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352 itens encontrados para ""

  • O Coração de Chopin

    Tafofobia. É bem possível que você nunca tenha ouvido falar nessa palavra, mas ela designa o medo irracional de ser enterrado vivo. E esse, partindo da minha própria tafofobia (que está sob controle), deve ser um medo bastante comum. Frédéric François Chopin, polônes da cidade de Żelazowa Wola, nascido em 1810, considerado um dos maiores compositores para piano e um dos maiores pianistas da história, sofria dessa fobia. Se você nunca ouviu Chopin, você precisa ouvir. Se você já ouviu Chopin, não fez mais que a sua obrigação. Mas a tafofobia afetou a vida de Chopin de uma maneira bastante particular. Ele faleceu aos 39 anos, em 17 de outubro de 1849, de causas que até o momento são discutidas, mas que indícios levam a crer que o que o fez perecer foram efeitos colaterais da tuberculose. Em vida, solicitou à sua irmã mais velha, Ludwika, que, quando deixasse esse mundo, lhe fosse retirado o coração, para que não corresse o risco de ser enterrado vivo. E assim foi feito. Seu coração foi retirado e colocado dentro de uma urna de cristal, que foi preenchida com conhaque para a preservação do órgão. A urna foi selada e colocada dentro de uma caixa de madeira. A relíquia contendo o coração de Chopin sobreviveu a duas guerras mundiais, sendo roubada pelo exército alemão durante a destruição de Varsóvia na Segunda Guerra Mundial. Atualmente a urna com o coração do grande pianista está lacrada dentro de um dos pilares da Igreja da Santa Cruz, em Varsóvia, adornado com a inscrição de uma passagem do Evangelho de Mateus: “Onde seu tesouro está, aí estará também seu coração.” (Mateus, 6:21) Também atendendo a um desejo seu, o corpo de Chopin repousa no cemitério Père-Lachaise, em Paris, famoso por proporcionar morada final a outras celebridades como Honoré de Balzac, Oscar Wilde, Marcel Proust, Maria Callas, Édith Piaf, Jim Morrison, entre outros. *** A foto que ilustra o topo deste texto é a única fotografia conhecida de Frédéric Chopin, provavelmente feita por Louis-Auguste Bisson em 1849. *** Sugestões de obras para conhecer Frédéric Chopin: Waltz in D-Flat Major, Op. 64, N° 1, “Minute Waltz” Polonaise N° 6 in A-Flat Major, Op. 53, “Heroic” Waltz in E-Flat Major, Op. 18, “Grand Valse Brilliante” LEANDRO KRINDGES é Técnico Químico de profissão, licenciado em Biologia por paixão, fã de Foo Fighters a Belchior e de tirinhas, especialmente Peanuts. Sempre teve curiosidade em saber o que se passava por trás das músicas, e essa busca se tornou um hobby. Tecladista da Banda Villa Rock, arranha também violão e guitarra. Aprendeu a gostar de ler depois do Kindle.

  • As meninas do fim do mundo

    Como se estivesse sitiada e à mira profusa de milhares de substâncias tóxicas capazes de constranger as páginas dos livros de geografia e suas descrições da atmosfera, esta cidade a sudeste da terra brasilis amanheceu coberta de fumaça, cinza e assustadora como um salão de caldeiras - à beira da explosão - de um navio a vapor do século XIX. Então eu deixei de sair à varanda e de abrir as janelas, emudecida diante da visão do fim do mundo que está para acontecer de dentro para fora desta redoma, globo de fuligem onde existimos presos, mas tudo em vão: um compromisso me chamou à rua. Coloquei a máscara, pinguei colírio nos olhos, mas o cheiro e a acidez da morte não respeitam tecidos nem soluções oftálmicas. A respiração ia torta como a caminhada, e os olhos ardiam dum fumo invisível, empoeirados do inconveniente que é ainda estar vivo num ano de anúncios incapazes de acompanhar o passo humano da destruição. Ergui os olhos para o céu, surpreendida com meu próprio ímpeto de coragem, adivinhando formas de aviões perdidos entre as nuvens adoecedoras, desculpando-me em voz baixa com os pássaros e todo tempo elaborando pedidos de perdão por ter nascido de espécie tão má, arauto da morte e da extinção. Então fui subtraindo os segundos e os passos da conta total e desconhecida da vida, observando o colorido dos grafites que estão desbotando, descobrindo algum ramo verde e solitário rompendo o asfalto, calculando pontos de referência até o meu destino final e reparando, outra vez, que as árvores não balançam mais. Duas meninas, tão jovens, tão bonitas!, usando batom e jeans apertado, atravessaram meu caminho, cheirosas e com risadas sonoras, tagarelando empolgadas sobre algum assunto importante ao começo de suas adolescências, sacudindo seus cabelos que certamente teriam brilhado ao sol, pudessem seus raios trespassar aquela imensidão escura. Ai, as meninas, tão jovens, tão bonitas!, levando suas máscaras nas mãos e ignorando o ocaso de todas as coisas, fizeram despertar em mim uma inveja que me arrancou lágrimas dos olhos queimados, consolando-os, acidentalmente, da sua dor. E eu quis também ter uma amiga ao meu lado, nós duas soltas em pleno passeio, perfumadas e com roupas escolhidas de véspera, rumo a qualquer final de dia ignorante e feliz. Olhei para trás e esqueci a respiração por um pouco, alguns segundos só, sabendo que precisaria daquela última imagem para poder escrever, para vir até estas linhas e elaborar esta crônica, o coração rasgado e suplicante por um único dia ignorante e feliz, vinte e quatro horas de absoluto desconhecimento da sujidade do mundo, os motores afumados interrompidos, o pensamento leve e os sorrisos cheios de todos os significados felizes e de significado nenhum, pois apenas sorrisos. Vão, meninas, eu pensei, vão com os pés no chão e sem olhar para o céu. Aconteça o que acontecer, não olhem. Não hoje, não nesta tarde, não nesta noite. Para que não seja o caso de terem a consciência assaltada e de algum comentário distrai-las do riso irresponsável e egoísta de dentes descobertos, um riso que eu tanto quis. Amanhã, quem sabe. Kah Dantas Kah Dantas é cearense, mestra em literatura comparada, professora da rede pública de ensino e autora do livro autobiográfico “Boca de Cachorro Louco” (2016) e do livro de contos eróticos “Orgasmo Santo” (2020). Gosta de escrever, cometer o pecado da carne e comer docinhos.

  • Papo de Arara: Entrevista com Liduino Pitombeira

    Do Liduino eu lembro desde que lembro de alguma coisa. Ele, minha mãe, meu pai, Maria de Cavalcanti e muitoso outros formavam o Syntagma, grupo especializado em música antiga (medieval, renascentista e barroca) misturada com música nordestina. O grupo ensaiava aqui em casa, e esses ensaios eram mágicos. Claro que a gente, eu, meus irmãos e os filhos da Duda, que é como a gente conhece a Maria de Cavalcanti, e sempre vinham aos ensaios, sabíamos de cor as peças que eles tocavam. Vocês acreditam que eu cresci com um cravo em casa? Nessa foto tem um piano de armário, encostado na parede, um cravo, bombos legueros, violão e várias flautas doces. O barbudo é o Liduino. Muuuuitos anos depois ele vai fazer doutorado nos EUA e, quando volta, implementa o Curso de Composicão na Faculdade de Música da Universidade Estadual do Ceará (UECE). Eu me torno aluno dele aprendo tanta coisa!... Liduino é um prodígio. Gênio! O compositor mais bem sucedido do Ceará e um dos mais bem sucedidos do Brasil, nesse século XXI. Tocado por conjuntos nos Estados Unidos e na Europa, e por toda orquestra respeitada do Brasil, sua obra a gente pode ter certeza que vai durar e ser estudada por séculos. Mesmo na era do obscuro, sempre terá alguém pra admirar e valorizar a obra do nosso entrevistado de hoje. No final da entrevista coloquei as fotos com as legendas que ele mesmo me mandou, são importantes, não deixe de vê-las. Professor, conte-nos um pouco da sua trajetória de aprendizado? Desde onde começou seu interesse pela música. O interesse iniciou bastante cedo: não consigo precisar a idade exata, mas a memória me leva a algo em torno de oito anos de idade, embora eu tenha registro fotográfico com instrumento musical aos 3 anos de idade, em 1965 (Figura 1). Entre a data dessa fotografia e o primeiro violão de verdade (um ‘Ao Rei dos Violões’ com cordas de aço, comprado em uma rápida viagem à Fortaleza no início de 1974, que ainda conservo e que me deixaram grossos calos esverdeados por mais de quinze anos) passaram-se nove anos. Em 1974, iniciei uma frequência regular às atividades da Igreja Católica, em Russas, no interior do Ceará, e a música, especialmente a que era executada pelo violão e o harmônio, me despertou um interesse real em tocar um instrumento. Várias forças confluíram para que isso se tornasse realidade. O primeiro fator fundamental que me possibilitou um contato direto com o violão foi a amizade com a família Santiago: Luíza Gomes de Lima e Antônio Santiago de Lima e os filhos Constantino, Teógenes, Paulo, Helena, Cosette e Lourdes. Nessa família, a mãe iniciara os filhos na arte do violão desde cedo e todos eram capazes de executar o instrumento com exceção do Constantino (mais inclinado às ciências e teologia: ele construiu seu primeiro rádio e seu primeiro relógio, por exemplo, e tinha participação ativa nas missas de domingo). Paulo Santiago, atualmente conhecido como Paulinho di Tarso, aos 7 anos (Figura 3), foi meu primeiro professor de música através do violão. Nessa mesma época, um bancário que estava morando temporariamente em Russas, Antônio Militão de Lima e que frequentava a casa da minha vizinha, onde todas as noites havia longas rodas de conversa com cadeiras do lado de fora, viu meu interesse na música e se prontificou a me ensinar os princípios de notação musical e solfejo. Os exercícios baseados em um princípio simples – seguir as notas associadas às linhas e espaços do pentagrama – gerava algumas situações de solfejo complexas para um estágio inicial (como o último exemplo da Figura 2). O Cônego Pedro de Alcântara Araújo, padre nascido em Granja (CE) e vigário da Paróquia de Nossa Senhora do Rosário nessa época, também foi uma inspiração durante os primeiros anos. Músico de formação erudita na Alemanha, com excelente leitura à primeira vista, Pedro de Alcântara (Figura 4) era compositor e intelectual e sempre orientava a pequena camerata que participava das missas solenes (violino, clarinete, violões e harmônio). Curiosamente nesse mesmo período, alguns músicos iniciaram um processo de reativação da banda de rock do Colégio Flávio Marcílio. Eu assistia aos ensaios e pela primeira vez pude ver de perto e experimentar a guitarra e o contrabaixo elétricos. Essa rápida iniciação nesses instrumentos me possibilitou fundar com outros colegas de Escola Técnica (hoje IF), logo, em seguida à mudança da minha família para Fortaleza (1977) o grupo Inhamuns (Figura 5). Em Fortaleza, após participar do Inhamuns, da Banda Pesquisa (1980), e de fundar a Banda Oficina (Figura 6) com Ocelo Mendonça, Dennis Bentes e Fábio Castro (1982), realizei estudos de harmonia com a professora Vanda Ribeiro Costa (de 1985 a 1991), participei da fundação do Syntagma, o qual integrei de 1986 a 1997, trabalhei com jingles e arranjos e cursei Licenciatura em Música na UECE (1986 a 1996). Entre 1991 e 1998, fui aluno de composição do compositor argentino, radicado na Paraíba, José Alberto Kaplan (Figura 7), o que significaria viagens mensais à cidade de João Pessoa, nos finais de semana. Entre o segundo semestre de 1996 e o primeiro semestre de 1998 fui professor substituto de harmonia, análise, contraponto e organologia na UECE, o que funcionou como uma preparação para o mestrado que se iniciaria no segundo semestre de 1998, na Louisiana State University (LSU), graças a uma bolsa ‘Assistantship’ concedida pelo meu orientador, o compositor Dinos Constantinides (Figura 8). Logo após o mestrado (2000), ingressei no doutorado (2000-2004) na mesma universidade. No último período, já estava dando aulas de composição na graduação e pós-graduação e, ao concluir o doutorado, atuei como professor de composição na LSU, do segundo semestre de 2004 ao primeiro semestre de 2006, quando retornei ao Brasil. Depois de uma rápida passagem por Fortaleza, onde desenvolvi pesquisa junto ao CNPq/FUNCAP (2007-2008) e ministrei aulas na UECE, fui contratado pela Universidade Federal da Paraíba (2008) e, em seguida, Universidade Federal de Campina Grande (2009). Desde o segundo semestre de 2014, sou professor de composição da Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro, na graduação e pós-graduação e integro o grupo de pesquisa MusMat. O Syntagma fazia e ainda faz um trabalho interessante de expor pra gente a ponte que existe entre a música do nordeste e a música antiga, especialmente pelas raízes médio-orientais. Vocês fizeram um estudo específico sobre isso? A pesquisa que se desenrolava no Syntagma, durante o período em que participei, era mais aplicada do que de base, ou seja, não resultava em artigos de caráter reflexivo para publicação. Porém, nós tínhamos muito contato com repertório, partituras, instrumentos medievais e renascentistas. Chegamos a preparar um guia de escuta de música antiga e um curso sobre instrumentos medievais e renascentistas. Igualmente do lado nordestino, fizemos contato com a produção Armorial e a ideia de experimentar transcrições das obras de Luiz Gonzaga para a formação do grupo foi uma inovação. Uma pesquisa profunda nesse sentido exigiria uma grande equipe e um financiamento que talvez nunca será disponível. E sobre as técnicas de “interpretação historicamente informada”? O Syntagma não enveredou por essa linha – misturávamos saltério, violão e tambor de reisado em uma mesma obra. Em que ponto você percebeu que poderia viver da composição? Nunca houve essa percepção. É praticamente impossível viver de composição, especialmente no Brasil, principalmente para os compositores que lidam com um tipo de música que não é associada com o entretenimento. A maior parte dos compositores sobrevive, então, com os trabalhos de produção, performance (mais raramente) ou com o ensino, seja da composição ou de outras disciplinas relacionadas à música. Curiosamente a composição alimenta as duas grandes áreas da música: a musicologia (sistemática e histórica) e a performance. Sem obras não há o que analisar ou o que tocar. Mais curiosamente ainda, a composição parece ser vista por alguns como um elemento secundário, quase como um lazer, algo que só se deve fazer nas horas vagas, nas noites e nos fins de semana. Assim, um compositor fica encurralado entre a academia, que em muitas de suas vertentes não considera a composição como pesquisa (e esse movimento cresce a cada dia), e o mercado, que não vê a composição como entretenimento. Claro que nos países do hemisfério norte, os compositores podem ter uma situação melhor, graças aos grants e às conexões com grupos de música contemporânea patrocinados pelos fundos de cultura, somente para os que optam por trabalhar com uma estética bem específica, uma nova prática comum, que congrega basicamente quatro vertentes e suas hibridações: o espectralismo francês, a ‘new complexity’ inglesa, as massas sonoras polonesas, e o indeterminismo americano. Os compositores que ainda trabalham com parâmetros como alturas e durações têm menos condições de sobrevivência. Como está hoje o cenário para compositoras? Você se engaja nessas discussões? As melhores masterclasses de composição das quais participei foram ministradas pelas compositoras Chen Yi e Joan Tower, creio que por conta das argumentações claras, da imersão na obra e compreensão do meu estilo, e das sugestões construtivas que impactaram positivamente a composição de obras posteriores. As mulheres vêm sendo prejudicadas em todas as áreas do conhecimento há mais de dois mil anos. Posso observar isso de perto especialmente na composição. Infelizmente, os movimentos em direção à correção dessa anomalia ainda não são suficientes para promover uma maior inserção das mulheres na composição, fato que certamente ocasionaria um progresso inimaginável para a área. Fale-nos um pouco da sua rotina. Você já me disse que compunha todo dia e que compor era um hábito como uma ginástica. O violonista, se passa algumas semanas sem tocar, a musculatura atrofia. O que, principalmente, “atrofia” quando se para de compor? Sim, preciso compor todo dia. Minha rotina é, no entanto, conduzida pelas atividades da universidade: preparação e realização de aulas, pesquisa (leitura de artigos e livros, elaboração de artigos), atividades de extensão (atualmente tenho dois projetos de extensão na UFRJ: o Concurso de Composição Minerva e o Bate-papo sobre composição), tarefas burocráticas, orientações, reuniões (milhares delas) etc. Mas sempre é possível viabilizar fragmentos durante o dia e a noite, e é nessas horas que desenvolvo meus projetos composicionais. O que atrofia em um compositor, se ele não compõe, é o mesmo que atrofia em um escritor: a técnica criativa, com a qual se pode conceber estruturas coerentes, complexas e com múltiplos significados. Há disciplinas acadêmicas ou escolas de composição que te fascinam? As pesquisas que relacionam música e matemática, o espectralismo francês (pela possibilidade de geração de harmonias inusitadas e ricas), as pesquisas sobre o ritmo e o jazz. Existe algum estilo musical que não te agrade, que não fale nada pra você, mas ainda assim você respeite? E o contrário? Algo que te desperte emoções e que goste de ouvir, mas que, em uma avaliação consciente, não ache interessante. Essa pergunta parece sugerir um par de dicotomias que hipoteticamente produziria quatro tipos de música, segundo a perspectiva particular de um determinado ouvinte, ao considerar uma música agradável versus desagradável e interessante versus desinteressante. Como ouvinte, compositor e pesquisador tomo contato com todos os tipos de música sem restrições, na busca de ampliar minhas perspectivas e praticar a diversidade musical. É possível uma convivência pacífica entre os vários tipos de música. Você tem instrumentos favoritos para compor? Ou formações? Gosto de todos os instrumentos. Algumas combinações exigem mais atenção do compositor na hora de escrever: piano e violão, flauta e trompete, por exemplo. Formações prediletas: quinteto de sopros, quarteto de cordas, piano + instrumento solista. Você ainda se sente arrebatado quando ouve alguma coisa? Quando ouço uma nova canção do Guinga, uma boa interpretação de Webern, Boulez, Dutilleux, ou Camargo Guarnieri, uma trilha sonora do Bernard Hermann, um arranjo vocal do Jacob Collier, um Prelúdio de Claudio Santoro ou um improviso do Michel Pipoquinha, Joe Pass ou Pat Metheny. Vê jovens compositores do Brasil e do Ceará despontando? Em nível de Brasil sim. Vários alunos talentosos de composição passaram pelas minhas aulas, as chamadas das Bienais da Funarte são sempre bem concorridas e há vários compositores brasileiros de altíssimo nível ensinando no exterior. Estou um pouco afastado no cenário cultural do Ceará. Recentemente vi uma trilha sonora do João Victor Barroso (O Barco, de Petrus Cariry) e gostei bastante do resultado – é um compositor excelente e atualizado com as técnicas composicionais. Fale sobre a obra que escolheu para tocar aqui. O Concerto para Piano e Orquestra N.2, Op.210 (2016) foi encomenda da Funarte para a XXII Bienal de Música Brasileira Contemporânea, realizada em 2017, e dedicada à pianista Maria Di Cavalcanti. A obra em três movimentos — Sério, Dolente, Animado — foi construída a partir de materiais sonoros que se interconectam ora de maneira rigorosamente planejada, ora de maneira livre. Eu trabalho atualmente com duas abordagens composicionais distintas: uma intimamente ligada à pesquisa, tem relação com a teoria dos sistemas composicionais (incluindo a modelagem sistêmica) e se vincula à ideia de realizar um planejamento rigoroso da obra previamente ao ato composicional propriamente dito. Os planejamentos da maioria das obras realizadas através dessa abordagem estão documentados em artigos científicos (a maior parte acessível via repositório Academia). Outra abordagem composicional, à qual se vinculam a maioria das obras no meu catálogo, pode ser associada à multiplicidade de técnicas, estéticas e fontes que são o ponto de partida para a construção musical. Desta forma, uma nova obra pode iniciar com um gesto harmônico improvisado a partir de qual se derivam todos os materiais; outros pontos de partida podem ser uma pintura, um poema, uma silhueta de paisagem, um plano arquitetônico, um fractal etc. Esse Concerto pertence a essa segunda categoria de abordagem composicional. Assim um detalhamento completo do planejamento composicional dessa obra estaria além dos objetivos desta entrevista, e que seria mais adequado a um artigo de natureza técnica. Mesmo assim, posso fornecer algumas ideias musicais que deram origem à obra, por exemplo, a série dodecafônica que é anunciada de forma interrompida pelo tutti orquestral e é, logo em seguida, executada integralmente pelas cordas graves. Essa interrupção é feita pelo piano que ressalta o intervalo de quarta justa, uma característica intervalar importante da série. O segundo movimento, por exemplo, foi motivado pelo poliacorde (Ré maior + Fá menor) apresentado logo no início pelo piano (Figura 10). A série dodecafônica apresentada no primeiro movimento também retorna em alguns momentos do segundo movimento. O rigor na arquitetura da obra e a complexidade dos materiais se diluem gradualmente à medida em que os movimentos são apresentados, indo de um uso mais sistemático de sonoridades mais densas até um uso mais intuitivo de elementos mais tradicionais. Figura 1. Liduino Pitombeira aos 3 anos de idade (1965) com um violão de plástico. As cordas de nylon eram tangidas com palitos de fósforo queimados. Figura 2. Primeira aula de notação musical e solfejo com Antônio Militão de Lima, em 1974 Figura 3. Paulinho di Tarso em 2018. Figura 4. Padre Pedro de Alcântara Araújo, em 1988. Figura 5. Inhamuns (1978): Nicodemos Façanha (contrabaixo), Fernando Figueiredo (bateria), Poty Fontenelle (pífano), Liduino Pitombeira (guitarra elétrica) e Alcântara Pimentel (violão e voz). Figura 6. Banda Oficina I: Fábio Castro, Liduino Pitombeira, Dennis Bentes e Ocelo Mendonça, em 1983. Figura 7. Liduino Pitombeira, José Alberto Kaplan e Maria Di Cavalcanti, em 1991. Figura 8. Vinni Frizzo, Dinos Constantinides e Liduino Pitombeira, por ocasião da cerimônia de entrega do prêmio ‘MTNA Shepherd Composer of the Year’, em 2004, em Kansas City, Estados Unidos. Figura 9. Gestos iniciais do Concerto para Piano e Orquestra N.2, Op. 210 (2016) de Liduino Pitombeira. Embora a obra seja para orquestra sinfônica e piano, por questões de espaço, a figura mostra apenas a seção de cordas e o piano. Figura 10. Acorde inicial do segundo movimento do Concerto para Piano e Orquestra N.2, Op. 210 (2016) de Liduino Pitombeira.

  • Argonautas e Edu Lobo - Meia Noite

    Mais uma grande aventura dos Argonautas. Gravar com Edu Lobo foi uma emoção muito grande. Ele é um dos meus maiores ídolos. Sou só eu que me arrepio quando ele começa a cantar? Edu escolheu cantar Meia Noite, no disco que fizemos em homenagem a ele - Argonautas Interpretam Edu Lobo. Edu Lobo - voz Rafael Torres - violão e arranjo Ayrton Pessoa - piano Ednar Pinho - baixo Meia Noite (Edu Lobo e Chico Buarque) Se a noite não tem fundo O mar perde valor Opaco é o fim do mundo Pra qualquer navegador. Que perde o oriente E entra em expirais E topa pela frente um contingente Que ele já deixou pra trás. Os soluços dobram tão iguais Seus rivais, seus irmãos Seu navio carregado de ideais Que foram escorrendo feito grãos. As estrelas que não voltam nunca mais E um oceano Pra lavar as mãos.

  • A Permuta dos Santos, de Edu Lobo e Chico Buarque, com Argonautas e Mônica Salmaso

    Mais uma música do disco "Argonautas Interpretam Edu Lobo". Quando convidamos a Mônica Salmaso para participar de um show com a gente, em 2018, demos a ela total liberdade pra escolher as músicas que quisesse. A única de Edu Lobo e, salvo engano, a única do Chico Buarque também, foi essa: "A Permuta dos Santos". Daí, quando fomos gravar um disco com as músicas deles, reaproveitamos o arranjo e fomos mais uma vez beneficiados pela boa vontade da convidada. É um luxo. A única coisa que ela pediu foi que eu tocasse um Lá bem nítido entre a introdução e sua entrada, isso no show. Tirando isso, "você pode colocar as dissonâncias que quiser". É claro que esse Lá era pra ela se situar harmonicamente de imediato, já que não teríamos muitos ensaios, mas eu tenho certeza que se eu tocasse um Ré Bemol, ainda assim ela entrava certo (por falar nisso, na gravação, vocês nem vão ouvir esse Lá, substituí por um efeito de sinos). Essa música fala do curioso costume de "castigar" os santos e trocá-los de igreja até que venha a chuva. No Songbook (série de livros com as partituras de várias lendas da MPB produzidos por Almir Chediak) do Chico Buarque, tem uma breve descrição de Câmara Cascudo sobre esse hábito. Diz o autor: "[...] Outro recurso muito eficaz, o mais eficaz de todos eles, consiste em "contrariar" os santos. [...] levava-se para ali o S. Sebastião da igreja local, trazendo-se, em troca, [...], a imagem do Senhor do Bonfim, tudo processionalmente, com rezas e cânticos. Enquanto não chovia os santos não voltavam para seus lugares." Dicionário do Folclore Brasileiro, de Luís da Câmara Cascudo Voz: Mônica Salmaso Violão e arranjo: Rafael Torres Acordeão: Ayrton Pessoa Baixo: Ednar Pinho Percussão: Igor Ribeiro Bateria: Luiz Orsano Escute o disco em: www.grupoargonautas.com.br A Permuta dos Santos (Edu Lobo e Chico Buarque) São José de porcelana vai morar Na matriz da Imaculada Conceição O bom José desalojado pode agora despertar E acudir os seus fiéis sem terra, sem trabalho e pão Vai a virgem de alabastro Conceição Na 'carroça' para a Igreja do Bonfim A Conceição incomodada 'de escutar' nossa oração Nos livrar da seca, da enxurrada e da estação ruim Bom Jesus de luz neon sai do Bonfim Pra capela de São Carlos Borromeu O Bom Jesus contrariado deve se lembrar enfim De mandar o tempo de fartura que nos prometeu Borromeu pedra-sabão vai pro altar Pertencente à estrela-mãe de Nazaré A Nazaré vai 'de mudança' pro mosteiro de São João E o Evangelista pra basílica de São José Mas se a vida mesmo assim não melhorar Os beatos vão largar a boa-fé E as paróquias com seus santos, tudo fora de lugar Santo que quiser voltar pra casa, só se for a pé

  • Cordel: O rabequeiro do brejo e o trinado do diabo

    Giuseppe Tartini encontrou-se com o Diabo ainda no séc. XVIII, bem antes do advento do romantismo. Muito embora Paganini tenha se consagrado por sua virtuose, excentricidade e pela história do pacto mefistofélico, em sua época a transgressão já estava há muito instaurada no meio artístico; o “incidente de Teplitz” já tinha acontecido. Foi em sonho que o “cão” apareceu para o violinista barroco e ofereceu-se a ele como gênio. Qualquer que fosse o pedido feito, num piscar de olhos era atendido. Até que, após muitos desejos concedidos, o amo viu o violino na cabeceira da cama e ordenou: “toca algo para mim”. Arco e violino em mãos, a criatura onírica executou a mais sublime das sonatas que o músico ouvira em toda sua vida. Impressionante! O poder daquela música lhe fora tão inebriante que ele acabou adormecendo, embalado no mundo dos sonhos para acordar novamente no chão dos homens. Correu para registrar em pauta o que ouvira antes que a divina memória lhe traísse. Resultado: estava composta sua Magnum Opus, uma das mais belas e conhecidas peças para violino de toda a história, o célebre “Trinado do diabo”. Quem dorme em rede e não é primogênito certamente já teve o desprazer de ser acordado aos puxões e sacudidas de punhos. É sempre um susto, e mais ainda quando quem puxa é o Diabo. Assim acordou Gilberto José Pedro, o Gilzé, tocador de rabeca dos confins do Brejo do Reguengado. O moço era agricultor e costumava "passar a égua no bode durante as folgas". Tinha fama no lugar e até ganhava algum para tocar em festas. Porém, para o seu desprazer, apareceu o fole e tomou de conta de tudo, rebaixando a rabequinha ao status de antiguidade. Perdeu o gosto de tocar e viveu cabisbaixo até que, certa noite, recebeu a visita que lhe renderia sucesso e restauraria o prestígio ao seu instrumento e a ele a criatividade. Inspirado pelo fantástico episódio vivido por Tartini e pela tradição da rabeca nordestina foi escrito o cordel “O rabequeiro do Brejo e o trinado do Diabo”, obra faustiana de Eduardo de Menezes Macedo, poeta que, enquanto aguarda o sonho que o fará um Dante, um Leandro, segue escrevendo seus versos teimosos. Às estrofes! O RABEQUEIRO DO BREJO E O TRINADO DO DIABO Eduardo Macedo 152 estrofes Após quase cem passados Pouca coisa inda me resta; As mãos já não firmam mais, A vista pra nada presta, As pernas são varas secas, A boca tudo detesta. Mas já fui bom vivedor, Quando rapaz tive glória. Meus dedos eram ligeiros, Na rabeca fiz história. Em quantos sambas toquei Não puxo pela memória! Por Gilberto José Pedro Dos Santos sou batizado, Mas pelo povo fui sempre De Gilzé Pedro chamado; O famoso rabequeiro Do Brejo do Reguengado. Não existia sanfona Quando eu era molecote. Pé-de-bode, concertina, Era coisa de alto dote. A rabeca é quem reinava Em valsa, baião e xote. Em qualquer ocasião Onde existia uma dança Eu olhava o tocador E me enchia de esperança De um dia poder tocar. Guardo isso na lembrança. Sonhava em ser rabequeiro Pra fazer dançar a gente. Achava que todo músico Detinha algo diferente. Até que o destino deu-me Certa vez esse presente. Lembro muito bem que pai, Num ano bom de fartura, Chegou um dia da feira Com legume, arroz, mistura, Mais um pacote de pano, Bem cosido na costura. Papai vinha troviscado, O que logo mãe notou. Quando ele abriu o pacote E de dentro retirou Uma rabeca, ligeiro A confusão se instaurou: − Além de tomar cachaça Pelo mundo tu investe Dinheiro em breguesso que Não se come nem se veste! Quer tocar pra ir nos bailes, Cachaceiro, fi' da peste?! Pai, sem responder a ela, Puxou, calmo, uma banqueta, Pôs a rabeca no peito, Empunhou sua vareta, Danou-se a riscar as cordas Co’os fios da crina preta. Foi um ganido tão grande Tão rouco e tão desmedido Que pai logo desistiu. Pela cana combalido, Encostou ela de lado, Saiu coçando o ouvido. Caiu no fundo da rede, Ferrou em sono profundo. Com raiva, mamãe saiu Pra casa do vô Raimundo. Resultado: fiquei só Mais a rabeca no mundo! Passei a égua no bode Sem ter tocado jamais E tirei um som tão limpo, Friccionando os animais Que desde então a rabeca Eu mesmo não soltei mais. No começo era escondido Que tocava, sem ter perto Pai nem mãe, porém um dia Fui por eles descoberto. No fim das contas acharam Que eu ia no rumo certo. Eu detinha algum talento, Muito embora encabulado. Passei a ter meus horários Entre a faina do roçado Para treinar na bichinha, Por pai e mãe abonado. Fui aprendendo sozinho. Quando havia uma função Em casamento, batismo, Reisado, renovação, Eu só reparava em quem Tinha a rabeca na mão. Com as butucas nos dedos Que corriam pelo braço, Eu ia gravando os toques – Melodias e compasso. Chegava em casa eu pegava A minha e mandava o aço. Nisso, cresci afamado: “Gilzé Pedro Rabequeiro”. Me formei tocador sem Assinar o nome inteiro. Toquei meu primeiro samba Como se diz, “nos cueiro”. O tempo passou voando; Pai morreu, mãe foi morar Com vovô, no que eu fiquei Na casa, pra pastorar. Adulto, já, nessa altura Ganhava o meu pra tocar. Foi quando, pro meu desastre, Apareceu concertina. O povo se enfeitiçou De maneira tão mofina Que eu despenquei como quem Cai num buraco sem quina. Ninguém mais queria ouvir A rabeca − era cafona! Falavam somente em fole De pé-de-bode e sanfona. Nessa prosa até os velhos Foram pegando carona. Eu fiquei desconsolado, Pois pra viver só de roça É preciso chuva boa, Com seca não há quem possa. Afora o prazer que eu tinha De tocar numa palhoça. Tardezinha, certa feita, Eu voltava do plantio E quando adentrei em casa Senti um grande vazio. Até mesmo o rancho velho Achei que estava mais frio. Comi angu de farinha Com queijo e feijão maduro. Acendi o candeeiro Porque já ficava escuro E me vi ali sozinho, Triste, sem ninguém e duro. Abri o baú de mãe, Lancei mão da rabequinha, Me sentei no tamborete, Afinei bem a bichinha, Toquei um samba completo Pro público que ali não tinha. Terminei, soltei o arco, Peguei ela e disse assim: − Então, minha companheira, Fale o que será de mim. Vamos findar na miséria Dessa solidão sem fim? − Me inspira com qualquer coisa, Ritmo novo, algum segredo Pra gente voltar aos sambas E sair desse degredo. Nem que seja pra tocar No inferno eu topo, sem medo! Olhando pra ela eu disse Com muito ressentimento Tudo aquilo e de repente Em casa soprou um vento Que me arrepiou o couro E toldou meu pensamento. Deixei ela sobre a mesa, Carreguei o candeeiro Pra camarinha e deitei Na minha rede ligeiro. Fiquei a me balançar Olhando às telhas, cabreiro. Acabei adormecendo Mesmo de candeia acesa. Mas o sono durou pouco, Qual não foi minha surpresa: Receber, de madrugada, Visita da profundeza! Acordei com uns repuxos Na rede e quando a visão Foi se desanuviando Eu vi bem de frente o Cão, Em pé, segurando os punhos, Sacudindo com a mão. Foi um susto tão medonho Que nem consegui gritar. Puxei os lados da rede Para nela me ocultar, Foi quando ele foi falando Pra eu não me apavorar. − Seu Gilberto José Pedro, Não tema, mantenha a calma. Não vim pra lhe fazer mal, Guarde sossegada a alma. Vim aqui dar bom alvitre E não promover-lhe trauma. − Tenho aqui sua rabeca E vou lhe ensinar um toque Que duvido que aos dançantes Grande calor não provoque. Portanto preste atenção. Repare, se desentoque! Fiquei no fundo da rede Me tremendo, apavorado, Até que a rabeca entrou Com o seu timbre arranhado Chorando um baião que nunca Antes eu tinha escutado. Nem precisava zabumba Pois havia um tal bordão Troando feito pancada Que se dá em percussão, Ao passo que ressoava Qual baixo de acordeão. As notas do fraseado, Cada qual era uma cor. Mais parecia um jardim Todo enfeitado de flor. Aos poucos tomei coragem De olhar para o tocador. Tinha uma perna escorada No tamborete de couro. Nas costas um par de asas Parecidas de besouro. Um rabo se balançava Na ponta do cabelouro. Peludo que nem um bode, Daqueles avermelhados, Ele tocava a rabeca De braços bem abaixados Pros fios da barba às cordas Não findarem enlinhados. Com metade da cabeça Fora da rede eu olhava E na medida em que ouvia A música me enfeitiçava – Enquanto os olhos fechavam A boca se escancarava. Dormi sob a melodia Da rabeca do diabo. Dormi que passei direto... A manhã já dava cabo Quando mãe bateu na porta Com um saco de quiabo. “Bença mãe”, abri a porta, No que ela foi perguntando: − Agora deu pra passar A manhã toda roncando? Estás doente ou depois De véi tá vagabundando? − Não é isso, minha velha! Como ontem teve frieza Eu, que não me dou com frio, De noite senti moleza. Dê aqui esses quiabos, Venha se sentar na mesa. Me sentindo atordoado Pela noite conturbada, Lembrando do “pesadelo” Da toada endiabrada, Tomei um susto medonho Quando vi mamãe sentada. Pois sobre a mesa não tinha Nada mais do que a toalha E eu não tinha bebido Coisa que o juízo empalha. (Hoje ainda, sem cachaça, A minha mente não falha!) Bem lembrava onde eu havia Depositado o instrumento Antes de seguir ao quarto. Lá voltei, pro meu tormento, Avistei junto da rede A rabequinha no assento. Eu até quis começar A ter medo mas, aí, Pensei no baião fantástico Que na madrugada ouvi. Peguei a rabeca, o arco E para a sala saí. – Lá vem mais essa desgraça! Tu devia era trocar Essa bicha numa enxada E por inverno rezar. Deus o livre de preguiça… Disse mãe a resmungar. Com a rabequinha em punho Comecei fazer esboço Dos toques que recordava. Logo fui, sem alvoroço, Da casca à polpa e ligeiro Tinha alcançado o caroço! Toquei com desenvoltura Toda aquela melodia. Recordei nota por nota Tudo que o bicho fazia. Quando me dei conta mãe Era quem se sacudia. Foi um baião desgramado Da cachorra da moléstia! Tocado com maestria (Digo sem falsa modéstia) De fazer velha casar E vaqueiro dar a véstia. Na noite daquele dia Ia haver o casamento De Josué Marrequeiro Com Zefinha Livramento; Engomei meu paletó, Rapei a barba a contento. Logo após a cerimônia Apontei em Josué. Não havia começado Ainda o arrasta-pé. Quem veio me receber Foi Francisco Punaré. Punaré era cunhado De Josué Marrequeiro, Casado com sua irmã, Cabra bom e verdadeiro. Esse, sim, prestigiava Ao ver um bom rabequeiro. – Gilzé, quanto tempo tem Que não te encontro em folguedo? Tenho saudade de ouvir Tu tocando esse brinquedo. Há tempos só vejo gente Batendo em botão com dedo. – Meu compadre, Punaré, Os tempos estão mudados. O povo só quer dançar Na base desses teclados. Só querem saber de foles Mesmo que estejam furados. Francisco me replicou Dizendo: − Pra lá com isso! Eu até que escuto um fole, Pois jamais nego serviço. Mas prefiro a rabequinha, Você bem que sabe disso. Ficamos a prosear Enquanto não começava O baile, por consequência Do fole que não chegava. Foi quando o noivo me viu E foi até onde estava. – Boa noite, Gilzé Pedro. Esteja em casa, à vontade. Sua presença agradeço E peço, por caridade, Toque pro povo dançar Que já há necessidade. Nisso, não contei pipoca: Desensaquei a bichinha, Na égua esfreguei o breu, Afinei ela certinha E peguei a tocar nela Uma mazurca que eu tinha. Houve tanta animação Que me senti num enterro! Pensei então “a mazurca Deve ter sido meu erro. Agora vou caprichar Pra acabar esse desterro”. Ajeitei ela no peito E danei a tocar xote Achando que os dançadores Iam sair no pinote, Mas o povo estava frio Que só mesmo água de pote. Não fosse o pé de Francisco Movimento não havia. Ao fim da segunda música Apenas ele aplaudia. Era a vez de usar a carta Derradeira que trazia. Olhei para o zabumbeiro E sem maiores demoras Sapequei o tal baião Como alguém que dá de esporas. Gastei tudo enquanto tinha Sem pensar nos noves foras. O povo foi levantando Um a um, cada casal Foi preenchendo o terreiro, Sacudindo o areal. De repente, era só dança Que se via no quintal. Pra você ver como foi: Eu, que andava desprezado, Sem aparecer em samba, Toquei feito um condenado Uma solfa atrás da outra, Pra parente e convidado. A coisa foi tão dum jeito Que quase hora e meia após Chegou o homem do fole E se deu − aqui pra nós − Que ninguém mais quis deixar Ele tocar seus forrós. Fui pra casa, aquele dia, Depois de quebrar a barra. A minha satisfação Foi algo que ninguém narra. Recuperei o prestígio Na noite daquela farra. Com muito sono nos olhos, O apurado na carteira, Cheguei em casa cansado, Desenrolei minha esteira, Deitei, agarrei no sono Pensando na brincadeira. Eu, que vinha duma noite De descanso interrompido Que desembocou em outra Sem nenhum sono dormido, Tirei direto, emendando, Sem ver o sol engolido. Quando foi na madrugada Acordei de supetão. Me levantei duma vez Em total escuridão. Quando acendi a candeia Lá estava, de novo, o cão! – Gilberto José, és rocha, Só não tem nada com santo! – Disse ele e caiu no riso Ao perceber meu espanto – Se acalme e vá se sentando Nesse banco aí no canto. – És mesmo “pedra noventa”, Nunca tive aluno igual. Gostei, aprendeu a música De maneira magistral. Tocou que caiu de novo No gosto do pessoal. – Seu talento é inconteste, Porém, o meu é maior, De maneira que consigo Te fazer tocar melhor. Com meus toques e macetes Tu não derrama suor. – Vamos, senta, sem receio, Eu já disse pra que vim. Hoje lhe dou outra aula, Basta reparar em mim, Que teu tempo de penúria Agora chegou ao fim. Ele pegou a rabeca E começou a tocar A mazurca que compus De forma espetacular, Mudando coisas que eu Jamais ia imaginar. Na sequência, o mesmo xote Do dia do casamento Ele interpretou também, Mas dando novo ornamento. Os floreados completos Bem guardei no pensamento. Mas deu-se que um sono forte Foi tomando minha mente Ao passo que ele tocava, Como houve anteriormente. Quando eu ia adormecendo Ainda ouvi, fracamente: − Dorme agora, rabequeiro, Amanhã acordarás Com maior desenvoltura. Pra frente sempre andarás Se depender dos auxílios Desse amigo, Satanás! − Dorme em paz. Em quatro noites Volto pra te oferecer O serviço mais completo Que outro não pode prover Por preço proporcional Ao prestígio que vais ter. Despertei com tais palavras Ecoando em meus ouvidos, Sabendo que o capiroto Sempre cobra aos envolvidos Com ele a tormenta eterna No fogo dos desvalidos. Durante o dia completo O medo me dominou, Porém, na boca da noite, Quando a rabeca chorou Naquela base do cão A minha ideia mudou. Estava tudo mais claro, Mais leve e descomplicado. Me sentia como nunca, Estava desembestado! Tocava divinamente No escuro e de olho fechado. Enquanto eu tocava em casa Apareceu Punaré Me saudando dessa forma: − Louvado seja, Gilzé! O homem que, pro meu gosto, Pôs a rabeca de pé! − Pra sempre seja louvado! Só porque sou seu amigo Não queira me engabelar Dizendo coisa comigo. Porém, um dia, quem sabe... Isso é coisa que persigo. Respondi feito galhofa, Oferecendo a cadeira. Ele disse: − ‘Tá de prosa, Mas eu não fiz brincadeira; Depois de ontem, no casório, Tu não sobra pra quem queira. − Quarta agora, Santo Antônio, Vai ter fogueira em Seu Bel. Ele mandou vir lhe ver Pra cumprir o seu papel, Porque “Gilzé na rabeca É doutor sem ter anel”. − Inda mandou perguntar A quanto sai a tocada, Pois somente passar pires Pra você não vale nada. Eita, prestígio da gota! Eita, moral desgraçada! Foi grande minha alegria. Finalmente a situação Dava sinais de melhora, Chovia no meu torrão! Estabeleci o preço E firmei minha intenção. Entre a rabeca e a roça Alternei até a festa. Na véspera visitei mãe, Levei quantia modesta Prometendo lhe dar mais Um dia após a seresta. Pedi a bença e voltei Pra minha casa sozinho. No trajeto eu refleti, Pensando pelo caminho Se acaso não estaria Sendo por demais mesquinho. Chegado o dia em Seu Bel Fiz o samba pegar fogo! Dançou gente nova e velha, Foi o maior desafogo. Dançou solteiro e casado, Até galinha com gogo! Mas o que me atentou mesmo Foi a beleza sem par Da prima de Josué Que, no terreiro a dançar, Vira e mexe aproximava Fixando em mim seu olhar. Seu nome era Deolinda. Com ela ainda dancei Duas solfas, visto que Minha rabeca passei À mão de outro rabequeiro Que no baile eu encontrei. Quando a festa terminou Recebi meu pagamento E já saí contratado Para fazer outro evento Logo no fim de semana, No sítio de Antõe Sarmento. Eu não tinha me esquecido Que existia um compromisso Marcado na madrugada. Exatamente por isso Tomei umas três lapadas Para enfrentar o serviço. Ao sair, por precaução, Deixei a candeia acesa E de longe percebi Dentro de casa clareza. Entrei espiando tudo, Pus a rabeca na mesa. Pela casa nem sinal, Tudo estava inalterado. Nisso, puxei a banqueta E quando estava sentado Vi que o saco da rabeca Parecia esfumaçado. Pra trás pinotei de susto, Quase que me desaprumo. A fumaça se adensou, Surgiu do meio do fumo O diabo, de olhos de fogo Espiando no meu rumo. Com um tremido das asas Ele espalhou a fumaça. Batendo palmas pra mim Disse: − Não há quem desfaça A glória daquele que Escolhe por onde passa. – Tua fama aqui no Brejo, Como vês, recuperaste. Hoje comanda teus passos Por caminho que trilhaste. Só a ti cabe ir além, Ou parar, caso te baste. – Comigo tens garantia De não te faltar engenho, Pois sendo teu professor Terei sempre grande empenho Em te ensinar novas técnicas, Aumentar teu desempenho. – O preço, deves saber, Pro teu sucesso e conforto Durante a vida completa, Só pagas depois de morto: Tocarás, pra todo o sempre, No meu território torto! Ao cabo dessas palavras A cana perdeu efeito, Me arrepiei por completo, Batucou forte meu peito, Logo imaginei que estava Já na casa dos sem jeito. Eu permaneci calado, Com medo e muito confuso. O coração galopava, A cabeça em parafuso Rodopiava e não vinha Um pensamento concluso. Ele então foi à rabeca E começou a tocar. Soou um xote arretado, Pareceu familiar, Até que enfim relembrei De Deolinda a dançar. Era a música que há pouco Tinha o colega tocado Para que nós dois dançássemos De umbigo e rosto colado. De repente, ao pensar nela, Me senti encorajado. Respirei fundo e falei: – Minha vida tem seguido Muito boa nesses dias. Reencontrei o sentido, Alegria e fé. Portanto Diga qual o prometido. – Muito bem, tu tens razão. Que não fique duvidoso! O nosso pacto prevê Que tu serás virtuoso E viverás com ventura Até que sejas idoso. – O resto da mocidade Gastarás intensamente, Gozarás maturidade Da maneira mais decente. Sempre serás mencionado Na boca da tua gente. Assim dizendo esperou Até que lhe dei resposta: – De viver feliz, amado, Sei que não há quem não gosta. Porém, a vela se apaga Depois que a velhice encosta. – Então todos têm em mente Descansar repouso eterno, Viver toda a eternidade Com nosso Senhor superno. Nesse caso eu ficarei Pra sempre preso no inferno? – Tudo fica ao teu arbítrio, Pondera sobre o que tem. Pra que eu venha é só querer; Vou-me embora, pensa bem: Pois presos vivemos todos, Eu vivo preso também! Ao concluir tais palavras Tornou a desintegrar Em fumaça e pelos efes Da rabeca o vi entrar Até que não restou fumo Espalhado pelo ar. Chegado o dia da festa Parti para Antõe Sarmento Com a rabeca na bolsa, Deolinda no pensamento, Uma frieza nas mãos E no peito desalento. Ia pensando na vida, Sobre o que tinha mudado, Sobre os derradeiros dias, Como tinham melhorado; Voltei a ser “Gilzé Pedro Do Brejo do Reguengado”! Ao chegar fui recebido Com diversas saudações. Todos ali me aclamavam Dando felicitações. Com pouco foi Punaré Chegando com seus bordões. − Chegue aqui, compadre velho, Vamos pintar a caneca! Venha logo e desensaque Essa bendita rabeca, Bote a bicha pra tocar Que hoje a fogueira é de breca! Eu, que estava meio mole, Não correspondi ao nível, No que ele foi me dizendo: − Se alegre, será possível! Tenho pra lhe dar notícia Muito mais do que aprazível. − Espie só: lá no canto, Toda vestida de flor, Deolinda da Marreca Perfumadinha de amor. ‘Tão dizendo que ela veio No rastro do tocador! − Oxente, tá com conversa!? Resmunguei tentando, em vão, Esconder o meu semblante De gozo e satisfação. − Deixe disso e vamos logo Tomar uma com limão. No caminho da barraca Das bebidas ele disse: − Deolinda contou a Rosa E pediu que não abrisse. Mas essa deu com a língua Que eu queria que tu visse. − Rosa me contou que ela Declarou-se apaixonada E pra onde tu seguisse Ela iria preparada Pra ganhar teu coração Até findar-se casada! Eu tinha ganhado a noite Com a nova de Francisco! Tomei foi logo uma terça Que fiquei meio trovisco. Antes de ir pro terreiro Me acendi que só corisco. Dei um giro de cabeça Até mirar Deolinda Que àquela noite luzia Com uma beleza infinda. Era flor cujo botão Não desabrochara ainda. No sentido de ganhá-la Me mandei para a função Sentindo um fogo no espírito, Cheio de disposição. Peguei a rabeca velha E descasquei um baião. Botei pra voar as bandas Logo na primeira dança Que torei bem duas cordas Se não me falha a lembrança. A poeira subiu alta Que encobriu a vizinhança. Coloquei de volta as cordas E danei a xotear. Com solfa detrás de solfa O povo pôs-se a dançar. Mas no terreiro eu só via Deolinda a transitar. Depois duma hora e pouco Da rabeca fazer samba Parei para descansar Moído, de perna bamba. Botaram pra me render Um tocador carimbamba. Dedilhando um pé-de-bode O cabra tocou insosso. Como eu tinha o que fazer Sem piscar lhe dei endosso. Parti para Deolinda Sem provocar alvoroço. Cheguei sereno qual quê! Puxei ela para a dança. No passo dum xote manso Fui ganhando confiança. Ficamos juntos, dançando, Até o fim da festança. Aquela noite mudou Para sempre a minha história. Tornei-me mais confiante, Ganhei coragem notória, Passei a ser mais disposto, Melhorei minha oratória. Uns poucos dias depois O meu desejo chamou O professor das profundas, Que logo me visitou. Ainda melhor que antes A rabeca ele tocou. Aprendi diversas técnicas, Descobri muito segredo. Lembro dum tal de “piscado” Tocado apenas de dedo. Tinha também o trinado, Bonito de fazer medo! Assim fui tangendo a fama Desde o Brejo até pra fora. Quando a sanfona chegou Ganhou tudo, sem demora, Mas eu não sofri derrota Nem vi chegar minha hora. Continuei a tocar Nas fogueiras, casamentos... Inclusive, Deolinda Deu-me os melhores momentos. De filhos, netos, bisnetos, Foram trinta e três rebentos. Mas voltemos alguns anos, Vou findar minha ventura; Com o tempo fui sentindo Cada vez mais amargura. Quando pensava no inferno Eu padecia de agrura. Já na época madura, Com mulher, filhos, saúde, Satisfeito com a fama Que me deu minha virtude, Diante daquele acordo Me contentar eu não pude. Só pensava numa forma De quebrar aquele encanto. Quando vinha a agonia Eu me escondia num canto E, sem ninguém reparar, Deixava correr o pranto. Imagine uma prisão Feita de castigo e dor Onde, pela vida eterna, Sofreria o pecador? Pelo menos foi assim Que ensinou Nosso Senhor. E temendo ficar preso Foi que tive uma visão: Lembrei que quando ele vinha Me ensinar nova lição Emergia da rabeca Pra fazer aparição. Terminada a explicação Novamente penetrava Pelos efes do instrumento E por lá mesmo ficava. Imaginei “a rabeca Era que o pacto guardava”. Preparei uma coivara Lá na extrema do terreno, Levei quem me acompanhou Desde quando era pequeno. Era tarde, o sol se punha E o vento soprava ameno. Foi sentindo um grande aperto Que a rabequinha deitei Em cima das varas secas E por fim fogo ateei. Antes da chama subir Pra casa, triste, rumei. Fui me sentar lá no alpendre Pra ver o fogo pegar. Súbito uma labareda Começou a crepitar Que os estralos, de tão altos, Fizeram foi me assombrar. Subiram chamas vermelhas Muito desproporcionais Às varas que lá haviam E rajadas infernais De vento bateram portas, Assanharam animais. Deolinda saiu pra fora, Com o meu braço agarrou-se Mas tão rápido quanto veio A ventania acabou-se. As chamas também baixaram Até que o fogo apagou-se. Dali pra frente eu senti Que estava desobrigado. Comprei um novo instrumento Bonito, bem acabado, Mas fraco em termo de som – Não dava aquele trinado! Segui sendo contratado Pra fazer “forró” e festa, Sem nunca alcançar tocar Como o de chifre na testa. Foi mais tocador que eu, Isso a mim ninguém contesta. Uma saudade amuada Vez em quando ainda vem. Foi um grande aprendizado, Coisa que só poucos tem. Não fosse essa experiência Eu hoje seria alguém? G ozei a vida dum modo I nofensivo e direito. U sei o que tinha em mãos, S em nunca fazer malfeito E se você me maldiz P elas escolhas que fiz É por puro preconceito. T ermina aqui meu relato, A qui finda a narração. R ecordei da minha vida T ocando pelo sertão. I nda hoje a mocidade N o galope da saudade I nvade meu coração. Fortaleza, junho de 2016. Eduardo de Menezes Macedo é poeta, xilógrafo e compositor cearense. Nascido na capital alencarina em 1978 e filho de pais interioranos, faz dos versos cordelísticos instrumento para cantar e entalhar o sertão que carrega na alma. Autor de diversos títulos, premiado pelo ministério da cultura em 2010 e, mais recentemente, vencedor do concurso literário do PAIC 2017 com o livro “A fantástica peleja entre Bode Ioiô e Boi Mansinho”, brande suas armas contra geradores eólicos pela honra da musa poética do cordel brasileiro.

  • resenha: a vegetariana de Han Kang

    “O que será que se passa por trás desses olhos? Que tipo de terror, ira, dor ou inferno, que ela desconhece?” A Vegetariana, da escritora sul-coreana Han Kang é o primeiro livro da autora publicado em seu país. Segundo a própria Hang Kang, ele surgiu da necessidade de explorar as outras facetas do conto The Fruit of My Wife ou O Fruto da Minha Esposa (em tradução livre), também da autora. O conto fala sobre uma mulher que para de se alimentar e se transforma em planta para, logo em seguida, se tornar uma árvore que recebe os cuidados do marido. A autora afirmou em entrevistas que, mesmo após o conto publicado, ela ainda se sentia intrigada pela personagem e, portanto escreveu a novela A Vegetariana para tentar encontrar respostas e preencher as lacunas que ficaram abertas. É difícil encaixar A Vegetariana em um gênero específico, não há elementos fantásticos ou outros que o caracterizem como um horror: trata-se de uma ficção com um alto teor de conflitos psicológicos. O livro é dividido em três partes, em cada uma delas, o marido, o cunhado e a irmã recontam a experiência de conviver com Yeonghye, uma mulher que, após um sonho enigmático, anuncia que decidiu se tornar vegetariana. A decisão que parece simples é recebida pela família de Yeonghye com certa dose de exasperação. As reações exageradas vão escalonando à medida que a protagonista se separa da realidade, e o vegetarianismo é apenas um passo do seu processo que evolui até Yeonghye parar de ingerir alimentos e de se manter asseada. Cada estágio do seu processo vai descortinando as rachaduras da família, expondo casamentos infelizes, traumas de infância e relacionamentos abusivos. Como as narrativas possuem perspectivas limitadas e raramente ouvimos Yeonghye, o que resta ao leitor são as percepções dos personagens através de narrativas que em algumas vezes soam dúbias, afinal não estamos falando de narradores confiáveis aqui. Talvez seja esta a beleza de A Vegetariana, o motivo pelo qual foi premiado com o Man Book International Prize, a história repleta de camadas, vai se desdobrando aos nossos olhos, transbordando tantos significados e simbologias que é difícil ter certeza se o livro será decodificado após a leitura. O vegetarianismo de Yeonghye é literal, mas carrega consigo uma rebeldia contra o status quo de uma sociedade tradicionalista. Ao quebrar uma convenção familiar a protagonista está rompendo não apenas com hábitos, mas também com a submissão ao marido, que a vê como uma mulher “adequada”, e também expõe a estranha obsessão que o cunhado sente por ela, revelando que a vida da irmã — a personagem aparentemente mais centrada da trama — também não é tão perfeita. O livro trata de assuntos delicados para o público, com histórias que giram em torno de violência contra a mulher, abuso sexual e até o direito de acabar com a própria vida. Não preciso dizer que tenho apreço por esse tipo de livro. A história que, a princípio, pode soar simples, é intrincada e deixa no leitor o desejo de compreender o motivo pelo qual Yeonghye não quer mais estar entre nós. A Vegetariana, Han Kang Publicado no Brasil pela @todavialivros Tradução: Jae Hyung Woo Fabiana Ferraz é escritora, autora do conto “A Mulher e o Vento”, finalista do III Prêmio ABERST na Categoria Narrativa Curta de Terror. Os gêneros pelos quais se aventura são: Terror Psicológico, Fantasia Obscura, Mistério e Ficção Histórica. Fabiana também é Co-Fundadora do Clube de Escrita Sorocaba. Resenha Revisada por: Francisco Nogueira

  • TERRITÓRIO MARGINAL #05

    O Homem com uma Dor. Um quadrinho de Vitor Batista. Vitor Batista: é cartunista, designer e arquiteto, nasceu em Barbalha (CE) em meados de 1981, acredita nas três partes da filosofia universal e fica puto quando confundem ele com um gringo. Curadoria de Quadrinhos: Nílbio Thé e Isabelle Prado

  • papo de arara: Entrevista com verônica oliveira

    Texto: Nílbio Thé Colaboração: Hannah Moreira Verônica Oliveira. No meu celular, o contato dela está salvo como "Verônica Faxineira Hipster": Nome, profissão (ou ex-profissão, já que ela está em fase de transição) e adjetivo. No mar cibernético de influenciadores de falsidades, pessoas que fingem que a vida é maravilhosa como uma propaganda de margarina (que todos sabemos, só faz mal pra saúde, tanto a margarina como a propaganda), Verônica consegue brilhar justamente por sua autenticidade e por mostrar que não é perfeita. Parafraseando Vinícius de Moraes, se todo digital influencer fosse como ela, existiria verdade no mundo, verdade que ninguém vê. Por e-mail e mensagens de áudio no WhatsApp, Verônica nos respondeu no meio do corre que é sua vida (como a de muitas pessoas, sobretudo mulheres trabalhadoras e mães solo) e com o aditivo de estar mais famosa a cada dia (o que faz com que talvez você já tenha ouvido falar dela) pelas suas aparições em inúmeros programas de TV. A última que vi, logo depois dela nos conceder a entrevista, foi um vídeo no qual ela desabafa sobre como as pessoas pressupõem que ela não é inteligente pelo fato dela ser faxineira e se surpreendem ao saber que é bilíngue, e também tenta rebater "acusações" de que ela "glamorizava o serviço doméstico" (certamente gente que não tem o que fazer além de encher o saco das pessoas). Daí a gente se falou e ela estava assustada e, em meio a gargalhadas, comentou comigo algo como "Nílbio, desculpa, mas tem duas mil mensagens diretas para mim no meu Instagram". Dois dias depois perguntei se ela ainda estava preocupada com isso de tentar responder mensagens e ela disse "Agora não, porque tem cinco mil!" e mais gargalhadas. Atualmente, no Instagram, ela tem por volta de 300 mil seguidores. Vamos à entrevista. Arara: Qual foi o lampejo que te motivou a iniciar no ramo da faxina e onde você já trabalhou (ou tentou trabalhar) antes? Verônica: Sempre trabalhei como operadora de telemarketing, mas na última empresa onde trabalhei meu salário era baixo demais, um salário mínimo, e eu tenho filhos, não era viável. Depois de uma crise depressiva motivada pela dificuldade financeira e depois de limpar a casa de uma amiga e ver o quanto ela se sentiu satisfeita, decidi que a faxina seria uma forma de recomeçar. Como surgiu o perfil @faxinaboa? Conta um pouco sobre sua trajetória profissional, o que te trouxe até aqui? Para conseguir clientes, decidi fazer um post no meu Facebook pessoal e esse post viralizou. Era uma propaganda inspirada em referências de cultura pop, que é algo que me define demais, e as pessoas queriam me adicionar no perfil pessoal e não curti a ideia hahaha então criei uma página para separar um pouco as coisas, mas não tinha planejado me tornar uma criadora de conteúdo. Quando você percebeu que o Faxina Boa deu certo (ou que está dando certo)? No dia em que uma seguidora disse que passou a se valorizar enquanto trabalhadora doméstica após ler os meus conteúdos, entendi que tinha um grande sentido naquilo que eu estava fazendo, que vai para além dos números e da grana. Como você lida com discriminação e elitismo na sua vida? Muitas vezes eu rebato e discuto ali no momento, mas é cansativo e não é em todo momento que estou a fim de educar e explicar coisas, e acabo relevando, apesar de saber que não é o ideal. Mas tem alguma história engraçada decorrente de um bom relacionamento com clientes? Por exemplo, um dia cheguei em casa, era adolescente, e minha mãe estava varrendo a casa loucamente. Eu perguntei por que ela estava fazendo isso, já que a nossa faxineira, a Celiene, ia no dia seguinte. Ela disse que é porque a casa estava tão bagunçada que estava com vergonha da nossa faxineira. Hahahaha Mas tem... tem muita gente que tem vergonha e limpa a casa antes e a pessoa fala assim “eu tenho vergonha da faxineira pensar que eu sou porca!”. Porra, véio! Em compensação, quando a pessoa pede desculpa e fala “ai, meu Deus, desculpa, a casa tá uma zona”, e quando eu chegava a casa nunca tava tão ruim. Mas quando a pessoa não fala nada... Aí é o caos! Hahahahaha De tudo o que aconteceu com você, o que você pode nos contar sobre o que mais te marcou de bom e ruim? Com certeza de bom foi, ao saber que eu nunca tinha viajado de avião e era um grande sonho, uma cliente me chamar para fazer faxina no RJ e pagar a viagem, foi um momento marcante pra mim! De ruim, creio que as situações onde as pessoas acreditam que sejam melhores que eu apenas pela função que eu estava exercendo. Você também começou a palestrar. Como deu início a essa carreira de palestrante e o que você tinha em mente quando começou? O convite para a primeira palestra me pareceu muito surreal, eu não fazia ideia de como era e logo de cara foi um evento na sede do Twitter Brasil e o line-up do evento estava repleto de gente bacana e eu achei que não ia conseguir hahahahahaha mas no final foi muito bom e hoje já fiz dezenas de palestras pelo país e sou muito feliz em poder contar minha trajetória pras pessoas. Se você pudesse dar um conselho para as meninas que estão passando por uma situação difícil na profissão, qual seria? Não desistir, não abaixar a cabeça e, principalmente, se esforçar em estar sempre atualizada, fazendo o seu trabalho da melhor forma possível. Os seus maiores desafios atualmente, quais são? Como está sua agenda, sua rotina de trabalho atualmente? Como você está administrando o Faxina Boa? Hoje em dia eu lido com a exposição, meu maior desafio. Tenho feito trabalhos com marcas: consultorias, publicidade e não faço mais o agenciamento de faxineiras: não é minha pegada ser empresária, fazer pagamentos e trabalhos burocráticos. Você dá dicas de limpeza e faxina em suas redes sociais, qual a maior dificuldade? Qual a principal dúvida das pessoas? A minha dificuldade é sempre a cozinha, azulejo engordurado é de matar hahahahaha mas as pessoas pedem muita ajuda com a limpeza do banheiro: vidro do box, mancha no vaso sanitário, etc. O mundo da faxina mudou de que forma durante a pandemia? Só de lembrar que a primeira morte por Covid-19 no país foi de uma trabalhadora doméstica, já mostra como a categoria foi afetada: ou as profissionais foram dispensadas e perderam sua fonte de renda ou foram coagidas a continuar trabalhando mesmo durante a quarentena sob ameaça de perder o emprego.* Verônica, pra você, qual o segredo de uma boa faxina? Fazer as tarefas com calma e separadamente: não adianta sair fazendo um monte de coisa de uma vez. Dar atenção aos detalhes e FAZER ALONGAMENTO ANTES hahahahahaha Como você se define profissionalmente hoje, sua profissão (ou profissões)? Hoje sou criadora de conteúdo para redes sociais e palestrante. Odeio o termo “influencer” porque, pra mim, isso não é profissão, a influência é consequência da relevância do seu trabalho e eu prefiro usar a expressão que eu inventei “inspiradora digital”. Você começou a entrar em contato e trocar experiências com faxineiras em vários países do mundo através da internet. Sobre isso a gente queria saber: 1: Como você teve essa ideia? Eu fiz uma viagem internacional e trouxe produto de limpeza hahahaha podia ter trazido mil coisas, mas a prioridade foi um limpador pro vidro do box!!! Pensei em mostrar ao meu público e abrir espaço para conversas sobre novas perspectivas da limpeza. 2: O que mais te chamou a atenção nessa troca? Os produtos estrangeiros são muito mais eficazes que os nossos, tornando o trabalho mais fácil, e em parte acredito que aqui isso nem é tão levado em consideração, pois quem faz o trabalho são as domésticas e nem sempre os empregadores estão preocupados com a otimização do tempo dessa profissional. 3: Como você acha que está o prestígio dos profissionais da faxina atualmente no Brasil e em outros países? Por conta da pandemia, vejo as pessoas dando mais valor a partir do momento que elas fazem o trabalho em suas próprias casas, espero que essa percepção se transforme em reconhecimento do valor (moral e material) desse trabalho. Quais são os seus planos para o futuro? Definitivamente eu quero trabalhar com comunicação, falar para as pessoas, ser um agente de transformação e reflexão. Em breve sairá minha biografia, tenho planos de criar conteúdo em vídeos para redes sociais, coisa que ainda não faço, e continuar estudando, sempre! A Arara agradece à Verônica pela gentileza da entrevista e ao leitor pela leitura. Sinta-se à vontade para comentar! * Verônica se refere ao conjunto de notícias sobre a morte no dia 16 de março de uma trabalhadora doméstica cujo nome a família pediu sigilo e que contraiu a covid-19 da patroa no Leblon (também um dos primeiros casos registrados e que sobreviveu à doença) no Rio de Janeiro, o que, de fato, é muito emblemático, conforme pode ser confirmado abaixo. https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/03/19/primeira-vitima-do-rj-era-domestica-e-pegou-coronavirus-da-patroa.htm No entanto, alguns meses depois descobriu-se que a primeira vítima fatal no Brasil ocorreu quatro dias antes, em 12 de março. Muito pouca gente sabe dessa informação (a gente, por exemplo, não sabia!), como podemos verificar na reportagem abaixo. https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/06/27/primeira-morte-por-coronavirus-no-brasil-aconteceu-em-12-de-marco-diz-ministerio-da-saude.ghtml Instagram da Verônica

  • + Top 10 Sinfonias para você escutar sem erro

    Terceira lista, desta vez vamos fugir do óbvio em algumas delas. E preparem-se para a lista das Sinfonias Menos Conhecidas que Merecem Ser Mais Conhecidas (tá, eu depois vejo esse nome), que virá. Vou tentar seguir ordem cronológica, e garanto que, das 30 sinfonias de que falei, poderíamos fazer qualquer seleção com 10. Wolfgang Amadeus Mozart (1756 - 1791) - Sinfonia Nº 41 "Júpiter" (1788) A mais sofisticada sinfonia de Wolfgang Amadeus Mozart é uma obra madura. No começo eu não ligava muito pra ela, mas ela se revela complexa e engenhosa, após análise. No primeiro movimento ele parece desenvolver o primeiro tema antes de apresentar o segundo ; tem passagens fugadas ; apresenta temas fantasmas (que vêm por baixo do que você está escutando); além de o desenvolvimento ser arrebatador. Não é uma típica doce peça de Mozart. É como se ele tivesse querido dar uma importância maior a essa que é a sua última sinfonia (não que ele soubesse que ia morrer 3 anos depois). O segundo movimento (13m29s) parece que vai ser uma plácida sarabanda , mas às vezes irrompe em direções mais tenebrosas. Depois temos um agradável minueto - trio - minueto (26m46s). Mas o que se segue é um dos finales (31m54s) mais desafiadores para o ouvinte. Ele contém 5 pequenos temas que vão se acumulando e, no final, são combinados das mais diferentes formas para fazer uma grande e magistral fuga (vou escrever posteriormente sobre fuga). O nome " Júpiter " não foi dado por Mozart, mas deve sua origem à comparação entre a peça e o tempestuoso planeta. Gravações recomendadas: Orquestra Filarmônica de Berlim (Berliner Philharmoniker), regente: Simon Rattle - Orchestra Mozart , regente: Claudio Abbado Ludwig van Beethoven (1770 - 1827) - Sinfonia Nº 6 "Pastoral" (1808) Mais uma sinfonia de Ludwig van Beethoven , essa de 1808 , completamente reconhecível, a sexta deve parte de sua popularidade à sua inclusão no filme Fantasia , da Disney . Mas só parte. Ela já era uma obra muito bem conhecida e estabelecida no repertório de orquestras e ouvintes. Acontece que ela é uma peça única nas páginas sinfônicas do compositor, completamente desprovida do que eu chamo de " a raiva de Beethoven ", um tipo de fúria e ímpeto que ele impregnava em todas as suas obras (mesmo, às vezes, nos movimentos mais lentos). A Pastoral , não. Ele a fez calma e contemplativa, quase meditativa. Ele deu a seus movimentos nomes que descrevem bem o estado de espírito que queria carregar: Alegre despertar de sentimentos na chegada ao campo Cena à beira de um regato (10m51s) Dança das pessoas do campo (22m40s) Trovão, tempestade (28m29s) Canção dos pastores. Sentimentos de alegria e gratidão após a tempestade (32m29s) Como se pode ver, são alusões bem tranquilas, exceto pela tempestade, maravilhosamente orquestrada. Aliás, a orquestração, nessa peça, é especial. No segundo movimento ele usa a flauta , o clarinete e o oboé para simular pássaros; no quarto, usa os tímpanos para representar os trovões e as cordas para representar a ventania; no quinto, quando a chuva foi embora, usa os violoncelos em pizzicato para imitar aquelas gotinhas que caem das árvores depois da chuva... Beethoven tem fama de ter sido ranzinza, mas nessa música, ele jogou seu amargor fora e fez uma das partituras mais encantadas que conhecemos. Gravações recomendadas: Orquestra Sinfônica da Rádio Bávara (Bavarian Radio Symphony), regente: Mariss Jansons - Orquestra Filarmonia (Philharmonia Orchestra), regente: Otto Klemperer Anton Bruckner (1824–1896) - Sinfonia Nº 7 (1883) Primeira vez em que eu coloco uma sinfonia de Anton Bruckner . Ele compôs 9 (na verdade, 11, mas chamava uma de " Sinfonia Nula ", ou 0 , e a outra de Sinfonia 00 ). É que ele tinha um problema muito grande com a própria obra. Nunca considerava uma peça pronta. Até hoje um regente e uma orquestra têm que escolher qual edição de determinada sinfonia vão usar, porque o próprio fazia várias alterações em uma sinfonia mesmo depois da estreia. É o chamado " Problema Bruckner ". Verdade, esse bilete. Não estou inventando nada. Pois bem, a sétima é a mais conhecida e amada (talvez junto com a 4ª). Enquanto Bruckner a compunha, seu grande ídolo, Richard Wagner ficou doente, vindo a falecer. É por isso que Bruckner o homenageia na obra, com um segundo movimento elegíaco. E ele usa a Tuba de Wagner , um instrumento criado por encomenda de Wagner ao luthier Adolphe Sax (o mesmo que inventou o Saxofone ), para preencher o vão que existia entre trompas e trombones . A obra é lindíssima, ainda que escorregadia: muitas vezes parece se dilatar além do necessário, com grandes, exuberantes acordes e texturas orquestrais etéreas. Só pra, aos 12 minutos nos surpreender com uma nota mais incisiva. O segundo movimento (21m23s) é um golpe de gênio. Um adagio belíssimo. A sinfonia gravita em torno dele. Por vezes lembra Beethoven, para então virar um longo e baldio movimento Wagneriano. O terceiro , scherzo e trio (43m10s), é muito inventivo e divertido. A orquestração peculiar de Bruckner, herdeira da de Wagner, funde os instrumentos de sopro com as cordas. Você raramente tem um solo prolongado de oboé, por exemplo. Em vez disso, tem pequenas frases de um instrumento ou de outro: ora uma flauta se ergue para logo sumir; ora um trompete toca três notinhas e volta a se perder dentro da textura orquestral. Maravilhoso. O finale (53m33s) é igualmente engenhoso. Dessa vez temos vários momentos individuais de instrumentos de sopro. Ou de pequenos conjuntos de sopro. É uma sinfonia maravilhosa. Mesmo eu, que não entendo de Bruckner, tenho que me curvar a ela. Como todo prazer. Gravações recomendadas: Orquestra Filarmônica de Munique (Münchner Philarmoniker), regente: Valery Gergiev - Orquestra do Concertgebouw de Amsterdam (Concertgebouworkest), regente: Bernard Haitink Johannes Brahms (1833 - 1897) - Sinfonia Nº 4 (1885) A quarta de Johannes Brahms é uma das maiores obras primas já realizadas. Talvez seja, tecnicamente, a mais bem feita do compositor. Começa com duas notinhas nos violinos , num salto descendente. Com isso, assim como na 5ª de Beethoven , temos material para todo o primeiro movimento . Não que seja essa a única ideia com que ele vai trabalhar, mas é a principal. Duas notas descendentes seguidas por duas ascendentes. Como esse primeiro tema é de notas curtas, o segundo é de notas bem longas, nos violoncelos . O segundo movimento (12m50) é de tirar o fôlego. Começa com uma espécie de anúncio na trompa (12m53s). Quando os clarinetes repetem a ideia (13m13s, no vídeo acima), já é com uma aura contemplativa e sossegada. Lindos corais de sopros , nesse começo. Brahms usa um artifício que costuma usar: começa o movimento lento com os sopros para que, quando entrem os violinos (15m25s), eles tragam toda a sua luz. Um coral de cordas representa a ideia central do movimento (16m20s e 20m17s). O terceiro movimento (23m32s) é um Scherzo vivo e alegre. Ele emprega um triângulo, que dá uma cor divertida. E aos 29m40s tem início o grave finale . É uma Passacaglia , ou seja, ele oferece, de cara, não um tema, mas uma sequência de acordes por onde ele vai desenvolver as mais diversas ideias. As minhas favoritas são nas cordas (30m34s), na flauta (32m35s), solitária e desolada, só que linda, e nos metais (33m45s), nobre e confiante. Gravações recomendadas: Orquestra Filarmônica de Viena (Wiener Philharmoniker), regente: Karl Böhm - Orquestra Filarmônica de Berlim (Berliner Philharmoniker), regente: Herbert von Karajan Camille Saint-Saëns (1835 - 1921) - Sinfonia Nº 3 "Com Órgão" (1886) Nessa sinfonia, o compositor francês Camille Saint-Saëns usou tudo que podia, na orquestra. Isso inclui um órgão (nem toda sala de concerto tem um - Karajan , quando gravou, foi criticado por gravar, em Berlim, a orquestra primeiro e, depois, em Paris , o órgão), um piano a 2 e a 4 mãos, e diversos instrumentos de percussão . Ela começa estabelecendo um clima, com uma introdução larga. Mas logo as cordas assumem um caráter mais urgente. É uma música fácil de gostar, mas não estou dizendo que seja rasa. O primeiro movimento se divide em três sessões: a introdução, de que já falei, o Allegro Moderato (1m18s) e o belo e contemplativo Poco Adagio (10m42s), com suas sensuais cordas e o órgão ao fundo. Esse movimento é muito lindo. Aos 20m54s começa o segundo movimento, também dividido. Só que em 4 sessões. Allegro Moderato , Presto , Maestoso e Allegro. Seu final é brilhante e a escrita orquestral, digna de nota. Gravação recomendada: Orquestra Filarmônica de Seul (Seoul Philharmonic), regente: Myung-Whun Chung , ao órgão: Dong-ill Shin Pyotr Tchaikovsky (1840–1893) - Sinfonia Nº 6 "Patética" (1893) A sexta é a mais celebrada de Pyotr (Pedro) Tchaikovsky foi intitulada por ele de o que se pode traduzir como " Sinfonia Sentimental " ou " Sinfonia Emocional ". Na tradução, usou-se o francês " Pathétique ", que quer dizer emotivo. E aí a gente ainda traduz pro português, em que patético significa algo realmente mal sucedido... Mas ela é isso: uma sinfonia passional. E muito bem sucedida, desde a estreia. O primeiro movimento começa soturno, uma introdução nos fagotes, mas logo dá lugar a uma agitação meio tumultuada. Mas seu tema central é a belíssima melodia (5m17s) que todos conhecem, resignada e algo solene. Como diria Artur da Távola : "Tchaikovsky, o rei da melodia...". O movimento tem várias perturbações e é de grande proporção. No segundo movimento (19m11s) ele faz uma quase valsa, em tempo 5/4. É gracioso como uma valsa, mas uma valsa bamba, porque você conta 1, 2, 3, 1, 2, ... fica faltando o segundo três. O terceiro movimento (27m29s) é um Allegro Molto Vivace , muito nervoso e que nos faz sentir falta de ar. Termina de forma triunfante, e você jura que a obra acabou. Mas vem o quarto (36m38s) e último. Ao contrário da maioria das sinfonias, em que o finale é de triunfo e alegria, nesta ele é um fúnebre e sério Adagio Lamentoso . Termina da maneira mais fantástica e eloquente possível. Que é com o silêncio. Não está na partitura, mas, como você pode ver no vídeo, depois da última nota o público parece não querer quebrar algo muito frágil. Por uns 30 segundos não ouvimos aplausos. Muitos supõem que é uma carta de suicídio. Tchaikovsky, depressivo, sem poder assumir publicamente sua homossexualidade, escreve uma sinfonia que vai morrendo. E, 9 dias depois, ele mesmo tem uma morte que, aceita-se, foi planejada. Eu acredito nisso, pessoalmente. Que ele concebeu a sinfonia como um Réquiem . Pode não ter sido nada disso, pode ser que ele não planejasse morrer, e que tenha bebido aquele copo com água contaminada por acidente. Enfim, embora seja funesta, só existe muita beleza nessa obra tão maravilhosa. Gravações recomendadas: Orquestra Filarmônica de Berlim (Berliner Philharmoniker), regente: Herbert von Karajan - Orquestra Filarmônica de Nova Iorque (New York Philharmonic), regente: Leonard Bernstein Gustav Mahler (1860–1911) - Sinfonia Nº 9 (1910) Vou indicar a minha sinfonia favorita do austríaco Gustav Mahler . Sua última. Tanto medo ele tinha da " maldição da nona " que começou imediatamente a próxima. Mas a maldição da nona é sagaz. E o flagrou nos esboços da décima. Romântico tardio, Mahler é hoje adorado por suas sinfonias. Já o era em vida, mas enquanto um compositor existe, ele não sabe se sua música será escutada em 50 anos. Pois ele morreu há mais de um século e suas obras, algumas absolutamente extravagantes, em minha opinião (sua 8ª Sinfonia é chamada "Sinfonia dos Mil", por causa do exagero de músicos e coros e solistas que emprega), são cada vez mais executadas. A nona não é extravagante senão no comprimento. E olhe que nem está entre as mais longas. Mas merece sua hora e meia de atenção. Eu tenho que reconhecer que é um grande compositor, embora um que eu não o compreenda (por enquanto, espero). A ambiguidade harmônica dessa peça é muito charmosa. Por vezes ele prepara um acorde e toca outro. Às vezes você espera maior e vem menor, ou vice-versa. A instrumentação é igualmente digna de atenção, às vezes uma flauta ou um violino solo se atrevem um pouco só para serem logo engolidos pela textura maior da orquestra. Outro Wagneriano. Por várias vezes Mahler emprega de maneira muito consciente o contraponto (a utilização de melodias paralelas), chegando a escrever uma fuga dupla . Também é uma música elegíaca, embora com um caráter muito mais resignado que a de Tchaikovsky. Mahler havia acabado de perder sua filha Anna Maria e de descobrir a doença cardíaca que o levaria à morte. E, também nessa sinfonia, a última nota vai se esvaindo (o próprio compositor escreveu na partitura: morrendo ). Gravações recomendadas: Orquestra Filarmônica de Berlim (Berliner Philharmoniker), regente: Claudio Abbado - Orquestra Filarmônica de Seul (Seoul Philharmonic), regente: Myung-Whun Chung Dmitri Shostakovich (1906–1975) - Sinfonia Nº 7 "Leningrado" (1941) Se contarmos as três listas, incluí três sinfonias de Dmitri Shostakovich . São minhas favoritas, mas também as favoritas do público. O compositor dedicou esta à cidade de Leningrado (agora, São Petersburgo ), que estava sitiada pelas forças nazistas. Só o gigantesco 1º movimento dura quase meia hora. Um ostinato na caixa clara engloba um imenso crescendo da orquestra. O movimento lembra uma marcha. Simula um exército invasor, sirenes, tiros, a música vai ficando mais nervosa, quase nervosa demais até que descansa. Temos então um solo de flauta (21m09s), um de clarinete (21m48s) e um de fagote (22m30s). Um por vez. Parece aquela pausa na batalha pra recolher os mortos. Uma pessoa catando um corpo específico... Ele segue mais tranquilo até terminar simplesmente. O segundo movimento (29m16s) é um Scherzo (movimento ligeiro e, nesse caso, sarcástico). Começa muito leve, nem parece que se refere a uma guerra. Temos lindos solos de oboé (30m44s), de corne inglês (32m09s), então entram os violoncelos , os violinos , depois em pizzicato até que há uma perturbação, um novo tema que torna o movimento um bocado mais tenso. Quando ele se aquieta, temos oportunidade de ouvir o maravilhoso clarone , o parente grave do clarinete (36m59s). E aí o movimento, o mais curto da sinfonia, termina placidamente. O terceiro (40m54s) lembra música religiosa. Os corais russos com seus baixos profundos . Claro que é trágico, como um Réquiem ou uma Paixão . Sua seção central repete a do movimento anterior. Uma melodia simples (49m01s) vai ficando mais forte, como uma linha que é esticada, até que arrebenta. E aí temos mais evocações à batalha, lembrando o primeiro movimento. Mas, assim como no segundo, ele eventualmente se acalma, terminando novamente com tranquilidade, mas já ligando com o movimento seguinte. O quarto (1h1m14s) começa com essa tranquilidade, mas também com algo ameaçador no ar. Essa ameaça vai se tornando evidente, depois palpável, depois obsessiva. É um movimento turbulento e altamente bélico. Sua conclusão é triunfante, como que para mostrar o predomínio das tropas soviéticas sobre as nazistas. Vocês podem escutar vários recursos de orquestração, como o pizzicato de Bartók (1h6m38s), em que o músico pinça a corda até o alto e solta de modo que ela bate na escala do instrumento, quase como uma chicotada. Gravação recomendada: Dresdner Philharmonie , regente: Michael Sanderling Olivier Messiaen (1908–1992) - Sinfonia Turangalila (1948) Muitos vão te dizer que essa sinfonia usa o theremin , o instrumento hipster favorito. Mas o que ela usa é um Ondes Martenot , que tem um princípio similar. É a cara daquelas mostras mundiais que ocorriam nas maiores cidades europeias, em que inventores, artistas e as mais diversas atrações eram expostas, muitas vezes pela primeira vez, ao mundo. Não é theremin, mas é parecido. Ondes Martenot tocado por Thomas Bloch Além disso, Olivier Messiaen usa um piano solo . Tanto seu papel é proeminente, que ele fica na frente da orquestra. Peça muito moderna, é extremamente complexa e longa. Foi encomendada pela Orquestra Sinfônica de Boston , com seu regente Serge Koussevitsky . A estreia foi regida pelo onipresente Leonard Bernstein . Ela abriu caminho para o Serialismo Integral (e pelo amor de deus, não me pergunte o que é isso. Longa história...) Ele pede uma orquestra muito grande ( 10 contrabaixos , quando o normal é entre 6 e 8; mais de 10 instrumentos de percussão ) e a utiliza com maestria. Ela tem 10 movimentos, que vão de 4 a 11 minutos. Embora seja altamente atonal, a peça é agradável, se você escutar com uma atitude aberta. E se você escutar com a atitude certa, perceberá que é genial! Recomendo que não escute de uma vez. Pode ser um tanto embriagante e cansativa, no começo. Messiaen a concebeu como um canto de amor, e os movimentos são intitulados com nomes como " Canção de Amor ", " Jardim do Sono de Amor ", " Desenvolvimento do Amor " etc. Parece brega, mas a música não tem nada de cafona. Espere por acordes ultra dissonantes, instrumentações alternativas, melodias com saltos estranhos e ritmos confusos. Gravações recomendadas: Orquestra da Ópera da Bastilha (Orchestre de l'Opera Bastille), regente: Myung-Whun Chung , piano: Yvonne Loriod , ondes martenot: Jeanne Loriod (as irmãs Loriod estrearam a peça com Bernstein. Yvonne tornou-se esposa de Messiaen) - Orquestra Real do Concertgebouw de Amsterdam (Royal Concergebouw Orchestra), regente: Riccardo Chailly , piano: Jean-Yves Thibaudet , ondes martenot: Takashi Harada Ralph Vaughan Williams ( 1872–1958) - Sinfonia Nº 7 "Sinfonia Antartica" (1952) A 7ª do compositor inglês Ralph Vaughan Williams (pronuncia-se Rêif Von Williams) é uma de que gosto, que emprega voz. Uma soprano e um coro. É que elas são usadas como instrumento, não cantam palavras. Ele usa também uma máquina de vento, instrumento de percussão que simula o som do vento. Os grandes mestres ingleses do começo do século XX influenciaram muito a música de cinema. Mais ainda quando era pedido que fizessem música para cinema. Vaughan Williams fez a trilha sonora do filme " Scott of the Antartic ", em 1948 . E dessa trilha ele retirou as ideias para sua Sinfonia Antartica . A sinfonia é gelada. Gelada, mesmo. Você pode sentir frio com a simulação de vento, com o coro totalmente feminino a orquestração esparsa. É uma música de efeito, mas, se você entrar no clima, ela te leva pra situação de estar perdido na Antártida. Scott , personagem real que montou uma expedição no continente gelado para achar o polo sul, acabou tendo que voltar, devido às péssimas condições climáticas. Mas, na volta, a equipe não resistiu e foi morrendo. Sozinho, preso em sua tenda, Scott escreve no seu diário, que foi achado algum tempo depois, palavras eternas. Essas anotações cruas e os nossos corpos mortos devem contar a história, mas certamente, certamente, um grande e rico país como o nosso cuidará para que aqueles homens que são dependentes de nós sejam apropriadamente abastecidos (em expedições). Gravações recomendadas: Orquestra Sinfônica de Londres (London Symphony), regente: André Previn - Orquestra Filarmônica de Londres (London Philharmonic), regente: Bernard Haitink Sobre cada sinfonia, dessa lista e das outras, escreverei, eventualmente, textos mais elucidativos. Espero que tenham gostado do Top 10, que vai para a sessão Topping Toppers . E que alguma sinfonia tenha cativado você e instigado a dar uma escutadela. Fique à vontade para comentar o que quiser. Veja a primeira e a segunda listas de sinfonias mais importantes.

  • o último beijo

    O engajamento político e humanitário de algumas das maiores bandas do mundo não é novidade. Podemos citar, por exemplo, Rage Against The Machine, U2 e Serj Tankian. No ano de 1999, foi lançado o álbum Sem Fronteiras, em benefício aos refugiados da Guerra do Kosovo, um dos conflitos ocorridos durante o processo de dissolução da antiga Iugoslávia. Dentre os artistas que participaram da iniciativa estavam Alanis Morissette, Oasis, Jamiroquai, Neil Young e... Pearl Jam. E é uma canção, presente neste álbum, interpretada por Eddie Vedder e companhia que será o nosso assunto nas linhas que seguem. Estamos falando de Last Kiss. A versão de Pearl Jam para essa obra foi uma das músicas mais tocadas nas rádios no final dos anos 90. Ela conta a história de um acidente de carro que era conduzido por um rapaz, acompanhado de sua namorada. Mas tenho duas coisas para lhes dizer: a versão do Pearl Jam não é a original, e a música é baseada em um fato real! A composição de Last Kiss e sua primeira gravação foram realizadas por Wayne Cochran em 1961, no formato de single. Wayne era morador da região rural de Barnesville, Georgia, Estados Unidos, em um local que fica a cerca de 15 milhas do local do acidente. A Auto Estrada 341 era conhecida pela grande quantidade de acidentes. Àquela época, Wayne estava trabalhando na composição de uma canção sobre os acidentes que aconteciam naquela estrada. Foi então que em 22 de dezembro de 1962, um Chevrolet Impala 1954 ocupado por 4 adolescentes (J. L. Hanckock, o motorista, Jeanette Clarck, sua namorada que estava no banco do carona, Jewel Emerson e Ed Shockley, que estavam no banco traseiro), colidiu com um caminhão parado na estrada, o qual não conseguiram visualizar a tempo de parar, devido ao nevoeiro que havia naquela região. O motorista e sua namorada morreram na hora. Os passageiros do banco traseiro sobreviveram, mas com ferimentos graves. Wayne, ao saber do acontecido, usou como base seus sentimentos a respeito para terminar a composição de Last Kiss, livre inspirando-se no acontecido e, após, dedicando a canção a Jeanette. Uma segunda versão foi lançada por J. Frank Wilson and The Cavallier em 1964, antes da consagrada pelo Pearl Jam. Um fato bizarro foi que o pai de Jeanette, frentista de um posto próximo ao local do acidente, foi uma das pessoas a ajudar a socorrer as vitimas do acidente, não reconheceu que uma delas era sua própria filha. Ouça abaixo as versões citadas. Versão J. Frank Wilson Versão Wayne Cochran Versão Pearl Jam Então, gostou do texto? Gosta de curiosidades da música? Publicamos algumas já aqui como essa sobre o coração de Chopin e esta sobre uma estranha capa do The Doors... Se você curte rock e explorar novos territórios, temos algumas outras sugestões também, como este artigo sobre a história do rock na Rússia, a nossa lista regressiva das melhores faixas de rock década a década que começa na década de 2010 bem aqui, e também uma matéria sobre um ícone do rock e da música brasileira: Pepeu Gomes. Leandro Krindges Técnico Químico de profissão, licenciado em Biologia por paixão, fã de Foo Fighters à Belchior e de tirinhas, especialmente Peanuts. Sempre teve curiosidade em saber o que se passava por trás das músicas, e essa busca se tornou um hobby. Tecladista da Banda Villa Rock, arranha também um violão e guitarra. Aprendeu a gostar de ler depois do Kindle.

  • Do meu caso com fones

    Sou um entusiasta de fones de ouvido. Gosto bem mais deles que das caixas de som audiófilas. Se eu mesmo sou audiófilo? Não sei. Tenho pudor de ter um hobby tão caro. Além disso, se fizesse um teste cego, não sei se conseguiria discernir um fone bom, de R$ 3.000, de um super-hiper-de-ponta, de R$ 40.000 (!!). (Sobre pontos de exclamação: sempre vêm 1 ou 3. Patenteei o uso de 2.) Mas já gastei um bom dinheiro com isso e continuo a gastar. Vejam os equipamentos que já tive: Sennheiser HD 598 - Meu primeiro fone mais sério. Eu o tive por poucos meses, mas o adorava. Sennheiser HD 559 - Excelente e despretensioso, foi meu por um tempo, só que mais recentemente (na verdade, até a semana anterior àquela em que escrevo esse texto). O "véu", que é um efeito de como se você estivesse escutando por trás de uma cortina, atrapalhava um pouco. Sony WH-1000Xm3 - Bluetooth (sem fio) e com noise cancelling (um aparato que faz com que você escute quase nada do som externo), só pecava no excesso de graves. Quando tive o primeiro, estranhei muito, mas depois adquiri outro e me pareceu perfeito. Não é um som audiófilo, mas para agradar o ouvinte casual. O que significa que não é neutro e detalhado, expondo cada frequência com fidelidade ao som gravado; em vez disso, é um som potente, quando bate um bumbo, você chega a sentir a cabeça vibrar. Sennheiser PXC 550 - Me arrependo ainda de ter vendido. Outro que era bluetooth e com noise cancelling, só que este tinha um som melhor que o Sony. Um som excepcional para um fone dessa categoria. AKG N90Q - Tinha uma proposta (fones têm proposta?) diferente. Fazia cancelamento de ruído, mas funcionava com fio. Sonoridade espetacular, mas não era muito portátil: ficava grande e pesado na cabeça. Ainda tinha um mecanismo do futuro que, quando você apertava um determinado botão, ele emitia uma frequência que detectava a construção óssea da sua cabeça e adaptava o som a essa característica. Juro. Sennheiser HD 660s - Na época eu não achava nada demais, mas depois que me desfiz e ouvi o novo (nem lembro qual era), vi que era sensacional. Foi o modelo mais high end que já tive, sendo claríssimo, mesmo mantendo um pouco do "véu Sennheiser". Kuba Disco - O primeiro fone brasileiro com a proposta de ter alta performance. Mesmo a expectativa sendo alta, ele a superou. Foi um dos que decidi manter: não vendo meu Kuba. O que vocês vão ler mais sobre ele é que é tão bom quanto concorrentes que custam o dobro. Abaixo linkei o site da empresa do meu caro Léo Drummond. Sennheiser HD 58x - Uma linha da Sennheiser (junto à Drop) que promete a mesma performance de outros da mesma marca com 2 a 3 vezes o preço. É como se a própria empresa resolvesse fazer seus genéricos. Este tem o mesmo driver e praticamente o mesmo som do HD 660s, trazendo um final feliz à minha jornada - com esse também fico. Escrevi esse post porque, já sabem, gosto de enumerações, mas também porque existe um imenso público que compartilha desse meu entusiasmo. Há blogs, canais no YouTube, fóruns e grupos de WhatsApp dedicados exclusivamente ao assunto. Vamos a alguns links: https://kuba.audio https://store.sony.com.br/wh-1000xm4 https://www.harmanaudio.com.br/N90+Q.html https://pt-br.sennheiser.com/fones-de-ouvido http://mindtheheadphone.com.br/

  • A Moça do Sonho, de Edu Lobo e Chico Buarque

    O nosso terceiro disco, "Argonautas Interpretam Edu Lobo", já estava praticamente todo gravado. Deve ter umas 10 músicas que eu queria ter gravado e incluído, mas a verdade é que ele já é bem comprido. Pois bem, quase todo gravado, mas eu queria muito colocar essa música (A Moça do Sonho, de Edu Lobo e Chico Buarque). Só que não tínhamos mais tempo de fazer arranjo e gravar a banda inteira. Então, um dia, tive a ideia de gravar sozinho ao violão. Se não me engano, foi um só take pro violão e outro pra voz (não gravo os dois juntos, nunca). Adorei o resultado. A música é linda. Cantei na organização em que o Edu canta no disco "Cambaio", que é diferente da que o Chico canta em "Caravanas". A métrica, mantive minha mania de fazer bem quadradinha. O violão poucas vezes toca um si menor, que é o tom da música. No lugar dele, coloco um acorde ambíguo. E termina em si maior. O disco inteiro você pode encontrar no site dos Argonautas: www.grupoargonautas.com.br Comente aí o que achou! A Moça do Sonho Edu Lobo e Chico Buarque Súbito me encantou A moça em contraluz Arrisquei perguntar: quem és? Mas fraquejou a voz Sem jeito eu lhe pegava as mãos Como quem desatasse um nó Soprei seu rosto sem pensar E o rosto se desfez em pó Por encanto voltou Cantando a meia-voz Súbito perguntei: quem és? Mas oscilou a luz Fugia devagar de mim E quando a segurei, gemeu O seu vestido se partiu E o rosto já não era o seu Há de haver algum lugar Um confuso casarão Onde os sonhos serão reais E a vida não Por ali reinaria meu bem Com seus risos, seus ais, sua tez E uma cama onde à noite Sonhasse comigo Talvez Um lugar deve existir Uma espécie de bazar Onde os sonhos extraviados Vão parar Entre escadas que fogem dos pés E relógios que rodam pra trás Se eu pudesse encontrar meu amor Não voltava Jamais

  • Rock russo: música de protesto e auto-procura Parte 1

    Por Elkanova Elena Vamos falar da música russa que vai além da canção Kalinka. A Rússia é muito conhecida pelo balé, literatura e seu passado soviético. Mas que música russa você conhece? Eu vou te dar um gostinho de bandas icônicas e pouco conhecidas, ativas ou já separadas. Pode parecer pouco interessante ouvir essas bandas que não tocam mais, mas elas ajudam a revelar todo o processo de evolução musical e muitas delas ainda valem a pena ser escutadas. Leia mais para desvendar o porquê. Música underground dos anos 40-70 Embora nos tempos soviéticos a música do Ocidente fosse banida, e, consequentemente, não estivesse disponível em lojas, isso não significa que cidadãos da União Soviética não fossem familiarizados com a música das paradas daquele período. Todos estavam falando sobre Elvis, Beatles, Led Zeppelin e Deep Purple. Pra começo de conversa, as pessoas estavam ouvindo os hits das rádios estrangeiras, especialmente aquelas que moravam perto da fronteira, que eram beneficiadas porque o sinal era melhor. As transmissões da rádio Voices of America eram as mais populares, mesmo com as autoridades tentando interferir. Além disso, traficantes traziam discos de vinil pelas fronteiras. Meu pai me contava histórias sobre fazer os chamados “discos em costelas”. Uma vez que seu amigo conseguisse as gravações desejadas, você podia então fazer uma cópia para si. Sim, me refiro ao fenômeno da “música nos ossos” (“música nas costelas”), que era a distribuição de gravações impressas em filmes de Raios-X. Superbizarro, na minha opinião. No entanto, este era o único jeito de ficar ligado e curtir música pop. Os discos eram vendidos em becos escuros: os traficantes tinham medo das “patrulhas da música”. Assim, a cultura ocidental era encarada com características de fruto proibido e de moda pela juventude soviética. A juventude queria abraçar e se esbaldar na cultura ocidental, então eles foram além de ouvir bandas iniciantes e fazer covers. No entanto, poucos músicos e fãs entendiam o significado das letras (naqueles tempos as crianças estudavam alemão, não inglês, como língua estrangeira). Muitos apenas repetiam a pronúncia e cantavam com forte sotaque russo. De acordo com o Russia Beyond, “o verso “She’s got it”, da canção “Venus”, do Shocking Blue, era traduzido como “she-is-garra” pelas bandas cover”. Aliás, em muitos discos de vinil daquele período, a capa incluía ou continha apenas alfabeto russo: o nome da banda, o título do álbum, o nome das músicas – tudo em russo; e geralmente eles não eram nem mesmo traduzidos, apenas transcritos para o alfabeto cirílico. Foto de arquivo pessoal. Disco vinil dos Rolling Stones distribuído no final da União Soviética. O título em inglês é duplicado em russo. Bandas de rock na União Soviética tardia – música dos anos 80 e 90 Nos anos 80, a onda do rock atingiu o ápice da sua popularidade. A obsessão pela música ocidental levou ao surgimento de várias bandas jovens, já que quase todo adolescente queria entrar para uma. Eles dominaram suas habilidades e foram além da imitação de outros músicos. A primeira geração de bandas russas cover de rock deu lugar a bandas com som e letras autênticos. Enquanto outros músicos encontravam inspiração em melodias e ritmos ocidentais, eles preenchiam o conteúdo com a realidade russa e com suas próprias atitudes e percepções do mundo. Aliás, finalmente tudo parecia a favor do desenvolvimento de artistas e do estabelecimento da indústria musical no país. O Leningrado Rock Club (Leningrado era o nome soviético da cidade de São Petersburgo) abriu, sendo o primeiro clube de rock da história da União Soviética. É válido mencionar que o clube beneficiava tanto as bandas quanto as autoridades, que podiam manter o olho nos músicos. Embora bandas de rock tenham surgido em várias cidades, é São Petersburgo que é considerada o marco cultural e o lugar onde bandas como Аквариум (Aquarium), Кино (Kino), Наутилус Помпилиус (Nautilus Pompilius), Земляне (Zemlyane), ДДТ (DDT), Алиса (Alisa), tocavam e curtiam. Durante um tempo, produzir discos não era problema. Andrei Tropillo, proprietário de um estúdio musical underground, apoiava muitas bandas jovens, então ele as ajudou a produzir e marcar shows (dizem os rumores que em troca de nada, ou de uma garrafa de bebida). Mas então as autoridades fecharam seu negócio e, por muitos anos, antes da Perestroika, músicos não tiveram nenhuma oportunidade de gravar. Além disso, em 1983-1985, shows negociados sem o envolvimento do governo eram banidos, resultando em uma caça às bruxas de artistas. Alguns músicos foram demitidos e expulsos da Komsomol (organização política juvenil da União Soviética) acusados de comportamento excêntrico. É essencial ressaltar que muitos músicos tinham que trabalhar duro para sobreviver e sustentar sua busca por uma carreira musical, por exemplo, o cantor da banda Kino trabalhava na fornalha de uma sala de caldeiras. Mas, apesar de todos os obstáculos, músicos ainda estavam compondo e tocando. Durante a Perestroika (1985-1991), a situação melhorou. Filmes mostrando a cultura jovem e tocando hits de rock foram filmados, sendo “Acca” (“Assa”), de S. Solovyev, o mais popular. Festivais de rock também ajudaram a divulgar o movimento. Algumas bandas até conseguiram shows no Canadá e nos Estados Unidos. Uma das peculiaridades do rock russo é que, ao contrário de muitas bandas ocidentais, a melodia não é tão importante, o foco está nas letras. De que assuntos as canções falavam? Bom, você poderia pensar que, como os roqueiros estavam sujeitos a ataques e à caça, eles criticavam a política e se opunham às autoridades. No entanto, não é este o caso. As letras eram sobre solidão, alienação, sentimentos, amor, sexo, hipocrisia e consumo de álcool. Até isso era considerado desprezível e abominável pelos criadores do comunismo. Além do mais, imagine os músicos – eles não tinham só a música, mas o estilo de vida em geral: cabelos longos, comportamento provocativo e agressivo, etc. Nos tempos soviéticos, o fato de você estar tocando rock já falava por si só aos olhos do governo. Deixe-me falar um pouco sobre duas bandas icônicas: Aquarium e Kino. As duas tinham líderes muito carismáticos – Boris Grebenshikov e Victor Tsoy. Ambas contribuíram muito para o desenvolvimento da música. Aquarium Curiosamente, ao passear pela discografia da banda, você pode observar como os interesses e crenças de Grebenshikov mudaram. De canções tradicionais russas combinadas com valsa e folk, ao reggae, o blues e o boogie-woogie; de motivos cristãos, em “Серебро Господа моего” ("Prata do Meu Senhor"), ao budismo e absurdismo; da celebração da natureza e do campo, em “Деревня” (“A Vila”), ou “Дерево” (“A Árvore”) até questões sociais, em “Поезд в огне” (“O Trem Está Pegando Fogo”). As letras são cheias de metáforas que são, às vezes, difíceis de compreender, por exemplo,“Она может двигать собой” (“Ela pode se mexer”) remete ao poder feminino da Terra, que pode se vingar dos humanos por toda a destruição e caos que causaram. Também vale ouvir o hit da banda, “Рок-н-ролл мёртв” (“Rock’n’roll está Morto”). Kino Vale mencionar que, ao contrário de Aquarium, que usava uma variedade de instrumentos (violino, cravo, baixo acústico, khomuz), Kino se distingue pelas composições instrumentais bastante simples e pelo seu minimalismo como um todo. Eles geralmente usavam controladoras, em vez de uma performance ao vivo de um baterista. Kino tem ritmos muito específicos que grudam na memória e criam uma atmosfera sombria, tanto com a letra quanto com os vocais do cantor. Cantando sobre angústias e emoções de adolescentes no começo, os músicos logo ganharam vibrações mais sombrias, com batidas depressivas e letras com um toque de ironia e cinismo. As canções mais conhecidas propõem uma mensagem antiguerra, como em“Звезда по имени Солнце” (“A Estrela Chamada Sol”) e “Группа крови” (“Tipo Sanguíneo”); sentimentos e preocupações do autor em “Пачка сигарет” (“Maço de Cigarro”); e aspectos de relacionamentos em “Когда твоя девушка больна” (“Quando Sua Namorada Está Doente”). É surpreendente que, enquanto eu nunca desejo reescutar músicas dos anos 2007-2009, de tempos em tempos eu quero reviver momentos escutando músicas do final dos anos 90, como Kino. O conteúdo e a música cheia de preocupações jovens e vontade de mudar o mundo não deveria ser mais relevante hoje, que sou uma adulta, mas as ideias e ambições de Tsoy ainda se aplicam. As letras são tão cativantes que são muitas vezes citadas. Nós queremos ver mais longe que a janela sobre a estrada […] Nós estamos aqui para reivindicar nossos direitos […] É a nossa hora de agir de agora em diante (“Дальше действовать будем мы”) ("Nós Ainda Vamos Agir") Eu proclamo minha casa uma zona livre de armas nucleares (“Я объявляю свой дом безъядерной зоной”) A canção colocou em evidência não apenas a questão do desarmamento nuclear, mas também o vasto uso de estações nucleares (a canção foi composta antes do acidente nuclear em Chernobyl). Nossos corações exigem mudanças, nossos olhos exigem mudanças (“Хочу перемен”) ("Eu quero mudanças") A canção “Хочу перемен” foi e continua sendo explorada como um slogan político em países pós-soviéticos, como a Rússia, a Ucrânia, Bielorrússia (por exemplo, durante as recentes manifestações que começaram em 9 de agosto de 2020 e estão acontecendo até hoje), embora, de acordo com o site Meduza, Tsoy declarou que ele estava preocupado principalmente com transformações na mentalidade e mudanças criativas humanas. Outra caso relacionado tanto à Kino quanto à Aquarium é sobre seus projetos com Joanna Stingray, uma cantora de rock de Los Angeles. Em 1984, Joanna visitou a União Soviética e conheceu vários músicos russos, o que gerou longas relações e colaborações. Ela viveu no país por um longo tempo, e até se casou três vezes com diferentes músicos russos. Além disso, ela contribuiu muito para a promoção do rock soviético nos Estados Unidos: para ser mais específica, ela lançou um álbum que foi um marco: “Red Wave” ("Onda Vermelha"). Foi o primeiro álbum no ocidente a conter rock russo (Aquarium, Kino, Alisa e Strannye Igry). Os músicos mencionados nesse artigo cantaram (e alguns ainda cantam) em russo, o que os torna difíceis de escutar se você não sabe russo. A exceção são dois álbuns solo “Radio Silence” e “Radio London”, do líder do Aquarium, que são em inglês. Kino e Aquarium podem ser encontrados no Spotify, YouTube, VK.com. Além disso, se você está interessado nas letras, você acha traducões na internet ou pode pelo menos ter uma ideia com o Google Tradutor. Para concluir, depois dos anos 80 o rock é tido como algo que perdeu seu sentido, por ter se tornado legalizado e parte do show business. Muitas bandas deixaram de existir e se separaram devido à morte de seus fundadores (como a Kino), emigração ou conflitos (Nautilus Pompilius). Assim, o interesse do público também caiu. Mas algumas bandas sobreviveram, incluindo Aquarium, e foram criticadas por se vender e rejeitar seus antigos ideais. A cena de shows de rock evoluiu e mudou durante os anos 2000. Quais são as bandas russas modernas? Eu escreverei sobre isso depois. Tradução: Carol Maganhi. Leia o original em inglês clicando aqui. ELKANOVA ELENA é professora universitária e pesquisadora russa. Atualmente vive em Boston, nos Estados Unidos. Escreveu diversos artigos científicos. Seus interesses incluem cultura, indústria criativa, antropologia urbana, turismo, marketing e ética. Ama viajar, a natureza e histórias de mistério. Carol Maganhi Revisora de texto e tradutora que escreve como bem entende nas redes sociais. Esquisita de carteirinha, gosta desde músicas e filmes estranhos (Mini Mansions e Quero ser John Malkovich) ao smais mainstreams (Taylor Swift e Esqueceram de mim). Não sabe cozinhar, mas come que é uma beleza. Ah, e tem uns rabiscos também.

  • Pepeu Gomes, enfim, popular "Na Terra A Mais de Mil"

    Conhecido como o exímio guitarrista dos Novos Baianos, Pedro Aníbal de Oliveira Gomes, ou simplesmente Pepeu, assumiu pouco a pouco sua porção cantor assim que Moraes Moreira (1947 - 2020) deixou os Novos Baianos para assumir carreira solo em 1975. Pepeu assumiu o microfone e a direção musical junto a Paulinho Boca de Cantor e Baby Consuelo e já no psicodélico álbum "Caia Na Estrada e Perigas Ver" (Tapecar/1977)  soltou a voz em "Eu Não Procuro Som", parceria com Moraes e Galvão. Com a dissolução do grupo, em 1978, Pepeu assinou com a gravadora CBS (atual Sony) para lançar seu primeiro disco como instrumentista, intitulado "Geração de Som", com influências que adquiriu ao longo do tempo - vão desde o chorinho ao samba. "Malacaxeta" - inspirada no riff de "Wait Until Tomorrow", do Jimi Hendrix - foi o pontapé para que a crítica não mais o visse como um músico de apoio, mas como um guitarrista de destaque. Também em 1978, Pepeu voltou a acompanhar Gilberto Gil como guitarrista no show gravado ao vivo em Montreux, na Suíça. Quando o produtor André Midani fundou a filial brasileira da Warner Music, contratou Pepeu para fazer parte do casting e "Na Terra A Mais de Mil", seu segundo LP, foi lançado. Foi aí que, pela primeira vez, Pepeu foi visto como cantor popular, devido ao sucesso de "Meu Coração", primeira faixa de trabalho usada para promover o disco e que foi incluída na trilha sonora da novela "Marina", exibida pela Rede Globo. Sobre essa música, Pepeu contou, em depoimento para o seu DVD de 2004, que a letra foi composta com Gil, numa carona até o aeroporto. Dócil, a canção remete à chegada de um novo amor e a maturidade alcançada, atento para não repetir os erros do passado. "Na Terra A Mais de Mil" é pontuado por muitos como o primeiro disco do Pepeu em que ele mostrou sua voz, antes não tão bem aproveitada em faixas sem apelo radiofônico. Desta vez, o repertório foi acertado e Pepeu mesclou bem sua porção vocalista/instrumentista em faixas que, assim como no "Geração de Som", expuseram sua influência nos mais diversos estilos da música popular brasileira. E isso era só o começo. Meucarovinho (IVISSON CARDOSO) é baiano de Salvador, iniciou suas atividades no ramo da música ainda quando estudante de Letras na UCSAL pelas redes sociais. Trocou residência por São Paulo em 2010 e passou a atuar como DJ na cidade. Já foi capa da revista Starwax Magazine na França e foi convidado pelo programa "Manos e Minas" da TV Cultura a apresentar a sua coleção de LPs no quadro "Discoteca Básica". Recentemente participou da série de TV "Rota do Vinil" em exibição pelo canal Music Box Brasil. Crédito da foto: Felipe Garcia

  • das kino na arara: “Estou pensando em acabar com tudo”, de Charlie Kaufman

    Aos desatentos, Estou pensando em acabar com tudo (2020) se trata de um filme de Charlie Kaufman. Por ser de Kaufman, não assista com qualquer expectativa, não tente ligar pontos nem buscar sentido de forma apressada. Nada é o que parece. As cenas são absurdas, muitas flertam com o surrealismo. Assista aberto à experiência, para descobrir o que acontece. Kaufman é conhecido por seus filmes pouco convencionais. Ele escreveu o roteiro de  Quero Ser John Malkovich  (1999), Adaptação  (2002) e  Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças  (2004). Ele também dirigiu Sinédoque, Nova York (2008) e Anomalisa (2015), filmes em que o cineasta trabalha todo seu simbolismo, já por nós conhecido dos roteiros. Estou pensando… é uma obra adaptada de um romance publicado em 2016 de mesmo nome, de  Iain Reid, o que me leva a comentar sobre a raiva que sentiram alguns leitores do livro em relação ao filme. O final de ambos é totalmente diferente, diziam eles. E, claro, leitores não gostam quando os diretores fazem isso. Acham que filmes devem ser fiéis à narrativa literária, como se fosse possível ou mesmo desejável, pensando a duração média de um filme. Mas não, não devem. Os cineastas não estão à mercê dos escritores, como também não estão dos historiadores. Filmes trabalham com uma linguagem diferente da literária, a cinematográfica, e as narrativas necessitam de liberdade criativa. Em entrevista, Kaufman explica: “O livro tem um final muito violento, e eu não quis fazer isso no filme por uma série de razões. Existe uma revelação no livro que é um tipo de reviravolta final, e eu não queria que o filme todo dependesse disso”. Ao contrário, o diretor preferiu perpassar a verdade da história ao longo de todo o filme, de forma que o final fosse algo a mais, e não o principal, para aprender sobre aquela relação. À primeira vista, trata-se de um casal em início de relacionamento, Jake e uma jovem que não possui um único nome. Seu nome se altera dependendo da cena. Eles vão fazer uma viagem para que ela possa conhecer os pais de Jake. Antes disso, a jovem questiona se isso seria realmente a melhor decisão a fazer, tanto de viajar quanto de continuar seu relacionamento com Jake, um rapaz bastante sufocante. “Estou pensando em acabar com tudo”, pensa. Mas ela não tem coragem. Ela decide seguir viagem, durante uma tempestade de neve, mas avisando Jake que precisa voltar no dia seguinte para a cidade, para entregar um trabalho. A partir daí, estaremos acompanhados pela jovem e por todos os seus pensamentos. Nós estamos na cabeça dela. Ao chegar na casa dos pais de Jake, eles pouco nos ajudam na confusão já gerada na sequência do carro, nos confundem mais. O tempo dentro da casa passa diferente, já que vemos estes pais ficando velhos e novos de um momento para o outro, sendo retratados, inclusive, de uma forma um tanto caricata e exagerada. Enquanto isso, cenas de um zelador idoso limpando o chão de uma escola de ensino médio insistem em se intercalar. É o surrealismo tomando conta. Como entender o universo simbólico de Kaufman? É interessante perceber como o diretor - pelo gosto em refletir sobre questões de gênero, sexualidade, memória, identidade (já vimos em outras obras) - vai trazer uma temática maior, de forma alegórica, para conduzir sua narrativa a partir de seus lampejos surrealistas. Aqui, percebo a tentativa de falar sobre relacionamentos tóxicos, e que fica mais clara ao final do filme, quando o zelador e a jovem têm uma conversa emocional sobre como Jake foi um cara esquisito no bar, alguém que ela nunca falou e que rapidamente se esqueceu. É uma cena que intenta a autonomia da personagem de Jake, um abandono de um relacionamento abusivo. Em vários momentos do filme, percebemos o efeito das projeções românticas e das fantasias que Jake está constantemente fazendo desta sua relação, e como isso é sufocante quando a pessoa desejada não é, de fato, aquilo que queríamos que ela fosse. O brilhante diálogo no carro sobre o filme de 1976, Uma Mulher sobre Influência, de Cassavetes, torna mais compreensível a dificuldade da jovem em terminar seu relacionamento nocivo, uma temática, que, diga-se de passagem, é muito importante ser discutida em um país machista e patriarcal como o Brasil, um dos líderes no ranking de feminicídio. Em Estou pensando…, o diretor deixa alguns significados intencionalmente vagos, como o do porco animado mais ao fim do filme, para, nas suas palavras, “encorajar as pessoas a terem suas próprias interpretações”. Muitos acharam o filme confuso, mas assim funciona o universo autoral de Kaufman, um artista preocupado com os aspectos internos dos seus personagens e, nesta obra, veremos isso de maneira pouco usual, pela utilização da relação teatro/realidade, com o enquadramento clássico 4:3. A obra chegou na sexta-feira, 04 de setembro, na Netflix. Quem já conhece outros trabalhos do diretor, como já mencionado, tende a não estranhar seus convites para adentrar em suas narrativas labirínticas psicológicas e pouco lineares. O filme se divide entre aqueles que amaram e consideram “o melhor do ano”, e aqueles que odiaram, considerando-o “uma bizarrice no pior sentido”. É menos um filme de terror do que um filme existencial, preocupado com atributos humanos. Fala muito de solidão, arrependimento, isolamento, envelhecimento, em que muitas interpretações são possíveis. Para quem ainda não viu, deixo aqui duas palavras mencionadas pela atriz que faz a jovem personagem, Jessie Buckley: Brace yourselves (Se preparem). JÉSSICA FRAZÃO é produtora audiovisual e doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP). É integrante do Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema (Elviras) e colunista cinematográfica no jornal O Município Blumenau, com "Das Kino - Um olhar crítico sobre o cinema".

  • Suzana (CONTO)

    Suzana tem um cheiro doce, não sei se é por causa do brilho labial cor de rosa ou do chiclete que ela não para de mascar enquanto mexe no celular. Ela é compulsiva. Desliza o polegar pela tela, passando as mensagens dos contatinhos. De vez em quando ela cutuca minhas costelas e me mostra uma imagem sacana. Finjo que acho graça enquanto o ciúme me corrói por dentro. Suzana arruma o cabelo crespo e depois agita as pulseiras cheias de penduricalhos. Falamos de bobagens e da novela das 9 enquanto o ônibus ainda está vazio. Ela também reclama do trabalho, diz que o chefe é um chato que pega no seu pé, mas eu sei que Suzana é preguiçosa e sempre dá um jeito de enrolar. Sua vida se resume ao final de semana. Aliás, o período de segunda a quinta é só um borrão no seu calendário, já a sexta-feira… A sexta-feira é brilho, é carnaval. Sexta-feira é Suzana descalça sambando na calçada do boteco. Sexta-feira é Suzana coberta de suor bebendo cerveja direto do bico da garrafa com os lábios carnudos contra o vidro frio. — O que foi? — Nada não — respondi, me virando para a janela suja do ônibus. — Nossa, você anda estranha. — Estranha por quê? — O medo fez minha voz soar aguda. — Não sei, parece que tem alguma coisa que quer me contar e não conta. Fica me encarando com esses olhos aboticados. Forcei um sorriso. Deve ter parecido mais uma careta. Meu ventre se contorceu e as mãos gelaram. Abri a janela com mais força do que eu deveria, o cobrador me encarou. — Se quebrar, tem que pagar — ele gritou. Desejei que se engasgasse com o palito de dente grudado no canto da boca. — Pra falar a verdade, queria te perguntar um negócio. — O quê? — Retrucou Suzana cheia de curiosidade. — Você… — Eram apenas algumas palavrinhas, já tinha dito a primeira, bastava ter coragem para completar. Eu queria Suzana do meu lado, não apenas naqueles minutos dentro do ônibus, mas para o resto da vida. Queria comentar suas novelas, cantar junto aquele samba gostoso ao pé do seu ouvido, dormir mexendo nos seus cachos. "Quero te fazer mulher direita, Suzana". Eu gritaria aquelas palavras no meio do ônibus lotado, lhe daria flores e nunca haveria cinzas em nossas quartas-feiras. — Você… Vo-você quer passar no mercado comigo? Parece que tem carne em promoção — falei. — Tá bom — respondeu Suzana, antes de puxar a cordinha pedindo para o motorista parar no próximo ponto. Suspirei. Hoje não. Mas, amanhã… Amanhã terei Suzana. FABIANA FERRAZ é escritora, autora do conto “A Mulher e o Vento”, finalista do III Prêmio ABERST na Categoria Narrativa Curta de Terror. Os gêneros pelos quais se aventura são: Terror Psicológico, Fantasia Obscura, Mistério e Ficção Histórica. Fabiana também é Cofundadora do Clube de Escrita Sorocaba.

  • TOP 8 STREAMINGS QUE VOCÊ DEVERIA CONHECER

    Sabemos que a Netflix é uma das plataformas mais conhecidas dos consumidores no que diz respeito à exibição de video on demand (VOD). Em 2018, por exemplo, a Netflix ultrapassou a The Walt Disney Company, tornando-se a empresa de entretenimento com maior valor de mercado existente. Ao utilizar serviços desta natureza, as pessoas escolhem o horário, o tipo de dispositivo (SmartTV, tablet, computador, videogame, celular) e o conteúdo a ser assistido, desde que disponíveis no catálogo da provedora. Estas condições mudaram radicalmente a forma do consumidor se relacionar com o produto audiovisual, que antes era dependente de uma grade televisiva fixa, voltada para a necessidade de atender grandes audiências. Pensando em ampliar o leque de opções, listo oito plataformas de streaming disponíveis no mercado (gratuitas e pagas), e que são, em geral, bem menos conhecidas que a Netflix ou outros serviços, como o Amazon Prime Video, o Globo Play, o Google Play, o Looke, o Telecine Play ou a Youtube Store. 8. Crunchyroll O Crunchyroll é a plataforma mais indicada para os fãs de anime, mangás e séries de dorama. Se você é otaku, não pode deixar de acessar este serviço, que traz em seu acervo produções como “Naruto Shippuden”, “Attack on Titan” e “Dragon Ball Super”. As opções são atualizadas de acordo com o que é feito diretamente do Japão. O conteúdo é legendado (há algumas opções dubladas), e tudo está em alta definição. Para assistir, o assinante paga R$ 25,00 por mês. É possível receber 14 dias de teste 7. Darkflix Criada pelo brasileiro Ernani Silva, a “Netflix para os fãs do horror” é feita “com o único propósito de aterrorizar seus usuários”. Voltada para o cinema fantástico, a Darkflix reúne filmes, séries de TV e animações de horror, ficção científica, fantasia, suspense e mistério, de forma totalmente gratuita. Para acessar, basta fazer um cadastro com e-mail e senha. O streaming estreou de forma gratuita com um catálogo de 666 filmes e 333 episódios de séries. Novas produções estão constantemente sendo adicionadas e atualmente ela disponibiliza um período de carência de sete dias, bastando fazer um cadastro simples e rápido. Depois da carência, é necessário pagar uma mensalidade de R$9,90. 6. SnagFilms O SnagFilms é indicado para aqueles usuários que procuram opções mais independentes, indies, cults, e vencedoras de festivais de cinema, entre ficções, documentários ou séries, entre longas e curtas-metragens. Há, entretanto, dois contras: o primeiro é que, por ser um serviço gratuito, é necessária alguma publicidade, que pode estar no começo, meio ou final do filme. O segundo é que a plataforma disponibiliza seu conteúdo apenas em língua inglesa, sem opções de produções brasileiras ou legendas em português. Se a barreira do idioma não for um problema, é uma ótima alternativa. 5. Afroflix O Afroflix é uma plataforma colaborativa, que oferece produções audiovisuais que tenham, pelo menos, uma pessoa negra assinando na parte técnica/artística das obras. Você encontra não apenas filmes de ficção, experimentais e documentais, mas também videoclipes, séries e webséries, vlogs e programas diversos que são produzidos, roteirizados, dirigidos ou protagonizados por pessoas negras. Todo o catálogo é gratuito para exibição. A plataforma disponibiliza, inicialmente, apenas conteúdos nacionais. 4. Philos Esta plataforma é, de longe, a mais indicada para quem é fã de documentários. Seu acervo está dividido em categorias, sendo elas: “Arte e Cultura”, “Ciência e Pensamento” e “Povos e Culturas”. Algumas produções são classificadas como “especiais”. Dessa forma, é possível assistir séries e espetáculos inteiros de dança e música, documentários sobre artes plásticas, ciência, filosofia, história, biografias e entrevistas. O serviço custa R$ 9,90 nos 12 primeiros meses, e depois passa para R$ 14,90 por mês. 3. Oldflix Com a ideia de apresentar produções “old but gold”, a Oldflix tem em seu catálogo cerca de 800 títulos, entre filmes, séries e animações, de produções realizadas até meados da década de 1990. A mensalidade custa R$ 12,90. Com o slogan “as emoções do passado você revive aqui”, é possível assistir desde Ladrões de Bicicleta (1948), de Vittorio De Sica; Ensaio de Orquestra (1979), de Federico Fellini; A Felicidade Não Se Compra (1947), de Frank Capra; até séries e desenhos como A Feiticeira (1974-1982), Caverna do Dragão (1983-1985) e Dragon Ball Z (1989-1996). O serviço foi criado em 2016, no Rio Grande do Norte, por Manoel Ramalho e seu filho Wagner Wanderley. 2. SPcine Play Para quem é amante do cinema brasileiro, esta é a única plataforma pública de streaming do Brasil, feita com iniciativa da Prefeitura de São Paulo, com intermédio da Secretaria de Cultura. A curadoria é responsável por disponibilizar filmes integrantes das principais mostras e festivais de cinema de São Paulo. Entre os títulos, estão: O Menino e Mundo (2014), de Alê Abreu; Mãe Só Há Uma (2016), de Anna Muylaert; Ausência (2014), de Chico Teixeira, entre vários outros. O aluguel da obra pode ser gratuito ou custar R$ 3,90, e o usuário tem até sete dias para assistir. A mediação até o espectador é feita pelo serviço do Looke. 1. Mubi Por fim, o Mubi é indicado para quem é cinéfilo, uma vez que seu catálogo é dedicado aos filmes de arte, premiados em festivais, produções independentes, clássicos e cults. Por R$ 27,90 por mês é possível assistir aos filmes, que passaram por uma curadoria. A cada dia, uma nova opção aparece e outra sai do catálogo (por isso serão sempre 30 filmes disponíveis por mês), de forma que o espectador precisa se organizar para assistir determinada produção, antes que ela saia da plataforma. É uma maneira interessante de se relacionar com aquela obra específica, bastante diferente da imensidão de filmes que a Netflix oferece, e que por vezes damos pouco valor. JÉSSICA FRAZÃO é produtora audiovisual e doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP). É integrante do Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema (Elviras) e colunista cinematográfica no jornal O Município Blumenau, com "Das Kino - Um olhar crítico sobre o cinema".

  • Papo de arara: Daniel pirraça

    Colaborou: Luiz Pedro Reis Pinheiro 1. Primeiramente gostaríamos de saber como está o cenário para game designers independentes aqui no Brasil. Como você vê esse mercado e que tipos de desafios pessoas que desejam criar seus próprios jogos precisam enfrentar? O cenário vinha melhorando aos poucos até a chegada da pandemia. Temos um bocado de game designers competentes aqui no Brasil, e criatividade não falta. Mas agora a situação está complicada. Vejo muitos projetos (até mesmo de editoras grandes, bem estruturadas) obtendo resultados pífios em seus financiamentos coletivos. Estamos passando por uma crise das brabas, e o pessoal que está sem dinheiro precisa escolher entre pagar as contas ou gastar com lazer. Para os produtores de conteúdo independente, que trabalham no ramo do entretenimento e da arte, o momento é particularmente difícil. É preciso ter, além de garra e perseverança, muito preparo. 2. A escolha do Catarse para o financiamento coletivo foi algo natural? Você tentou outros meios? Foi a alternativa mais óbvia, porque nenhuma editora no mundo ia investir tanta grana em um autor de primeira viagem. Então o Catarse foi minha salvação, porque eu também não tinha condição de bancar tudo com dinheiro do meu próprio bolso, estava desempregado. 3. Existem muitos editais de incentivo governamental para arte e cultura. É comum vermos livros, filmes, espetáculos teatrais sendo realizados com dinheiro público provenientes de editais como esse. Mas existem muito poucos ainda para jogos. Ao mesmo tempo também existem entraves burocráticos, por parte do Estado, que facilitem a vida de quem quer empreender na economia criativa seja fazendo games, aplicativos ou mesmo quem quer abrir uma produtora cultural ou um estúdio de jogos. Como você enxerga isso? Sequer cogitei buscar apoio governamental para o projeto e acho que as chances seriam mesmo baixas. Quando se trata do setor público, contatos influentes são mais importantes do que boas ideias, infelizmente. Acredito que o financiamento coletivo era de fato a opção mais viável, pois o sucesso do projeto só dependeria de boa divulgação e pessoas interessadas, e Kalymba não ficaria refém de processos burocráticos estressantes. Me traz uma felicidade tremenda saber que conseguimos transformar esse sonho em algo tangível apenas com a participação da comunidade, com dinheiro arrecadado voluntariamente. No nosso caso, por sorte, o investimento público não fez falta. 4. - Especificamente sobre o universo diegético do jogo... De fato é muito interessante sua escolha pela cultura de matriz africana para o desenrolar desse novo RPG. Algum recorte específico ou você procurou ser panafricanista? E o que te fez escolher esse recorte? Eu não diria que fiz um recorte específico. A maior influência do cenário é, com certeza, a cosmologia iorubá, que escolhi por ser mais familiar para nós, brasileiros. Mas também há muitos elementos de outras regiões e culturas africanas, todos adaptados à realidade ficcional do cenário que criei. Então Kalymba pode ser chamado de panafricanista, certamente. 5- Na sua opinião existe uma overdose de mitologia européia no universo da fantasia, horror e ficção científica (gêneros onde majoritariamente se passam a maioria dos jogos) no entretenimento? Tipo, todo mundo sabe o que é um troll, um orc, um elfo mas não reconhece com facilidade seres de outras culturas como as do oriente médio e mesmo as do Brasil... Então o que você pensa sobre isso e em que medida isso foi uma questão propulsora para o Kalymba? É fato que no mundo do entretenimento algumas temáticas são exploradas à exaustão enquanto outras são renegadas. No caso dos jogos de RPG, a estrutura que chamamos de fantasia medieval europeia (que se tornou a tal "fantasia clássica", afinal) é a que reina soberana. Há muito conteúdo desse tipo sendo produzido e lançado todos os anos, às vezes mais do que o mercado pode absorver. Mas não há como negar que a maioria dos jogadores de RPG continuam sendo atraídos por esses materiais, por mais que, a meu ver, tenham se tornado repetitivos. Então eu resolvi apostar em uma temática diferente, que atraísse jogadores de outros nichos, mas que também soasse familiar para esse público adepto ao mainstream – a fantasia "medieval" africana. E deu certo: Kalymba bombou! Ao que parece, era um material com demanda latente. As pessoas queriam, mas não sabiam disso ainda, pois não havia nada semelhante no mercado. 6 - Como foi o seu processo de pesquisa para conseguir adaptar essa mitologia dentro do seu universo? Quais suas fontes de pesquisa e dificuldades? A pesquisa foi intensa e cheia de obstáculos, desde barreiras linguísticas até a completa ausência de material de referência. Várias das culturas nas quais me inspirei foram negligenciadas pela História durante séculos, então os estudos ainda são escassos, principalmente na língua portuguesa. Também tem o fato de muito do conhecimento mitológico da África – que foi meu principal objeto de pesquisa – ser baseado na tradição oral. Minha vontade de viajar para lá para absorver inspiração direto da fonte é grande, mas falta quem me banque, hahahaha. Enquanto isso, preciso me contentar com aquilo que o Google e os livros têm a me oferecer. 7 - A o enredo, a base da trama, você adaptou alguma ideia original sua a esse universo, ou uma outra história para esse universo ou você tentou resgatar alguma narrativa original do folclore e mitologias africanas? A estrutura clássica da Jornada do Herói (o monomito) foi usada? Kalymba é um cenário fictício, um universo meu que foi inspirado nas histórias da África. Tem muitas ideias originais minhas embutidas ali, embora o ponto de partida sejam civilizações, eventos, tradições e mitologias existentes. Nesse cenário, eu proponho o chamado à aventura e ofereço os desafios necessários para que os heróis (os jogadores) tracem suas próprias jornadas. 8 - O que você aconselharia extra jogo para que os jogadores possam ter uma maior bagagem ao entrar em Kalymba? Acho que a necessidade (ou a curiosidade) de pesquisar surgirá no decorrer da leitura. Kalymba tenta estimular essa busca por conhecimento, mas também fornece muito material para que leigos e iniciantes não precisem se preocupar com bagagem prévia. 9 - Por quais sistemas e livros você já passou dentro do universo do RPG e em que ponto você decidiu criar o seu próprio? E como esses sistemas de RPG te influenciaram? Faz uns sete anos que conheci o RPG. Comecei mestrando o sistema +2d6, que não por acaso se tornou a base das mecânicas do Kalymba. Mestrei Tormenta, Dungeon Crawl Classics, Pesadelos Terríveis e desenvolvi uns poucos sistemas próprios, como Ilha da Fantasia Homicida, que ainda narro ocasionalmente em eventos. Comecei Kalymba menos de um ano após me iniciar no hobby, foi um desastre. Demorou um bocado de tempo até que eu tivesse bagagem para construir um sistema funcional e um cenário interessante. Tudo o que consumi nesse período serviu de combustível para minha criatividade, além de me fornecer noções de game design. 10. Sabemos que um jogo é uma linguagem artística que bebe de outras linguagens como a literatura, o cinema, as artes visuais... Quais suas influências nessas áreas, que quadrinhos, romances, música e filmes, por exemplo, você consome e quais te influenciam direta e indiretamente na sua criação? Desde os quatro anos de idade consumo documentários que nem um louco. São uma grande fonte de inspiração para mim. Séries como Shaka Zulu, filmes como Kiriku e a Feiticeira e livros como Império de Diamante também deram asas à minha imaginação. 11 - Aproximadamente  quantas horas de playteste de quantas pessoas foram envolvidas para que você chegasse ao nível de refinamento que encontraremos no livro? Não faço ideia. Mestro Kalymba há anos, era um projeto pessoal, para uso próprio. Ninguém conta as horas que passou jogando RPG com os amigos. Também mestrei em eventos, então... Sei lá. Só fui testanto, testando de novo, mudando e corrigindo as mecânicas. Foi um playtest feito naturalmente, na maior parte do tempo. Só mais recentemente começamos a testar mecânicas específicas e fazer uma análise aprofundada das regras, mas nesse ponto o sistema já estava bom o bastante para ser jogado. 12- O que te fez optar por criar um sistema mais simples? Não gosto de mecânicas desnecessariamente complicadas. Prefiro apostar na liberdade e na personalização. Kalymba é simples, mas robusto, pois oferece muitas opções aos jogadores, algo que sempre valorizei. 13- E qual o objetivo em não criar classes fixas dentro do jogo? Isso se relaciona diretamente com o universo escolhido ou é uma inovação na mecânica (modo de jogar)? Como disse uma vez William Wallace: "Liberdaaaaaade!". A mecânica de classes era algo que não parecia se encaixar com a proposta do jogo. Não tem a ver com o universo de Kalymba, mas com a experiência que eu queria transmitir. 14- Pra quem você recomendaria o seu livro e para quem você não recomendaria? Recomendo Kalymba para todos aqueles que desejam começar a jogar RPG ou experimentar coisas novas dentro do hobby. A exceção é para jogadores que fazem questão de sistemas narrativistas, com poucas regras e poucas rolagens de dados. Kalymba não é assim, então eu odiaria te decepcionar. Mas felizmente, para o restante das pessoas, esse jogo pode ser incrivelmente divertido. 15 - Está previsto expansão do universo atual, digo, com mais aventuras prontas ou evoluções do cenário seja de caráter físico ou virtual? Com certeza. Pretendo lançar mais aventuras, talvez suplementos, talvez romances...  Se o material será pago, gratuito, impresso ou digital, aí eu já não sei. O fato é que ainda tem muita coisa pra explorar nesse universo, e espero que a comunidade de jogadores colabore no processo. 16 - A campanha do Catarse teve, como você disse que obteve 1065% da meta. A que você acha que se deve seu sucesso? Temática diferenciada. Sistema não D20 e qualidade das ilustrações. Ficou curioso com o jogo? Quer ler mais sobre jogos aqui no site? Confere este artigo super bacana aqui sobre jogos de tabuleiro modernos. Gostou da entrevista? Temos outras bem legais com a da Verônica Oliveira a faxineira mais badalada do Brasil, o Léo Drummond especialista em fones de ouvido e uma com a Yandra Lobo sobre as delícias e os desfios dela na maternidade de filhx trans.

  • Top 10 discos dos Beatles na minha humilde opinião

    Olha. Vamo lá. É a minha opinião. De músico, de músico que não conhece nada de música pop, mas que dessa banda conhece tudo. Nesse Top 10 conta tudo que for dos Beatles, todos os discos lançados com o nome oficial The Beatles. Incluindo Past Masters, Anthologies, Yellow Submarine, BBC etc. Vai ser a lista mais polêmica de todos os tempos. Mas eu sustento. Tem coragem? Então bora. A discografia da banda, pra você se situar, é a seguinte: Please Please Me (1963) With The Beatles (1963) A Hard Day's Night (1964) Beatles For Sale (1964) Help! (1965) Rubber Soul (1965) Revolver (1966) Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band (1967) Magical Mystery Tour (1967) The Beatles (Álbum Branco) (1968) Yellow Submarine (1969) Abbey Road (1969) Let It Be (1970) (depois daqui o grupo se separou, e todos os lançamentos subsequentes envolvem gravações dos anos 60) Past Masters (1988) (compilação) Live At The BBC (1994) Anthology 1 (1995) (compilação e takes alternativos, com uma música nova: Free as a Bird, que foi trabalhada pelos 3 Beatles então vivos, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr, sobre uma gravação antiga de John Lennon) Anthology 2 (1996) (também com uma música nova: Real Love) Anthology 3 (1996) 1 (2000) (compilação) Let It Be... Naked (2003) (uma nova mixagem de Let It Be) Love (2006) (uma colagem feita para um espetáculo do Cirque du Soleil) Live At The BBC, Volume 2 (2013) Live At The Hollywood Bowl (2016) 10 - Past Masters Quando eu era pequeno eram dois volumes. Eu indicaria o 2, mas, como agora vêm juntos, melhor ainda. São os singles que não saíram em álbuns, então tem desde a boba Love Me Do até maravilhas como Hey Jude, Across the Universe, e The Inner Light. Tem coisas esquisitas, também, como You Know My Name (Look Up The Number), uma faixa que eles tinham gravado e não sabiam o que fazer dela. Acabaram lançando como single. Eu gosto, mas não é pra todo mundo. De resto, praticamente todas as músicas são conhecidas e a maioria você não encontra nos álbuns, de modo que é um disco indispensável. 9 - Help! O último disco da fase Rock 'n' Roll, ou fase Iê iê iê, Help! é também o mais legal. Metade do álbum é composto por canções que fizeram a trilha sonora do filme homônimo. Aqui, pela primeira vez aparece um Beatle sem os outros: Paul canta Yesterday com um quarteto de cordas. Além da icônica canção título temos Ticket to Ride, The Night Before, I Need You e I've Just Seen a Face. 8 - Rubber Soul O começo da fase madura da banda. Pra quem não sabe, eles têm duas. A Iê iê iê e a madura. O Rubber Soul é a transição para a fase psicodélica. Começa com Drive My Car (adoro, veja), e você pensa que vai ser a mesma coisa dos 5 discos anteriores, mas logo vem Norwegian Wood e já dá pra notar diferenças. É a influência de Bob Dylan. Depois teremos músicas bem representativas, como Nowhere Man, Michelle, Girl, In My Life e outras. 7 - Revolver O disco é de 1966, que foi justamente quando pararam de tocar em público, virando, efetivamente, uma banda de estúdio. Isso permitiu que fizessem experiências musicais, gravando coisas que não seriam capazes de reproduzir num show. Por exemplo: Here, There and Everywhere tem a voz principal e 3 outras fazendo a harmonia. 4 vozes para 3 Beatles, já que Ringo não canta essa. Yellow Submarine tem muitos efeitos especiais: som de água borbulhando, do próprio submarino, ondas etc. E ainda uma banda de metais! Taxman, uma das 3 que George conseguiu emplacar no disco, tem um solo de guitarra gravado de um jeito e tocado ao contrário. Temos ainda Eleanor Rigby, em que eles só cantam, acompanhados por um sexteto de cordas; Love You To; Good Day, Sunshine; For No One e Tomorrow Never Knows - o disco inteiro é um clássico (eu tinha que dizer isso em algum ponto, minhas mãos estão atadas). 6 - Let It Be / Let It Be... Naked Let It Be é cheio de histórias tristes da banda brigando, da Yoko onipresente (não gosto de passar pano pra ela, mas parece que era o John que queria assim), o que atazanava os outros, claro. Além de brigas, inclusive filmadas e da saída de George. Ele largou, simplesmente desistiu. Até que foi chamado de volta, prometeram que mudariam de estúdio e chamariam seu amigo Billy Preston pra tocar teclado - uma presença nova pra melhorar o ambiente, que, de fato, melhorou. O disco foi gravado no começo de 1969, antes de Abbey Road. Acontece que foi lançado depois, em 1970, ficando sendo o último lançado pela banda. O grupo queria voltar às suas origens, tocando como banda, ao vivo - em vez de usar orquestras e efeitos de estúdio - seria um disco cru. Ocorre que no final, não tinham um material coeso, e entregaram a fita a vários produtores pra tentar tirar dali um álbum. Até que acabaram entregando a Phil Spector, que fez uns malabarismos que desagradaram o Paul: sua música The Long and Winding Road foi a mais afetada, recebendo um arranjo orquestral grandioso e extravagante, que ia totalmente contra a proposta de fazer um disco raiz. Mas foi lançado mesmo assim: o único disco de carreira dos Beatles a não ser produzido por George Martin. Então, em 2003, com autorização dos Beatles vivos (Paul e Ringo) e das famílias dos outros, eles lançam Let It Be... Naked, que parece mais com a proposta inicial. Indico esse disco porque é melhor que o antigo, mas todo mundo tem que ter a experiência de escutar o outro. Eles têm Let It Be, Across The Universe, The Long And Winding Road, I Me Mine, Don't Let Me Down, Get Back. Na verdade, é sensacional. 5 - Love Love é uma colagem de músicas de todos os discos da banda feita por George Martin, o lendário produtor e arranjador dos Beatles, e seu filho Giles Martin, para um espetáculo do Cirque du Soleil de mesmo nome. Acontece que é uma obra de arte. E sim, é um lançamento oficial dos Beatles. Altamente nostálgico, o álbum conta quase exclusivamente com sons gravados pela banda (a exceção é um arranjo de cordas sobre um take demo de While My Guitar Gently Wheeps, que é um dos pontos altos do disco). Começa com Because destituída do seu instrumental, só com as vozes. Depois, Get Back, só que começando com o acorde de A Hard Day's Night e com a bateria de The End. E aí teremos várias misturas (mashups). Que combinam muito bem. Drive My Car tem o solo de Taxman e quando sai do solo é What You're Doing, com um riff duplo: dela mesma e de Drive My Car. É muito bom. Ninguém poderia ter feito trabalho melhor. Tem até música ao contrário, como Gnik Nus, que é Sun King, desembocando em Something. 4 - Magical Mystery Tour Sim, a gente tem que ponderar a respeito desse álbum. Ele é a mistura da trilha sonora de um filme de mesmo nome que eles fizeram para a televisão, com músicas de singles. Foi lançado como EP (6 faixas) na Inglaterra. Mas o fato é que hoje, na discografia oficial deles, o que conta é o disco tal como foi lançado nos EUA, ou seja, 11 faixas. E se contarmos essas 11 o disco é excepcional. Tem Penny Lane e Strawberry Fields Forever. Além de All You Need Is Love, The Fool On The Hill, Your Mother Should Know e Blue Jay Way. 3 - The Beatles (White Album/Álbum Branco) Sobre o Álbum Branco, é consenso que seria melhor que fosse um disco simples. Resolveram lançar como duplo, e algumas faixas são criticadas. Precisavam mesmo estar lá? Bom, eu só lembro de 2 que realmente forçam a barra: Wild Honey Pie e Revolution 9. Também não gosto de Birthday e Everybody's Got Something To Hide... De bom, tem todo o resto, com atenção especial a While My Guitar Gently Wheeps, Hapiness Is A Warm Gun, Martha My Dear, Blackbird, Honey Pie. 2 - Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band O disco mais psicodélico dos Beatles, Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band é um marco na discografia popular dos anos 60. Qualquer Top alguma coisa relacionada a música Pop ou Rock, tem esse disco no topo ou perto dele. É tido como um álbum conceitual, de forma que é mais comum a gente ouvir o disco todo do que canções individuais. Mas ele tem a canção título, With A Lillte Help From My Friends, Lucy In The Sky With Diamonds e A Day In The Life. Gosto muito das do Paul: Fixing a Hole, Getting Better e When I'm Sixty Four. 1 - Abbey Road Em 69 os Beatles subiram no telhado. E também atravessaram a rua. Esse, embora lançado antes do Let It Be, foi o último disco gravado pelo quarteto. Com Come Together, Here Comes The Sun, Oh, Darling, Something e Because no lado A, o disco conta com um medley no lado B, que culmina com a fantástica The End, em que os 4 improvisam e termina com a maravilhosa frase: "E, no final, o amor que você tem é igual ao amor que você dá". A última frase do último álbum da banda mais famosa do mundo. Bom, tecnicamente, ainda tem Her Majesty, uma faixa curtinha escondida depois de vários segundos de silêncio. Eu fiquei entre ele e o Sgt. Pepper's, mas acaba que eu escuto mais esse. E aí, concorda? Discorda? Faça polêmica e barulho nos comentários. Mas a palavra é love. Leia também nossas listas de melhores faixas do Rock 'n' Roll em rolagem regressiva, dos anos 2010 até os anos 50: 2010 2000 1990 1980 1970

  • A mina da Roupa de borracha #03

    Uma história em quadrinhos de Dona Dora. Dona Dora Nascida no Rio e criada na Ceilândia-DF, foi estudante de escolas públicas e formada em Artes Plásticas pela UnB - Universidade de Brasília. Em 2013, passou a produzir quadrinhos participando de eventos marginais ou feiras de coletivos de produção independente Zines. Desde então faz uns desenhos diferenciados, pinta quadros, faz quadrinhos e atualmente dá aula de Artes para o Ensino Médio. Curadoria de quadrinhos: Nílbio Thé e Isabelle Prado.

  • Desenho Coisinhas #04

    Desenho coisinhas #4, por Lele Reis. Lele Reis Meu nome é Lele, eu desenho coisinhas e não tenho interesse suficiente em mim mesma ou no meu trabalho pra dizer qualquer coisa além disso! :-D Curadoria de quadrinhos Nílbio Thé e Isabelle Prado.

  • das kino na arara: Filmes lançados diretamente em streaming: a pandemia decretou o fim do cinema?

    Vivenciamos uma “nostalgia” do futuro. Com um presente desolador, nos conforta mais pensar no que ainda está por vir. Por conta de uma série de mudanças que a pandemia do coronavírus bruscamente nos trouxe, parece inevitável tentar fazer previsões. Mas o futuro não é previsível. Podemos, quando muito, trabalhar com certos indicadores. Quando Renato Russo cantava que o futuro não é mais como era antigamente, quando o filme Metrópolis, de Fritz Lang, lá em 1927, já representava uma cidade de 100 anos à frente ou quando o pintor Edward Hopper, quiçá um profeta do isolamento social, há muitas décadas pintava pessoas solitárias em suas casas, compreendemos como a arte sempre nos falou de futuro. Em 2020, o cinema é um caso análogo às incertezas que a pandemia traz. Para dimensionar a crise no setor, exponho abaixo as situações que nos servem de parâmetro e de reflexão sobre essa nova fase da indústria cinematográfica e dos novos modos de fazer, ver e consumir audiovisual. Em relação ao parque exibidor, hoje, 3.600 salas de exibição no Brasil estão fechadas pela pandemia. Por conta disso, nosso país registrou, pela primeira vez na história, faturamento zero de bilheteria. Não frequentar as salas de cinema significa, na prática, interferir na vida de 40 mil trabalhadores diretos, como os lanterninhas, os bilheteiros, os pipoqueiros, os atendentes de bomboniere, entre outros. Para compreender o tamanho do impacto, geralmente, o faturamento das exibidoras vem de 50% da bilheteria e 50% da venda de produtos alimentícios. Sem público e sem produções novas sendo feitas, é praticamente impossível seguir pagando o aluguel e o salário dos funcionários. Grandes exibidoras nos Estados Unidos, como a rede de cinema AMX e Cineworld, já passam por complicações sem precedentes, podendo não sobreviver à crise. Se estas gigantes exibidoras passam por problemas substanciais, o que dizer das salas pequenas? Em Santa Catarina, cito os exemplos da Cineramabc Arthouse, em Balneário Camboriú, e do Paradigma Cine Arte, em Florianópolis, que em muito necessitam do público para sobreviver. No momento, ambos os espaços tentam amenizar a situação com programação de cinema virtual. Não bastasse isso, o grande período de confinamento também preocupa os donos dos cinemas, no sentido da situação incentivar novos hábitos dos espectadores, que agora estão cada mais adeptos ao mundo do streaming, podendo não mais apreciar à ida ao cinema. Por falar em streaming, a demanda por serviços desse tipo cresceu em 20% em todo o mundo desde o começo da pandemia. Só na Netflix, o número de assinantes aumentou em 15,7 milhões. Aproveitando-se do comportamento de mercado, a Universal Studios lançou o filme Trolls 2 diretamente nos serviços de streaming dos Estados Unidos. O que para muitos pareceu genial, para outros causou um desconforto, como o caso da Universal com as exibidoras. Exemplo é a própria AMX, já mencionada, que pretende fazer um boicote ao estúdio de cinema daqui em diante. Em outras palavras, a Universal está dizendo ao mundo e às exibidoras que as salas de cinema não são mais uma preocupação. A Disney não ficou atrás e lançou seu último filme no dia 12 de junho, Artemis Fowl: O Mundo Secreto, diretamente na sua Plataforma de streaming Disney+, disponível apenas nos Estados Unidos. Aos filmes brasileiros, esta questão também já é uma realidade. A Amazon, por exemplo, lançou o longa Vou nadar até você, protagonizado por Bruna Marquezine, em várias plataformas, como a NET Now, Vivo, Oi, bem como no iTunes, Google Play, Looke e Filme Filme. Outra questão importante que sofre a indústria cinematográfica é a alteração no calendário de produção dos filmes. As produções que seriam feitas este ano estão congeladas, sem data para voltar. Normalmente, o sucesso da obra fílmica nas salas de cinema estipula sua continuidade em sistemas de VoD ou na TV. Como vimos, essa lógica foi alterada, pulando a etapa das salas de cinema e buscando uma audiência diretamente no streaming. É grave para Hollywood saber que a temporada de verão nos Estados Unidos, que inicia agora em junho e é responsável por 40% do seu faturamento anual, está ameaçada. Sem produções, o prejuízo será gigantesco. Vários filmes foram reagendados para 2021 e 2022, como Missão Impossível 7 e 8 e Matrix 4. Alguns ainda seguem mantidos para o calendário de 2020, mas sem muita certeza quanto ao lançamento, como é o caso de Mulan, já finalizado, mas com nova data para estrear em 21 de agosto de 2020. A grande maioria dos filmes da Marvel Studios também foi reagendada, a começar por “Viúva Negra”. Essa decisão é necessária porque os filmes da franquia fazem parte de um universo compartilhado, e alterações precisam ser pensadas pelo conjunto da obra. Um questionamento que fica é: será que ainda cabe pensar, nestes tempos pandêmicos, em sequências, remakes ou adaptações em ritmo louco como fazem os produtores dos blockbusters? O Oscar também anunciou alterações para sua 93ª edição, em 2021. Dada a situação, a Academia aceitará filmes com estreia apenas em streaming. Até a edição anterior, as produções tinham, obrigatoriamente, que passar pelas salas de cinema. A decisão foi comentada pelo presidente da Academy of Motion Picture Arts and Sciences, David Rubin: “A Academia acredita firmemente que não existe um melhor jeito de experenciar a mágica dos filmes do que os assistir nas salas de cinema. Entretanto, a pandemia trágica e histórica da COVID-19 necessita-nos fazer esta exceção temporária nas nossas regras de elegibilidade”. Além disso, a Cerimônia foi adiada para o dia 25 de abril. Originalmente, ela ocorreria no dia 28 de fevereiro. Essa alteração já ocorreu três vezes ao longo da história do Oscar. Primeiro, em 1938, devido a uma inundação em Los Angeles. Depois, em 1968, dado o assassinato de Martin Luther King Jr. E, finalmente, em 1981, após a tentativa de assassinato do presidente Ronald Reagan. Diferentemente da Europa, que já reabre seus cinemas respeitando rígidos protocolos de saúde, por aqui, nem tão cedo teremos condições de almejar o mesmo, e sabemos que isso é o certo a se fazer. Mas, como fica nossa indústria cinematográfica nacional? Somente dia 24/06 é que foi aprovado um pacote de medidas emergenciais de apoio ao setor audiovisual. Organizado pelo Comitê Gestor do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), uma primeira reunião, há muito almejada, foi concedida junto ao atual ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, responsável pelo setor. A situação da Cinemateca Nacional também continua difícil, conforme abordei em uma coluna recente. Crise no cinema não é uma novidade. Quando tivemos o advento do som sincronizado, no final da década de 1920, houve crise. “O som aniquila a grande beleza do silêncio”, dizia Charles Chaplin, bastante relutante à novidade. Quando surgiu a TV aberta, houve crise. Agora, passamos por isso novamente, com uma pandemia que só reforça um movimento ligado a uma revolução tecnológica que já vinha ocorrendo, fortemente marcada pela adesão ao digital. Sempre nos adaptamos, agora não será diferente. O cinema seguirá resistindo, ainda mais em um momento em que a demanda por audiovisual nunca esteve tão alta. É hora que pensarmos sobre o futuro do audiovisual brasileiro, não como previsão, mas a partir de um horizonte de expectativas. Nem apocalípticos e nem integrados, mas, sabendo que, ao que tudo indica, o cinema não é mais como era antigamente. Jéssica Frazão é produtora audiovisual e doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP). É integrante do Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema (Elviras) e colunista cinematográfica no jornal O Município Blumenau, com "Das Kino - Um olhar crítico sobre o cinema".

  • Opereta de Casamento, de Edu Lobo e Chico Buarque, com Argonautas

    Mais uma música do disco "Argonautas Interpretam Edu Lobo". Agora estamos com esperança de que poderemos lançar o disco nas plataformas digitais. Opereta de Casamento é do espetáculo e disco O Grande Circo Místico, com músicas de Edu Lobo e Chico Buarque, de 1983. É uma música pouquíssimo regravada, porque é difícil achar o tom certo (a cor certa, não o tom musical). É uma música bem teatral, cantado no disco por um coro, orquestra, num arranjo circense. A falta de concorrentes nos deu liberdade para tentar o arranjo que quiséssemos. Gostamos disso. Mais uma vez, Luiz Orsano dos deu uma força, tocando a bateria. Igor Ribeiro estava de férias. Violão, voz, saxofones e arranjo: Rafael Torres Piano: Ayrton Pessoa Baixo: Ednar Pinho Bateria: Luiz Orsano Comente o que achou aí em baixo. E ouça as outras músicas do disco: A Moça do Sonho A Permuta dos Santos Escute o disco em: www.grupoargonautas.com.br Opereta de Casamento Edu Lobo e Chico Buarque Nem assaz alhures e antanho Era um evento tamanho A sagração nupcial Vinha a noiva de gargantilha Caçoleta e rendilha Diadema e torçal Mas se houvesse algum embaraço Dera a moça um mal passo Quanto horror e desdém Ela ia parar no convento Ia dormir ao relento Ou deitar nos trilhos do trem Do pudor da noiva a bandeira Após a noite primeira Desfraldava-se ao sol A sua virtude escarlate Igual brasão de tomate Enobrecendo o lençol Mas se não houvesse tal mancha É que outra mancha mais ancha Se ocultava por trás E o rapaz pagava o malogro Com a vendeta do sogro Ou com a malícia dos mortais "Oh meu pai, oh meu pai, por favor Condenai o nosso amor De langor e luxúria! Mas poupai, oh meu pai Nosso filho Da fúria do Senhor!'' O guri nasceu apressado Nem um mês de casado Tinha quem o gerou Quando o pai caiu nos infernos Foi nos braços maternos Que ele se pendurou Quando a mãe caiu na sarjeta Foi seguindo a opereta Na garupa do avô Quando o avô caiu do cavalo Foi chorar no intervalo E mais um ato começou Palhaço, corista Trapézio, dançarina Maestro, cortina É fé na flauta e pé na pista

  • Cartagena das cores

    Cartagena é amarela. Amarela como minha mala de mão e 80% das minhas roupas. Amarela na Torre do Relógio, nas roupas das palenqueras, nas paredes de muitas casas da cidade amuralhada. Amarela na luz intensa e quente do sol que a tudo ilumina. Cartagena é azul. Azul do céu de um verão que já se despede, do mar do Caribe (em que não pude me banhar) e novamente na roupa das palenqueras, negras, que num parentesco diaspórico lembram as baianas de uma outra cidade que um dia também foi murada. Cartagena é preta, negra, nas mulheres que vendem as frutas e sua própria imagem nas fotos, a cada esquina, nos garçons, nos ambulantes que me gritam "Hola Chica", "beautiful lady", "my color"... Negra nas comidas caribenhas, nas pinturas, nas vitrines, nos turbantes, assim como também é indígena, nas mesmas vitrines, nos muitos rostos nas calçadas, caminhando, vendendo, vivendo. Só que não existe luz intensa que não traga também sombras densas, e elas estão aqui. Na dureza de um Museu da Inquisição que rememora o Santo Ofício que, com seu medo do diferente, aterrorizou e vitimou mais de 4.000 pessoas - bruxas, erveiras, hereges, sodomitas, judeus, muçulmanos... A partir de uma pureza duvidosa, posta em causa apenas observando o mourisco presente nas construções espanholas. A Inquisição, a Reconquista, a escravidão, como o contracampo sombrio do horror que habitou e ainda escorre por esse chão que desavisada e alegremente pisamos hoje. A sorte nossa é que casa sorriso, cada corpo que se colore por esse amarelo e azul é um Palenque cotidiano, e que o calor do sol, o frescor das águas e o poder das folhas é sempre maior. Cartagena amarela, preta e azul, tão real e tão fantástica que se inscreve na pele pelo sal e suor dos dias. Tudo é outra coisa depois dela. Bel Melo Chegou ao cinema pelos caminhos dos afetos e da História. É Professora da UNEB, doutora em Meios e Processos Audiovisuais e pesquisadora de história do cinema. Já escreveu livro, plantou árvore, mas não tem filho. Gosta de uns filmes esquisitos, de livro impresso, ama abraço gostoso, olhar no olho, cozinhar, ouvir muita música, e às vezes vira modela pras migas artistas.

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A Arara Neon é um blog sobre artes, ideias, música clássica e muito mais. De Fortaleza, Ceará, Brasil.

2024

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