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  • Francisco Alves – O Rei da Voz

    Um dos maiores cantores brasileiros de todos os tempos foi, sem dúvida, Francisco Alves, conhecido como O Rei da Voz. Hoje, praticamente esquecido, ele foi o principal nome de nossa música popular do final da década de 1920 até 1952, ano de sua morte. Francisco de Morais Alves nasceu no Rio de Janeiro, em 19 de agosto de 1898. Seus pais eram portugueses e ele tinha um irmão, José, e várias irmãs, entre elas, Ângela, Carolina e Nair. José faleceu precocemente em 1918, vitimado pela Gripe Espanhola, e Nair Alves, já no final da década de 1910, era uma conhecida atriz de nosso Teatro de Revista. Nessa época, o jovem Francisco Alves iniciou carreira seguindo os passos da irmã, no teatro musicado. Recebeu o apelido de Chico Viola da atriz Zazá Soares, a Bela Zazá. Em outubro de 1919, o compositor José Barbosa da Silva (Sinhô) que entraria para a história como O Rei do Samba, levou Francisco Alves, então com 21 anos de idade, para gravar seu primeiro disco. Chico e suas sobrinhas (que fariam o coro) seguiram para a gravadora A Popular, de propriedade do casal Chiquinha Gonzaga e João Batista Gonzaga, que era instalada no quintal deles. Aí, o iniciante cantor gravou três músicas de Sinhô: O Pé de Anjo, marcha; Fala, meu Louro (Papagaio Louro), samba e Alivia esses Olhos, samba. O Pé de Anjo seria um dos grandes sucessos no Carnaval de 1920, sendo também o nome de uma revista carnavalesca de muito sucesso de nosso Teatro de Revista. Entre 1920 e 1926, Francisco Alves se dedicou ao teatro musicado e gravou alguns discos por volta de 1924, pelo selo Odeon Record. Neste mesmo selo, voltaria a gravar com regularidade em 1926, tendo seus discos lançados ao longo de 1927, ainda no processo mecânico de gravações, realizados pela vibração da voz dos intérpretes. Em 1927, quando foi instalado o processo de gravação elétrica no Brasil, Francisco Alves foi o primeiro cantor a gravar nessa nova tecnologia, interpretando na Odeon o samba Passarinho do Má e a marcha Albertina, ambas de Amorim Diniz (Duque). Ao final da década de 1920, ele era o mais popular cantor de nosso país, gravando com frequência pela Odeon, tendo gravado alguns discos Odeonete e na Parlophon (subsidiária da Odeon). É interessante perceber que enquanto gravava na Odeon, ele assinava os discos como Francisco Alves e, no mesmo período, gravando na Parlophon, assinava Chico Viola, sendo um dos poucos ou o único cantor de seu tempo a concorrer consigo mesmo nas vendagens de discos. No final da década de 1920, Francisco Alves lançou compositores como Ismael Silva. Por essa época, era prática comum a compra e venda de músicas e Chico comprou algumas composições de Ismael Silva, aparecendo como co-autor. Porém, Chico Alves também compunha músicas e melodias, sendo um bom violonista (gravou alguns solos de violão, inclusive em parceria com Rogério Guimarães). Entre a composições de sua autoria podemos destacar as canções Tormento e Lua Nova, em parceria com Luiz Iglezias; os sambas Zomba e Vadiagem; e a célebre canção A Voz do Violão, em parceria com Horácio de Campos, entre muitas outras. A década de 1930, com o sucesso do rádio no Brasil, aumentaria o prestígio de Francisco Alves, sendo o cantor mais popular e bem sucedido do país. Igual a ele, só Carmen Miranda. Chico Alves brilhava no disco, excursionava por estados e pela Argentina, fazia shows, se apresentava em cassinos e ainda aparecia em filmes musicais, como Alô, Alô Carnaval (1936), Laranja da China (1940), Berlim na Batucada (1944), onde também atuou, além de cantar. Em 1938, Francisco Alves veio a Fortaleza, atuando na Ceará Rádio Clube, a convite de João Dummar. Francisco Alves teve como segunda companheira a atriz e dançarina Célia Zenatti, que se destacou no Teatro de Revista da década de 1920. Eles estiveram casados por vinte e oito anos, separando-se anos antes de Chico falecer. Célia, porém, seria considerada por todos a viúva de Francisco Alves. Entre os artistas que lançou estão: Orlando Silva, por volta de 1934, e João Dias, ao final da década de 1940. João Dias tinha a voz muito parecida com a de seu descobridor. Esse astro tão importante de nossa música foi quem mais gravou discos 78 rpm em sua época, registrando os mais variados estilos de músicas, gravando em primeira mão clássicos como Aquarela do Brasil (1939), de Ary Barroso, e cantando não somente sozinho, mas ao lado de outros artistas: Mário Reis, em uma bem sucedida e curta parceria; Célia Zenatti, sua esposa; Carmen Miranda; Aracy Côrtes; Gilda de Abreu; Gastão Formenti; Castro Barbosa, além de uma série de gravações com Dalva de Oliveira. Aliás, se ele era O Rei da Voz, Dalva era A Rainha da Voz, devido às suas belas e potentes vozes. Toda a fama, prolongada ao longo da década de 1940, e o prestígio de Francisco Alves foram interrompidos no fim da tarde de 27 de setembro de 1952. Ao voltar para o Rio de Janeiro após um show em São Paulo (ele não gostava de viajar de avião), seu carro se chocou com um caminhão na Via Dutra, na altura da cidade de Pindamonhangaba (SP). No impacto, o motorista foi arremessado para fora do carro, sobrevivendo. Francisco Alves faleceu no impacto, tendo seu corpo preso às ferragens e carbonizado no incêndio que tomou conta do veículo. Seu velório e enterro foram um dos mais concorridos do Rio de Janeiro, igualando-se somente ao de Getúlio Vargas (1954) e ao de Carmen Miranda (1955). Pouco depois de sua morte, Chico Alves foi homenageado em gravações e até em filme. Mas, como é comum no Brasil, o tempo vai apagando da memória coletiva o nome de grandes artistas do passado. Infelizmente, ainda hoje muitas pessoas acham que não “combina” a convivência do “novo” com o “antigo”, sendo este último apagado. Mas, como há exceções, o nome e a obra de Francisco Alves ainda resiste e é lembrado por jovens fãs, que vão conhecendo suas gravações, e por pesquisadores/colecionadores que, ao longo de décadas, vão preservando os discos, fotografias e, até, filmes desse cantor que um dia recebeu o título de O Rei da Voz. MARCELO BONAVIDES DE CASTRO Jornalista, Historiador, Pesquisador Musical e Ator E-mail: bonavides75@gmail.com Blog: Arquivo Marcelo Bonavides (marcelobonavides.com) Ficha Técnica das Fotos (Todas as fotos são do Arquivo Nirez) Ficha Técnica das Músicas (Todas as gravações foram retiradas de discos 78 rpm pertencentes ao Arquivo Nirez) PASSARINHO DO MÁ Samba de Antônio Amorim Diniz (Duque) Gravado por Francisco Alves Acompanhamento da Orquestra Pan American do Cassino Copacabana Disco Odeon 10.001-B, matriz 1163 Lançado em julho de 1927 ORA VEJAM SÓ Samba de José Barbosa da Silva (Sinhô) Gravado por Francisco Alves Acompanhamento da Orquestra Pan American do Cassino Copacabana Disco Odeon 10.128-A, matriz 1506 Lançado em fevereiro de 1928 A VOZ DO VIOLÃO Canção Brasileira de Francisco Alves e Horácio de Campos Gravada por Francisco Alves Acompanhamento da Orquestra Rio Artists Disco Odeon 10.509-B, matriz 3016 Gravado em 01 de outubro de 1929 e lançado em dezembro de 1929 BEM TE VI Modinha de Miguel Emídio Pestana e Melo Morais Filho Gravada por Francisco Alves Acompanhamento de Tute ao Violão e Luperce Miranda ao Bandolim Disco Odeon 10.709-B, matriz 3926 Gravado em 28 de agosto de 1930 e lançado em novembro de 1930 BOA NOITE, AMOR Valsa de José Maria de Abreu e Francisco Mattoso Gravada por Francisco Alves Acompanhamento da Orquestra Victor Brasileira Disco Victor 34.052-A, matriz 80111-1 Gravado em 03 de abril de 1936 e lançado em maio de 1936

  • das kino na arara: Por um audiovisual antifascista

    A recente campanha antifascista ganhou fôlego no Brasil e no mundo meses atrás sobretudo após Donald Trump escrever em sua conta do Twitter que os Estados Unidos vão considerar os manifestantes antifascistas como uma “organização terrorista”. Rapidamente, Jair Bolsonaro republicou em sua conta os dizeres de Trump e até agora muitos bolsonaristas encaram a classificação "antifa" como um movimento centralizado, com diretório, cargos de comando e financiamento de ações. Mas será assim? No final de junho a Gaviões da Fiel e outras torcidas organizadas de futebol se reuniram na avenida Paulista, em São Paulo, em ato pela defesa da democracia e contra o fascismo. A manifestação marca fortemente o repúdio aos apoiadores de Bolsonaro. Como uma reação em cadeia, a hashtag #Antifascista vem ocupando os Trending Topics do Twitter no Brasil, junto com avatares antifascistas de inúmeras bandeiras e grupos. Há tempos, os atos pró-Bolsonaro incitam discursos de ódio, incentivam o uso de armas e reforçam atos antidemocráticos. Enquanto enfrentamos uma pandemia com consequências sem precedentes, os bolsonaristas seguem convocando apoiadores e adeptos para irem às ruas. Os manifestantes pró-democracia estão respondendo a tudo isso. Em meio a esta conjuntura vemos as notícias de atos dos dois grupos (bolsonaristas e "antifas") sendo tratados de forma bem distinta pela polícia. Ao contrário do que pensam Trump e Bolsonaro, ser antifascista não é ser terrorista. Ser antifascista é defender a democracia. É ser contra todo autoritarismo e ódio aos pretos, pobres, indígenas, mulheres e tudo que não é hegemônico. É se posicionar contra o descarte dos corpos e mortes dos jovens negros nas favelas, a exemplo de João Pedro, morto em uma operação policial enquanto brincava dentro de casa. Antifascistas também devem ser o audiovisual e o cinema. Já que abordam questões voltadas às imagens, narrativas e imaginários, é necessário fazê-las com pesquisa e responsabilidade, com inclusão e respeito às diferenças. Nos posicionamos contra um governo que quer dizimar pluralidades e segue cortando verbas da cultura, arte e educação. As várias produções audiovisuais que interpretam o mundo pelas camadas dominantes da sociedade continuam reforçando violência simbólica, uma condição que reproduz, por exemplo, os estereótipos e os estigmas sociais. No caso, não é só contra a violência física que devemos nos posicionar, mas contra toda cultura fascista, que pela rapidez em que é legitimada, acaba por naturalizar a violência e torná-la sistêmica, como outrora já apontou o filósofo esloveno Slavoj Žižek. Contra a escalada do fascismo, espero que você, leitor(a), esteja do lado da democracia e a defenda. Ficar neutro agora pode nos custar caro. Se, de um lado, vemos bandeiras neonazistas, do outro ouvimos os gritos em defesa da democracia. A escolha é simples. De que lado você está? Jéssica Frazão é produtora audiovisual e doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP). É integrante do Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema (Elviras) e colunista cinematográfica no jornal O Município Blumenau, com "Das Kino - Um olhar crítico sobre o cinema".

  • the Freewheeling

    Oh, não, são apenas o jovem Robert Zimmermann e sua namorada, Suze Rotolo andando pela rua cheia de neve. Poderia ser apenas isso, mas na verdade estamos falando da capa do segundo álbum de Bob Dylan (o nome verdadeiro dele é Robert Allen Zimmerman), The Freewheelin. Mas o que tem de tão especial esse álbum, Leandro? Eu lhes digo! Este é o álbum em que Dylan começou a ser como o conhecemos: um bardo, um grande contador de estórias. Nesta obra, Dylan compôs 11 das 13 faixas do álbum, ao contrário de seu primeiro registro, onde apenas 2 das 13 faixas eram de sua autoria. Ah, mas é só por isso? Todo mundo começa de algum lugar! Não, não é só por isso. The Freewheeling tem, entre seu setlist, hinos como Blowing In The Wind, que abre o álbum, e A Hard Rain’s a-Gonna Fall. Nossa! O local hoje permanece bastante semelhante a quando foi fotografado em fevereiro de 1963. A capa de The Freewheelin foi fotografada na Jones Street, em West Village, Nova Iorque, por Dun Hunstein, em fevereiro de 1963. Ela traz Dylan e Suse Rotolo, sua namorada à época, abraçados e caminhando pela rua. Após o termino do relacionamento entre eles, Suze foi inspiração para canções de Dylan como Don't Think Twice, It's Alright, Tomorrow Is a Long Time, One Too Many Mornings and Boots of Spanish Leather (mas ninguém há de negar que o grande amor da vida de Dylan foi Joan Baez. Se você assistiu a Rolling Thunder Revue, sabe do que estou falando). À época Dylan tinha 21 anos e Suze 19. Essa capa é tão icônica, que é referenciada na canção de Don McLean, American Pie: “When the Jester sang for the King and Queen, in a coat he borrow from James Dean...” (Jester se refere a Bob Dylan) O casaco citado na letra acima é uma referência ao que Dylan usa na Capa de The Freewheelin, que lembra o casaco que James Dean costumava usar. Uma outra curiosidade é que, seguindo pela Jones Street e virando à direita na West 4th Street, no número 161, fica o prédio em que Dylan morava em 1963, e que ele alugava por 60 dólares por mês. O mesmo prédio, em 2015, foi vendido por 6 milhões de dólares. Abaixo, para seu deleite, o áudio oficial de Blowin' in the wind. Por falar em anos 60, já viu nossa lista das melhores músicas de rock dos anos 60 na sessão The Topping Toppers? Clica aqui e comenta lá! LEANDRO KRINDGES é Técnico Químico de profissão, licenciado em Biologia por paixão, fã de Foo Fighters a Belchior e de tirinhas, especialmente Peanuts. Sempre teve curiosidade em saber o que se passava por trás das músicas, e essa busca se tornou um hobby. Tecladista da Banda Villa Rock, arranha também violão e guitarra. Aprendeu a gostar de ler depois do Kindle.

  • Fake News: O retorno ou o movimento antivax

    O movimento antivacina ou antivax fez por merecer um texto dedicado especificamente para ele no debate sobre fake news e ciência. Digo isso porque há um consenso entre os especialistas em saúde pública de que esse movimento está ameaçando algumas das grandes conquistas do século passado. Que foi a erradicação de algumas das doenças mais letais que já enfrentamos. Primeiro vamos analisar a premissa mais básica do movimento que é a liberdade de escolha. O direito de tomar decisões sobre si mesmo. Primeiramente acho muito estranho esse movimento defensor da liberdade de escolha acima de tudo não serem os mesmos que defendem o aborto e uso recreativo de drogas. Enfim, a hipocrisia! Mas mesmo dentro da discussão sobre liberdade individual, é bom lembrar que não é uma criança de 3 anos que chega à conclusão de que não precisa de vacina. São sempre os pais tomando a decisão irresponsável de deixar seus filhos desprotegidos. Além disso a vacina está longe de ser uma decisão de consequências individuais, ela serve para criar a imunidade de rebanho. Imagine um bebê com menos de 1 ano. Ele não tem ainda idade para ter sido imunizado contra sarampo, caxumba e rubéola. Por ainda não ter idade para receber a vacina, a única proteção que podemos oferecer é tirar esses agentes infecciosos de circulação. Se essa criança só tem contato com pessoas imunizadas não haverá problema, mas o contato com pessoas não vacinadas põe aquele bebê em risco. O mesmo se pode dizer de pessoas imunocomprometidas que não podem ser imunizadas. Deixar de tomar a vacina é colocar essas pessoas em risco por decisão própria. Mas quando falamos dessa forma parece que o movimento é algo recente. Qual a diferença entre o antivacina raiz do começo do século XX para o antivacina nutella da atualidade? Eu enxergo 3 fatores principais que pretendo destrinchar aqui. Pós verdade, redes sociais e por incrível que pareça a altíssima eficiência das vacinas. Já falei da pós verdade em meu texto anterior sobre fake news, e o perigo de vivermos em realidades alternativas. Mas no caso do movimento antivacina essa noção de perigo é ainda mais acentuada, e já mostra sua capacidade destrutiva. Um exemplo disso é o reaparecimento do sarampo que teve um aumento de 300% nos primeiros 3 meses de 2019 em relação a 2018 segundo a própria OMS. Em abril de 2019 a cidade de Nova York declarou emergência graças a um surto de sarampo. Esse surto ocorreu principalmente entre crianças de uma comunidade de judeus ortodoxos. Esse fato levou o estado de Nova York a rever o direito dessas comunidades de não vacinar seus filhos por razões religiosas, tornando obrigatório e com multa para os que desobedecerem. Estamos tendo problemas com doenças que já estavam quase extintas! Tudo isso baseado apenas num conceito abstrato de liberdade de escolha até as últimas consequências? Na verdade não. Existe uma contribuição para o movimento antivacina moderno que é sempre citado em quase todas as discussões. O trabalho de Andrew Wakefield publicado em 1998 pela revista The Lancet. Nesse artigo o médico forjou dados para tentar ligar a vacina tríplice a um suposto aumento nos casos de autismo. A farsa envolvia um escritório de advocacia que pretendia usar a publicação para processar a companhia e ganhar muito dinheiro. Mas os dados se mostraram falsos e o plano foi descoberto. Ele acabou perdendo a licença médica. Mas o estrago já estava feito, e para os amantes de uma boa teoria da conspiração o fato dele ter sido desmentido e proibido de exercer a medicina, só prova que os interesses sombrios de esconder a “verdade” vem de instâncias muito superiores. Aí é só ladeira abaixo, tem gente acreditando até em microchip escondido no liquido que é injetado nas pessoas para manipular as massas. Como se não existissem as redes sociais para fazer isso, não é mesmo? Por falar nelas ai vem o segundo ingrediente do antivacina nutella. A capacidade de colocar em contato pessoas que estão indecisas pelo medo com iludidos em geral. Sim, o medo é o principal motor desse movimento. Na minha opinião podemos dividir o movimento anti vacina em 2 grupos, os teóricos e os praticantes. Eu divido dessa forma porque antivax praticante pra mim é quem toma a decisão de não vacinar seus filhos. Precisamos excluir desse grupo aquelas crianças de 14 anos de idade mental, que replicam conteúdo de teoria da conspiração pra pagar de mais esperto ou anti-establishment. Esses aí, já devem ter tomado todas as vacinas e não sabem nem do que estão falando, mas falam pelos cotovelos. Por isso são os teóricos, se limitam a criar e disseminar teorias para justificar essa posição e o fazem, sobretudo, através da "maior" invenção do século XXI: as redes sociais. A diferença deles está no medo. O praticante tem medo. É o medo de que a vacina possa causar mais mal do que bem que faz uma mãe, que quer proteger seus filhos acima de tudo, tomar uma decisão tão equivocada. É preciso ter clareza e empatia nesse momento. Não se pode desumanizar o praticante à ponto de achar que são pessoas que se recusam a vacinar seus filhos para sacanear a sociedade. O que existe é uma visão baseada em desinformação e muitas vezes influenciada por uma visão mais “natural” das coisas. Uma visão de que a vida é mais idílica sem química. O antivax está tanto na bolha da esquerda jovem, mística e natureba que quer resolver todos os problemas do mundo com maconha, poliamor e óleo de côco, quanto da direita lisérgica que tem medo da vacina inventada na China ser parte de um plano para implantar o comunismo imunológico (se é que existe esse conceito). No meio disso tudo surgem as dúvidas quanto à segurança das vacinas. A grande ironia disso é que as vacinas serão provavelmente a coisa mais segura com as quais as crianças vão ter contato na vida! Duvida? Pois saiba que uma vacina é testada em média por 10 anos antes de ser liberada para o público, e tem os padrões de desemprenho e segurança mais altos e exigentes da indústria farmacêutica. Te garanto que nenhuma das marcas de achocolatado que seu filho consome sequer chega perto desse nível de exigência em segurança. Mas algumas pessoas continuam com o argumento de que o risco pode ser de um em um milhão, mas se esse um for meu filho não interessa que deu certo para um milhão. Primeiramente os riscos associados a vacina NUNCA, JAMAIS, estão ligados a mortes. O que nós chamamos de reações adversas incluem febre, dor e inchaço no local da aplicação e no máximo uma reação alérgica. E por mais que seja verdadeira a afirmação de que tudo na vida possui um risco inerente, é também verdadeira a afirmação de que uma pessoa se expõe a um risco muito maior bebendo água ou atravessando a rua do que tomando uma vacina. Sem falar que tomar a vacina já te salva de um outro risco gigantescamente maior que é o de contrair a doença. Mas as redes sociais acabam juntando essas pessoas em bolhas que se alimentam da imagem de grupo de pessoas espertas demais para cair no conto das vacinas. Afinal fica fácil manter essa pose quando as consequências não são tão imediatas. É por isso que não existe movimento de pessoas que se recusam a tomar soro antiofídico. Quando a consequência é imediata dificulta muito. Já imaginou alguém mordido por uma serpente morrer porque ficou com medo de ter autismo? E é nesse ponto que chegamos ao terceiro pilar do movimento antivacina atual. O terceiro pilar é o mais inesperado para a maioria das pessoas, mas é uma opinião compartilhada com a esmagadora maioria dos especialistas em saúde pública. As vacinas são muito eficientes. Você pode achar estranho esse motivo. Porque diabos a eficiência seria um problema? Para explicar isso imagine que você vai no aeroporto buscar um amigo que está chegando de Portugal. Você pergunta se ele fez boa viagem e ele está um tanto irritado porque o voo atrasou 3 horas. Um atraso desses pode parecer bem ruim para alguém que sempre viveu num mundo onde o transporte é incrivelmente eficiente. Mas a 300 anos atrás essa viagem durava 6 meses, em um navio escuro, sujo e mal ventilado onde doenças se espalhavam facilmente. A comida era limitada ao que se podia conservar e portanto faltava vitamina C na dieta. Nesse contexto se seu amigo chegasse com uma semana de atraso com a gengiva sangrando pelo escorbuto e com o cabelo raspado por causa da infestação de piolhos, ele ainda diria que fez boa viagem. Porque acredite podia ter sido bem pior fazendo um atraso de 3 horas num salão com ar-condicionado parecer um agrado. O viajante do século XVII jamais reclamaria disso. O que eu quero dizer com isso é que esse movimento consegue fazer tanto eco na sociedade porque nós esquecemos como era o mundo antes da vacina. Nós não sabemos mais o que é uma mortalidade de quase 20% entre crianças até 5 anos de idade. O antivacina raiz tinha um arqui-inimigo naquela época que era a percepção de risco das doenças. Num mundo onde não havia vacina para pólio as mães ouviam sempre falar de um caso de alguém próximo que o filho teve febre um dia, parecia que seria só uma gripe no começo mas acabou gerando paralisia e a criança está agora respirando através do que se chamava pulmão de aço. Uma câmara de pressão negativa para forçar o ar para dentro dos pulmões quando os músculos não conseguem mais movimentar o diafragma. Como você acha que essa mãe ficava quando o filho dela aparecia com febre? Toda mãe conhecia um caso de alguém que tinha enterrado um filho por causa de doenças contagiosas. Não era preciso convencer sobre a força do inimigo, ele estava ali e você podia ouvir o choro das famílias que enterravam suas crianças em pequenos caixões azuis. Em seu livro intitulado O poder e a peste, Lira Neto descreve o cenário de horror de um surto de varíola em Fortaleza onde as mortes eram tantas que não se conseguia enterrar na mesma velocidade que os cadáveres apareciam, com corpos empilhados nas ruas e cães andando por aí com um braço humano na boca. Então como podia existir antivacina naquela época? O principal motor do movimento antivacina era a forma desrespeitosa como o governo tratava a população. Ninguém era contra ficar imune a doenças. Eles eram contra o governo invadir sua casa à força, obrigar as mulheres a mostrar a bunda pra tomar injeção. Tudo isso sem explicar a razão dessa invasão de privacidade, afinal o governo não se sentia na obrigação de explicar coisa nenhuma. Era só dar a ordem e o povo que obedeça e quem não quiser obedecer que tome porrada. Então esse é o contexto geral, no mais só quero dizer que as vacinas podem vir de qualquer país. Se for aprovado pela Anvisa está seguro. Se para você tem problema se foi criado na China, na Rússia ou na Lituânia é porque você tem preconceito cientifico. Essa mania de achar que só americano pode aparecer com a solução de um problema. Se você pensa assim então precisa descolonizar sua mente. A vida não é filme, e se fosse teríamos vistos gestos muito mais nobres por parte dos EUA do que usar de suborno e até pirataria para conseguir recursos que já tinham sido vendidos para outros países. A grande questão em relação as vacinas contra a covid-19 é puramente mercadológica. Nem mesmo o mais obtuso, burro e incompetente dos líderes mundiais (você sabe quem é, talkey?) consegue ser contra essa vacina. Ele só é contra desagradar o governo americano. André Pinheiro: Nascido no Ceará e radicado no Rio de Janeiro, cursando doutorado em biofísica pela UFRJ atualmente pesquisando na área de toxicologia ambiental sobre a bioacumulação de microplástico. Nerd assumido e aventureiro da cozinha nas horas vagas.

  • fake news

    Você provavelmente conhece o termo fake news. Esse termo, que tem popularizado o estrangeirismo em nossa língua, surgiu como um fenômeno mundial. Mas o que aconteceu com a mentira? A lorota? A conversa fiada? Porque esses termos tão antigos parecem impróprios para esse caso? O que mudou entre a mentira clássica e a atual? E qual a relação da ciência com isso? Antes de mais nada vamos descrever esse fenômeno. Tudo começa com a pós-verdade, que na Wikipedia é definida assim: "Pós-verdade é um neologismo que descreve a situação na qual, na hora de criar e modelar a opinião pública, os fatos objetivos têm menos influência que os apelos às emoções e às crenças pessoais”. Essa descrição nos mostra o verdadeiro espirito de luta por corações e mentes envolvidas. Mas já vimos um clima assim antes. Já vimos notícias sobre a cadela Laika feliz cruzando o espaço em sua nave, quando, na verdade, a cadela morreu cozida com as altas temperaturas dentro da nave, que atingiram algo em torno dos 90 graus durante a decolagem. Qual a diferença entre essa mentira e a mamadeira de piroca? O contexto. A mentira sobre a cadela no espaço foi contada com o objetivo de demonstrar a superioridade soviética durante a guerra fria. Em um momento em que a imprensa era controlada pelo estado, ou ao menos era controlada por oligarquias midiáticas. Perceba, caro leitor, que o fenômeno que estamos aqui descrevendo não surge junto com a ideia do estado mentindo para a população. Surge com a democratização da mentira. Mas como assim democratização? O povo sempre foi livre para mentir também, não é? As mentiras mais clássicas não são contadas pelos governos. Todos nós podemos lembrar de alguma como: “vou dormir só 5 minutos”, “vou botar só a cabecinha”, “na volta a gente compra”, "eu estou grávida, mas ainda sou virgem, esse filho é do Espírito Santo". Mas quando as redes sociais trouxeram o poder de alcançar multidões para as mãos do cidadão comum, as mentiras ganharam um poder fora do comum. E para entender o porquê disso vamos falar sobre a lei de Brandolini, ou o princípio da assimetria dos idiotas. Tal princípio foi inicialmente observado para sistemas operacionais e diz basicamente que a energia necessária para introduzir um erro em um sistema é ao menos dez vezes menor que a energia necessária para corrigir esse mesmo erro. E isso parece se aplicar perfeitamente para explicar as fake news. Para ilustrar isso basta olhar para o caso da cloroquina. O trabalho de criar a mentira de que era possível tratar o covid-19 com cloroquina só precisou de uma afirmação sem qualquer evidencia vinda de alguém que é seguido por muitos, nesse caso o presidente. Mas para refutar essa afirmação foram necessários meses de trabalho árduo de cientistas altamente qualificados que gastaram muito tempo e dinheiro se dedicando ao assunto para dizer categoricamente que não é existe. Imagine a diferença de esforços entre os cientistas que constroem um satélite para tirar fotos do nosso planeta a milhares de quilômetros provando que a terra é redonda. E o terraplanista que tira uma foto de uma régua no horizonte “provando” que a terra é plana. Não é de surpreender que, no campo da burrice, a ciência esteja em grande desvantagem. Mas é extremamente preocupante que batalhas tão importantes para o futuro da humanidade estejam sendo travadas nesse campo. Mas qual é o plano? Vencer pela mentira? Fazer os cientistas desistirem? O plano é o bom e velho divide et impera, ou dividir para conquistar. Se as mentiras começam a ser desmentidas, isso enfraquece a estratégia inimiga, certo? Errado! A estratégia por trás das fake news a longo prazo não é te fazer acreditar numa mentira, é te fazer duvidar da verdade. Quando você começar a duvidar de todas as informações que chegam até você, tratando elas como uma mentira em potencial, o que você usará para distinguir o verdadeiro do falso? O que vai sobrar quando toda a credibilidade associada às informações tiver sido dissolvida em um mar de mentiras? Sentimentos. Exatamente isso. Quando você não souber mais em quem acreditar, sobrará apenas a sua vontade de crer. E é precisamente nesse ponto que a sociedade como a conhecemos estará pronta para ruína. Para entender porque vamos voltar à mamadeira de piroca: podemos dividir a população exposta a essa mentira em dois grupos, os que enxergaram uma mentira das mais absurdas, e os que estão preocupados com o avanço de um movimento comunista gayzista que usa mensagens subliminares para espalhar o comportamento homossexual para, de alguma forma misteriosa, usar isso para dominar o mundo. Como reconciliar essa população? Para os dois grupos, apenas ouvir a opinião do outro lado já é flertar com a insanidade, mas, para um político mal intencionado, é perfeito. Afinal quem teria tempo para discutir privilégios da classe política, ou o corte de verbas da educação quando a própria realidade está sendo questionada? Como discutir balança comercial em um cenário onde seu filho está sendo manipulado por professores satanistas que pretendem influenciar a forma com que ele fará sexo no futuro? Com pessoas presas em realidades alternativas, que se montam com o somatório das notícias que os seus sentimentos as levaram à acreditar, é fácil manipular as massas. Com o tempo, os discursos se radicalizam ainda mais e surge essa verdadeira profusão de fanatismo que já estamos vivendo. E o pior é que só tende a piorar, pois como diria Carl Sagan: “Não é possível convencer um fanático de coisa alguma, pois suas crenças não vem de uma análise lógica de fatos, mas de uma profunda vontade de crer”. Mas até a ciência vai ficar à mercê disso? Numa sociedade onde a própria ciência chegou até as pessoas, não explicando suas conclusões com argumentos racionais, mas sendo vendida como a dona da verdade, é fácil ser anticientífico. Digo isso pela forma que a ciência foi trazida até nós na escola. Que argumentos usaram para te convencer que a terra é redonda? Aposto que foram os mesmos que usaram pra te convencer que manga com leite faz mal. Alguém que possui credibilidade te deu essa informação e você aceitou, não porque fez sentido, não porque demonstraram de forma experimental. Mas porque você estava no meio de um grupo onde questionar essas afirmações te custaria ser o motivo de piada para todos os demais. Sua noção de realidade nunca foi construída de forma questionadora, aceitando apenas os fatos que não podem ser negados experimentalmente. Dessa forma fica fácil acreditar que a terra é plana, só é preciso te colocar sobre as mesmas condições e, dessa vez, descredibilizar quem te trouxe a informação de que a terra é redonda. Infelizmente a mentira parece mais ligada à natureza humana do que a busca pela verdade. Um colégio que ensina a criança a obedecer e acreditar feito um soldado é considerado um grande exemplo a ser seguido. E assim, com uma junção de fatores perversos, nossa sociedade caminha para o caos onde a própria realidade está em risco. Mas, como diriam os defensores da pós verdade: essa é apenas a minha opinião. André Pinheiro: Nascido no Ceará e radicado no Rio de Janeiro, cursando doutorado em biofísica pela UFRJ atualmente pesquisando na área de toxicologia ambiental sobre a bioacumulação de microplástico. Nerd assumido e aventureiro da cozinha nas horas vagas.

  • Tiago 3:5-11

    Estou enlouquecendo, eu pensei, mais uma e outra vez, respirando fundo tanto quanto possível sob a máscara, perdendo a contagem das pessoas que cruzavam comigo a rosto nu, mais duas naquele carro, olha esses filhodaputinhas na esquina, que senhorinha atrevida!, me ocorreu, num desespero, será que tudo não passa de um delírio, uma invenção da minha arruinada condição psicológica, a porra de uma realidade paralela que eu alcancei atravessando um buraco de minhoca na puta que pariu? Respira fundo, eu pensei. Ali estava a farmácia e eu sempre era salva nesse ponto da ida até o supermercado, “obrigatório o uso de máscara”, dizia o cartaz, eu suspirei aliviada, não estou louca, afinal, não estou louca, eu pensei, assustada pela terceira vez essa semana e pedindo a deus que Ele existisse e pusesse fim a este suplício viral. Fiz o exercício de sempre: muro. calçada. folhas. uma fila de formiga. a bituca de um cigarro. uma embalagem vazia. ser humano burro sujismundo do caralho, desconcentrei, deixando de olhar para apenas ver, todos os dias acumulam essa perda, os olhos presos às telas, os ouvidos atentos às saídas de áudio, os dedos em serviço compulsório diligente, o novo normal, a nova realidade, envidraçada, mais ou menos brilho? 5% de bateria, pouco cheiro, pouco gosto, corpos empilhados, bicho e gente, gente-bicho, mais alguma notícia falsa, gentalha arrombada do caralho, sentada à mesa com bandeira do brasil, bíblia e copos de leite, eu amarguei, olhando as caixas nas prateleiras, este aqui não tem lactose, uma mulher disse ao seu companheiro, minha vista turva, meu peito esmagado, catei os itens da lista, ansiosa para sair dali, unidunitê mental para escolher o remedinho de relaxamento. Oremos, diz o meme. Mas eu não faço orações. Olhei para a garrafa barata de vinho, vislumbrei a saída, o dia ensolarado, e se ele aparecesse à porta do supermercado, cercado dos seus guardinhas de merda, eu pensei, passando as compras no caixa automático, eu iria até lá sorrindo, de cabelos soltos, hoje estão lavados e bonitos, mi-tô!, mi-tô!, deixa eu tirar uma foto, eu diria, antes de quebrar a garrafa na cabeça daquele filho de um piroca murcha, pegar algum bom e afiado caco e fazer furinhos profundos, eles não me deixariam, é verdade, mas a fantasia alonga a realidade, uns furos nos olhos imundos e então... “A língua é um pequeno órgão do corpo, mas se vangloria de grandes coisas. É um mundo de iniquidade. É um mal incontrolável, cheio de veneno mortífero. Acaso podem sair água doce e amarga da mesma fonte?”, ele gritando, um caco sanguinolento partindo a carne inchada ao meio, bifurcada como a das serpentes, eu sorriria, talvez com lágrimas nos olhos, dominada pelos homens, mil flashes e urros, e a criatura cuspindo tiras de músculo tóxico e apodrecido, guardando para sempre a sua língua do mal e os seus lábios da falsidade, assassino canalha de merda, pau no seu cu!, e eu receberia com alegria o castigo do senhor, o coração incendiado, ah!, a doçura das grandes e reparadoras violências, “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, pois serão fartos”, eu declamaria, a plenos pulmões ou o que resta deles, cento e quarenta e cinco e dez centavos, cartão ou dinheiro? Dei um sorriso invisível e me senti melhor, apesar de ter engordado meus demônios. Juntei minhas sacolas. A fantasia torna suportável a realidade, concluí. E eu não faço orações. Kah Dantas Kah Dantas é cearense, mestra em literatura comparada, professora da rede pública de ensino e autora do livro autobiográfico “Boca de Cachorro Louco” (2016) e do livro de contos eróticos “Orgasmo Santo” (2020). Gosta de escrever, cometer o pecado da carne e comer docinhos.

  • pokémon go: entre o ciberespaço e a realidade que nos cerca

    Anos atrás recebi um convite de um jornal da cidade em que moro para, na condição de acadêmico da área de jogos (coordenei três turmas de duas especializações em desenvolvimento e criação de games na cidade, em duas instituições diferentes) para relfetir sobre a febre da época que era o lançamento do jogo Pokémon Go. Eu tenho que admitir publicamente antes de tudo, que eu nunca gostei de pokémon, mas a desepeito disso fui obrigado a reconhecer a qualidade não somente do jogo em questão, mas da discusão que ele trazia juntamente com seu impacto na sociedade. Fiquei feliz com o texto porque pessoas escrevendo positivamente sobre algo de que não gostam é algo, infelizmente raro, num universo cada vez mais egocêntrico. Ainda considero um tanto atual o debate, embora não se fale mais tanto deste jogo em questão como ocorreu na época do seu lançamento, então republico aqui o texto abaixo com algumas atualizações suaves para a gente pensar junto algumas questões que não são exclusivas do Pokémon Go, mas que foram, de certo modo, foram despertadas em mim a partir dele. Vamos lá! Quando o cinema surgiu, pouco mais de 120 anos atrás, não faltou quem dissesse que era coisa de desocupado, de marginal, de gente pobre, de gente analfabeta. Se você era “de família”, intelectual, fino, elegante, não frequentaria um ambiente em que se pagava apenas um níquel para entrar. Da mesma forma, nos anos 1950, quantas escolas não fizeram fogueiras de revistas em quadrinhos porque elas tinham “má fama”? O próprio Maurício de Souza relatou seu sofrimento ao ter que queimar algumas de suas revistas na escola (ele levou as que tinha repetidas em casa). A bem da verdade, não podemos ver uma novidade que a gente fica enjoado. E o pior é que eu mesmo nem acredito em novidades mais. Toda vida que a gente pensa que descobriu a pólvora, quando vai ver, sempre tem um chinês que veio antes. Mas estou falando isso para tocar no assunto febre do momento e perguntar: quantos de vocês já condenaram o Pokémon Go? Não responda para não se constranger, mas eu quero perguntar uma coisa ainda mais importante: alguém aqui já viu uma pintura, um afresco renascentista de Rafael Sânzio, chamado A Escola de Atenas (justamente a imagem na capa desta matéria com participação do Pikachu)? Nesse afresco vemos um monte de filósofos da Grécia antiga e no centro temos Platão e Aristóteles. Platão aponta aos céus. Aristóteles, seu aluno, para o chão. É a tentativa de se separar o mundo das ideias do mundo sensível, o mundo real. Ah!, se fosse assim tão fácil. Talvez no tempo em que a Grécia era antiga as coisas fossem mais fáceis. Hoje, o Pokémon Go não deixa mais, pois a base desse jogo é justamente a realidade misturada. E provavelmente por isso mesmo esteja causando polêmica pelo simples fato que nós, seres humanos (especialmente brasileiros nos tempos atuais, tão sensíveis a tudo) adoramos uma polêmica. Somos barraqueiros por natureza. Tenho certeza que fomos expulsos do Éden não por causa da mordida na maçã, mas pelo barraco que deve ter rolado com a cobra depois que o casal de naturistas afanou a fruta dela. Enfim, como disse, o jogo tem uma mecânica (ou seja, tem uma forma de jogar) baseada em realidade misturada. Isso quer dizer que ele mescla elementos reais com elementos que não são reais fora do celular. Sim, porque você não toca os pokémons pois eles não fazem parte do nosso mundo sensível. O termo realidade misturada, filho da Realidade Aumentada que, por conseguinte, é filho da Realidade Virtual foi usado pela primeira vez no campo computacional por Paul Milgram e Fumio Kishino no ano de 1994 em experimentos que mesclavam imagens reais com elementos que não eram pokémons, mas sim poemas, e que você só via a partir da mediação eletrônica. Mas o Pokémon Go não foi o primeiro jogo de realidade misturada (viram como novidades não existem?). Em 2012 o sucesso era um jogo chamado Ingress. Mas como ele não tinha bichinhos coloridos e fofinhos sensações da cultura pop para se caçar, não fez tanto barulho como o Pokémon Go de hoje. Eu mesmo não tenho Pokémon Go no meu celular, antes que me perguntem, por dois motivos: o primeiro é a eterna falta de memória do aparelho que chega a ser pior que a minha e o outro é porque eu não gosto de pokémon. De todo modo, o conceito de gameficação da realidade me fascina. Tanto que estou pensando seriamente em desisntalar o meu whatsapp, esse sim, um aplicativo infernal muitas vezes, para instalar o Zombies, Run! Um aplicativo que gamefica sua corrida com a promessa de ter fazer ir mais rápido e mais longe ao ficar ouvindo zumbis te perseguindo enquanto você bota os bofes para fora. Sim, acho que o caos do apocalipse zumbi combina mais com a nossa conjuntura atual que o Pikachu. Mas isso é questão de gosto. Voltemos ao assunto, portanto... Ferreira Gullar, Nietzsche e diversos artistas e pensadores da arte argumentam que a arte faz com que a realidade nos seja, simplesmente, suportável. Sim, pois é através da arte, dos sentidos e significados que colocamos no mundo através dela e de tudo o mais que vem do mundo das ideias de Platão que o mundo sensível de Aristóteles começa a fazer mais sentido. Nossas ideias são o rastro que deixamos no mundo. Nossas pegadas no planeta. Ao mesmo tempo em que o ambiente nos influencia, nós também interferimos nesse mesmo ambiente (muitas vezes de forma negativa). Colocar um pokémon na paisagem urbana, ou uma Iracema virtual no calçadão da praia (de Iracema), é uma maneira de torná-la até mais atraente em determinados aspectos. As ideias, a arte, a mídia contemporânea cada vez mais se espalham. Até agora não vi ninguém reclamar dos grafites nos muros ou de intervenções urbanas artísticas diversas. Das peças de teatro nos terminais de ônibus ou dos eventos musicais ao ar livre. Estamos nos espalhando, deixando rastros. Obviamente que tudo em excesso faz mal (apesar de que poucas pessoas vão reclamar se você passar quatro ou cinco horas por dia lendo, mas experimente passar essa mesma quantidade de tempo no videogame). Contudo, quem de nós consegue perfeitamente definir fantasia de realidade? Pegando o gancho da literatura, todos nós, mesmo que não tenhamos lido o livro, sabemos um pouco sobre a história do Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha que de tanto ler histórias medievais de aventuras largou tudo para viver numa fantasia na qual ele próprio era um herói de armadura combatendo gigantes que, na realidade dos outros (não a dele), eram apenas moinhos de vento? Phillip K. Dick, renomado escritor de ficção-científica estadunidense, e Jorge Luís Borges, autor de literatura fantástica argentino, escreveram de forma precisa sobre os limites tênues entre realidade e ficção, ou mesmo sobre o peso excessivo que a realidade pode ter sobre nós (como no primoroso conto O Aleph de Borges ou no romance Fluam minhas lágrimas, disse o policial de Dick). O próprio conceito de Realidade Misturada de Migram e Kishino citado mais acima é algo que só foi percebido (ou criado) dez anos depois da noção de ciberespaço (essencial para a realidade virtual, avó da realidade misturada) ter sido cunhada por outro artista da ficção científica: William Gibson em Neuromancer. E é a partir da mixagem, entre o ciberespaço dos pokémons e a paisagem que nos cerca que realidade e ficção, ideias e realidade ficam cada vez mais embaralhadas. As repercussões podem ser as mais diversas (a depender de nosso uso, evidentemente), mas vão desde aumentar a quantidade de clientes em determinado estabelecimento comercial fomentando (potencialmente, claro) a economia colocando-se pokestops (lugares com alta concentração de pokémons) em lojas, restaurantes, cafés, shoppings e etc. até repercussões na saúde ao estimular caminhadas em pessoas que antes eram sedentárias e que agora caminham em busca de pokémons. E isso é atraente. Ou ainda não chegaram até você notícias de crianças autistas que detestam sair de casa e que agora cada vez mais recebem a luz do sol porque diariamente vão caçar pikachus e charizards? Ou mesmo de pessoas que passaram a conhecer a própria cidade onde vivem e descobriram que, apesar de tudo, ela não é tão perigosa assim? E é aqui que o conceito de gameficação realmente se aproxima da ideia de Desing Motivacional, termo que a maior especialista no assunto, a game designer Jane Mcgonigal (uma das pessoas mais ousadas e inteligentes que conheço), prefere utilizar quando o assunto é organizar estímulos, desafios e recompensas para nossas ações no mundo real. Claro que não acho saudável ninguém com smartphones em ruas desertas na calada da noite procurando pokémons. Mas que tal deixarmos a realidade um pouco mais leve e reaprender a brincar na rua?

  • O país está queimando

    O bioma Pantanal é considerado uma das maiores extensões úmidas contínuas do planeta. Este bioma continental é considerado o de menor extensão territorial no Brasil, entretanto, este dado em nada desmerece a exuberante riqueza que abriga. Apesar de sua beleza natural e diversidade abundante de espécies (entre elas, o lobo-guará, criticamente ameaçado de extinção, e a onça-pintada, espécie alvo de planos de conservação), este bioma sofre constantemente com a atividade agropecuária, principal responsável pelos incêndios criminosos que, em 2020, tomaram proporções catastróficas. Sem planos de combate e fiscalização, nos colocamos diante de uma das maiores tragédias ecológicas do planeta. No ano de 2019, foram queimados 3,2 milhões de hectares entre Bolívia, Paraguai e Brasil nos meses de agosto e setembro. O céu de parte desses países ficou coberto de fumaça por semanas. Nas previsões climáticas para o período mais crítico de 2020, era evidente que a falta de chuvas e o tempo seco seriam acentuados, quadro que deveria ter levado à preparação de um plano específico para cada estado (MS e MT) e um outro conjunto entre os dois, considerando prefeituras, Ibama, Marinha e outros. Com a ausência de investimento, bem como da organização de comitês específicos responsáveis pela contenção dos focos de incêndio, que deveria ser prioridade, rapidamente essa região tão rica do nosso país vem sendo dizimada. Segundo o INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), foram mais de 67 mil focos registrados até junho, sendo 70,3% no Mato Grosso do Sul. Na agenda, deveria estar a proteção de Unidades de Conservação (UCs), que correspondem a apenas 4,6% do Pantanal, dos quais 2,9% correspondem a UCs de proteção integral e 1,7% a UCs de uso sustentável (Ministério do Meio Ambiente, 2020). No momento, somam-se 3 milhões de hectares perdidos por conta de queimadas, o que equivale a 10% do bioma. Obviamente, precisamos também citar a impunidade acerca dos autores desse crime ambiental e o clima de baixa umidade, que é um fator que naturalmente colabora com a propagação do fogo com uma maior velocidade. Outro fator marcante, é que muitos incêndios se iniciam a partir das estradas que adentram o Pantanal, não existindo ações especiais preventivas com foco nessas rodovias. Dito isso, observando todos os aspectos naturais da região, que propicia esse tipo de incidente, o que incomoda é precisamente a falta de fiscalização, planos de contenção e, principalmente, a falta de punição aos causadores de todo esse caos. Não existe a possibilidade de debater tal assunto, sem mencionar a falta de compromisso e coerência por parte do principal órgão responsável (Ministério do Meio Ambiente), bem como a falta de interesse em relação à conservação de biomas brasileiros em geral, que já se encontram prejudicados em muitos quesitos de forma irreversível. No dia 10 de setembro de 2020, um vídeo produzido pela Associação de Criadores do Pará (AcriPará), que reúne pecuaristas do Estado, circulava nas redes sociais, inclusive compartilhado pelo atual ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles e do vice-presidente da República Hamilton Mourão. Como uma ação de "contrapropaganda", seria uma resposta a grupos que criticam a política ambiental do governo do presidente Jair Bolsonaro. Esse vídeo trouxe informações de ascendência duvidosa, sendo utilizado para rebater os dados de ONGs de conservação em relação às queimadas. Segundo os pecuaristas, as ONGs estariam “difamando a imagem dos agropecuaristas da região amazônica”. A justificativa de Mourão para o misterioso aparecimento de um mico-leão-dourado no vídeo, tendo este sua ocorrência exclusiva no bioma Mata Atlântica, foi a de que “os agropecuaristas do Pará conseguiram fazer uma integração Amazônia-Mata Atlântica” e que “o Brasil é o país que mais preserva suas florestas no mundo”. Enquanto isso, o presidente do AcriPará informou que o uso do mico-leão-dourado foi uma “gafe” cometida pelos produtores do vídeo e “o que importa é a mensagem”. Em entrevista à CNN, o secretário do Meio Ambiente de MS, Jaime Verruck, alertou: "Ouvi uma matéria em que o vice-presidente diz que nem todas as queimadas são ilegais. No Mato Grosso do Sul, todas as queimadas são ilegais, porque elas estão proibidas desde o mês de julho, a gente veda qualquer tipo de queima controlada". E, segundo matéria do site Clima Info, a Polícia Federal cumpriu 10 mandados de busca e apreensão no Mato Grosso do Sul, em endereços de cinco fazendeiros que teriam se organizado para atear fogo intencionalmente na vegetação de suas fazendas em áreas remotas do Pantanal. No ano de 2019, mais precisamente no dia 28 de agosto, foi publicada uma matéria no site do G1 que apontava três fazendeiros como autores também de crime ambiental no sudeste do estado do Pará, responsáveis pela queimada de uma área de mais de 5 mil hectares de floresta em local de reserva ambiental. O que dá a entender é que esses criminosos se aproveitam da época que propiciam as “queimadas naturais” para cometerem esses atos, que são chamados de “dia do fogo”, que, na maioria das vezes, fogem ao controle. Ano passado, houve intervenção de vários órgãos ambientais, bem como do Exército Brasileiro, no combate às chamas, diferente deste ano, que, sem verba governamental, os órgãos responsáveis precisam contar com a ajuda de voluntários e doações para a interrupção das queimadas. E sim, o título está com o verbo no tempo certo. Está queimando. Continua queimando e parece não ter data para acabar. O que se espera, no mínimo, é uma resposta do governo federal a respeito de quais ações serão adotadas para resolver esse problema que já se instalou, e de punição aos aparentes culpados por iniciarem essa situação que está destruindo o que resta de mais precioso em nosso país. Em tempo: O Buzzfeed fez uma matéria sobre como ajudar e se informar sobre a situação que pode ser lida no link abaixo: https://www.buzzfeed.com/br/gaiapassarelli/fogo-no-pantanal-como-ajudar-e-se-informar Fontes acessadas: Ecoa: www.ecoa.org.br G1: www.g1.com.br Ministério do Meio Ambiente: www.mma.gov.br Matéria G1 2019: https://g1.globo.com/pa/para/noticia/2019/08/29/policia-identifica-fazendeiros-suspeitos-de-provocar-queimadas-no-sudeste-do-para.ghtml UOL: https://noticias.uol.com.br/meio-ambiente/ultimas-noticias/redacao/2020/09/19/todas-as-queimadas-no-pantanal-do-ms-sao-ilegais-diz-secretario-do-estado.htm DANIELA "Chimp" DIAS é professora de Biologia e Ciências, e amante de etologia e evolução, principalmente de primatas. É mestra em Avaliação de Impactos Ambientais (Manejo e Conservação da Biodiversidade). Se amarra em tudo relacionado ao terror/horror e serial killers. Curte uns metal e sua banda favorita é o Pantera.

  • A ARARA QUE BRILHA: SEMELHANÇAS E DISTANCIMANENTOS ENTRE A PANDEMIA DA COVID-19 E A EPIDEMIA DE AIDS

    Devido aos meus anos de experiência na luta contra a AIDS, sei que respostas para epidemias como essa causada pela COVID-19 são construídas em conjunto por ativistas, pesquisadores e profissionais de saúde. Sendo assim, tenho olhado muito para a história da epidemia de Aids em busca de lições. Estou certo de que há nesse passado recente pistas importantes sobre como sobreviver a esses dias cinzas marcados por mortes maciças, histeria e medo. Todas as vezes em que eu trago a comparação entre HIV e COVID-19, pelo menos alguém se apressa em me dizer: a pandemia não está afetando exclusivamente a população gay e trans como no caso da HIV. Se eu não o interrrompo, o ser humano segue e me informa orgulhoso que o COVID-19 não é um vírus fortemente associado a um grupo estigmatizado ou um conjunto de grupos estigmatizados, como era o caso do HIV no começo da epidemia. Relembro ao meu interlocutor que atualmente quem ainda é diagnosticado e morre de AIDS são negros, gays e as pessoas trans não brancas. Não é coincidência que seja essa a mesma população que está sendo mais afetada por COVID-19. Tenho insistido que precisamos entender que muito da nossa resposta a qualquer vírus vem do medo. Um vírus expõe nossa mortalidade. E se o COVID-19 tem relembrado disso, a epidemia de AIDS não só fez a população gay e trans entender isso, como deixou um traço que persiste na cabeça de muitos de nós: a qualquer momento a nossa sexualidade poderia nos fazer ficar doentes e morrer. Atualmente, tenho visto muita gente na internet expondo as pessoas que saem na rua, aqueles que têm encontrado seus entes queridos. Como um homem gay, vejo muitos homens gays julgando uns aos outros não somente por querer sair pra transar, mas também por estarem no Grindr. Deixe-me ser bem claro: nenhuma dessas práticas é boa do ponto de vista da saúde pessoal ou coletiva. Eu desencorajaria qualquer um a sair por uma razão não essencial e recomendaria as pessoas a acharem formas para explorar uma sexualidade saudável durante esse tempo: sexo por telefone, por vídeo, masturbação. A escolha aqui é do freguês. Tenho visto muito material jornalístico discutindo sobre o que significará ter intimidade com alguém, e manter a nossa sanidade em um momento em que estamos sendo instruídos a manter distância uns dos outros. As pessoas têm escrito sobre festas sexuais digitais, como ter intimidade em tempos de distância, e como se masturbar quando você não tem o privilégio de uma porta fechada. Cada um de nós, especialmente as pessoas trans, pessoas não brancas e aqueles, como eu, na interseção, têm uma relação intensa e pessoal com a epidemia de AIDS. Cada um dos nossos traumas ligados a isso é singular, como nossas impressões digitais. No Brasil, para além das questões de estigma e discriminação que afeta diretamente a população gay, trans e pessoas que vivem com HIV/Aids, também estamos enfrentando o desmonte do Sistema Único de Saúde (SUS), isso como uma forma sofisticada de executar a política de morte das populações negra, pobre e LGBTI+, através da total desassistência à saúde. Juntemos a isso os adoecimentos provocados pela falta de saneamento básico e os bolsões de pobreza cada vez mais frequentes devido ao aumento da desigualdade social. Estamos todos reaprendendo como se manter vivos e não permitir que a arara perca seu brilho neon, aqui quero trazer minha amiga e colega de luta, Dediane Souza, travesti, negra e nordestina: Hoje em dia e para algumas pessoas os espaços de socialibilidade LGBT foram vistos apenas como “guetos” de exclusão, mas, embora sejam resultado direto da LGBTfobia, são também espaços de acolhimento, de construção de relações de afinidade, solidariedade e organização de redes. Não se trata, aqui, de um coro à ideia homogeneizante de comunidade, mas de entendermos que as mudanças políticas necessárias, naquele tempo (final dos anos 80 e início dos anos 90) e hoje (final da primeira década do séc. 21), para este tempo demandarão olharmos de um modo diferente para o principal propulsor das lutas pelo fim do preconceito e da discriminação, a saber, as pessoas e suas aspirações por felicidade. Adriano Caetano: filósofo de formação, mestre em sociologia e doutor em saúde coletiva, quase uma puta teórica! Ativista LGBTQI+ e da luta contra Aids, noia das lives, leitor voraz da literatura contemporânea, mais especificamente, escrita por mulheres porque os homens que lutem(!)

  • Lições que aprendemos com a covid 19

    Escrevo esse texto como um cientista, um cientista privilegiado. Tive o privilégio de estudar com pessoas que hoje trabalham na linha de frente das pesquisas sobre a covid-19. Esse texto nada mais é do que um apanhado de informações coletadas em conversas com especialistas da área de virologia, inflamação e imunidade. O tema mais recorrente nessas conversas são os aprendizados que tivemos desde o começo da pandemia. Entre eles, temos uma lista dos nossos preferidos. Antes de mais nada, é preciso lembrar que essa doença simplesmente não existia um ano atrás. Em termos de ciência, nossos avanços, ainda que pequenos, são incrivelmente rápidos como nunca antes se viu na história. Fruto de um esforço de pesquisa conjunto a nível mundial. Uma dessas descobertas importantes foi o período de latência de até duas semanas, assim como no HIV, o período assintomático é uma vantagem para o vírus. Foi por essa característica que a contenção do vírus falhou sistematicamente, já que não se consegue medir o espalhamento do vírus pela manifestação dos sintomas. O problema é que os rastros de aparecimento dos sintomas não refletem a presença atual do vírus, apenas aonde ele chegou há duas semanas. Dessa forma, separar os que já estão doentes não elimina a contaminação por completo, apenas atrasa um pouco. Por isso a aposta defendida pela OMS era de atrasar a propagação. Ganhar tempo, deixar que a ciência trabalhe. Outra lição aprendida é quanto à natureza da própria doença. Não é apenas uma doença pulmonar, trata-se de uma infecção sistêmica que apresenta outros sintomas e outros tipos de manifestações além das que foram apresentadas inicialmente. Descobrimos que não é simplesmente uma doença terrível para idosos e pessoas com outras doenças (mais uma vez sou obrigado a traçar um paralelo com os grupos de risco da AIDS). Hoje o número de mortos ainda é maior entre pessoas acima dos 60 anos, mas o número de internações de casos graves cresceu muito na faixa etária entre 30 e 40 anos. Esse detalhe fica ainda mais importante quando pensamos em outro fator diversas vezes ignorado, as limitações logísticas. Você deve ter ouvido falar na "guerra contra a covid-19"(sic). Pois bem, do ponto de vista logístico estávamos terrivelmente despreparados para essa guerra. O mundo todo correu para comprar máscaras e respiradores, sedativos para os pacientes que seriam entubados, novos leitos de UTI. Mas as prateleiras do mundo esvaziaram muito rápido, e diante do cenário de escassez assistimos uma disputa desigual dos recursos. Isso basicamente significa que se não há recursos para atender todos os casos graves, pessoas que poderiam sobreviver com tratamento adequado acabam morrendo. Mais uma vez a ideia de achatar a curva parece uma boa maneira de salvar vidas, afinal se o número de casos graves por semana estiver dentro da capacidade de atendimento dos hospitais, o número de mortos seria minimizado não é mesmo? Claro existe um peso econômico nisso, mas estamos falando de prioridades aqui, ou deveria ser. O fato é que a experiência do confinamento pela metade feito no Brasil cobrou um preço muito caro, até o momento que escrevo mais de 119 mil mortos*. Mas afinal valeu a pena confinar as pessoas e esperar pela ciência? Bom hoje já temos estudos com vacinas em estágios avançados de desenvolvimento. Lembrando que a vacina em si não seria uma solução definitiva. É que assim como a gripe o corona vírus é um vírus de RNA ou seja ele possui uma capacidade de mudar tão rápido que vacinas se tornam ineficazes em pouco tempo. Uma campanha de vacinação anual é um desdobramento muito mais realista do que uma injeção que dure para a vida toda. Mas além da vacina outros avanços foram feitos. Um que me orgulho muito em citar é o projeto do soro anti-covid-19. Me orgulho por ser um trabalho da ciência brasileira e me orgulho demais por ser o trabalho de um grupo no qual trabalham algumas pessoas que conheço. A ideia é produzir anticorpos em cavalos para tratar pacientes humanos assim como já fazíamos (e ainda fazemos) para picada de cobra o que remete ao fato de que pode até existir muita gente no movimento antivacina, mas ainda não existe um movimento contra o soro antiofídico. Os resultados iniciais mostram que os anticorpos produzidos por cavalos são 100 vezes mais eficientes do que anticorpos humanos. Essa pesquisa não tem a pretensão de criar sozinha um mundo onde a covid-19 não seja um problema, mas pode fazer uma enorme diferença quando aplicada a pacientes em estado grave. Inclusive está aí outro aprendizado. Descobrimos que o tratamento precoce com corticóide nos casos mais leves não é recomendado, mas pode salvar muitas vidas quando administrado nos casos mais graves. Se você leu até aqui e está se perguntando onde foi parar a cloroquina nesse texto, saiba que em relação a isso e a todas as medidas anticientíficas tomadas até aqui pelo nosso governo, tudo o que tenho para dizer é que acho espantoso descobrir como as frases de Caetano Veloso escritas há tanto tempo continuam atuais. Deixo elas aqui para que reflitam: “ou então cada paisano e cada capataz, com sua burrice fará jorrar sangue demais nos pantanais nas cidades caatingas e nos Gerais?” Não é à toa que todos ou quase todos os filmes de tragédias naturais que você já assistiu começavam com cientistas emitindo alertas que eram ignorados. Tomar decisões que vão contra o conhecimento cientifico é uma atitude irresponsável e essa talvez seja a maior lição cientifica dessa pandemia. A lição que já deveríamos ter aprendido a muito tempo, mais antiga que os versos de Caetano. Ciência não se rebate com opinião, ciência não se ignora, aqueles que o fazem estão condenados ao fracasso. André Pinheiro: Nascido no Ceará e radicado no Rio de Janeiro, cursando doutorado em biofísica pela UFRJ atualmente pesquisando na área de toxicologia ambiental sobre a bioacumulação de microplástico. Nerd assumido e aventureiro da cozinha nas horas vagas. *no dia que este texto foi ao ar o número de mortes ocasionadas pela pandemia de Covid-19 estava em 144.680. Fonte: encurtador.com.br/vELVX

  • Nem tudo o que parece é

    Como sabemos, a biologia não é uma ciência exata. É uma área onde a verdade absoluta não existe e a aleatoriedade é quem manda. Agora partindo desse princípio: e se eu te disser que, nos seres humanos, biologicamente, o sexo do bebê não é determinado somente pelos cromossomos sexuais tão conhecidos (X e Y)? E se eu te disser também que isso é tão real, que existem indivíduos fenotipicamente (características externas) masculinos, porém, com genótipo (características genéticas) feminino e vice-versa? Chega mais então, que eu vou te contar sobre a intersexualidade, mas antes, aqui vai uma revisão básica sobre os cromossomos. Segundo a definição tradicional, cromossomos sexuais são um tipo de cromossomo encontrados em células da maioria dos organismos, que determina o sexo dos indivíduos. Nos seres humanos então, são determinados os pares XY para os indivíduos machos e XX para os indivíduos fêmeas. Os seres humanos possuem no total 46 cromossomos, 23 herdados da mãe e 23 herdados do pai, sendo um par então dos chamados cromossomos sexuais. Na esfera médica, em 1917, o termo "intersexualidade" foi utilizado provavelmente pela primeira vez no sentido de fazer referência "a uma gama de ambiguidades sexuais, incluindo o que antes era conhecido como hermafroditismo". Nos anos de 1990, essa denominação foi apropriada também pelos ativistas políticos intersex engajados na luta pelo fim das precoces cirurgias "corretoras" de genitais ditos "ambíguos". Entretanto, é preciso salientar que médicos e movimentos políticos não definem "intersexualidade" de maneira idêntica. Os grupos de ativismo intersex normalmente oferecem outras definições para o termo, por meio das quais buscam contestar a ideia de patologização da intersexualidade, assim como aumentar as possibilidades do que é possível de ser incluído no termo para além das definições médicas. Segundo especialistas, entre 0,05% e 1,7% da população mundial é intersexo. A maior taxa de estimativa é semelhante ao número de pessoas naturalmente ruivas. Calcula-se que a cada 1500 nascimentos, 1 seja de indivíduo intersexo com características nos genitais tipicamente femininas, e a cada 2000 nascimentos, 1 individuo nasça com características genitais tipicamente masculinas. Tal como as pessoas não-intersexo, a identidade de gênero, expressão de gênero e orientação sexual de uma pessoa intersexo possui variantes de indivíduo para indivíduo. Dito isso, gostaria de atentar aqui a duas “síndromes” relacionadas a esse tipo de diferenciação sexual: Síndrome De la Chapelle ou Síndrome do Homem XX e a Síndrome da Insensibilidade Androgênica ou Síndrome de Morris. Na síndrome De la Chapelle, o indivíduo possui cariótipo (conjunto de cromossomos) XX, porém basicamente, desenvolve características tipicamente masculinas. Afeta entre 4 a 5 indivíduos em cada 100.000 recém-nascidos. Entre os aproximadamente 210 milhões de brasileiros, pode-se estimar de 8 a 10 mil pessoas com a Síndrome De la Chapelle. A maioria das pessoas com De la Chapelle não apresenta ambiguidade genital, de modo que o diagnóstico só pode ser feito na idade adulta para descobrir a causa da infertilidade ou na época da puberdade quando estas desenvolvem mamas (conhecido como ginecomastia, cerca de 33% de indivíduos intersexo De la Chapelle apresentam essa condição). O diagnóstico geralmente é feito por estudo genético do cariótipo. Já a Síndrome de Morris (a forma completa da síndrome, chamada de "CAIS" ocorre estatisticamente em 1 a cada 20.000 nascidos), é uma condição intersexo caracterizada pela incapacidade parcial ou total da célula para responder aos andrógenos como a testosterona. Esta falta de resposta da célula prejudica ou impede o desenvolvimento do pênis no feto, bem como o desenvolvimento de características sexuais secundárias em indivíduos geneticamente XY na puberdade, mas não prejudica o desenvolvimento de características sexuais femininas. A maioria das pessoas com esta condição não são diagnosticadas até que não conseguem menstruar ou quando têm dificuldades para engravidar e descobrem que são estéreis. Ou seja, se uma pessoa não pretende ter filhos, ela pode nunca saber. Existem relatos de que a “determinação sexual fenotípica” é, na maioria das vezes, decidida pelos próprios pais no nascimento. Cirurgias de redesignação sexual à escolha dos progenitores, em combinação com os médicos, são bem comuns. Por isso, muitas vezes o indivíduo nem sabe que é portador do que eu gosto de chamar de “diferenciação cromossômica”. O que quero levantar com tudo isso é o seguinte: tenho visto, pelas redes sociais, muitos comentários ("haters", melhor dizendo) em posts de pessoas trans (identidade de gênero) criticando a escolha desse indivíduo ao optar por redesignação sexual, seja hormonal ou através de cirurgias, usando o fato de não poderem mudar os cromossomos (uma vez homem ou mulher cis, sempre cis*). Veja bem, não pretendo de forma alguma misturar intersexualidade com identidade de gênero, mas esse tipo de pensamento nos faz refletir sobre o quanto as pessoas são desinformadas e na maioria das vezes, utilizam dados biológicos equivocados como bengala para justificar seus preconceitos. Qualquer ser humano pode ser intersexo e nunca saber disso. A diversidade existe, seja ela cromossômica, de gênero ou sexual. A partir dessas informações, devemos refletir sobre como a natureza é incrível e que há espaço para todos viverem de maneira digna, sem interferências de outrem. *cisgeneridade: em estudos de gênero, é a condição da pessoa cuja identidade de gênero corresponde ao gênero que lhe foi atribuído no nascimento. Daniela "Chimp" Dias: é professora de biologia e ciências, amante de etologia e evolução, principalmente de primatas. É mestra em Avaliação de Impactos Ambientais (Manejo e Conservação da Biodiversidade). Se amarra em tudo relacionado ao terror/horror e serial killers. Curte uns metal e sua banda favorita é o Pantera. Fontes: Richard Goldschmidt, M.D. (Berl.), INTERSEXUALITY AND THE ENDOCRINE ASPECT OF SEX, Endocrinology, Volume 1, Issue 4, 1 October 1917, Pages 433–456, https://doi.org/10.1210/endo-1-4-433https://isna.org/ Schilt K, Westbrook L. Doing Gender, Doing Heteronormativity: “Gender Normals,” Transgender People, and the Social Maintenance of Heterosexuality. Gender & Society. 2009;23(4):440-464.doi:10.1177/0891243209340034 https://linkinghub.elsevier.com/retrieve/pii/S1521690X0600087X Charmian A. Quigley, Alessandra de Bellis, Keith B. Marschke, Mostafa K. El- Awady, Elizabeth M. Wilson, Frank S. French, Androgen Receptor Defects: Historical, Clinical, and Molecular Perspectives, Endocrine Reviews, Volume 16, Issue 3, 1 June 1995, Pages 271–321, https://doi.org/10.1210/edrv-16-3- 271 Hawkins JR, Koopman P, Berta P. Testis-determining factor and Y-linked sex reversal. Current Opinion in Genetics & Development. 1991 Jun;1(1):30-33. DOI: 10.1016/0959-437x(91)80037-m. Intersex Society of North America https://isna.org/ Free & Equal https://www.unfe.org/wp-content/uploads/2017/05/UNFE- Intersex.pdf Fausto-Sterling, Anne (2000). Sexing the Body: Gender Politics and the Construction of Sexuality. New York: Basic Books. ISBN 0-465-07713-7. SANTOS, Moara de Medeiros Rocha; ARAUJO, Tereza Cristina Cavalcanti Ferreira de. Desenvolvimento da identidade de gênero em casos de intersexualidade: contribuições da Psicologia. 2006. 246 f. Tese de doutorado em psicologia. Universidade de Brasília, Brasília, 2006.https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/6315/1/2006_Moara%20de%20Medeiros%20Rocha%20Santos.pdf

  • Sobre leituras e controvérsias: escritoras argentinas

    Tradução de Rafaela Lobato Nestes dois últimos anos, minhas leituras, por interesse ou capricho, não sei, foram reduzidas a escritoras argentinas. Algumas delas fazem parte do circuito editorial de mercado, com reconhecimento em outros países, como Samanta Schweblin ou Agustina Bazterrica, e até mesmo que habitam espaços culturais oficiais como Mariana Enriquez, atual diretora da área de Letras do Fundo Nacional de Artes. As três são escritoras de mérito, ao meu gosto, com propostas de renovação de gênero. Bazterrica com Cadáver Exquisito, romance distópico de ficção científica sobre canibalismo, tocou o ponto exato da problemática da indústria da carne, do veganismo e, em última instância, as novas formas de conceber o humano e a reprodução, além de questionar a visão antropocêntrica diante de um crescente interesse pelo direito animal. O interessante do romance, além de sua qualidade literária, é de renovação da curiosidade sobre o gênero (também havia “mérito” de mercado nisso, também não vamos mentir) e despertou paixão/ fanatismo? em muitos leitorxs, muito interessadxs nos fenômenos que tematiza. Por sua vez, Enriquez se aventura na renovação do gênero do terror com dois volumes de contos: Las cosas que perdimos en el fuego e Los peligros de fumar en la cama (As coisas que perdemos no fogo e Os perigos de fumar na cama em tradução livre), trabalhando com uma marca registrada: finais abertos, histórias aparentemente inacabadas. Com este elemento narrativo desencadeou-se uma controvérsia incômoda entre os contadores de histórias herdeiros do terror clássico, ao Poe, com seus finais fechados e a busca do efeito para quem as histórias de Enriquez são defeituosas, "mal escritas"; e aqueles que entendem os finais abertos de Enriquez como um forte compromisso com a continuidade do efeito aterrorizante na busca perturbadora (e inútil) por respostas do leitor, onde o final aberto se funde com a realidade da existência. Samanta Schweblin também renova a narrativa, mas a partir da linha cortazária do fantástico cotidiano. Ela constrói mundos perturbadores onde a realidade se torna familiar e ameaçadora, às vezes apenas com a escolha particular de um ponto de vista narrativo, ou com um forçamento dos fatos em lugares inexplicáveis do comportamento humano. Tanto em seus três livros de contos El núcleo del disturbio (O núcleo da perturbação em tradução livre), Pássaros na boca e Sete casas vazias, como em seus dois romances, Distância de Resgate e Kentukis, ela trabalha meticulosamente com a linguagem e as imagens que desencadeiam níveis complementares de leitura entre o estranho e o fantástico, admitindo o alegórico ao encerrar suas histórias; precisamente a mais interessante, eu acho, de sua literatura. Porém muitos outros nomes interessantes, além dos ressonantes, circulam alegremente. Resgato, por exemplo, os romances de Laura Alcoba, La casa de los conejos (A casa dos coelhos em tradução livre), El azul de las abejas e La danza de la araña (O azul das abelhas e A dança da aranha em tradução livre), é uma trilogia sobre a memória dos crimes ocorridos durante a Ditadura Civil Militar de '76 na Argentina. Os três romances trabalham o relato histórico a partir da autobiografia, com uma prosa muito emocional. Também a coletânea de poemas La esposa de Sandro (A esposa de Sandro em tradução livre) e o romance Las Malas (As malvadas em tradução livre), de Camila Sosa Villada, duas obras intensas, de grande beleza poética, e ao mesmo tempo comoventes, cruas, que retratam o mundo emocional e a hostilidade em que a comunidade travesti vive. E por falar em ressonar, abro um parêntese particular para Gabriela Cabezón Cámara, com seu romance As Aventuras da China Iron, em que ela reescreve El Martín Fierro, a obra fundadora da Literatura Argentina, a partir de uma perspectiva de gênero extremamente interessante e disruptiva da "tradição nacional". Apenas algumas semanas atrás, esta escritora se pronunciou sobre a questão dos direitos autorais e regalias da abertura de uma biblioteca virtual que compartilhava materiais protegidos por direitos autorais em formato digital sem a autorização de todxs. Cabezón Cámara pediu "pensar no outro" antes de compartilhar materiais sem permissão, e acendeu um estopim interessante para pensar sobre um tema duro que precisa, sem dúvida, estar no centro da discussão atual sobre edição, abuso e exploração do mercado editorial nestes tempos (ou desde sempre?), a democratização dos conteúdos e o acesso à cultura. Essa polêmica dividiu as águas entre colegas e trabalhadorxs da cultura, baixou os polegares, agrupou bandeiras e não deixou ninguém indiferente vinculado ao mundo literário e cultural. Selva Almada, por exemplo, autora de uma excelente não ficção intitulada Chicas Muertas, e do romance Ladrilleros, duas obras que recomendo vivamente, saiu em defesa daqueles escritores que se sentiram prejudicados pela situação, expressando a sua solidariedade com eles, e sua raiva com aqueles que, sendo colegas, compartilham as obras de outrxs sem a menor objeção. Parece que algumas coisas estão começando a ressoar e se mover dentro dos espaços de poder em que a cultura está organizada. Não apenas Cabezón Cámara abriu a polêmica, Mariana Enriquez também estava no centro da tempestade meses atrás devido a uma decisão surpresa dentro do mundo literário. O Concurso de Letras do FNA, cobiçado e esperado a cada ano por milhares de escritorxs, costumava incluir todos os gêneros, mas neste ano ele se restringiu aos gêneros de ficção científica, terror e fantasia, formas preferidas de Enriquez. Esta decisão gerou uma longa lista de denúncias contra ela, contra a Instituição e as políticas públicas de promoção e divulgação da cultura. Por fim, gostaria de mencionar, e além da polêmica, uma escritora fascinante e não tão ressonante quanto os nomes anteriores. Alejandra Kamiya é autora de dois belos livros de contos: As árvores caídas também são a floresta e O sol move a sombra das coisas (títulos em tradução livre). Nesse período de leitura que dediquei arbitrariamente às escritoras, os contos de Kamiya foram uma porta estranha que me conduziu ao poético por meio da narrativa. As histórias nesses livros são profundas e humanas. Contam com a delicadeza com que seguramos um pássaro nas mãos. Algumas são histórias muito tristes, outras muito simples na aparência, mas que se conectam com uma visão filosófica da existência. As imagens que ela constrói são belas, pura poesia. Até os silêncios são lidos. E encontrar dois desses livros de contos nestes tempos de ansiedade garantida e gritaria é um oásis de leitura. Portanto, aqui estão minhas modestas recomendações de leitura sobre escritoras argentinas, incluindo polêmicas que valem a pena ler e acompanhar nas redes sociais, para todxs vocês. * Infelizmente de todas essas autoras e livros resenhados, apenas Mariana Enriquez foi editada no Brasil (As Coisas que perdemos no fogo pela editora Intrínseca). Para ler este artigo na versão original clique aqui. Para leer este artículo en su versión original, haga clic aquí. Gostou? Quer ler mais sobre mulheres na literatura contemporânea? Aqui tem a resenha do um livro incrível de uma autora da Coréia do Sul. Mariana Cerrillo Mariana Cerrillo vive. É suficiente. Ela estudou Literatura, mas esqueceu algumas coisas. Gosta de conversar muito com alunos, amigxs e pessoas que a convidam a pensar e rir. Escreve e pesquisa. Às vezes, desenha. Nunca fica entediada. Rafaela Lobato Cyber poeta. Camaleoa que muda de cor de cabelo do neon ao branco. É da noite e do dia, leva o skate debaixo do braço por onde vai e não dispensa uma boa música brasileira. Tradutora de inglês, espanhol e italiano.

  • Darren W. Chamberlain - o pianista que não é

    Quando você escreve partituras no computador, você usa um programa feito pra isso. Esse programa (por exemplo, Finale ou Sibelius) toca a sua partitura, com um som sampleado, ou seja, pre-gravado. Ele já vem com os sons de alguns instrumentos, mas você pode comprar outros sons que lhe agradem mais. Um verdadeiro expert, com uma biblioteca de sons profissional, pode fazer uma orquestra sampleada soar quase como uma real. Mas ainda não chegamos no ponto em que esses samples substituam músicos de carne e osso. Na verdade, estamos bem longe. Estava eu pesquisando a discografia da Cristina Ortiz e tinha um álbum em que ela participava, mas não tocava todo. Na obra em questão, o Segundo Concerto para Piano e Orquestra de Rachmaninoff, quem tocava era um tal de Darren W. Chamberlain. Só que não. Era claramente sampleado. Era o Finale ou o Sibelius. Depois fui ouvir mais do cara. Ele tem vários discos lançados. Os Prelúdios de Debussy, todos sampleados. Mr. Chamberlain, o que você está escondendo? Fui pesquisar no Google e encontrei pouquíssima informação sobre o cara. Mas tem uma biografia que diz que ele é de Birmingham, Inglaterra. Essa bio o trata como se fosse assunto sério. Mas ouça aí em baixo. Se alguém souber do que se trata, por favor escreva aí. Pode ser um experimento, ver se o público engole essas gravações como reais. Mas acho difícil, são muito mal feitas. Pode ser também que seja a carreira dele, lançar essas obras sampleadas. Eu tô sem saber.

  • Disco: Yo-Yo Ma - Obrigado, Brazil

    Nos anos 90 houve a onda de grandes músicos eruditos gravarem álbuns em que tocavam Piazzolla. O resultado, lembro de alguns, foi bom, no final das contas. Gidon Kremer, violinista letão, Daniel Barenboim, pianista (e regente) argentino e o violoncelista Yo-Yo Ma deixaram enormes contribuições. No final dos anos 90 pra começo do século XXI, o "crossover" da vez foi com a música brasileira. É sobre um desses álbuns que venho falar hoje. Do mesmo Yo-Yo Ma. Em seu disco Obrigado, Brazil, de 2003, a seleção que ele fez foi interessante. Evitou algumas escolhas óbvias, como Garota de Ipanema e Tico-Tico no Fubá, e optou por músicas que um músico brasileiro certamente escolheria. Começa com Cristal, um belo e leve choro de César Camargo Mariano, que o acompanha ao piano. Um tema que dá vontade de cantarolar. Depois vem Chega de Saudade, de Tom e Vinícius, cheia de charme na voz (e no violão) de Rosa Passos. A percussão é muito apropriada. Na passagem em que caberia uma improvisação, Yo-Yo faz uma linda melodia, que capta bem o espírito melódico brasileiro. Em A Lenda do Caboclo, obra para piano de Heitor Villa-Lobos, temos um arranjo para violões e violoncelo. É uma das minhas favoritas, essa música nasceu pro violão. Eles, no arranjo de Sérgio Assad, até arriscam um contracanto bacana que não está na música original. Então vem Doce de Coco, de Jacob do Bandolim e Hermínio Bello de Carvalho, em arranjo para o violoncelo, clarinete e violão. Um choro-canção de cair o queixo. A Dansa Brasileira (com S, mesmo), de Camargo Guarnieri, é originalmente para piano, e depois foi transcrita para orquestra pelo próprio compositor. O arranjo aqui é para violoncelo e piano. Apelo, de Baden Powell e Vinícius de Moraes, recebe saudade e derrama nostalgia. Tão parecida com Insensatez, de Tom e Vinícius, tem a beleza melódica que era o dom do Baden. Temos a famosa Dansa Negra, de Camargo Guarnieri, que tem a mesma função nacionalista da Dansa Brasileira, e recebe o mesmo tratamento: violoncelo e piano. Pixinguinha não falta, com 1X0 e Carinhoso, lindamente tocadas, com um senso de melodia e ritmo perfeitos. Menino, de Sérgio Assad, que, junto com seu irmão Odair, tem o duo de violões mais importante da atualidade. A música é sublime, com o duo acompanhando Yo-Yo. Daí vem Samambaia, do César Camargo Mariano. Este compositor e pianista já foi mais conhecido, ele foi casado com a Elis Regina. Mas também, a música popular instrumental já foi mais... bem... popular... A Alma Brasileira, um choro que não é choro, para piano, de Villa-Lobos, recebe um arranjo perfeitamente digno. Se me pedissem pra encaixar um violoncelo aí, não sei se faria melhor. Se tem uma música que cumpre sua gigantesca proposta de representar a alma brasileira, é essa daqui. Volta Rosa Passos para mais Tom Jobim e Vinícius de Moraes. O Amor em Paz traz novamente aquela percussão tropical, mas não caricata, que tanto me agrada no disco. Bodas de Prata & Quatro Cantos, de Geraldo Carneiro e Egberto Gismonti, é uma peça mágica. Com 9 minutos, é a mais longa do disco. Egberto e Yo-Yo Ma tocam em sintonia perfeita. O momento esbalde do disco é Brasileirinho, que tem cara de que vai encerrar o álbum, mas aí vem a experimental Salvador, de Egberto Gismonti, que às vezes se transforma numa bela lôa à cidade baiana. E, só aqui, o disco tem fim. Mais deles deveriam fazer discos sobre música brasileira. Barenboim fez o Brazilian Rhapsody e a violinista Victoria Mullova fez Stradivarius in Rio. Muito bons, sobre eles falarei ainda. Deixo o link para o Spotify. https://open.spotify.com/album/1jRhf7CNFyquOJtJYiUSEy?si=N3K7eY7hROCkm8h2EOhApA

  • 10 Sonatas que você tem que conhecer

    Por que 10? Pra depois eu ficar me queixando que não deu pra colocar todas que eu queria aqui. A forma sonata foi o molde que deu origem à sonata , à sinfonia e ao concerto . Não confundir forma sonata , que é um formato, com a sonata , que é uma categoria de composição. A sinfonia é uma obra para orquestra , enquanto a sonata é para piano (ocasionalmente piano e violino, piano e violoncelo, piano e flauta...). Ambas têm 3 ou 4 movimentos, sendo o primeiro o que eu considero o mais importante, que é a declaração de propósito da obra; o segundo é um minueto-scherzo (geralmente pra descontrair); o terceiro é o movimento lento , geralmente focado mais na beleza que os outros; e o último, chamado finale , é aquele em que o compositor tenta fazer um resumo e, literalmente, dar um fim à obra. Por algum motivo, quase sempre o finale é o movimento de que menos gosto. Os compositores sempre tentam mostrar que o triunfo e a alegria vêm depois da tempestade e o resultado é um movimento agitado, barulhento, espalhafatoso e, por vezes, incômodo (ao menos pra mim, mas quem sou eu, né?). Então vamos à lista, em ordem mais ou menos cronológica, de sonatas exclusivamente para piano solo que eu escolhi para vocês. J. Haydn - Sonata Nº 62 em Mi bemol, Hob. XVI-52 Os compositores nomeiam suas sonatas mais ou menos como a Sony nomeia seus fones de ouvido (Wh 1000Xm4???). Algumas têm apelidos, mas no geral a gente chama de: a 20 de Beethoven, a 10 de Mozart etc. Essa, a 62 de Joseph Haydn , composta em 1794, é uma das peças de que eu mais gosto do austríaco. Super ligeirinha, ela é leve sem ser vã. Não é a coisa mais profunda do mundo, porque a música ainda estava decidindo que seria profunda (do final da vida de Mozart pro começo da carreira de Beethoven). É um ótimo veículo para os pianistas mostrarem seu toque clássico, geralmente mais delicado e sem sentimentalismos que o romântico. Gravação sugerida : Alexis Weissenberg (é uma versão mais dura do que a de Brendel, por exemplo, mas de nitidez e precisão impressionantes). W. A. Mozart - Sonata Nº 12 em Fá, K. 332 Tive dificuldade em selecionar uma das 18, e acabei optando pela 12ª sonata de Wolfgang Amadeus Mozart . Porque é linda, criativa e, embora despretensiosa, cativante. Coloquei depois de Haydn porque este era bem mais velho que Mozart, mas essa sonata é de 1783, enquanto que a outra, de 1794. Até hoje é uma das sonatas mais adoradas pelo público. O senso comum (e o incomum) dizem que, em termos de sonata, Mozart não chegou aonde Beethoven chegou. Mas o fato é que ninguém chegou aonde Beethoven chegou. Isso não é demérito para o Wolfgang. Como eu já disse, ele próprio seria um dos responsáveis, anos mais tarde, por começar a inserir a noção de profundidade à música. Gravação sugerida : Alfred Brendel ou Nelson Freire L. van Beethoven - Sonata Nº 3 em Dó, Op. 2 - Nº 3 É a primeira sonata de Ludwig van Beethoven a me impressionar. Ele já mostra, embora ainda esteja na sua fase clássica, toda a sua veia românitca. Ela é simplesmente poderosa . Quando foi escrita, em 1795, a 3ª Sonata foi considerada a peça mais difícil para piano (ou qualquer instrumento de teclado) já composta. O segundo movimento é de uma dimensão que eu acho que nenhuma obra musical tinha atingido antes. Prenunciando a " Sonata ao Luar ", que é a 14ª, você tem uma mão direita repetitiva, tocando a harmonia em arpejos enquanto que a esquerda assertivamente muda, uma nota por vez, o contexto harmônico, forçando a outra a se adaptar. É pungente. Parece que você está assombrado e, ao mesmo tempo, encantado. Gravação sugerida : Alfred Brendel ou Wilhelm Kempff L. van Beethoven - Sonata Nº 8 em Dó menor, Op. 13 " Patética " Se tem uma coisa idiota que eu não vou fazer é listar só uma sonata de Beethoven . Alguém disse que, se " O Cravo Bem-Temperado " de Bach é o Velho Testamento do piano, as 32 sonatas de Beethoven são o Novo . A " Patética " inaugura o romantismo. Agora, a música se distanciava de objetivos angelicais e ficava mais humana. Falava sobre tormentas, dúvidas, certezas. Essa sonata, a oitava, é, depois de " Ao Luar ", provavelmente a mais famosa de Beethoven. Quando a gente vai navegar por 32 sonatas, é fácil ficar perdido. Então a gente tem algumas "âncoras". No caso de Beethoven, tem as sonatas "com nome". " Waldstein ", " Tempestade ", " Appassionata "... Tem outras coisas que facilitam essa navegação, por exemplo: as três primeiras são um grupo; a sétima e a oitava quebraram paradigmas e iniciam o romantismo; a 19 e a 20 são café com leite (anacrônicas, foram compostas antes das outras, mas só publicadas depois da 18); e aí quebra-se tudo de novo lá pela 27, quando começa o fim da vida do compositor. Isso tudo ajuda a gente a se situar num acervo com 32 obras. Musicalmente a "Patética" é só novidade. O primeiro movimento é impactante; o segundo, belíssimo e delicado; e o terceiro, arrebatador. Ludwig não estava tentando impressionar (a peça nem é tão difícil assim), mas estava impressionando . Até pros padrões dele, já na época considerado o maior compositor vivo. Gravação sugerida : Stephen Kovacevich L. van Beethoven - Sonata Nº 29 em Si bemol, Op. 106 " Hammerklavier " Em 1818, já completamente surdo e incapaz de tocar piano, Beethoven empreende a proposta de fazer uma sonata que "daqui a 50 anos ainda estarão trabalhando nela". Já se vão 200 anos e ela é cada vez mais estudada e tocada. De fato, passaram-se 18 anos até que um virtuose, o jovem Franz Liszt , fizesse a estréia, 9 anos depois da morte do compositor. Liszt chegou a escrever uma carta dizendo algo como " consegui achar um jeito de tocar a Hammerklavier ". É uma obra que não é só difícil de colocar os dedos. Tem que ter a abordagem certa. Sentimentalmente ela é quase surreal. Na verdade, diz-se que Beethoven inaugurou o romantismo e, em muitas formas, o pós-modernismo (que de verdade só começaria muitos anos depois de sua morte). Porque os seus contemporâneos tinham dificuldade em saber o que ele queria dizer nas suas obras maduras. Era como se ele falasse outra língua. Gravação sugerida : Maurizio Pollini F. Chopin - Sonata Nº 3 em Si menor, Op. 58 Mais um fenômeno que só parece ter composto pérolas e morreu muito jovem (estou comparando a Mozart), o polonês Frédéric Chopin foi um virtuose a quem só Liszt se comparava. A escrita para piano evoluiu muito com os dois. É quase impossível imitar. Mas além da escrita idiomaticamente perfeita para o instrumento, a pura musicalidade e originalidade de suas peças era notável. É possível que você conheça uma boa dúzia de melodias dele. Uma delas, posso apostar, pertence à 2ª Sonata: trata-se da " Marcha Fúnebre ". Mas a terceira e última sonata, esta de que falo aqui, é a mais bem acabada, na minha opinião. Apaixonante, ela parece nunca se esgotar. Justamente porque não tem um caráter único. Você a cada audição parece enxergar algo novo. É uma das obras para piano mais sofisticadas. Gravação sugerida : Nelson Freire ou Martha Argerich F. Liszt - Sonata em Si menor Conta-se que Franz Liszt foi, criança, a um concerto do violinista virtuose Nicolò Paganini . Dizia-se que Paganini tinha um pacto com o diabo, tão bem que tocava. Liszt ficou tão impressionado que disse "eu vou fazer o mesmo pelo piano". E fez. Até hoje, mesmo não existindo gravações dele tocando, muitos juram que ele foi o maior pianista de todos os tempos. Outra anedota que se conta, aliás, o próprio Liszt é quem conta, é que, ainda jovem, ele foi conhecer Beethoven. O mestre pediu para que ele tocasse algum Prelúdio e Fuga do " Cravo Bem-Temperado " de Bach. Ouviu atento e, ao fim, perguntou se o menino poderia tocar aquela peça em outra tonalidade. Liszt o fez, arrancando elogios e premonições de Beethoven. Sério, tocar um Prelúdio e Fuga (ou qualquer peça, na verdade) em outra tonalidade, ainda de lambuja, você não imagina o quanto é impressionante. Liszt escreveu muita coisa. Parecia não ter fim, sua criatividade. Quando não estava a fim de criar algo novo, pegava uma obra de Schubert ou Wagner e transpunha, por exemplo, de orquestra para piano. Essa dificílima sonata é bem mais conhecida que sua outra, chamada Dante Sonata . E bem mais original. Ela não tem movimentos separados, sendo, portanto, um único fluxo de discurso musical. Foi dedicada a Robert Schumann , pouco antes da morte deste. Clara, esposa de Schumann, uma pianista altamente respeitada, nunca tocou. Considerava-a um "barulho cego". Ah, Clara... Gravação sugerida : Claudio Arrau ou Martha Argerich S. Rachmaninoff - Sonata Nº 2, Op. 36 Sergei Rachmaninoff nos deixou gravações. Eu tenho uma caixa com todas elas, são 10 CDs. Mas ele não gravou essa sonata, de 1913, que foi tomada pelo pianista ucraniano Vladimir Horowitz . Ele fez uma versão autorizada pelo autor com algumas alterações. É a versão de Horowitz que costuma ser mais executada. A sonata, em 3 movimentos, começa com uma escala descendente extremamente veloz. A gente não sabe ainda, mas aquela escala é o tema principal, porque o compositor vai dilatar, domar e acalmar até ela virar uma melodia coerente. O segundo movimento é de beleza ímpar, e o terceiro, dificílimo. Gravação sugerida : Vladimir Horowitz A. Scriabin - Sonata Nº 9 "Missa Negra", Op. 68 Alexander Scriabin foi um compositor russo bastante peculiar. Fazia música atonal (quando a maioria ainda escrevia música tonal), mas sem ser maçante. Tínha um acorde próprio, o "Acorde Místico". Sobre esse acorde escrevia suas elocubrações. Ele mesmo era um tanto místico. Era um pianista fenomenal, pelo que consta. Rachmaninoff chegou a dizer que estudava horas por dia para soar como Scriabin, que tinha uma sonoridade notavelmente colorida. O conjunto de sonatas de Scriabin é um dos mais importantes da história da música. Esta é, possivelmente, a mais tocada. De 1913, é a minha favorita dele. Não é música pra você pegar a partitura e analisar, pelo menos não a princípio. Basta escutar com calma e se deixar levar pelas sensações. Gravação sugerida : Vladimir Ashkenazy ou Roberto Szidon S. Prokofiev - Sonata Nº 7 em Si bemol, Op. 83 Sergei Prokofiev escreveu 9 sonatas. Esta sétima , de 1942 e a seguinte são as mais conhecidas. Altamente dissonante, um bocado difícil de ouvir e mais ainda de tocar, representa um desafio para qualquer pianista. Prokofiev era um pianista excelente, numa época em que o compositor já estava tão especializado que dificilmente conseguia se dedicar a outra coisa que não escrever. Já ouvi uma gravação dele tocando Rachmaninoff, que deve ter por aí. Gravação sugerida : Maurizio Pollini ou Sviatoslav Richter (que estreou a peça)

  • 7 Discos Fora da Caixinha MPB

    Você quer entender a MPB sem falar em Chico, Caetano, Djavan, Belchior, Elis e afins? Pois eu vou te ajudar. Ou melhor, dar minha contribuição. Não vou seguir nenhuma ordem, seja cronológica ou de qualidade. É o que eu for me lembrando. E também não é a única. Sabem que eu gosto de listas. Posso fazer umas 40 com discos fora da caixinha. Raphael Rabello - Todos os Tons Com arranjos magistrais, ora para violão solo, ora para violão e banda, esse disco é um fenômeno. Raphael Rabello era um fenômeno. Chamava a atenção de todos que ouviam seu dedilhar nas 6 ou 7 cordas. Paco De Lucia (que participa do disco) dizia que era o maior violonista que ouvira em anos. Os violões que ele usa são especificados no encarte do disco, porque são instrumentos perfeitos (incluem um Ramirez 1969, que ele ganhou do Paulo, filho do Tom Jobim, e um Mario Passos 7 Cordas). A proposta aqui era captar as obras de Tom Jobim em vários tons, de fato. Por exemplo, Luiza usa apenas um violão e tem um tom bem intimista; já Garota de Ipanema é mais apoteótica. Elomar - Elomar em Concerto Esse disco sensacional mostra o grande cantador Elomar em um dos seus melhores shows. Elomar toca violão pra caramba. Arranjado pelo compositor e por Jaques Morelembaum, o disco conta com o clarinetista Paulo Sérgio Santos (do Quinteto Villa-Lobos), o flautista e saxofonista Marcelo Bernardes (que hoje toca com o Chico Buarque), o quarteto de cordas Bessler-Reis e um coro do maestro Muri Costa. Foi gravado na Sala Cecília Meireles, uma sala de concertos de música erudita no Rio de Janeiro. E, de fato, tem música de concerto, como Loa e Gratidão, fragmentos da Antiphonaria Sertani. Tem também as comoventes Gabriela e Inselença Pro Amor Ritirante. Com seu linguajar fascinante, com palavras para as quais às vezes precisamos recorrer a um dicionário, ele canta como um verdadeiro caboclo sertanejo. É um disco impecável, e eu o incluiria em qualquer seleção dos melhores da música brasileira. Quinteto Armorial - Do Romance ao Galope Nordestino Um disco com fragmentos da verdadeira alma nordestina, música moura e digna, que se sabe dona de uma tradição secular. Idealizado por Ariano Suassuna para representar a parte musical do Movimento Armorial, o grupo esteve ativo entre 1970 e 1980, lançando 4 discos. De 1974, este é o primeiro. Antônio Nóbrega, ainda jovem, ponteia a rabeca. O grande Antônio Madureira (viola caipira) liderava o grupo, que fazia a ponte entre a música popular do nordeste e a música de câmara erudita. O resultado é muito interessante e, por vezes, comovente. Renato Braz e Maogani - Canela Renato Braz é uma das mais belas vozes da MPB contemporânea. Ele e o quarteto de violões Maogani fizeram uma seleção de canções da américa latina, em espanhol, e gravaram lindamente. Pra mim, o ponto alto é a dolorosamente bela canção argentina Oración del Remanso, de Jorge Fandermole. Essa música sempre me comove. Não se engane, ao mesmo tempo esse disco transforma o estrangeiro em Brasileiro e faz o Brasil abraçar nossos países irmãos. É Brasileiro, também. Nonato Luiz toca Milton Nascimento - Fé Cega Nonato Luiz, violonista cearense, tem seu próprio sotaque no violão, e é forte. Reconhece-se imediatamente que quem está tocando é ele. Ele tem um som limpo e seus arranjos são maravilhosos, cheios de alegria e doçura. Tocando as obras de Milton Nascimento, você jura que são peças pra violão, e não canções. Nonato é também um excelente compositor. Aliás, nesse disco ele está quase como compositor, pois os arranjos são rapsódias e variações sobre canções como Fé Cega, Faca Amolada; Maria, Maria e Ponta de Areia. A arte do violão brasileiro está bem representada nesse disco ainda pouco conhecido. Radamés Gnatalli - Radamés Interpreta Radamés Considerado um mestre por Tom Jobim, Radamés Gnatalli foi um pianista, arranjador, compositor e regente muito respeitado no Brasil nos anos 50. Pra você entender o que é o Jazz brasileiro (cruzado com o chorinho) você tem que ouvir as belas peças desse disco instrumental, obras como Puxa-Puxa, Pé-de-Moleque e Seu Ataúlfo. Grande pianista, também. Egberto Gismonti - Casa das Andorinhas Esse disco de 1992, de Egberto Gismonti, já valeria só pelo Amor Proibido, um lindo dueto de violão com violoncelo (escutando agora, vejo que é um trio: são 2 violoncelos). Egberto compõe, toca piano, teclado, violão, arranja e rege todo o disco, que é instrumental. Mesmo com uma sonoridade datada em algumas peças, trata-se de um álbum magistral. Eu podia indicar outros discos dele, mas esse foge um pouco do óbvio. Gismonti é um daqueles músicos a quem os outros músicos, mesmo de fora do país, olham e dizem: é um gênio!

  • Outro Top + 10 Obras sinfônicas Extra categoria

    A terceira lista de uma categoria que realmente não tem fim. Em extra categoria se encaixam peças orquestrais que não são sinfonia, concerto e abertura. Daí entram prelúdios, poemas sinfônicos, balés, suítes e peças realmente não categorizadas. A recomendação, como sempre, é que, caso não conheça, leia a lista toda, escolha a que mais lhe interessar e insista nela. Até entrar na sua cabeça. Sobre cada uma delas ainda vou escrever mais detalhadamente em posts individuais. Richard Strauss (1864-1949) - Morte e Transfiguração (1889) (Poema Sinfônico) Uma das peças mais contundentes de um compositor contundente. Alemão de Munique, Richard Strauss é um pouco menos conhecido que Johann Strauss e Johann Strauss II, que escreviam valsas e com quem não tinha parentesco. Mas é muito mais respeitado. É uma daquelas figuras complexas: era um regente formidável, a tal ponto que ajudou a moldar o que seria a regência de orquestra no futuro. Sua orquestração é de cair o queixo - muitas audições para músicos entrarem em orquestras usam peças suas como parâmetro, por exemplo, se um violinista se sair bem na primeira página de Don Juan, tá feito. Foi conivente com os nazistas, embora sua nora diga que ele queria protegê-la, já que era judia. De qualquer forma, foi inocentado nos tribunais de "desnazificação". Como compositor, tem duas fases: a primeira, em que escrevia poemas sinfônicos de grande porte (esse aqui tem 23 minutos) e a segunda, quando os abandonou e passou a escrever ópera. Existem gravações dele regendo e, cá entre nós, me parece espetacular. Só que é aquele som cheio de ruído, típico de gravações antigas. Escolhi Morte e Transfiguração porque é uma peça transcendental. Ela descreve um artista, à beira da morte, contemplando as proezas e situações da sua vida. É por isso que não é uma música triste, nem fúnebre. As lembranças do artista são doces. Ao final, temos a transfiguração, uma sublime passagem em que ele vê cada vez mais os "confins infinitos do paraíso". No final da própria vida ele disse que o poema estava certo: era exatamente assim que ele via a vida. Gravação recomendada: Sinfônica da Rádio Bávara (Bavarian Radio Orchestra), regente: Mariss Jansons Maurice Ravel (1875-1937) - Daphnis et Cloé, Suíte Nº 2 (1912) (suíte de balé) Veja o que escrevi sobre essa extraordinária suíte aqui. Foi originalmente um balé escrito para os Ballets Russes, de Sergei Diaghilev. Desse balé, Ravel extraiu duas suítes de concerto. Uma suíte é uma peça composta por partes de um balé que são destinadas a ser tocadas em concerto, sem a encenação. Essa, a segunda, é, de longe, mais tocada que a primeira. O balé todo é uma obra prima, mas essa suíte é especial. A descrição impressionista de uma alvorada, depois um jogo de sedução com a flauta e a dança geral, cada vez mais frenética. É a orquestração mais genial que eu conheço. Gravação recomendada: Orquestra de Paris (Orchestre de Paris), regente: Daniel Barenboim Sergei Rachmaninoff (1873-1943) - A Ilha dos Mortos (1908) (poema sinfônico) Inspirado em uma série de pinturas praticamente idênticas de Arnold Böklin, mais especificamente em uma em preto e branco, Rachmaninoff escreveu esse sedutor poema sinfônico. Primeiro olhe para a tela e pense em que música você imagina. Aí ouça o que ele fez: uma música com uma séria carga romântica, com momentos absolutamente arrepiantes. É em compasso 5/4, que ele usa para criar um tema que simula o remar, e utiliza várias modulações de terça cromática, além da orquestração cuidadosamente pensada. É espetacular. Ao final ele usa o Dies Irae, um tema medieval que evoca morte. Gravação recomendada: Orquestra Filarmônica da BBC (BBC Philharmonic), regente: Gianandrea Noseda Ralph Vaughan Williams (1872-1958) - The Lark Ascending (1914) (romance para violino e orquestra) A obra de Vaughan Williams é um pouco complicada. O que estou dizendo? O problema dela é justamente não ter nada de complicado. É simples, quase não acontece nada. Um crítico maldoso disse que ouvir Vaughan Williams era como ficar olhando para uma vaca olhando uma porteira. Maldade. Mas não espere nada muito denso aqui. Espere, no entanto, beleza. Ele parece ter descoberto que, fixando-se na escala pentatônica e numa orquestração sólida, sua obra estava garantida. De fato, o comentário acima quase levou sua reputação embora, mas a partir dos anos 70 o público começou a descobrir sua obra. The Lark Ascending (O Voo da Cotovia) é um poema de George Meredith de que Williams gostava muito. E escreveu essa lírica peça para orquestra e seu instrumento favorito, o violino. Foi estreada em 1921 e nunca saiu do repertório. Gravação recomendada: Orquestra Sinfônica de Londres (London Symphony), regente: Colin Davis, violino: Hilary Hahn Heitor Villa-Lobos (1887-1959) - Bachianas Brasileiras Nº 4 (1942) As Bachianas Nº 4 são as de que mais gosto, depois das Nº 3. Ele compôs nove Bachianas, cada uma com mais de um movimento. Essa aqui tem 4. Existe em versões para piano e para orquestra. 1. Prelúdio (Introdução) - uma das peças mais reconhecíveis de Villa. Uma linha arpejante (baseada no Thema Regium da Oferenda Musical de J. S. Bach) se desenvolve nos violinos enquanto que outra, uma contra melodia aparece nos violoncelos. Esse movimento só usa as cordas. É a cara do Villa, simplesmente lindo de morrer. 2. Coral (Canto do Sertão) (9m27s) - essa é mais escorregadia, mais maliciosa. Não muito, porém. Porque tem uma nobreza sem fim, e a lendária exuberância que Villa-Lobos atribuía ao Brasil. Um si bemol insistente remete ao canto da araponga. 3. Ária (Cantiga) (14m20s) - a cantiga é a famosa "Oh, mana, deixa eu ir para o sertão do Caicó". Essa canção é lindíssima. Ele tece pequenas variações sobre essa melodia. Maravilhosa. 4. Danza (Miudinho) (19m50s) - Villa-Lobos costumava terminar com uma dança. É uma peça repleta da riqueza rítmica dele e do Brasil. A peça toda tem cerca de 20 minutos (sobe pra 24 quando se repete o prelúdio, como no vídeo). Vou deixar uma recomendação da versão orquestral e outra da versão para piano. Vale à pena escutar as duas, porque tem coisa que funciona melhor numa ou noutra. Gravações recomendadas: Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (OSESP), regente: Roberto Minczuc / Piano: Cristina Ortiz Igor Stravinsky (1882-1971) - O Pássaro de Fogo (1910) (Balé) A peça que alçou Stravinsky à fama. Embora ainda deva muito a Rimsky-Korsakov, de quem foi aluno, já se percebe o excelente orquestrador e o criador quase indomável de ideias que ele seria. Depois desse balé ele escreveria Petrushka e, então, A Sagração da Primavera, que o imortalizaria. O pássaro de fogo é um conto popular russo. Sobre um pássaro que traz bênçãos e maldições para seu dono. Foi encomendada, como os outros dois e como Daphnis et Chloé, de Ravel, pelo empresário Sergei Diaghilev, para a sua companhia, os Ballets Russes. Claude Debussy (1862-1918) - Nocturnes (Noturnos) (1899) Os três Noturnos de Debussy são uma inestimável amostra da arte impressionista francesa. Estão entre as três obras em três movimentos que ele escreveu para orquestra. Bem, o terceiro movimento emprega um coro feminino. Vagamente menos tocados que La Mer, compõem um tríptico baseado em poemas de Henri de Régnier. O primeiro, Nuages (Nuvens) reafirma as aspirações sempre oníricas do compositor. É um movimento esparso, com um corne inglês proeminente e simulações de nuvens mais ameaçadoras através de trêmulos das cordas. O segundo movimento, bem mais agitado e chamado Fêtes (Festas), é cheio de fragmentos melódicos muito passageiros, retratando de forma apropriada as sensações de quando estamos envoltos em festividades. Mas, no meio do movimento começa um ritmo um tanto obsessivo e crescente, ornado por corais de metais e de madeiras, aos quais, eventualmente se junta a caixa clara. Quando os sopros acalmam tudo, o movimento termina tranquilo. O terceiro é Sirènes (Sereias), em que ele emprega o coro feminino. A orquestração é bem sensual e o movimento tem ares paradisíacos. Os infinitos ritmos do oceano e o canto das sereias são a inspiração para esse movimento. Debussy também usou como inspiração quadros de James A. M. Whistler, que era um dos seus pintores favoritos. Gravação recomendada: Filarmônica de Berlim (Berliner Philharmoniker), regente: Claudio Abbado Béla Bartók (1881-1945) - Música para Cordas, Percussão e Celesta (1936) Música altamente dissonante e densa - o oposto da de Vaughan Williams - é uma das peças mais conhecidas de Bartók, o mais famoso compositor húngaro do modernismo. O primeiro movimento é uma lenta e complexa fuga, que gira em torno da nota lá (Bartók tinha isso de gravitar em torno de uma determinada nota). No ponto culminante do movimento, ele já gravita em torno do mi bemol, que é distante por um trítono do lá. O segundo movimento é mais percussivo, com seus pizzicati, mas novamente contém texturas intrincadas. No terceiro, conhecido como "noturno", ele começa com um xilofone tocando a mesma nota num ritmo derivado da sequência de Fibonacci (um número é a soma dos dois anteriores): 1-1-2-3-5-8-5-3-2-1-1. Vários efeitos das cordas com o piano e o glissando no tímpano. A obra termina com um quarto movimento bem agitado. Seria uma dança folclórica frenética. A peça é mais conhecida do que gravada, não sei bem por que. Talvez por causa do grande impacto causado pelas gravações de Ferenc Fricsay, Antal Dorati, Herbert von Karajan e Georg Solti. Gravação recomendada: Filarmônica de Los Angeles (LA Philharmonic), regente: Esa-Pekka Salonen Antonin Dvořák (1841-1904) - The Noon Witch (1896) (poema sinfônico) A Bruxa do Meio-Dia, do tcheco Antonin Dvořák é um poema sinfônico programático, ou seja, tem uma história: uma mãe avisa seu filho que se ele não se comportar a bruxa vai pegá-lo. Claro que ele não se comporta e a feiticeira vem exatamente ao meio-dia. Ela persegue o filho e a mãe, que acaba desmaiando e deixando-o à mercê da bruxa. Horas depois o pai chega e vê o menino morto nos braços da mãe. Ela, com medo da bruxa, tinha acidentalmente sufocado o filho. É uma história de assombração para os pais: contar histórias de bruxas para seus filhos pode ser um mau negócio. Percebam que a chegada do meio-dia é anunciada na música com doze badaladas do sino. Dvořák era exímio orquestrador, como todos nessa lista, e utiliza os recursos da orquestra para ilustrar bem fielmente a história. Gravação recomendada: Filarmônica de Berlim (Berliner Philharmoniker), regente: Claudio Abbado Gostou do post? Comente! Leia também Top 10 Sinfonias, vol. 1 Top 10 Sinfonias, vol. 2 Top 10 Concertos para Piano, vol. 1 + Top 10 Obras Sinfônicas Top 10 Obras Sinfônicas

  • Disco - Holst: Os Planetas / Elgar: Variações Enigma - Filarmônica de Bergen / Litton

    O regente norte americano Andrew Litton tem construído uma sólida discografia. As obras desse disco, ele já tinha gravado antes: Os Planetas com a Sinfônica de Dallas e as Variações Enigma com Orquestra Filarmônica Real, da Inglaterra. Sua primeira gravação dos planetas era respeitadíssima, embora não muito conhecida. O mesmo com as Variações. O que ambas gravações não tinham era o som da Bis, a gravadora que tem trabalhado com várias orquestras que tiveram seu renome crescendo recentemente, como é o caso da Osesp (a Orquestra Sinfônica Estadual de São Paulo). A gravadora é muito querida por audiófilos, pois o som é magistral. Na variação 7 - "Troyte", você sente todo o poder da orquestração: mesmo tocando em volume alto, não há distorção e a definição do som é altíssima. Na variação 12 - "B. G. N.", o som do violoncelo é tão presente, parece que ele está tocando na sua frente. A interpretação de Litton e dos músios Noruegueses nessa peça é maravilhosa, com crescendos e decrescendos apropriados. Sinceramente, desde que eu ouvi essas gravações, tenho até dificuldade em ouvir outras. É uma gravação sem muitos ruídos externos, como respirações, passada de páginas etc. Depois vêm os Planetas. Litton e a orquestra estão novamente concentrados e interessados em criar todos os climas possíveis para você. Já dá pra sentir isso em Mercúrio, talvez o mais furioso dos planetas. E mais uma vez o som da Bis não o decepciona, é excepcional. Essas obras vão do pianíssimo ao fortíssimo às vezes em questão de segundos. Não é fácil fazer isso de maneira convincente. Nas passagens muito fortes é fácil que se perca definição, os metais ou as percussões engolindo os outros instrumentos. Mas isso não acontece aqui. É soberbo. Escute esse disco nas plataformas digitais. Vou deixar o link para o Spotify: https://open.spotify.com/album/6X0mPDJZyHIkD04ZpS88od?si=vIo7eXzOSZ2mx7yrcDVVTw

  • CONTOS DO LOOP

    A ficção científica tem muitos caminhos. Engana-se redondamente (ou planamente, para quem acredita que os planetas não são redondos) quem acha que o gênero se reduz a batalhas espaciais em naves ou alienígenas invasores com armas laser e cabeças enormes. A ficção científica se caracteriza, principalmente, por uma visão de mundo transportada pela tecnologia, existente ou não, para fora do que conhecemos como "real". Então, superpoderes — como dos "X-Men" — ou experimentos científicos — como o clássico "Frankenstein" — também fazem parte do espectro de ficção científica. Mas esse não precisa ser o centro da história, podendo ser apenas um acessório em torno de temas que são essencialmente humanos, como relações afetivas e políticas, como são as obras da estadunidense Ursula K. Le Guin (1929-2018). Dito isso, não é exagero colocar a série "Contos do Loop" em um lugar bem especial na ficção científica contemporânea. A série estadunidense — exibida no serviço de transmissão da Amazon Prime — envolve temas delicados como perda, amor, angústias e a própria passagem do tempo, com uma belíssima embalagem de tecnologia e eventos inexplicáveis. Então, como um bibelô de porcelana em uma embalagem cromada, a série nos mostra, em seus oito episódios, as vidas e histórias de moradores da fictícia cidade de Mercer, em Ohio, nos EUA, onde há um laboratório subterrâneo de física experimental que pretende "tornar o impossível, possível". O Centro de Física Experimental de Mercer parece ser o equivalente a um acelerador de partículas (como o localizado na fronteira entre França e Suíça, inaugurado em 2008), mas muito anterior. Pelas roupas, veículos e alguns aparelhos, a série se passa nos anos 70 e, conforme nos dizem algumas histórias, o Centro já está ali há algum tempo. Com isso, vemos uma espécie de realidade alternativa, na qual um laboratório de alta tecnologia existe em uma cidadezinha no meio dos EUA há muitos anos, espalhando por seus arredores cabos, antenas, cápsulas, robôs, carcaças e toda série de itens que indicam um avanço tecnológico bastante superior ao nosso, mas em outra época. Isso não somente insere a série no subgênero do retrofuturismo — que mostra uma história paralela em que os nossos paradigmas tecnológicos atuais foram atingidos no passado, levando a humanidade para outro rumo —, mas também oferece lampejos de um outro mundo! Afinal, podemos imaginar que, pelo investimento feito naquele laboratório, pelo tempo que ele está ali e pelas tecnologias criadas nele (as poucas que vemos envolvem próteses e robótica avançada), outros projetos científicos famosos dos EUA, como o Projeto Manhattan, que criou a bomba atômica, nunca vieram a existir. Mas tudo que podemos fazer é imaginar esse outro mundo, já que o foco da série não é a tecnologia, mas as pessoas que dão vida a esse lugar. Nessa série, é um erro pensar que a tecnologia é sempre a questão determinante das nossas vidas (como faz Black Mirror). Nos "Contos do Loop", a vida e suas questões singulares são mais fortes e complexas do que qualquer tecnologia inexplicada. Do medo ao luto, do amor à solidão, a série retrata a vida humana como um encontro entre a delicadeza do mais fino material com o horizonte de eventos do mais inconcebível buraco negro. Baseado na grandiosa coletânea homônima de pinturas digitais do artista sueco Simon Stålenhag, a série não se preocupa em explicar totalmente a tecnologia, que é apenas um pano de fundo, cuja ação, para o bem ou para o mal, ativa o desenvolvimento das questões essenciais. Nem todos os episódios têm finais satisfatórios ou estão necessariamente conectados com os demais. Nem todos os personagens se conhecem ou suas vidas se cruzam, mas todos são inegavelmente afetados — e potencializados! — pelos encontros que têm com os aparatos e eventos da série. O episódio final sintetiza todo esse deslumbre da vida humana como algo muito mais belo e potente do que qualquer tecnologia jamais será, mas não oferece respostas (assim como não oferece uma segunda temporada necessariamente, para nossa tristeza!). A lição da série tem um amargo gosto existencial: tudo é possível, de bom e de ruim. Afinal, diferentemente da matemática e da física, viver não tem resposta exata, e a equação vai sendo completada por cada um no correr das incógnitas e dos problemas dessas pequenas existências singulares e infinitas que chamamos vida. VICTOR CRUZEIRO é goiano, de 1989. Para sustentar seus vícios, já fez um pouco de tudo: crítico de arte para gatos, correspondente de gastronomia do Planalto e relações públicas do time campeão da série C da sua cidade. Atualmente é professor de Filosofia e gosta tanto quanto de pequi, do futuro e, em todas as realidades possíveis, da América Latina.

  • Desenho Coisinhas #01

    Por Lele Reis LELE REIS desenha coisinhas e não tem interesse suficiente em si mesma ou no seu trabalho pra dizer qualquer coisa além disso! :-D Curadoria de quadrinhos: Nílbio Thé e Isabelle Prado

  • As três razões da lágrima (conto-poema-ensaio)

    A primeira, basal, resulta de átomos de sal que, contraídos, tornam-se líquido. Escapa-nos porque há um orifício. A segunda, reflexa, é uma reposta do plexo a um órgão em risco. Controla-a a língua no palato e o diafragma encolhido. Sentimental, a terceira, nada explica. É a única com poder analgésico, diz a medicina. Evita-se evitando a vida. Data base: Chora-se mais às sextas-feiras e aos sábados à noite. Caíam bem as lágrimas nos homens da Grécia Antiga, Só na Idade Moderna tornaram-se coisa de menina. ADRIANA LUNARDI é autora de "Vésperas" (contos) e "A vendedora de fósforos" (romance). Criou, com Max Mallmann, o seriado "Ilha de Ferro"(Globoplay, 2018). Vive em São Paulo.

  • Chico Science e a Ciência

    Na canção "Computadores Fazem Arte", Chico Science e a Nação Zumbi dão força e som aos seguintes versos: Computadores fazem arte Artistas fazem dinheiro, dinheiro Computadores fazem arte Artistas fazem dinheiro, dinheiro Podemos fazer várias interpretações desses versos, desde associá-lo à célebre frase de Picasso, de que grandes artistas roubam ideias, até a questões levantadas por importantes estudiosos que falam da desumanização da arte (José Ortega y Gasset) e da humanização das tecnologias (Diana Domingues). Mas vamos tentar não viajar muito hoje e focar no que existe de mais óbvio aqui: Chico Science curtia tecnologia. E curtia arte. A relação de Francisco de Assis França com a cultura, a natureza e a tecnologia era tão forte que, ao ajudar a criar o movimento Mangue Beat, ele fez duas coisas emblemáticas: adotou o nome artístico de Chico Science, pelo qual seria conhecido no Brasil e no mundo, e criou uma metáfora poderosa para explicar a antropofagia modernista tropicalista revisitada a partir de Recife: "uma antena parabólica fincada no mangue", ou seja, alguém que não perde suas raízes, mas também não deixa de olhar ao redor. A partir daí, podemos imaginar o Mangue Beat, com todas as suas analogias tecnológicas, como uma espécie de ficção científica tropical em forma de música. E é interessante perceber como o universo da ficção científica tem se aproximado mais e mais da realidade em pelo menos dois aspectos: 1. As tecnologias inventadas por artistas, cineastas, escritores estão cada vez mais sendo recriadas por engenheiros, inventores, pesquisadores, desenvolvedores e empresas, saindo do mundo das ideias e vindo para o mundo material. Robôs, submarinos, ciberespaço, espaçonaves, helicópteros, clonagem são apenas alguns poucos exemplos de revoluções tecnológicas que surgiram primeiro na mente insana e criativa de artistas para somente algum tempo depois darem as caras na história material da humanidade. 2. O poder metafórico e profético da ficção científica. Como diria a escritora Ursula K. Le Guin de forma magistral, quando se escreve ficção científica ou fantasia, estamos falando apenas da realidade. Tanto é que quando falavam a Karel Čapek que sua seminal peça A Fábrica de Robôs era ficção, ele se irritava profundamente. Trocando em miúdos, basta a gente olhar para as notícias do jornal e ver que a distopia agora não é exclusividade de narrativas fantasiosas do cinema, dos quadrinhos, dos games ou da literatura. Ela está na nossa frente. Mas agora, uma notícia bem interessante, e diríamos até feliz, coloca um terceiro ponto de aproximação entre Chico Science e a ciência. A descoberta de um novo novo gênero e espécie de crustáceo descrito a partir de duas localidades ao longo do litoral de Pernambuco recebeu o nome de Chicosciencea pernambucensis. Em artigo publicado em 19 de setembro de 2020 no Journal of Crustacean Biology, pesquisadores demonstraram que, com análise morfológica, Chicosciencea difere de todos os gêneros de "camarões-limpadores" por uma combinação de caracteres. A análise molecular inferida recuperou um grupo que compreende espécies de vida livre (ou seja, que não vivem em associação com esponjas) e espécies de águas rasas e, com base neste grupo e em suas semelhanças morfológicas, moleculares e ecológicas, o estudo propõe formalmente a inclusão desse gênero e também fornece uma lista mundial atualizada de Stenopodidea (infraordem de crustáceos decápodes). Com a descrição de Chicosciencea gen. nov., a infraordem Stenopodidea agora compreende 13 gêneros e 92 espécies. Esse tipo de camarão compreende animais da ordem mais diversa dentro dos crustáceos, os decápodes, sendo encontrados em diferentes regiões do mundo, inclusive no Brasil, além de apresentarem uma grande importância econômica e ambiental. Camarões representantes de Stenopodidea realizam diversas interações ecológicas com diferentes grupos de animais marinhos, incluindo esponjas, cnidários, poliquetas, equinodermos e peixes. A interação mais estudada é a de limpeza ("cleaning mutualism"), em que os camarões-limpadores se alimentam de ectoparasitas e tecidos comprometidos de peixes, enquanto estes se beneficiam pela redução dos efeitos negativos na saúde do "cliente". Os representantes da infraordem Stenopodidae estão presentes, por exemplo, em produções de animação famosas nos quais suas características comportamentais são exploradas, tanto dentro de aquários como em seu habitat natural. Em Procurando Nemo (Disney/Pixar), Jacques é um camarão-limpador do Oceano Pacífico com sotaque francês que vive no aquário do Nemo e é obcecado por limpar tudo a todo momento. Em O Espanta Tubarões (Dreamworks), o lava-rápido de baleias no fundo do mar conta com camarões-limpadores como funcionários. O professor Alexandre Almeida, coordenador do Laboratório de Biologia de Crustáceos da UFPE, se diz satisfeito com a descoberta e com a homenagem. Segundo ele, "o nome dele acabou ficando Chicosciencea, que é o nome do gênero, pernambucensis, que é o nome da espécie. Chicosciencea em homenagem ao grande Chico Science e pernambucensis em alusão à localidade onde o animal foi encontrado, no litoral de Pernambuco, que, por enquanto, é o único local onde ele é conhecido. A gente está contribuindo, assim, com a descrição dessa nova espécie, com uma coisa altamente preciosa, que é o patrimônio da nossa biodiversidade, então, a gente só pode preservar o patrimônio que a gente conhece", afirmou. Ao que parece, Chico Science foi, ainda que indiretamente, como muitos outros artistas, um incentivador da ciência, mostrando que criadores, desenvolvedores e descobridores têm muito mais em comum do que se pensa. Seja pelos problemas de realizar seu trabalho num país como o Brasil, seja pelas dificuldades de se ter o devido reconhecimento, ou pela satisfação de fazer com que a gente entenda mais de si e do mundo que nos cerca. DANIELA "Chimp" DIAS é professora de Biologia e Ciências, e amante de etologia e evolução, principalmente de primatas. É mestra em Avaliação de Impactos Ambientais (Manejo e Conservação da Biodiversidade). Se amarra em tudo relacionado ao terror/horror e serial killers. Curte uns metal e sua banda favorita é o Pantera. NÍLBIO THÉ é editor da Arara Neon.

  • E as vitrolas?

    Eles estão nos mais diversos comerciais, filmes, séries e até em novelas. Em pleno 2020, somos bombardeados com imagens de discos e toca-discos quase que diariamente. É até inevitável não despertar, no mínimo, uma boa lembrança, saudosismo ou mesmo curiosidade por parte daqueles que já vivenciaram o auge do vinil, e também pela geração do mp3. Imaginemos que você está em um supermercado perto da sua casa, de máscara, dando aquela olhada maliciosa na prateleira das cervejas, quando, mais à frente, você se depara com uma vitrolinha igual à que você viu na TV. Precinho bacana e ainda com a opção tentadora de parcelar em até 10x sem juros no cartão. Comprar ou não comprar, eis a treta. Então você dá uma espiadinha no celular para pesquisar sobre o aparelho em fóruns, sites ou quem sabe alguém próximo que já colecione, mas acabou que mais atrapalhou do que ajudou. E agora? Dá o play aqui que nós vamos te dar essa força para escolher um toca-discos de até R$ 400,00. Lembrando que a ideia aqui não é entrar em detalhes, mas apenas direcionar vocês a uma boa escolha. Nessa faixa de valor, vamos te dar duas opções, sem muitas delongas: A primeira são os aparelhos novos, no formato "maletinha" ou similares, da Raveo, Multilaser, etc. A segunda opção são os usados, mas guerreiros, 3x1, da Nacional, Gradiente, entre várias outras marcas de época. A primeira pergunta, se não a mais importante que devemos fazer é: você almeja ser DJ? Ou quer iniciar um novo hobby prazeroso e escutar uns bolachões para ter uma experiência sonora, visual, tátil e até olfativa? Se você escolheu a primeira opção, infelizmente lamentamos informar, mas nessa média de preço fica praticamente impossível operar em algo analógico. Se pesquisar o assunto na internet, deve ver diversos blogueiros(as), influencers e lojistas condenando os toca-discos novos — erroneamente apelidados de "vinil killers" —, aqueles que encontramos com mais facilidade, como os de formato maleta, ou os que possuem um visual mais vintage. Eles acabam falando tão mal deles, que provocam um certo pavor e acabam por afastar novos clientes, fazendo que, por muitas vezes, até desistam de iniciar sua coleção. Geralmente são pessoas elitistas ou lojistas incomodados com a diminuição das vendas dos seus tesouros que são vendidos a preços exorbitantes devido à popularização que esses humildes aparelhos trazem de volta ao mercado do vinil. A bandeira a ser levantada deveria ser do vinil para todos! Se pretende injetar uma média de suados R$ 400,00, não dê muita importância a nenhuma das pessoas acima, até porque nenhum deles paga as suas contas. Saiba também que, por esse valor, você não terá nada de muito extraordinário em suas mãos, pois, no mundo do vinil, o céu é o limite, mas terá um aparelho que cumpre bem com sua função e você também desfrutará da alegria e do prazer de escutar bons discos, seja sozinho ou em ótima companhia. Os dois tipos que te indicamos geralmente são do tipo "belt drive" (significa tração por correia), que é o mais recomendado para uso doméstico. Existem ainda os de "polia" e os "Direct Drives", mas, como falamos acima, os detalhes vão ficar para uma próxima conversa. A vantagem deles é que você não precisa quebrar a cabeça e o bolso para comprar aparelhos extras, como receivers, pré-amplificadores, equalizadores, etc., ou se preocupar também com potência e impedância em amplificadores e caixas de som para que consiga o seu objetivo, já vem tudo pronto para você. É só ligar e curtir, servindo até de decoração em muitos ambientes de sua casa. A maioria dos toca-discos novos te entregam 1 ano de garantia e já vem com uma saída auxiliar caso você necessite de um volume maior de som do que o dos alto-falantes já embutidos. Alguns vêm com a função bluetooth, rádio, CD e fitas cassete e também a opção de digitalizar sua coleção em mp3, direto no seu pendrive. Saída para fone de ouvido, caso tenha alguém que se incomode com o barulho do seu novo hobby. São todos configurados de fábrica, você não vai se preocupar com nada de ajuste. Por serem pequenos, e alguns bivolts, dá pra levar tranquilamente para alguma viagem e ainda utilizar no seu garimpo de discos por aí. Por outro lado, como eles não vêm com uma regulagem de peso no braço da agulha e anti-skating, alguns podem vir com a "tracking force" (peso que a agulha exerce sobre o disco) fixa um pouco elevada, o que pode vir a causar algum tipo de dano ao vinil em longo prazo. — Como assim, vai estragar meu disco? TODO aparelho, tendo regulagem ou não, vai acarretar em um atrito entre a agulha e o vinil, que chega a altas temperaturas. Então, independente disso, irá ocorrer o desgaste. A questão é o tempo, uns vão degastar mais rápido, outros vão demorar um pouco mais. Vamos ilustrar uma situação: Suponhamos que você compre um disco por R$ 10,00 em uma feira ou em uma loja qualquer, e que, escutando várias e várias vezes este disco por cinco anos ou mais, você venha a causar algum dano que prejudique a audição dele. Creio que seus R$ 10,00 foram um ótimo investimento durante esses anos, não?! Afinal, poucos são os entretenimentos pagos que se aproveite tanto por tanto tempo. As vantagens dos usados, logicamente com a exceção da garantia e do bluetooth (risos), são muito similares aos novos. Os problemas dos usados vão desde o risco de ser enganado pelo suposto vendedor (NUNCA compre algo usado sem antes testar) ou mesmo o azar de um bom aparelho que foi usado por anos sem nenhum dano vir a pifar na sua mão, indo até a dificuldade em achar mão de obra para fazer a devida manutenção ou reparo. Existem cidades que praticamente não têm ninguém que ofereça o serviço, imagine você o dilema que seria para uma simples reposição de peças! Você irá encontrar os modelos antigos em algumas lojas especializadas, feiras e também em sites de compra e venda. Espero ter ajudado, um abraSom. BRUNO BRAVO tem 33 anos. Técnico em Áudio e Produtor Fonográfico. (IATEC) CEO na 8 Polegadas Record Shop.

  • Território Marginal #01

    O Lado Triste da vida. Um quadrinho de Vitor Batista. VITOR BATISTA é cartunista, designer e arquiteto, nasceu em Barbalha (CE) em meados de 1981, acredita nas três partes da filosofia universal e fica puto quando confundem ele com um gringo. Curadoria de Quadrinhos: Nílbio Thé e Isabelle Prado

  • A impressionante orquestração de Ravel (Daphnis et Chloé - Suíte Nº 2)

    Maurice Ravel foi o grande ser humano orquestrador. Orquestrar é a arte de escrever ou reescrever (transcrever) uma música especificamente para orquestra e com todos os desdobramentos disso. Saber que dois oboés não soam com o dobro da potência de um só; que, naquele registro, com os violinos tocando Mezzo Forte, a flauta só vai soar se tocar muito forte; que os trombones não soam bem tão próximos (as notas tão próximas), exceto exatamente naquele ponto; que um instrumento fica estridente aqui, outro, desnecessário, porque não vai aparecer... Eu amo orquestração. Mas, embora na faculdade tenham sido 4 semestres, não a domino perfeitamente. Ravel dominava tanto que os outros compositores o invejavam. Tem a famosa história de George Gershwin, que, em visita a Paris, queria aulas com Ravel. Este teria dito "O senhor já não é um compositor de sucesso?", ao que Gershwin responde que sim. "E quanto o senhor ganha por ano?", perguntou Ravel, "1 milhão de dólares", ouviu e retrucou "Então você é quem deveria me dar aulas!". Essa história é duvidosa (mas pode ser que tenha acontecido). Muito mais plausível é que Ravel tenha se recusado a ensinar Gershwin por medo de que, com muitas aulas teóricas, o compositor perdesse seu dom natural para a melodia. "É melhor ser um bom Gershwin que um mal Ravel!", isso ele disse mesmo. Pra mim, o apogeu da sua arte foi o balé Daphnis et Chloé, de 1912. Como os balés eram muito longos, os compositores extraíam trechos deles para fazer uma versão de concerto (sem a dança, tocada na sala de concerto). Ele extraiu 2 suítes de Daphnis et Chloé, e a Segunda, justamente a mais conhecida, mostra o potencial de criação de um compositor que usava a orquestra como um infinito leque de cores. Com notas longas e outras extremamente curtas, de maneira que o que cada instrumento faz individualmente é ininteligível, ele parece tecer gesto a gesto um monumental movimento. Um balé. Escutem só a peça: começa com uma longa e majestosa descrição musical de uma alvorada. São 3 movimentos, mas eles são interligados, você vai pensar que é um movimento só. Tem o amanhecer; tem uma intervenção de Pan, na flauta (07m30s, aos 10m05s vocês podem ouvir uma escala descendente que passa por 4 flautas como se fosse uma só) e tem a dança final (12m24s), com todos os personagens, na qual ele emprega vastamente as percussões. A orquestra, nesse caso, a Filarmônica de Berlim, sob a regência de Simon Rattle, toca avassaladoramente. - A orquestra pedida é enorme e, em muitas gravações, mesmo da Suíte Nº 2, usa-se ainda um coro (sem palavras), que está presente no balé original. Mas as gravações que eu prefiro são geralmente sem coro. - O balé foi encomendado por Sergei Diaghilev, dos Ballets Russes, o mesmo que encomendou a Sagração da Primavera no ano seguinte, 1913. - O compositor, conhecido por ser extremamente metódico, demorou 3 anos para entregar a partitura. - No auge da alvorada temos um acorde sublime (04m40s), que Ravel, blasé, insistia: "É apenas um Ré Maior acrescido de Sexta". Pode até ser, mas eu pego meu violão, toco um Ré com 6ª e não soa assim, não. - Ele era tão bom nisso, que tem uma peça, o Bolero, que é praticamente um exercício de orquestração, que ele não gostava e que hoje é famosíssima. - Era considerada dificílima de dançar. - Pierre Monteux, o mesmo maestro que estrearia a Sagração da Primavera, regeu a estreia e tem gravações da obra. Gravações recomendadas: Orquestra de Paris (Orchestre de Paris), regente: Daniel Barenboim (Suíte Nº 2) - Orquestra de Paris, regente: Semyon Bychkov (Suíte Nº 2) - Orquestra Sinfônica de Londres (London Symphony), regente: Pierre Monteux (balé completo)

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A Arara Neon é um blog sobre artes, ideias, música clássica e muito mais. De Fortaleza, Ceará, Brasil.

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