou para prefeituras pedindo que ajudassem os circos, parados por causa da pandemia. O circo é a linguagem artística mais acessada pela população brasileira que mora, na maioria das vezes, em cidades sem cinema, teatro ou biblioteca. É o circo o responsável por levar arte, sonho e alegria para a maioria das cidades, muitas vezes inacessíveis. E também para a periferia e, com suas portas fechadas, sem poder realizar espetáculos, não geram receita e seus artistas passam necessidade. Contudo a fala dela – e ressalto que mais importante do que o que se diz é COMO se diz – dá à ação de socorro ao circo um ar de caridade, não de política, ainda mais quando repassa a responsabilidade dessas ações de distribuição de cestas básicas para as prefeituras. Ou seja, até onde existe uma brecha de boa intenção existe o erro (e o inferno, vocês sabem, está cheio de boas intenções). Quando vamos analisar um texto, é necessário estarmos atentos para duas coisas: primeiro é o texto em si, claro, ou seja, é necessário atentar para o que é dito; mas também é de suma importância entender o CONtexto que é justamente tudo aquilo que NÃO é dito, mas que está ao redor do texto e o permeia muitas vezes de forma quase explícita. Tendo dito isso, chamo a atenção para a obra de Rubem Valentim que estava entre Regina e o repórter da CNN no momento da entrevista. A obra, uma gravura, mais especificamente uma serigrafia, sem título, datada de 1989, de autoria de Rubem Valentim, que foi doada ao Ministério da Cultura (atualmente inexistente, como já disse) na época da gestão de Gilberto Gil. Mas quem foi Rubem Valentim? Bom, poderia dizer que ele foi um dos mais importantes artistas brasileiros. Se eu deixar essa frase um pouco mais específica, com alguns adjetivos para a palavra artista, sua importância aumenta ainda mais, de modo que se disser que Valentim foi um dos mais importantes artistas plásticos, ou um dos mais importantes artistas plásticos baianos ou negros, um dos mais importantes artistas construtivistas do século XX... Bom, aí ele vira um gigante da arte. Mas é isso justamente o que ele é: gigante. A serigrafia de Valentim é a rainha do contexto em que se passa a entrevista (o texto) e ela é a vida que brilha e pulsa ao lado da morte, parafraseando a própria Regina em uma das poucas frases corretas que disse, entrecortadas por chiliques, imprecisões e uma miríade de comportamentos alienados, imaturos e estúpidos. Valentim ansiava por criar uma linguagem própria e universal e, para isso, o artista baiano pesquisava sua ancestralidade africana e indígena. Três orixás estão entre suas principais inspirações: Xangô, o orixá da Justiça, cujo machado de duas pontas foi base iconográfica para várias obras de Valentim; Oxóssi, orixá da caça, das matas e dos trabalhadores, que emprestou seu arco muitas vezes para os desenhos de Valentim; e Ossaim, outro orixá das matas, que conhece as curas para todas as doenças a partir das ervas e folhas. Claro, Valentim procurava e pesquisava de tudo, sem preconceitos, mas sua iconografia aponta para a recorrência e elementos desses três. Justiça, trabalho, matas... Três coisas constantemente desrespeitadas no atual governo. Na obra em questão, de 89 aliás, fica mais que evidente tanto referências a Oxóssi quanto a Xangô. Valentim também foi um militante. Não um militante político tradicional, mas um militante estético, o que não deixa também de ter cunho político, sobretudo na época da ditadura militar brasileira. Escreveu “Manifesto ainda que tardio” em 1976 (e qualquer pessoa que escreva qualquer texto com “manifesto” no título nos anos 70 é, no mínimo, corajosa), no qual deixa clara a sua fonte de pesquisa estética baiana e afrocentrada. Regina Duarte é um caso (espero que raro) da junção de três coisas: a incompetência, a falta de conhecimento sobre a área em que atua (ou se dispõe a atuar) e a necessidade doentia de querer ser feliz (e leve) o tempo inteiro para não ser um “obituário”, como ela mesma diz. A junção dessas três coisas que potencializam umas às outras a torna uma figura infantil no pior sentido que o termo pode vir a ter. É preciso falar também do manifesto de Valentim contra a subalternidade. Toda arte é política. Vide o exemplo de Malevich na União Soviética, considerado subversivo. Penso, aproveitando o exemplo, que a arte de Valentim é tão política quanto a de Malevich, ou talvez ainda mais. E por mais que discorde veementemente de que obra e artista são a mesma coisa (claro que existem exceções, da ópera ao videogame – mas isso é assunto para outro momento), toda arte tem uma mensagem sobre o seu tempo para o presente e para o futuro. Às vezes principalmente para o futuro. Ver o chilique de uma mulher que ocupa lugar de destaque no imaginário popular midiático do povo brasileiro me fazia me concentrar cada vez mais, a cada grito, a cada mexida na cadeira, na obra plácida e elegante de Valentim. A obra observava Regina com toda a sabedoria ancestral que os Orixás carregam. Isso aumentava ainda mais o vexame de Regina. Ou seja, a obra de Valentim, exposta ali, pode ser um lembrete do destino, da vida para a morte, avisando que eles passam – os fascistas, os idiotas, os cretinos, passam todos. A sabedoria ancestral fica. Enquanto Regina gritava e se contorcia na cadeira a obra de Valentim, no alto de sua elegância, sussurrava: “Você passa. Nós ficamos, pois nós estamos aqui há muito, muito mais tempo que vocês”. Sim, Valentim fica, Regina, você roda. No caso, Valentim ainda está lá. E Regina rodou, há meses. Estou achando graça porque quando rascunhei esse texto, um dia depois do fato, e o li no meu Instagram em um vídeo, o título do texto era "Ela vai e ele fica". Parece que acertei. Eu só não imaginei que fosse tão rápido! Abaixo um pequeno e modesto mosaico com trabalhos de Valentim só para seu deleite.

  • Interiores, 1º disco dos Argonautas

    A alvorada e o movimento da manhã. A vida desperta sem pressa. As rotineiras e sinceras saudações entre comadres e compadres. O cheiro de café. As festas, as quermesses, as rezas, os santos. As missas. Os ciganos. O céu estrelado. O leve e solitário badalho do chocalho. O canto da coruja. O apagar da lamparina. Nos sonhos, os bons sentimentos de compartilhar, de respeitar e amar leve e imensamente (a vida). ​ Interiores vem de uma sensação que todos parecemos compartilhar: a de que quando as cidades cresceram, quando o progresso veio, alguma coisa se perdeu, uma inocência e uma poesia que quase não existem mais. ​ Esta poesia que existiu no passado nos causa uma nostalgia que não conseguimos explicar, a saudade de algo que muitos de nós nem sequer chegamos a conhecer. ​ Mergulhado nesse sentimento, o disco passeia pelos interiores do Brasil e pelos interiores de todos nós. Angelita Ribeiro e Rafael Torres Queria falar aqui sobre o nosso primeiro disco. Estávamos (os Argonautas) parados há algum tempo quando eu chamei o Bob (Ayrton Pessoa, membro fundador) para dar cabimento a uma ideia que tive. Na época estávamos tocando com Germano Lima (baixo) e Ronaldo Lage (bateria, piano e percussão). A ideia era fazermos um disco e um show com uma temática. Faríamos alusão a saudade, nostalgia, um sentimento de não ter vivido uma época muito especial da história. Cidadezinhas com praças, coreto, auto-falante, crianças, crianças de bicicleta, casarões mal assombrados. Interiores. Interiores do Brasil e de nós mesmos. O show ficou fantástico, com figurino e cenário de Yuri Yamamoto. Participação do quarteto de flautas doces Ad Libitum, coordenado pela minha mãe, Angelita Ribeiro. Quase todas as músicas eram nossas, exceto João e Maria, de Sivuca e Chico Buarque, e Qui Nem Jiló, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira. (Parênteses aqui. Quando fui negociar os direitos autorais da editora de Qui Nem Jiló, por e-mail, perguntei: - Mas é Jiló ou Giló? - é que você encontra dos dois jeitos. - Tudo bem o sr. lançar a música, mas não podemos mudar a grafia do nome. - Eu entendi. Só quero saber se é Jiló com J ou Giló com G. - Sr., nós realmente não podemos mudar a grafia do nome. A pessoa realmente fez questão de não entender minha pergunta.) Tinha duas instrumentais do Bob, Arlequim e Quintal; e o resto era com letra. Fiz até duas especialmente para o disco: Interiores e Interiores nº 2 (esta, com letra do Alan Mendonça, nosso velho parceiro). O Alan aparecia ainda nas letras de Cataventos, Déjà Vú, Canção para João de Despedida e O Amor de Margarida Flor. Carolina (Ayrton Pessoa, Rafael Torres e Raphael Haluli) e Alameda (minha) completavam o repertório. Depois vou encomendar um faixa a faixa totalmente imparcial do Nílbio. Ética jornalística. Ele fez esse aqui, do Jangada Azul, nosso segundo disco. Carolina Ayrton Pessoa, Rafael Torres e Raphael Haluli ​ Carolina vem cantar Comigo essa canção Olha que o sol já raio Já raiou a ilusão De uma história de amor Me diz se o beija-flor Te contou do meu sofrer E te disse que a paixão É maior que o bem querer ​ Teu perfume, Carolina, Tem um cheiro de saudade Tua boca de menina me diz Já passou o carnaval Mas os teus olhos Não mentem pra mim Prometem noites e Noites e noites e noites Sem fim Rafael Torres - arranjo, flauta e voz Ayrton Pessoa - violão e voz Leonardo Torres - piano e voz Sergio Araújo - oboé e clarinete Francisco Sousa - fagote Germano Lima - baixo Ronaldo Lage - percussão Gostou do post? Comente e saiba mais sobre os Argonautas nesse post.

  • Um disco que você precisa conhecer (Rachmaninoff - Concertos 1 e 2 - OS Boston, Ozawa, Zimerman)

    Rachmaninoff - Concertos para Piano Nos. 1 e 2 - Sinfônica de Boston, Ozawa, Zimerman. O pianista polonês Krystian Zimerman, um dos gigantes do teclado, até 1999 não tinha gravado concertos de Sergei Rachmaninoff. Mas quando o fez, os registros entraram para a história: um deles, o Segundo Concerto, é o concerto para piano mais popular de todos os tempos, e é a versão de Zimerman e Ozawa que é considerada a melhor dentre as modernas (no passado temos as 2 gravações de Rachmaninoff com Leopold Stokowski e a Orquestra de Filadélfia). Mas vamos pelo começo. O primeiro concerto, obra da juventude de Rachmaninoff, foi escrito para a sua formatura no conservatório, e teve relativo sucesso. Aliás, até hoje seu sucesso é relativo. Não sei por quê! É uma obra de grande envergadura, que explora as possibilidades do piano até mais do que, por exemplo, o Concerto em Lá Menor de Grieg (no qual é baseado), os dois temas do primeiro movimento são arrojados (observe a beleza do primeiro tema, aos 34s, e o contraste com o segundo, em 2m38s), revelando o grande melodista que era Sergei; tem uma cadência (9m20s) (a parte em que o piano se "exibe", a orquestra até para de tocar) empolgante (e extremamente bem construída); o segundo movimento (12m17s) é de uma beleza impecável; e o terceiro (18m57s), um digno finale. Esse concerto foi inspirado no de Grieg. Quando estudamos composição, muitas vezes o professor pede que façamos uma peça nos moldes de uma existente. Dá pra notar as linhas gerais do norueguês nos três movimentos do do russo. Mas Rachmaninoff o supera em quase todos os níveis. O Segundo Concerto é a peça mais popular do repertório para piano solista com orquestra. E, possivelmente, a mais gravada. Pianistas como Arthur Rubinstein, Sviatoslav Richter, Géza Anda, Evgeny Kissin, Byron Janis, John Ogdon, Yuja Wang, Lang Lang, Vladimir Ashkenazy, Daniil Trifonov, o próprio Rachmaninoff (Horowitz acredito que não tenha gravado, por alguma razão) e muitos outros, fizeram, às vezes, mais de um registro. Até a música pop (All By Myself) aproveitou linhas deste concerto. Foi até protagonista de um episódio de um seriado! Começa com uma referência recorrente na obra de Rachmaninoff: a sinos. Apenas no piano, como uma introdução. Logo entra a orquestra com o primeiro tema (43s). O segundo tema é dado ao piano (2m30s), uma melodia linda. Não tenho como descrever como essa música é impactante. Não à toa é o concerto mais executado. O segundo movimento, um belíssimo adagio, começa em 11m48s e tem belos duetos do piano com a flauta (12m35s) e com o clarinete (12m55s). O terceiro movimento (24m) é o mais popular, devido ao seu exótico tema principal, típico de Rachmaninoff, ouvido nas cordas aos 25m50s, logo seguido pelo piano; depois novamente aos 30m19s; e, finalmente no triunfante final, aos 34m08s. Zimerman se junta ao regente japonês Seiji Ozawa e à então sua, orquestra Sinfônica de Boston para criar uma gravação que tem vigor, frescor, juventude, carisma, potência, romantismo, agilidade e, ao mesmo tempo, peso. É um resultado impressionante. O mundo das gravações de grandes obras não é uma competição pra ver quem toca melhor, mais rápido ou com mais sentimento. Mas, vez por outra, uma gravação se supera e supera claramente todas as outras. Gostou do post? Comente! E leia mais sobre esse concerto aqui.

  • Quem são os Argonautas, de Fortaleza

    Atenção, para os Argonautas da mitologia grega clique neste link. Hoje vamos falar do meu grupo e a sua incrível saga. Começou quando eu conheci o Bob (Ayrton Pessoa), no colégio. Ele tocava violão e teclado e era uma das pessoas mais musicais que eu já conhecera. Tínhamos 15 anos, em 1996. Lembro que ele vinha aqui em casa e a gente escutava discos de Bossa Nova, do Eugênio Leandro, Beethoven e Piazzolla. Lembro também do Hauly, que já era meu amigo desde uns dois anos antes, me dizer: "se vocês tiverem tocando, eu vou querer também, me chama." Aí, eu e o Bob recebemos notícia de um concurso mundial de música: o Concurso John Lennon. Fizemos uma música em um inglês que não fazia sentido (era pra ser psicodélica) e fomos gravar no Alencar, um amigo da mamãe que tinha um estúdio. Não ganhamos o Concurso John Lennon. Acabou que o Alencar nos "adotou", ele gostava muito da nossa música, e a gente ia compondo e gravando. Viramos o Mira na Lira e, logo depois, os Argonautas. Até 2001 fizemos 2 discos demo, mas nunca lançamos. Fomos seguindo, fazendo shows esporádicos ("ah, tu tem uma banda?", "tenho", "e onde é que vocês tocam?", e eu sempre tinha que explicar que a gente não tinha muito a cara de banda de barzinho etc.). Vez por outra me dava uma vontade de encerrar. E o fizemos, de fato, em 2004, quando o Hauly foi morar em São Paulo. Quando voltamos, em 2007, foi porque eu tinha um projeto de disco e show maravilhoso, o Interiores. Recriaríamos um ambiente rural, figurino do Yuri Yamamoto. Nessa época, eu chamei o Ronaldinho (Ronaldo Lage, bateria) e o Germano Lima (baixo), amigo dele. Lançamos o disco com esse show em 2009. Tanto o disco como o show tiveram a maravilhosa participação do grupo de flautas Ad Libitum, do qual faz parte a minha mãe. Pelejamos mais... mas não importa o que fizéssemos, não decolávamos. Acabamos de novo, lá por 2010. Em 2014 apareceu um show pra gente fazer, e o Ronaldo e o Germano não podiam, então a gente chamou Ednar Pinho (baixo) e Igor Ribeiro (percussão e bateria), formação que persiste até hoje. Paramos de novo e voltamos em 2016 para gravar um álbum. O Jangada Azul, lançado em 2018, todo com músicas nossas. Por motivos de saúde e de motivação, uma das poucas coisas que me interessam é gravar, de modo que seguimos fazendo isso desde então. Inventamos o "Argonautas Convidam" em 2017, quando chamamos a Mônica Salmaso para fazer um show do repertório dela com arranjos nossos. Novamente pensei que ia decolar, mas que nada! Se bem que o show foi um sucesso e acarretou outros, com o Renato Braz e com o Zé Renato, do Boca Livre. Vamos aos fatos sobre os Argonautas: Tocamos o que se pode chamar de MPB. Compomos a maior parte do que tocamos. Já tive reuniões promissoras com a Biscoito Fino. Não deram em nada. A Kuarup também ia lançar um disco, mas não deu certo. Gravamos nosso terceiro disco "Argonautas Interpretam Edu Lobo" em 2018, mas só deu pra lançar em 2020 (desculpa, eu sei que é feio falar palavrão). Tem a participação da Mônica Salmaso, do Renato Braz, do Marco Forte, do Heriberto Porto, do Leonardo Torres (meu irmão, ao piano) e do próprio Edu Lobo, que canta Meia-Noite. Tentamos chamar o Chico Buarque para participar, mas não deu certo. Ele é elusivo (com toda razão). Fiz uma música em homenagem ao Ariano Suassuna, super armorial e nordestina, e chamei a Mônica pra gravar. Tem aí em baixo. Com o Renato Braz, gravamos minha valsa "Manual da Leveza". Já aparecemos 2 vezes na Globo em transmissão nacional, no Jornal da Globo. A fofíssima Silvia Machete gravou outra música minha "So Many Nights", no seu álbum Rhonda, todo em inglês. Tenho umas 4 músicas em inglês pro caso de... né?... Temos a leve sensação de que, se tocarmos num lugar, aquele lugar fecha. Aconteceu com o Ball Room, no Rio de Janeiro, com o Vila Mosquito, aqui em Fortaleza e com os Estados Unidos, em 2001. A gente já tava certo de ir quando jogaram aqueles aviões nos prédios. Tem tuuuudo no nosso site: www.grupoargonautas.com.br. Apesar de tudo, continuamos a fazer música honesta, que, quando você olha do ângulo certo, é boa. O problema é que só 2 vezes na minha vida alguém pareceu ter olhado por esse ângulo. O nosso velocino de ouro é uma carreira. Comente o que achou da música dos Argonautas!

  • Das kino na arara: Por que Enola Holmes é um filme fundamental para garotas?

    Na minha infância e adolescência, faltava-me, no geral, referências cinematográficas com representações femininas que fugiam da estereotipação. Preciso ser justa com alguns bons exemplos que marcaram toda minha geração, como o filme Matilda, ou a personagem Hermione, do universo de Harry Potter. Felizmente, essa realidade vem se alterando. Enola Holmes, que entrou recentemente para o catálogo da Netflix, é um caso análogo. O ano é 1884, e Enola tem a missão de encontrar sua mãe, fugir dos seus irmãos (que insistem em transformá-la em uma dama), e viver sua vida à sua maneira. Certa altura do filme, a própria mãe da personagem lhe diz: “Existem dois caminhos que você pode seguir. O seu ou o caminho que os outros escolheram para você”. Nem é preciso dizer qual caminho Enola escolheu. Criada por sua mãe para ser independente, ela rejeita qualquer tentativa de condicionamento do seu espírito ao ambiente doméstico. Ela é sedenta por aventuras. O que esperar, afinal, de uma jovem que sabe atirar com arco e flecha, lutar jiu-jitsu, jogar tênis, subir em árvores, que já leu toda uma biblioteca e tem sensibilidade artística? Ainda que seja irmã mais nova do famoso detetive Sherlock Holmes, por quem sente admiração, Enola percebe, entretanto, que não pode contar com ele para muita coisa. Baseado na primeira de seis obras literárias da série Os Mistérios de Enola Holmes de Nancy Springer, a obra audiovisual ganha fôlego pela espontânea e divertida atuação de Millie Bobby Brown (a Eleven, de Stranger Things), que esbanja talento em cada cena. A chance de o filme virar uma franquia é altíssima. A recepção tem sido positiva, e a crítica especializada tem elogiado. Penso que a obra não tem grandes deslizes: ainda que seja um pouco longa e o peso dado à narração em primeira pessoa seja demasiado, é divertida, leve, tem um ótimo ritmo, foi pensada para ser assistida em família, e cumpre bem com a função de engajar o seu público. Sabemos como representação importa, como procurei exemplificar no início da coluna. Enola Holmes, além de apresentar, indiretamente, questões referentes ao movimento pelo sufrágio feminino na Inglaterra, fala de amadurecimento e autodescoberta, de ligações familiares e do risco que se corre em querer mudar o mundo. Recomendo, especialmente, para as meninas e adolescentes. Jéssica Frazão é produtora audiovisual e doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP). É integrante do Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema (Elviras) e colunista cinematográfica no jornal O Município Blumenau, com "Das Kino - Um olhar crítico sobre o cinema"

  • abajur #01

    Quadrinhos autorais por Brida. Brida ''Abajur'': Vive e trabalha em Brasília. Procura observar o trânsito embolado dos pensamentos e explorar tragicomédias diárias através de tirinhas, animações, pintura e escultura. Curadoria de quadrinhos Nílbio Thé e Isabelle Prado.

  • Graphic Novel noir queimada no papel

    Eventualmente no mundo das artes surgem obras que revolucionam a linguagem. Seja por criarem novos paradigmas, novas técnicas, destruindo ou ressignificando as antigas, ou por explorarem ao máximo todas as possibilidades daquela linguagem. Nos quadrinhos, exemplos não faltam, mas, para ficar em apenas dois, cito: Asterius Pollyp, de Dave Mazzucheli, em que tudo é usado como instrumento narrativo, desde o formato dos balões até as cores das fontes das falas de cada personagem; e os quadrinhos jornalísticos criados por Joe Sacco. Pois bem, Cidade de Sangue também entra nesta categoria, o que só confirma o nível de qualidade que os artistas independentes têm conseguido ultimamente. Financiado através de edital do Fundo de Arte e Cultura de Goiás, da Secretaria de Educação, Cultura e Esporte, e editado numa luxuosa brochura com sobrecapa e marcador de tecido pela MMarte editora, temos uma obra que se distancia dos estereótipos normalmente vistos em trabalhos realizados com dinheiro estatal: uma história policial, noir e violenta. Logo no prólogo somos transportados para 1995, em Goiânia. O assassinato brutal de uma família. Cerca de vinte anos depois, a cidade parece um balneário de sangue e é isto que dá sustento ao jornalista policial Carlão, cujo editor Palhares (um sobrenome clássico para uma história dessas!) tem prazer em extrair manchetes do sangue e da violência da cidade. Carlão não aguenta mais uma rotina de tragédia, morte e violência, inclusive isso começa a atrapalhar seu próprio casamento. Tudo começa a mudar com a chegada de Paulinha, repórter fotográfica que acaba de voltar de uma temporada de estudos na Europa para trabalhar no jornal, justamente na editoria de polícia. Argumento da animadora Márcia Deretti que foi transformado em roteiro por seu esposo, Márcio da Paixão Júnior, e ilustrado por ninguém menos que Júlio Shimamoto. A história de estrutura noir tem um tratamento neoexpressionista com os desenhos feitos com uma técnica criada por Shimamoto, que utiliza uma caneta de madeira cuja ponta é feita de resistência elétrica e desenha sobre papel térmico (do mesmo tipo que se usava nas antigas impressoras de fax). O resultado dessa junção de uma história tão naturalista e noir é um trabalho de um preciosismo que pode ser comparado somente com a revolução que Rubem Fonseca fez na literatura policial brasileira. Os quadrinhos brasileiros acabam de sofrer uma pequena revolução numa história cheia de reviravoltas e de visual magnífico. Agora é torcer por uma distribuição boa (outro grande gargalo dos artistas independentes de todas as linguagens) para todo o país. O livro foi publicado pela editora MMarte, contudo encontra-se esgotado. Publico essa resenha aqui como forma de pressão para que ele volte a ser editado. Esperança em tempos como esses é luxo, mas ao mesmo tempo não custa nada!

  • O movimento HIP

    As chamadas "Performances Historicamente Informadas" (HIP, em inglês) viraram uma realidade no mundo nos anos 60. Nunca houve consenso sobre como denominá-las. Performances autênticas, gravações de época... Por fim, surgiu o nome "Historicamente Informado". Esse é problemático, e você vai saber por quê. Mas, primeiro, o que é isso, certo? É um tipo de abordagem na interpretação de música mais antiga que busca se parecer mais com o jeito de tocar da época em questão. Sabe-se que a orquestra sinfônica moderna é muito diferente daquela do período barroco (séculos XVII-XVIII), do clássico (século XVIII) e até mesmo do romântico (século XIX). A partir de Beethoven, os compositores começaram a pedir mais instrumentos: 4 clarinetes, 4 flautas, flautim, contrafagote, clarone, tuba, percussões. E pra acompanhar isso tudo, as cordas foram ficando mais numerosas. Hoje, a orquestra "base" tem 16 primeiros violinos, 14 segundos violinos, 12 violas, 10 violoncelos, 8 contrabaixos, 4 flautas (uma podendo ser flautim, ou piccolo), 3 oboés, um corne inglês, 4 clarinetes (um podendo ser clarone ou um clarinete em mi bemol), 4 fagotes (podendo um ser contrafagote), 4 trompas, 4 trompetes, 4 trombones, tuba, tímpanos e percussão. Isso tudo foi se desenvolvendo num fluxo natural (nos anos 50, tocava-se uma obra barroca, originalmente composta para uma orquestra de 20 músicos, com 60 instrumentistas, que, por sua vez, tocavam em instrumentos modernos muito diferentes dos barrocos), e ninguém se preocupava com o fato de uma orquestra em 1950 soar, especialmente ao tocar música barroca, totalmente diferente do que os compositores imaginaram. Quer dizer, nos anos 60, algumas pessoas começaram a ter essa percepção. Foram atrás de tratados sobre como se tocava violino na época (por exemplo, no barroco) e viram que era muito diferente: segurava-se o arco menos na ponta, vibrava-se menos e, sobre cada frase, ou até cada nota, faziam um desenho em forma de arco. A nota começava fraca, aumentava, diminuía e morria fraca de novo. Por falar em nota, uma curiosidade: até cerca de 1850 os instrumentos soavam mais graves que os de hoje. Um dó deles, por exemplo, para nós soaria hoje como um si. E talvez, dependendo da região da Europa, ainda mais grave. Isso porque o sistema de afinação por frequência ainda não estava bem estabelecido. O diapasão, que pra nós toca a nota lá, antigamente podia tocar um lá bemol ou até um sol bemol. E nas HIP eles mantiveram essa tradição, até porque os instrumentos de madeira (sopros: flauta, oboé, fagote), sendo fisicamente projetados para ser mais graves, não tem o que mexer pra eles ficarem mais agudos. As cordas podem ser afinadas, mas os sopros não - até podem, mas só um pouco. Então começaram a surgir conjuntos que tocavam com base em estudos não só da sonoridade, como da dialética barroca. Ao empregar flautas, por exemplo, tinham instrumentos da época, ainda de madeira, ou instrumentos novos feitos com a arquitetura exata dos de então. O mesmo com os oboés. O violoncelo não tinha o espigão para apoiar no chão. Em vez disso, repousava graciosamente entre as pernas do instrumentista. Conjuntos inteiros tinham, às vezes, 8 membros. O maestro regia sentado ao cravo (instrumento que então voltou a ser protagonista, tendo sumido com a invenção do mais sofisticado piano). Podemos voltar ainda mais. Um grupo como o Early Music Consort, da Inglaterra, 1967, tocava música profana medieval. Isso mesmo. Eles têm fantásticos discos, como "Os Triunfos de Maximiliano", "Música das Cruzadas", "Música da Era Gótica", "Instrumentos da Idade Média e da Renascença". O grupo acabou em 1976, com a morte do seu fundador David Munrow, mas o outro fundador, Christopher Hogwood, criou uma orquestra destinada a tocar música barroca, clássica e protorromântica, chamada Academy of Ancient Music. Gravaram as sinfonias e concertos de Mozart, os de Beethoven, além de música de Haydn, Purcell e muitos outros. Mas talvez o grande nome desse movimento seja o maestro alemão Nikolaus Harnoncourt, fundador da orquestra Concentus Musicus de Viena. Ele tem, não só uma enorme discografia, como alguns livros tidos como importantíssimos. Os dois mais famosos são "O Discurso dos Sons" e "O Diálogo Musical", interessantes até pra quem não é músico. Outros regentes e conjuntos que podemos destacar: John Eliot Gardiner, fundador do Monteverdi Choir, da Orchestre Révolucionnaire et Romantique e do English Baroque Soloists; Roger Norrington, do London Classical Players; Jos van Immerseel, do Anima Eterna; e Reinhard Goebel, do Musica Antiqua Köln. O movimento segue firme e forte, se esticando cada vez mais longe pra trás, mas também pra frente: já vi performances historicamente informadas da "Sagração da Primavera", peça de 1913. É a orquestra Les Siècles, com o regente François-Xavier Roth, que se propõe a tocar com os instrumentos apropriados para a época da composição, mesmo que seja só de um século atrás (o resultado do que pode parecer um exagero, é, na verdade, muito legal). Do HIP, só não me agrada o nome, naturalmente. Porque basicamente dá a entender que maestros e instrumentistas que não aderiram a ele (que são maioria), são historicamente desinformados. Nenhum nome é bom pra esse tipo de movimento, de fato. Se eles chamarem suas gravações de autênticas, os outros hão de ficar bravos com razão. Não o são? Por fim, tem "performance de época". Só que não é de época, ela tenta emular a performance da época. Eu sou definitivamente contra você ficar corrigindo os outros: não diga assim, diga assim. Portanto, fale como quiser. Eu? Prefiro "gravação com instrumentos de época". É mais ajeitadinho e eu fico sem peso na consciência.

  • território marginal #02

    O Lado Triste da vida. Um quadrinho de Vitor Batista. Vitor Batista: é cartunista, designer e arquiteto, nasceu em Barbalha (CE) em meados de 1981, acredita nas três partes da filosofia universal e fica puto quando confundem ele com um gringo. Curadoria de Quadrinhos: Nílbio Thé e Isabelle Prado

  • Elitismo na música clássica? Sério?

    Já parou pra pensar no quanto é incoerente pensar que a música clássica é inerentemente elitista e classista? Provavelmente não, não parou pra pensar. No meu feed de notícias, recentemente apareceu uma reportagem de uma revista chamada Vox, intitulada "How Beethoven’s 5th Symphony put the classism in classical music" (Como a 5ª Sinfonia de Beethoven colocou o classismo na música clássica). O autor defende, certamente querendo parecer antenado e defensor das nobres causas, que a música clássica é uma coisa de brancos, héteros, anti-LGBTQIA+, que tomaram a tal sinfonia, talvez a mais famosa e emblemática obra musical erudita, como um símbolo da sua superioridade. Besteira da peste... Ele continua, garantindo que a etiqueta das salas de concertos está impregnada desse elitismo: não se pode tossir, não se pode aplaudir entre os movimentos etc. Tem espaço para uma "linda" frase de um crítico musical: "Quando você perpetua a ideia de que os gigantes da música todos se parecem, isso leva os outros a crer que não há lugar para eles naquela música". Como? Vejam, eu não nego que haja preconceito dentro da música clássica. Só afirmo que há preconceito em todas as outras áreas do conhecimento. E que a música clássica sofre esse bullying por ser associada à elegância (portanto, à elite). A música clássica tem muito mais do que elegância. Como vocês vão ver na Arara Neon, ela pode beirar a insanidade, de fato. Tem gente que vai ao concerto só pra aparecer na coluna social? Tem. Mas esses não são os verdadeiros amantes da arte. Esses merecem repúdio. Existir uma coluna social merece repúdio. Se pessoas negras não eram permitidas nas salas de concerto de alguns países até depois da segunda guerra, isso diz mais sobre a sociedade em que vivemos do que sobre música clássica. Vamos a alguns pontos, argumentos soltos, que é como eu me organizo melhor. São só algumas coisas que me vêm à cabeça e me fazem ver que a música clássica não é melhor que as outras, nem pior. Vejam: - Em 1965 os Beatles tiveram que ameaçar não tocar num show nos Estados Unidos porque naquele estado havia segregação. Quantos shows de rock devem ter acontecido antes disso com os negros separados? - Alguns círculos de jazz eram excludentes de brancos. Muitos tinham que lutar para ganhar seu espaço. Sei que é uma falsa equivalência: negros excluíam brancos por motivos diferentes destes excluírem negros. Era uma reação à sociedade totalmente injusta em que viviam. Mas acabavam fazendo um tipo de segregação, também. Aliás, o que falar da mulher no jazz? Tinha um espaço mínimo. Como cantora, geralmente. - Uma orquestra de Fortaleza teve, durante anos, uma violinista trans, que foi recebida naturalmente, sem alarde, e sempre foi tão bem tratada quanto os outros. - Não se deve aplaudir entre os movimentos por vários motivos: o silêncio serve pra orquestra e o regente "entrarem no clima" do movimento seguinte. É que eles estão acostumados com a transição, ensaiam muito como o andamento do movimento anterior deve reger o do seguinte. Aplausos tiram a concentração. E o silêncio mostra que o público está concentrado (e que respeita esse pequeno requinte). - Mas até o começo do século XX era comum aplaudirem entre movimentos, às vezes até tocar de novo aquele movimento. A performance ainda não tinha chegado ao nível de perfeição milimétrica a que chegou hoje. - É verdade que a música clássica já foi música de branco. Isso porque surgiu na Europa. Música de homem. Isso porque surgiu na Igreja (não vejo tanta gente acusando a igreja de machismo, embora seja, totalmente). - Hoje em dia a proporção de mulheres x homens, na maioria das orquestras é 50/50, em média. - A grande maioria das orquestras escolhe seus instrumentistas em testes cegos, a comissão eleitora não sabe se é homem, mulher, jovem, velho, conhecido ou nada. Já existe até quem defenda que isso acabe, para que se privilegiem pessoas com características da sua comunidade. - O pianista vivo mais celebrado no mundo é uma argentina, sul-americana, mulher, a Martha Argerich. No piano existem tantas mulheres de êxito quanto homens. - Você tem todo o direito de não gostar de música clássica: pode gostar de música pra dançar, pra ouvir correndo e te dar adrenalina, pra cozinhar batatas... Ou simplesmente escutar músicas que falam mais a você. Só acho que é mais honesto você dizer que não gosta, simplesmente, do que tentar inventar pretextos sociais. - O envelhecimento das salas de concerto existe, mas não é porque o público está envelhecendo, e sim porque é com a idade e a aposentadoria que se tem tempo e mais paciência para apreciar música erudita. - A música, a música em si, precisa, para ser apreciada, de um pouco de pesquisa e dedicação. Posso dizer o mesmo da literatura. - Os ingressos são caros, mas muito menos do que um ingresso pra um festival de rock ou pra uma micareta. Então? Está convencido de que o preconceito é universal? Temos que vencer esse preconceito no dia a dia, no mundo inteiro. Inclusive o preconceito contra música clássica. Na matéria aí em cima tem um ponto, ele quer mostrar esse aspecto da música, tudo bem. Além do mais, é uma parte de uma série de reportagens sobre a 5ª de Beethoven, nas quais eles devem desenvolver melhor sobre outros aspectos da música. Mas peca por fazer esse desserviço a quem quer divulgar a música clássica e por perpetuar a ideia de que a música é contra alguma coisa. Quem é contra são os homens. Martha Argerich e a Orquestra NEOJIBA regida por Ricardo Castro.

  • Amigo, estou aqui

    Você. Você mesmo. Já se perguntou se o mundo não era uma simulação? Se todos os que você conhece só existem pra fazer parte, mesmo que minimamente, da sua vida? E até os que não conhece? Talvez seja um programa de TV, ou algo assim? Ou um experimento científico? Aquele australiano que faz um programa sobre crocodilos só existe na hora em que você o vê? Como um jogo de videogame, que vai renderizando o próximo andar enquanto você está no elevador? Pois bem, pare de pensar besteira, porque você está certo. Você está sendo observado em cada momento. Nós estamos de olho. Eu mesmo me dou o luxo de escrever esse texto só porque sei que você não vai mesmo acreditar. Ou, melhor, querer acreditar. Já reparou que a gente não acredita no que acredita, mas no que quer acreditar? Pois bem, o fato é que criamos essa simulação que é sua vida. Pra gente, ela é linda. Nós cuidamos bem dela, todo dia, o tempo todo. Os seus amigos são gerados no momento em que interagem com você. Eu sei quem é você e tudo que eu digo aqui é calculado. Eu sei que você às vezes acha que está vivendo num grande Big Brother. E escrevi esse texto para que você, no exato momento da sua vida em que o lesse, começasse a duvidar de tudo. Nós demos até pistas. Lançamos anteontem (e você pensa que faz tanto tempo) o Toy Story, com todos aqueles bonequinhos que sabem da sua vida sem que você os perceba. “Amigo, estou aqui” (essa sacada foi do Antena). Nem vou começar a falar de Matrix, foi um erro e a gente evita falar no assunto. Os Beatles hahaha como você acreditou nos Beatles? A religião (sacada de gênio do Osmar, a religião, não temos nada parecido aqui)? Um jumento (e é um jumento mesmo, mas isso fica pra outra hora) liderando o país? Pois é, meu caro. Se você é o único simulado? Não, mas é o da vez. E até você morrer, vamos nos divertir com a sua reação a cada pistazinha colocada estrategicamente no seu caminho. Se der desespero, pense que você é uma campanha de marketing. Um recorte de uma letra de música. E não se esqueça que ouviu de mim: amigo, estou aqui.

  • Argonautas: Jangada Azul - Faixa a Faixa

    O quarteto Argonautas lançou em 2018 seu segundo álbum oficial, Jangada Azul, 9 anos após seu primeiro disco oficial Interiores. Criado na segunda metade dos anos 1990, o grupo é composto pelos amigos de colégio Rafael Torres, Raphael Gadelha e Ayrton Pessoa. Todos com uma formação em diversos instrumentos e um horizonte musical que passeava bastante pela música erudita, jazz, rock dos anos 60, tango e, sobretudo, música brasileira tradicional e popular. Ao conhecer o poeta Alan Mendonça, Ayrton (o Bob) compôs sua primeira canção. Então eles passaram a tentar usar os conhecimentos de harmonia erudita na composição de músicas em ritmos brasileiros e daí muita coisa aconteceu. Ganharam um prêmio pela composição Guerra dos Brincantes, de Raphael Gadelha (baixo, violão, flauta) e Alan Mendonça. O mesmo Raphael mudou de cidade, algumas formações vieram e se foram. Gravaram um CD demo caseiro e, em 2009, lançaram Interiores, um disco sério e simples em parceria com Ronaldo Lage (percussões e bateria) e Germano Lima (baixo). Atualmente com Igor Ribeiro (bateria e percussões) e Ednar Pinho (contrabaixo acústico). O epicentro de composições ainda fica concentrado na dupla de multi-instrumentistas e vocalistas Rafael Torres (clarinete, flauta, acordeão, piano, viola caipira, violão, guitarra) e Ayrton (piano, acordeão, violão, bandolim, viola caipira, sintetizador, guitarra), que agora, com novas parcerias e um universo musical expandido, nos trazem um álbum leve e vigoroso com novas composições, novas parcerias e músicas do início da banda que nunca foram gravadas. A despeito de já ter dois anos de idade, eu continuo achando que o álbum não teve a devida atenção, o que justifica, na minha cabeça, uma análise faixa a faixa. Vamos a ela! Faixa a Faixa do Jangada Azul 1. Mareia De Rafael Torres, uma canção com arranjos vocais e uma letra cheia de aliterações, trata-se de uma súplica sertaneja com uma elegante linha de baixo e uma sanfona preenchendo a música. Apesar de letra triste, porém esperançosa no momento em que vira uma oração a Iemanjá, é uma música em Lá maior, alegre, com belos acordes abertos realmente evocando a luz e o calor de que fala a letra. 2. Ilação Uma cantiga/toada a três vozes tendo como instrumentos principais apenas violão, metalofone e alguns “instrumentos flutuantes”, como um piano, e com uma letra que mais parece uma brincadeira de criança. A mais singela do disco e uma das mais antigas do grupo, só registrada agora e que remete a alguns dos melhores momentos da música mineira dos anos 60 e 70. 3. Fortaleza Um sarcástico bolero-ode ao ato de fazer música e arte na cidade de Fortaleza. Parece uma canção que deveria ter entrado em Interiores. Apesar de não ser uma bossa nova, percebe-se a influência de Tom Jobim nos arranjos. 4. Aqui Nesta Ilha Música de Ayrton sobre um texto de Joyce Nunes. Com uma harmonia de poucos acordes (algo também que não é lá muito comum no grupo), a música se estrutura num ciclo de crescimento começando tímida e misteriosa, com muitos silêncios se tecendo num fundo harmônico sendo feito pelo acordeão. 5. Choro de Mandacaru Outra música trovadoresca de inspiração sertaneja. Um duo de violões e vozes traz singeleza e delicadeza a esta canção de clima rural. 6. Outros Americanos Composição de Ayrton Pessoa. Também começa discreta, ao piano, e cresce até a entrada de um sutil e poderoso arranjo de bateria de Igor Ribeiro. Aqui também temos a utilização de um instrumento inédito no grupo, que sempre prefere instrumentos acústicos, um sintetizador, e também de uma guitarra tocada por Rafael Torres. 7. Cantiga do Sertão Uma letra poderosa que remete a João Cabral de Melo Neto em seu Morte e Vida Severina. Apenas o violão de Nonato Luís em participação especial, voz e nada mais. 8. Plantaria Primeira composição de Ayrton com Letra de Alan Mendonça. Uma espécie de Refazenda contemporânea com um ritmo bem marcado ao violão e à bateria de Igor, graves bem colocados e um belo arranjo de flauta, fazendo contraponto a uma melodia simples e bonita, que além da canção de Gilberto Gil remete também à pernambucana Banda de Pau e Corda, com seu arranjo vocal. Uma das melhores faixas para perceber o entrosamento instrumental do quarteto. 9. De Volta ao Começo Uma canção extremamente jobiniana, que tem a essência de músicas como Retrato em Branco e Preto. 10. Flores de Maio Novamente uma das primeiras composições do grupo só agora registrada. Um samba ao mesmo tempo discreto e com presença. Letra de Alan Mendonça e música de Rafael Torres. Fosse nos anos 70, poderia facilmente ter sido uma das canções de João Bosco e Aldir Blanc interpretada por Elis Regina. A linha de baixo de Ednar que permeia a harmonia brincando com alguns graves merece atenção. 11. Miudilha do Beijo Uma faixa instrumental de amor e dor baseada em violão e sanfona que evoca as sensações de Valsinha de Chico Buarque de Hollanda e Vinícius de Moraes. 12. Choro Dela Um chorinho feito para Bia, filha de Rafael Torres sobre os desafios e descobertas da paternidade. O acompanhamento com violão, pandeiro e flauta dão a sonoridade clássica de nosso querido chorinho. Ainda que seja um excelente disco (e bem diferente do anterior), que mostra tudo que a banda é e o que ela ainda pode ser, vale a pena conferir as apresentações ao vivo, sempre com arranjos diferentes e com um pequeno e engraçado rodízio de instrumentos entre eles. Serviço Jangada Azul Independente, 12 faixas R$ 30,00

  • Luzia, A Mulher que Morreu duas vezes (ou Do nosso suicídio coletivo)

    10.000 a.C. A vida era difícil. A selva, a chegada das preguiças gigantescas. Feras. Encontrar comida não era fácil. Perder-se de seus convivas... O azar de ter se distanciado muito de sua tribo. A descoberta de frutos e plantas novas não fora o suficiente para segurar sua expulsão da aldeia por desrespeitar as forças dos deuses. A gruta que lhe serviu de morada era boa, não era quente demais de dia, nem fria de mais à noite. O lagarto que encontrara para seu jantar não estava bom como o da semana passada. Estava com um gosto forte. Mas era o que tinha, juntamente com alguma mandioca e outras raízes. A noite foi ainda pior que a caçada do dia. Dores fortes no estômago a deixaram em estado de agonia por dias até que ela não sentia mais dor... ela estava, sim, em seu corpo, mas não chegava à sua mente que pôde viajar e abraçar os espíritos encantados da natureza que a rodeavam e a tudo comandavam. Ela encontrou a paz. 1975 d.C. Escavações encontram o crânio de uma mulher em Minas Gerais, Lagoa Santa. Muitos ossos antigos foram encontrados ali. 1998 d.C. Demorou pouco mais de vinte anos para que descobrissem que aquele crânio tinha doze mil anos de idade, revolucionando tudo o que se supunha sobre a ocupação do nosso continente. A partir daí, Luzia ganha fama, mais até que sua descobridora, a arqueóloga francesa Annette Laming-Emperaire, e seus posteriores pesquisadores, o biólogo brasileiro Walter Alves Neves e o bioantropólogo argentino Hector Pucciarelli, que descobriram a idade de Luzia em uma análise laboratorial feita na Europa. A partir daí, Luzia ganha o estrelato. 2018 d.C. No ano de 2018, Luzia tem outra morte. Uma morte simbólica, mas que beira o real. Consumida em chamas juntamente com diversos outros documentos importantes para a história brasileira, como a Lei Áurea, e história mundial, como sarcófagos, tronos de reis africanos, coleções de desenhos botânicos etc. Nas redes sociais, cada um com suas ilusões partidárias aponta o dedo para o partido político alheio em busca de culpados. Muito fácil não olhar para si nessa hora. Quando visitamos um museu pela última vez em nossa própria cidade? Não existe praticamente nada de original que possa ser dito sobre essa tragédia. Tudo é muito óbvio. Todos somos culpados. Culpados por nossas ilusões, nossa falta de ação, nosso excesso de utopias e falta de pragmatismo. O último presidente a entrar no museu foi Juscelino Kubitschek. O último. Sofremos da síndrome de adoração de defuntos aqui no Brasil. A pessoa morre e vira um santo. Foi assim com Tancredo Neves, Mário Covas e tantos outros que se repetem no anúncio da “reconstrução” do museu. O mesmo ocorre com um museu que muitos sequer sabiam da existência. Se pudessem, eles ressuscitariam até Dom Sebastião. Mas essa tragédia ainda renderá muito. As políticas culturais brasileiras são incipientes. Culpa do estado? Claro. Culpa da iniciativa privada? Também. Muitas postagens sobre a “polêmica” lei Rouanet foram feitas. Quem determina o que será patrocinado pela lei Rouanet, que usa dinheiro de renúncia fiscal, ou seja, dinheiro estatal, é a iniciativa privada. Se ela resolve patrocinar um show de forró ao invés de ópera ou museus é vida que segue. Temos apenas que aprender a conviver com quem acha que um palácio mereceu ser destruído por ser um símbolo da monarquia escravagista ou quem acha que quem vive de passado é museu. O passado está em nós. Precisamos apenas parar de ignorá-lo. Ou de inventá-lo. Precisamos encará-lo de frente pois ele se repete a todo instante. Antes que vejamos fogo em nós mesmos por combustão espontânea para coroar o lento suicídio ao qual estamos nos aplicando há anos. Mas talvez exista uma chance de um revés. A notícia de que o crânio de Luzia foi encontrado entre os escombros é, como disse minha esposa Marise, uma inspiração de que a resistência faz parte das brasileiras desde sempre.

  • A arte do banal

    Em um cenário de grandes produções no universo das artes, alguns criadores preferem apostar na valorização do banal como forma de ampliar o diálogo com o público. Uma vez, um sobrinho veio empolgado dizendo que queria fazer um videogame junto com um amigo. Deviam ter uns 14 anos. Quis estimulá-los, mas pouco tempo depois desistiram porque seria “muito complicado”. Perguntei sobre qual jogo eles gostariam de fazer. A resposta estava na ponta da língua: “igual ao GTA”, franquia de jogo de gângsters contemporâneos do estúdio Rockstar. Jogos como GTA são chamados de AAA (ou triple A), o equivalente a um filme blockbuster caro, com anos de desenvolvimento e muita gente trabalhando. Para meu sobrinho, o universo de jogos indie era desconhecido. Fiquei pensando nisso e, por acaso, lembrei de uma matéria que havia lido sobre os “artistas plásticos do momento”. A matéria perguntava se as artes plásticas contemporâneas eram reféns da super produção. Artistas como Matthew Barney e Damien Hirst tinham obras incrivelmente complexas, caras, difíceis de serem executadas, obras AAA, para usar o mesmo termo da indústria de jogos. Os pequenos artistas teriam vez em um mercado cada vez mais milionário e extravagante? Hirst ficou famoso por realizar o que seria a obra de arte mais cara do mundo: For the Love of God, com valor estimado de 14 milhões de dólares. Trata-se de uma caveira banhada em platina e cravejada de diamantes. Mas a questão é: ela é cara por sua ideia, sua técnica, sua aura, seu impacto estético ou apenas pelo material usado? Os Girassóis de Van Gogh, por exemplo, foi feito apenas com tinta e tela, e sua cotação no mercado de arte gira em torno de 200 milhões de dólares. O que valorizou mais? Hirst não é meu artista predileto, mas sua obra é interessante. A despeito disso, objeto aqui chamar a atenção para a outra face da moeda de For the Love of God: a arte das insignificantes coisas do cotidiano. A arte exagerada ou espalhafatosa sempre existiu. Alguns períodos históricos registram mais casos que outros, claro, mas Mahler, por exemplo, em pleno século XIX compunha para orquestras três vezes maiores que as de Beethoven, o que torna o esquema “um banquinho, um violão” de João Gilberto uma verdadeira revolução. A arte de hoje mistura-se cada vez mais à nossa vida. Seja no grafitti, numa intervenção urbana, nos músicos de rua de várias cidades no mundo ou numa performance. Sim, a performance é a arte do cotidiano por excelência. Renato Cohen, em seu livro Perfomance como Linguagem, comenta justamente que a linguagem da performance é uma estetização de algo não estético. Um mictório num museu, ou alguém escovando os dentes num lugar não usual, ou quem sabe um jogo sobre seus pesadelos de infância (The Binding of Isaac). Existem exemplos ainda mais “banais” nos quadrinhos. Angeli, que se fez protagonista na série de tirinhas "Angeli em crise"; Laerte, que ganhou novo público para suas tirinhas quando passou a abordar temas ligados ao universo trans; Harvey Pekar, que falava de seu dia a dia em suas graphic novels... Se antes o banal tinha presença apenas nas crônicas de escritores, como Stanislaw Ponte Preta ou Luís Fernando Veríssimo, hoje é o combustível de gente como o premiado cineasta sul-coreano Hong Sang-Soo. Sem querer parecer minimalista, repetindo que “menos é mais”, exercer a criatividade com o pouco que se tem à mão é a forma mais contemporânea de se chegar ao sucesso.

  • Saudações, terráqueo. Não me leve ao seu lÍder.

    Bem-vindos à Arara Neon, um lugar onde você encontra abobrinhas e contradições. Nós vamos falar majoritariamente sobre arte. Se tivermos que ser específicos: música clássica, cinema, estética, literatura etc. (De onde eu tirei que etc. especifica alguma coisa?). No meu caso, Rafael Torres, também vou falar sobre os Argonautas, meu grupo de MPB, que vai indo. Vou contar como é tentar viver de uma música que já morreu e, na verdade, já está ressuscitando. E tem também a parte criativa. Minhas músicas, contos, o que der na telha. Mas sempre respeitando o leitor, que vai ser tratado como um membro da família: os textos são escritos pra você, não pra mim. Sinto que seria uma boa destinar meu tempo a disseminar a música clássica. Sabe quando você lê um livro maravilhoso e fica pensando: "eu tenho que contar pra todo mundo! Como é que eles não sabem disso?"? É a minha relação com música clássica. Eu devo passar mais da metade do meu dia escutando streaming, CDs e vinis. E, embora já anestesiado pelo hábito, ainda me arrepio com músicas que escutei mais de um bilhão de vezes. E quero explicar pras pessoas (as que querem saber disso) como apreciar essa arte. Vou tentar não falar de política (mentira), a não ser para ressaltar ou realçar algum argumento. Estética, impressões sobre eventos (crítica de arte é uma coisa muito pesada e muito vaidosa), divagações e o que mais couber nessas páginas. Esteja convidadíssimo! Aqui assume o outro autor. Bem-vindos à Arara Neon, um espaço de coisas sérias e contradições. Nós vamos falar (muito) sobre arte. No meu caso, Nílbio Thé, vou bater muitas vezes no mesmo prego e na mesma tecla, até a tecla e o prego não existirem mais. Vou falar sobre cinema, literatura, um pouco sobre música também e arte no sentido mais amplo que a coisa pode ter. Provavelmente publicarei crônicas. Ou não. Quem sabe contos. Ou não, também. Quadrinhos, charges, eventualmente poemas que ando começando a escrever. Como creio que a arte é um modo de oração e, se a gente ficar só no mundo físico sem viajar pro mundo das ideias de vez em quando, a gente explode, tentaremos (estou incluindo o outro autor nisso agora) disseminar o que achamos que vale a pena ser conhecido ou, no caso de coisas com fama excessiva, discutido. Será impossível para mim não falar de política. Não estou dizendo que vou fazer vários escritos sobre política, porque eu não faço ideia nem do que eu vou fazer amanhã. Então não prometo nada. Inclusive porque tenho uma pilha de desenhos, estudos e pinturas não terminados e talvez meia dúzia de roteiros não filmados de modo que realmente eu não prometo coisas. Mas eu penso em política todo dia, não nessa moribunda política partidária, mas na política como forma de pensar (e sobretudo resistir a) o mundo. Críticas, resenhas, impressões sobre eventos e tragédias e catástrofes (sim, não estou esperançoso e já risquei a palavra utopia da minha vida), divagações e o que mais couber nessas páginas. Entre e pegue uma água. A casa é sua. Aqui assume quem tá lendo!

  • Uma foto que fala mais do que parece

    Observe a foto abaixo. Uma foto relativamente competente de um banco de imagens (nesse caso, o Pexels). Uma imagem tem que ser muito boa pra gente ter o que falar dela por mais de dois minutos. Sobre essa, eu tenho umas coisinhas. Olha pra essa menina. Fofa, ok. O que te chama a atenção? Os olhos? Certamente são expressivos, assim como as sobrancelhas. Mas a atitude dessa menina não está nos seus olhos. Está na boca. Olhe bem. O que diz a boca? Diz que, como diria minha filha quando pequenininha, ela "fez donação". É aquele sorriso que diz "aprontei, mas não conte a ninguém". Agora junte essa informação com o que temos mais na foto, os olhos. Eles dão uma informação mais. Pense. Só ela sabe a traquinagem que fez? Aí está! Não. Você também sabe. Ela está te olhando com cumplicidade a respeito de algo muito específico que você sabe o que é, mesmo não sabendo. Essa menina fez duas "artes": a danação que gerou a beleza da imagem e a de transformar uma foto que seria apenas mais uma num banco de imagens em uma conversa. O que torna essa foto tão extraordinária não é o fotógrafo, através da iluminação, da composição, do foco, das cores. A estrela é a própria menina, o assunto da fotografia. A nossa cúmplice.

  • A Revolta das Roupas

    A gente não sai de casa nessa quarentena, mas as roupas saíram do canto como? Dia desses fui procurar uma meia e não lembrava mais onde ficavam as meias aqui em casa. Um cinto, eu passei dez minutos para achar. Passar meses só de cueca, quando não pelado, deve ter desligado algumas sinapses que passei anos para construir. Então não é a roupa que se mexe, é a memória de onde a gente guarda as roupas que muda, mexe, desaparece. Uma espécie de revolta. Talvez façam isso justamente para a gente não ter como sair de casa. Sim, vamos analisar.... Comecemos pelas meias. Ninguém gosta de ganhar meias de natal, por exemplo (experiência própria, estou plenamente no meu lugar de fala aqui). Sobretudo quando você ganha meias de presente de natal em mais de um natal na sua vida. Ou mais de dois natais na sua vida. Mas ainda assim, a meia é um acessório que não se pode ignorar se você não gosta de ter chulé ou se você está num dia frio. E elas não gostam de ser ignoradas. E por isso somem. Já imagino um especial de jornalismo investigativo com a voz do Sérgio Chapelen: “Meias, aonde vão, quando voltam, porque se desreproduzem?” “Espera, para tudo um instante: você escreveu ‘desreproduzem’, mesmo?” Sim, escrevi, um neologismo crônico, isso aqui, e pensa comigo que quando um ser se reproduz ele gera ao pelo menos um outro ser semelhante, ele duplica. Não é? pois ao invés de duplicar como toda boa reprodução minimamente exige elas se perdem dos pares então somente o Saci Pererê conseguiria usar esses “pares” de meias fisicamente limitados em 50%. E ainda existe, para aqueles que se preocupam (ou precisam se preocupar) com o visual, a necessidade de se harmonizar (seja por semelhança ou por contraste) as roupas com o acessório obrigatório da temporada: A máscara. Mas de nada adianta sair de casa com uma máscara se você não acha um cinto, pois se suas calças caírem no meio da rua, ainda que de máscara você passará por situações vexatórias. E eu falei do cinto porque passei 10 minutos para achar o meu. Mas eu falei da máscara, né? Então... Máscara usa quando sai de casa, você não sai de casa e.... A máscara vai parar junto com as meias, ou seja: num buraco de minhoca interdimensional. Contudo, as coisas sempre podem piorar, tipo... E quando a máscara some e some junto com a carteira? E quando você precisa usar uma cueca e ela some? Eu nem vou contabilizar as mulheres que geralmente têm o dobro de roupa íntima por causa do sutiã, e nem vou falar do misterioso caso das mulheres que têm que usar calcinha e sutiã combinando, limitando ainda mais a esperança de achar simplesmente algo que possa ser vestido de qualquer jeito. Eu fico imaginando se eu precisasse de sutiã, eu mal consigo combinar meias, imagina combinar a roupa de baixo! Eu tenho (ou tinha, essa quarentena, como disse, tá bem misteriosa em relação ao vestuário doméstico) um par de meias soquetes que usava pra caminhar e malhar, sobretudo. Descobri que uma era da Nike e a outra não tinha marca. E pra mim uma era o par da outra, imagina então se eu ia usar uma calcinha e um sutiã da mesma cor? Eu digo isso porque tenho uma amiga que só pendura uma roupa amarela no varal com um prendedor de roupa igualmente amarelo, se não for da mesma cor ela não consegue colocar no varal. Eu pressuponho que se ela tem esse cuidado no varal deve usar calcinha e sutiã combinando também. Mas por falar em varal... E o ferro de passar? Nem ferro de passar tá passando em nada. Eu estou tentando não enlouquecer, vou me preocupar com o ferro? Nem sei onde tá. Alias, não sei onde está muita coisa, cancelei foi o meu cartão do banco digitando a senha errada porque os números não estavam no canto certo da minha cabeça, decerto! Mas as roupas... Ah!, se pudéssemos ser todos naturistas. Mas, claro, tem coisas que não dá pra fazer pelado, como cozinhar (que é o que aparentemente a maioria das pessoas tem feito). Eu conheço a triste história de um cara, do pinto dele e de uma jarra de café que só não é mais trágica e triste porque envolve o poético orvalho da manhã o que torna tudo mais suave numa narrativa. Até uma queimadura no pinto (acho, porque agora eu não estou no meu lugar de fala, já que nunca queimei o meu). E outra: ainda existem os casos em que encontramos a roupa, mas ela mudou de tamanho, ficou apertada e não nos serve mais. Por que será? Duvido que eu tenha engordado. Mas, ainda assim, é raro, porque, ao que parece, o fato é esse... A roupa não somente desconhece o isolamento dentro da gaveta como, ao que parece, também está roupando as sinapses da gente e desenvolvendo sua própria inteligência artificial. Em breve, mais um conto apocalíptico de 2020: A revolução das roupas! E talvez eu descubra que pior que ganhar meias de presente talvez seja ser enforcado por elas como exemplo para todos os outros seres humanos pararem de deixa-las cheirando a mofo e naftalina.

  • top 7 de curiosidades do início dos quadrinhos: as tirinhas.

    O formato que popularizou as Histórias em Quadrinhos no mundo foi o formato Tira de Jornal. Seu fácil acesso, seu alto poder de síntese e facilidade de compreensão granjearam a atenção, simpatia e afeto de leitores de todas as idades e de todas as classes sociais. Dito isto, listamos a seguir algumas curiosidades a respeito das tiras e seus personagens mais antigos que mostram como a influência dos quadrinhos são intensas na sociedade desde suas origens até os dias de hoje. 7 - O POLÊMICO MARCO ZERO DA HQS (e Tiras): Antes de mais nada é importante dizer que sempre que falamos em marco zero de algo, quase sempre estamos falando de algo polêmico. E com quadrinhos não é diferente. Existe muita discussão sobre se Richard Outcault foi ou não o marco zero (via de regra os brasileiros concordam que tenha sido Angelo Agostini), mas é inegável que de todos os elementos constitutivos das histórias em quadrinhos "modernas", Outcault é quem mais condensa eles (nao todos, mas a maioria). E é por isso que ele entrou para a história dos quadrinhos com o lançamento de seu personagem Yellow Kid, em 1895, no jornal New York World. Este fato é usado como um marco zero para o estudo acadêmico das histórias em quadrinhos, embora seja sabido que existem manifestações bem anteriores que poderiam cumprir igualmente esta função. O Yellow Kid recebeu este nome por que vestia um camisão amarelo — a cor mais fácil de ser impressa naquela época. Eram fins do século XIX e os jornais New York Journal e New York World disputavam mercado, um dos elementos que atraía vendas era justamente as tiras e o criador de Yellow Kid protagonizou a disputa com ambos os lados oferecendo cada vez mais dinheiro pela sua colaboração. Tantas intrigas foram geradas em paralelo a isto que o termo "Yellow Jornalism"; virou sinônimo de Jornalismo sem escrúpulos. No Brasil, em 1959, o jornalista Alberto Dines (jornalista brasileiro conhecido por apresentar o programa de TV Observatório da Imprensa) elaborava a seguinte manchete: "Imprensa amarela leva cineasta ao suicídio", quando o editor sugeriu trocar amarelo por marrom, devido o amarelo ser uma cor muito amena. Assim, no Brasil o termo Jornalismo Amarelo, ou Imprensa Amarela ganhou outra coloração. 6 - O PRIMEIRO PERSONAGEM DOS QUADRINHOS COM PRODUTOS LICENCIADOS : No ano de 1902, trabalhando para o jornal New York Herald, Outcault (o mesmo criador do Yellow Kid) lançou Buster Brown, um pequeno garoto travesso sempre acompanhado de seu cãozinho Tige. Em 1904, aproveitando a popularidade da tira,  negociou o direito de uso de seu personagem para várias empresas, entre elas a Brown Shoe Company que tratou de lançar uma linha de sapatos devidamente nomeada Buster Brown, com isso configurando uma das primeiras práticas de licenciamento de personagens de quadrinhos. 5 - A PRIMEIRA HISTÓRIA EM QUADRINHOS DO BRASIL: O jornalista e ilustrador Angelo Agostini publicou na revista carioca Vida Fluminense: As aventuras de Nhô Quim, em 30 de janeiro 1869. A trama narrava as desventuras de um caipira tentando sobreviver na cidade grande. No seu aniversário de publicação (30 de janeiro) foi instituído pela Associação dos Cartunistas do Brasil o Dia do Quadrinho Nacional. Faça a fineza de não confundir com Dia Nacional dos Quadrinhos, o Dia do Quadrinho Nacional é uma celebração do Quadrinho Brasileiro, a grosso modo: quadrinhos produzidos e publicados no Brasil. Agostini também foi responsável, juntamente com Luiz Gama, pela fundação da revista Diabo Coxo, com conteúdo humorístico ácido e abolicionista. 4 – A PRIMEIRA HEROÍNA DOS QUADRINHOS: Em 1833 nas Aventuras de Zé Caipora, Angelo Agostini apresenta INAIÁ, uma indígena de muita personalidade e de grande força física. A personagem é apontada por alguns historiadores como a primeira heroína de aventura das Histórias em Quadrinhos precedendo Sheena e Mulher-Maravilha em cerca de 100 anos. A tira de Zé Caipora também é considerada precursora do gênero aventura nas histórias em quadrinhos. A estreia de Tarzan nas tiras foi em 1928. As aventuras de Tintin, de Hergè, estrearam em 1929. Claro, claro, que tem a polêmica com Yellow Kid. Mas se levarmos em consideração que a primeira história em quadrinhos do mundo nasce no Brasil com Angelo Agostini, nossa Inaiá fica numa liderança cronológica ainda mais evidente com seu pioneirismo! 3 – O PRIMEIRO SINDICATE DO BRASIL: A primeira agencia a distribuir Tiras e Quadrinhos no Brasil foi a agencia RECORD, fundada em 1940 por Alfredo Machado e Décio de Abreu, nos anos 60 a agencia mudaria o foco de trabalho para tornar-se a Editora Record. Em 1946 surgiria a Agencia Periodista Latino-Americana (APLA), em 1979 mudou o nome para Inca Press e funcionou até 1993. Nos anos 60 surge a CETPA (Cooperativa e Editora de Trabalho de Porto Alegre) que distribuia trabalhos de artistas brasileiros, entre eles: Júlio Shimamoto, Getúlio Delphin e João Mottoni. Ainda nos anos 60, Maurício de Sousa criou seu próprio Syndicate e distribuiu tiras de vários autores, incluindo Shimamoto e Flávio Colin. Até os anos de 1980, 80% das tiras publicadas no Brasil eram estrangeiras. Com a intervenção da Agência Funarte (Fundação Nacional de Artes) sob coordenação de Ziraldo os quadrinhos nacionais ganharam mais espaço. Nos anos 90, o Presidente Collor de Mello decretou o fechamento da agência , que se tornou um empreendimento particular gerido por Ziraldo sob o nome de Agência Pacatatu, o que garantiu 50% dos espaços de tiras com material nacional. 2 – O PRIMEIRO PERSONAGEMDOS QUADRINHOS A SER HOMENAGEADO NUMA ESTÁTUA: O Marinheiro Popeye estreou em 17 de janeiro de 1929 na tira Thimble Theatre. O personagem ganhou tanta popularidade, que o consumo de Espinafre (vegetal que ele ingeria para conferir força sobre-humana) aumentou 33% entre 1931 e 1936. Uma pesquisa de 2010 mostrou que crianças passavam a comer mais espinafre depois de ver desenhos animados do Popeye. Em Cristal City (Texas) a comunidade de cultivadores de espinafre ergueu uma estátua na praça central da cidade em reconhecimento aos serviços prestados por Popeye para a indústria do espinafre. Em Chester (Illinois), cidade natal do criador de Popeye, Elzie Crisler Seagar (E.C. Siagar), há uma outra estátua do personagem. E, na capital mundial do espinafre, Alma (Arkansas), há mais uma estátua no Popeye Park, o local onde ocorre a Feira Anual do Espinafre. 1 – COMO SURGIU O MAIS TRADICIONAL FORMATO DAS HQS: O famoso formato Comicbook, das revista norte-americanas, surgiu à partir de uma experiência do representante de vendas Maxwell Gaines. Ao ver que muitas pessoas adquiriam os jornais apenas para ler as tiras —muitos imigrantes aprenderam a ler e escrever com as tiras por conta do apoio visual e do contexto das cenas— Gaines dobrou os encartes, formato tablóide, e após colocar um adesivo de 10 cents, distribuiu apenas os encartes em algumas bancas. Após verificar a venda espantosa adotou o formato e começou a publicar revistas cujo conteúdo eram os personagens e tiras famosos de jornais. Assim nasceu o formato americano e as primeiras revistas norte-americanas de quadrinhos. JJ Marreiro JJ Marreiro é cartunista, ilustrador, arte-educador, colecionador e pesquisador de quadrinhos. Seu trabalho transita entre o estilo da era de ouro dos quadrinhos, o mangá , o acadêmico e o cartum. Trabalha com humor, quadrinhos institucionais e educacionais e metalinguagem. É fã de Star Trek e criador do blog LaboratórioEspacial.

  • Surtos de Sustos

    Eu estava aqui vendo um anúncio do excelente filme Parasita, de Bong Joon Ho, que, como todos nós sabemos, assustou todo mundo, no melhor sentido da coisa (sim, porque arte também é feita para assustar mesmo) e pensei como já tem alguns anos - talvez quase uma década - que estamos vivendo um surto de cinema sul-coreano e penso como isso é horrível. Não que o cinema sul-coreano seja ruim, muito pelo contrário, posso fazer listas e listas dos Topping Topers of The Top de vários filmes da Coreia do Sul, um país que, como bem sabemos, tem muita história para contar! O que é ruim é justamente o surto. Explico... Quando eu ia numa locadora de filmes antigamente, sempre via uma seção “filmes de arte estrangeiros” e, óbvio, os americanos não estavam lá. Porque, via de regra, só conhecemos filmes estadunidenses e anglófonos de um modo geral. Mas existem os surtos. E essa prática se repete nos catálogos de streaming. De repente, por algum motivo, somos "gentilmente" inundados por uma série de filmes, discos, livros, quadrinhos de algum país ou região do globo que dificilmente chegavam até nós. Eles vêm. E depois vão. Claro que se você é estudante de cinema (ou já trabalha com isso), você tem um acesso mais fácil (ou menos difícil) a cinematografias “não óbvias”. Mas imaginemos a pessoa leiga, que é refém daquilo que é oferecido a ela, que não pesquisa sobre cinema até porque não sabe onde ou como fazê-lo. Vamos pensar num serviço de streaming. Vou dar um exemplo de uma série: a vertiginosa La Casa de Papel. Foi só essa série furar o bloqueio majoritariamente estadunidense que um monte de série espanhola apareceu nos catálogos de streaming. E não somente séries novas como As Telefonistas (que em nada se relaciona com La Casa de Papel além de ser falada em espanhol), mas também séries que já tinham sido lançadas ganharam uma atenção extra, como Vis a Vis ou Merlí (que também pouco tem em comum com as séries citadas além de ser espanhola ou, mais especificamente, catalã). Mas existem outros exemplos. No começo dos anos 2000, o surto foi o do cinema argentino (sobretudo os estrelados por Ricardo Darín, mas não se limitando a eles, como Garagem Olimpo, de 1999, e Prata Queimada, de 2000). Acho que o surto começou oficialmente com o eletrizante e divertidíssimo Nove Rainhas, de Fabián Bielinsky, passou por uma espécie de redescoberta de alguns filmes fabulosos (e de certo modo clássicos) do principal diretor argentino, Fernando Solanas, compreendeu um dos maiores sucessos de Lucrécia Martel (O Pântano, de 2001) e culminou com O Segredo de Seus Olhos, de 2009. E pronto. Alguns filmes, como Relatos Selvagens, de 2014, ainda rompem o fim desse “surto” e chegam aqui. É triste pensar que aqui no Brasil conhecemos tão pouco do nosso principal vizinho, mas ao mesmo tempo é interessante perceber que esse “boom” argentino facilitou também os lançamentos de filmes mexicanos, como Amores Brutos (que “revelou” o ator Gael García Bernal e o diretor Alejandro Gonzáles Iñárritu), O Crime do Padre Amaro, de 2005 (também com Bernal), E Sua Mãe Também de Alfonso Cuarón (outro com Bernal e também com Diego Luna) e pelo menos um filme uruguaio: o Banheiro do Papa, de 2007, dirigido por César Charlone. Outro exemplo: se você se interessar por cinema e estiver, pelo menos, na faixa dos 40, vou fazer um convite a viajar um pouco mais pra trás, porque você deve lembrar que nos anos 90 tivemos, ao menos aqui no Brasil, um surto semelhante: o do cinema iraniano. Era impossível ser uma pessoa descolada sem, no meio de uma roda "cult bacaninha" de conversa, falar sobre Samira Makhmalbaf, Abbas Kiarostami, Jafar Panahi. E embora muitos desses realizadores estivessem de certo modo no seu auge nos anos 90, esse surto permitiu que obras dos anos 70 e 80 de Abbas Kiarostami, por exemplo, fossem revisitadas. Quanto mais "cult bacaninha" se era, mais filmes iranianos você tinha em casa, em VHS. Esse surto foi relativamente bom até para quem não era do Irã, mas estava ali “nas adjacências”, como o diretor tajique Bakhtyar Khudojnazarov, que lançou seu excelente Luna Papa em 1999 (pra mim, simplesmente o filme mais fofo do mundo), e se beneficiou suavemente dessa onda, já que seu filme, uma coprodução internacional inteiramente rodada no Tajiquistão, em muito lembrou os filmes iranianos (sobretudo Gabbeh, de Mohsen Makhmalbaf, pai de Samira Makhmalbaf, lançado em 1995, dado seu realismo fantástico) e era comercializado (junto com alguns filmes afegãos) como sendo iraniano. Sim, porque "iraniano" acabou virando "gênero cinematográfico". Aliás, o filme é do Tajiquistão, mas na capa da cópia que eu tinha havia escrito bem grande: "Cazaquistão". Hoje em dia, se você for conversar com um jovem cinéfilo sobre cinema iraniano, existe uma possibilidade relativamente alta dele não conhecer nenhum filme (claro que existem exceções). Talvez a pessoa conheça Garota Sombria que Caminha na Noite, não exatamente por ser iraniano, mas por fazer parte de um outro surto: filmes independentes de terror. Mas certamente conhecerá muito da cinematografia da Coreia do Sul, que vive seu surto aqui no Brasil e no mundo desde o estopim de Old Boy, de 2003, adaptando uma sanguinária e original história em quadrinhos pro cinema (se encaixando em uma trilogia sobre vingança dirigida por Park Chan-Wook) e talvez um pouco devido a O Hospedeiro, de 2006 (um dos primeiros filmes de Bong Joon Ho). E, claro, não podemos nos esquecer da maciça difusão aqui dos doramas e do k-pop (que não é o “pop normal” anglófono) que contribuíram para esse “surto” de bens simbólicos da cultura pop coreana. Resta saber quando será o próximo susto de surto. Ou surto de sustos. E isso pra mim ficou muito evidente quando me convidaram para participar de uma mesa redonda com um tema altamente vago e altamente amplo: "Cinema Asiático". Num dado momento, depois de um tempo falando sobre o cinema iraniano, fui interpelado com a seguinte pergunta: "mas esses filmes são bons?". É claro que eu disse que eram bons, na verdade, que eram excelentes. Mas fiquei me perguntando a razão daquela pergunta e percebi que estávamos no começo do surto cinematográfico da Coreia do Sul, então, se fosse para falar de cinema "não estadunidense", só tinha espaço para o sul-coreano. Claro que, no momento, não me dei conta disso, mas essa lembrança ficou envolta nesse pequeno incômodo, que somente agora estou processando nesse pequeno texto. O que me lembra, aliás, de uma espécie de “quase surto” de interesse que presenciei em alguns lugares acerca do cinema finlandês dos anos 90, sobretudo os do diretor e roteirista Aki Kaurismäki (suspeito que isso se deu pela semelhança de alguns filmes dele com o cinema dinamarquês da época do Dogma 95, também uma espécie de surto em vários aspectos) e também de um microssurto: o do cinema alemão jovem (veja bem, na época era jovem). Filmes como Corra Lola, Corra!, de 1998 (de Tom Tykwer, que revelou não somente o próprio Tykwer, como a protagonista Franka Potente, cujo sobrenome soava para nós, lusófonos, ainda mais que perfeito para o filme, e Moritz Bleibtreu que, por coincidência, também estrela Luna Papa); Adeus, Lênin! de Wolfgang Becker, primeiro filme de sucesso internacional de Daniel Brühl (que, como todo bom alemão, hoje faz papel de europeu “genérico” e também de vilão em filmes estadunidenses) e que também conta com Chulpan Khamatova (a principal estrela de Luna Papa, que também é uma das minhas atrizes russas prediletas); Edukators (outro com Daniel Brühl); e o Grupo Baader Meinhof, de 2008, que meio que encerra o surto. Bom, mas nem só de cinema vivem os surtos. Eu poderia falar (e vou, mas não agora), por exemplo, sobre o surto de arte japonesa na Holanda e na França da Belle Époque, ou da descoberta das máscaras tribais africanas nos anos 20 por artistas europeus que estavam diante de uma verdadeira novidade da antiguidade. Mas vou citar coisas mais recentes... Se você acompanha a música pop independente, vai lembrar também do surto de bandas escocesas como Travis, Belle & Sebastian ou Franz Ferdinand, que veio na ressaca da enxurrada de bandas de britpop, como Oasis e Blur (percebam mais uma vez como é específico, existe o pop e o BRITpop da década de 90 - e isso porque estou citando os surtos mais "recentes", de 30 anos para cá), ou da onda de música pop experimental e pós-rock da Islândia da metade dos anos 90 até o comecinho da década seguinte (Björk e Sigur Rós), que gerou até o livro de Fabio Massari chamado Rumo à Estação Islândia, lançado em 2001 (cujo título é um trocadilho elegante e óbvio com a edição brasileira de To the Finland Station: A Study in the Writing and Acting of History de Edmund Wilson, lançado aqui como Rumo à Estação Finlândia), um misto de diário de viagem com catálogo fonográfico do país. É claro que existem casos famosos de pessoas que pararam de ouvir Belle & Sebastian porque ela virou uma banda conhecida e, portanto, perdeu a graça e o charme de ser “diferentona”. Mas a questão é que depois que o surto passa, voltamos a consumir mais do mesmo. Como se aquele país só tivesse feito filmes naquele período, como se o Irã não fizesse filmes desde 1921 e a Coreia do Sul desde 1930. Como se determinado país só tivesse lançado bandas naquele período, ou seja, tivesse toda sua produção cultural circunscrita a um punhado de anos ao passo que a indústria cultural anglófona não necessita de surtos, já que tem um fluxo constante. E é essa a tristeza: aparentemente, para conhecermos algo fora do nosso radar, é preciso que alguma obra fure a bolha para que outras peguem carona nela. E quem determina isso? Óbvio que é a obsessão por lucros de produtoras e distribuidoras que pegam carona nas mais diversas ondas que o mercado de bens simbólicos proporciona. Mas depender disso para abrir nossa mente é complicado. Tive alunos do curso de cinema que se restringiam ao que era exibido em salas de cinema (não havia ainda a febre do "streaming") e deixaram de conhecer diversos filmes que adorariam conhecer se pesquisassem mais, se enfiassem o nariz onde não “deveriam” e foi quando comecei a emprestar muitos "DVDs" do meu próprio acervo didático (e a perdê-los na sequência), o que incluía, a propósito, os primeiros filmes do próprio Bong Joon Ho e outros diretores e diretoras sul-coreanas. Mas pensemos agora na condição de um desafio: de quantos surtos precisaremos para descobrir, por exemplo, o rock da Turquia? As histórias em quadrinhos da Malásia? Os artistas plásticos da África do Sul? A nostálgica e linda Tezeta da Etiópia? A dança cênica do Congo? E as comidas? Quantos surtos de restaurantes de comidas típicas internacionais vem e vão e não ficam? E o que acontece depois do surto? As coisas deixam de existir ou deixam apenas de serem exibidas? É aí que entra a reflexão sobre quem ou o quê (no caso de ser um algoritmo) está escolhendo o que oferecer para você consumir. A "curadoria" (bem entre aspas mesmo, pois não quero me referir ao sentido curatorial mais erudito, conceitual ou estético que usamos normalmente no meio artístico e acadêmico, mas sim algo mais simplório, mais "bruto") de coisas e listas de coisas que valem a pena conhecer. Claro que cada lista é estritamente pessoal, mas aqui, na condição de um dos editores desta paradoxalmente humilde e pretensiosa revista - almanaque em forma de site, convidamos você para que entre e se esbalde, pois mostrar coisas legais para pessoas ainda mais legais é uma de nossas missões, uma de nossas funções e que abraçamos com alegria. E se a troca for interessante, é provável que um dia você esteja fazendo suas próprias listas para a gente da Arara Neon. Boas (re)descobertas!

  • Qui Nem Jiló

    É a minha música favorita do Luiz Gonzaga e do Humberto Teixeira. Quando fomos gravar o nosso primeiro disco, "Interiores", que tinha toda uma temática de falar do interior (do país e da gente - depois vou escrever sobre os discos dos Argonautas), só me ocorreu reinterpretar ela e "João e Maria", de Sivuca e Chico. Fiz esse arranjo para violão, acordeão, baixo, percussão, voz e 4 flautas, pois o disco foi feito com uma maravilhosa ajuda do quarteto "Ad Libitum", coordenado pela minha mãe. Gosto muito dessa gravação.

  • É possível a poesia após o colapso?

    Theodor Adorno, filósofo, sociólogo e esteta judeu, em 1949, nos afronta com a pergunta: “É possível a poesia após Auschwitz?”. Para ele, escrever poesia após o horror do mais famoso campo de concentração nazista da II Guerra Mundial era um ato bárbaro. O Nazismo promoveu, como todos nós sabemos, um dos maiores genocídios (senão o maior) de nossa história, matando principalmente judeus, mas nem de longe limitando-se a eles. Ciganos, homossexuais, testemunhas de Jeová e quem mais desse um mínimo de "motivo" era enviado aos diversos campos de concentração do país. Famílias foram destroçadas, dignidades massacradas... Crianças sofreram o que sequer deveriam sonhar. Poucos foram os que saíram de lá com vida. Auschwitz está ali como um trauma na nossa memória coletiva. Não pode ser apagado. Isso porque falo do trauma mais famoso, mas na própria II Guerra sobram exemplos. O holocausto sino-coreano promovido pelos japoneses, pouco citado entre nós, é igualmente pavoroso, bastando mencionar seu pior massacre, “O Estupro de Nanquim”, em que todas as mulheres e meninas da cidade de Nanquim sofreram torturas sexuais enquanto os homens eram decapitados. Como ser arrebatado em uma poesia sabendo que o poeta é um demônio em potencial? Como baixar a guarda para obras de arte adentrarem em nosso espírito nos tornando vulneráveis? Richard Wagner, por ser o fundo musical preferido dos campos de concentração alemães, até hoje muito dificilmente é executado por orquestras em Israel. O trauma pelo rompimento de laços éticos suplanta os valores estéticos e transformadores de uma obra. Mas, ainda assim, quantos poetas viveram e morreram após Auschwitz e quantos ainda não estão por vir? Ana Mae Barbosa, principal arteducadora de nosso país, diz que, se a arte não fosse importante, ela simplesmente não existiria desde os tempos das cavernas, sobrevivendo a toda e qualquer forma de menosprezo. A arte sempre existirá, a despeito da clareza acerca de sua função. Mas a pergunta é: que tipo de arte necessitamos hoje? Arte é linguagem e nós somos frutos de nossa linguagem, nosso meio fala através de nós (e não o contrário), de modo que os assuntos de nossa arte são os assuntos de nosso universo. E então atualizo a pergunta de Adorno: é possível ainda fazer arte após esse universo se tornar o mais visível colapso de nossa civilização, apresentando, diariamente, holocaustos diversos ao redor do mundo? É possível a pintura depois da guerra na Síria, do esfacelamento humano da Iugoslávia ou do massacre de Hutus por Tutsis em Ruanda? É possível a arte depois de um garoto de cinco anos prantear o assassinato do pai diante de si? É possível a dança depois das chacinas de nossa cidade, do assassinato de Marielle, de Chico Mendes e da irmã Dorothy? Depois da escravidão de nossos negros, da falência diária de nossos direitos humanos que nos chacina, estupra, molesta, assedia ou nos assalta todos os dias? É possível a música enquanto o machismo permanece ferindo mulheres, crianças, homossexuais, transgêneros, homens fora da curva? É possível a escultura durante nossa corrupção? É possível o cinema diante do nariz quebrado de professores a mando de políticos que nos agridem todos os dias? O teatro durante os assassinatos de profissionais de saúde que trabalham em áreas de risco? A resposta é sim, é possível e necessário. E até mais que isso, pois arrisco dizer que, mesmo durante grandes tragédias, existem breves momentos de alívio proporcionados pela arte. Tanto que Picasso transformou a tragédia do bombardeio à cidade de Guernica, completamente destruída em 1937 durante a Guerra Civil Espanhola, naquilo que talvez seja sua pintura mais famosa, a obra homônima à cidade. Há quem conte que um oficial alemão da SS nazista, ao ver o quadro no momento da vernissage perguntou a Picasso “o senhor fez isso?” ao que ele respondeu “não, foi o senhor”. A ideia não é modificar a arte, mas nos modificarmos para perceber aquilo que está à nossa volta. Nossa arte pode ser descompromissada (diretamente), mas nós não. Uma arte engajada, mas não engajada em partidos, como manda o senso comum - até porque o Partido Nazista tinha sua arte engajada -, pois isso é irrelevante, inútil e violento. Precisamos do engajamento com nossas coragens, com nossas dignidades que tínhamos antes do nosso colapso. Não creio que a arte vá salvar nosso país, acho que já estamos todos condenados. Mas, mesmo diante da morte, a escrita ainda é possível. Ainda que, a exemplo desta coluna, ela se finde com poucas certezas, muito silêncio, nenhuma esperança ou conclusão além dessa: A arte após Auschwitz é uma barbaridade. Sejamos bárbaros. A civilidade não nos pertence mais.

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A Arara Neon é um blog sobre artes, ideias, música clássica e muito mais. De Fortaleza, Ceará, Brasil.

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