Eu estava aqui vendo um anúncio do excelente filme Parasita, de Bong Joon Ho, que, como todos nós sabemos, assustou todo mundo, no melhor sentido da coisa (sim, porque arte também é feita para assustar mesmo) e pensei como já tem alguns anos - talvez quase uma década - que estamos vivendo um surto de cinema sul-coreano e penso como isso é horrível.
Não que o cinema sul-coreano seja ruim, muito pelo contrário, posso fazer listas e listas dos Topping Topers of The Top de vários filmes da Coreia do Sul, um país que, como bem sabemos, tem muita história para contar! O que é ruim é justamente o surto. Explico...
Quando eu ia numa locadora de filmes antigamente, sempre via uma seção “filmes de arte estrangeiros” e, óbvio, os americanos não estavam lá. Porque, via de regra, só conhecemos filmes estadunidenses e anglófonos de um modo geral. Mas existem os surtos. E essa prática se repete nos catálogos de streaming.
De repente, por algum motivo, somos "gentilmente" inundados por uma série de filmes, discos, livros, quadrinhos de algum país ou região do globo que dificilmente chegavam até nós. Eles vêm. E depois vão. Claro que se você é estudante de cinema (ou já trabalha com isso), você tem um acesso mais fácil (ou menos difícil) a cinematografias “não óbvias”. Mas imaginemos a pessoa leiga, que é refém daquilo que é oferecido a ela, que não pesquisa sobre cinema até porque não sabe onde ou como fazê-lo. Vamos pensar num serviço de streaming.
Vou dar um exemplo de uma série: a vertiginosa La Casa de Papel. Foi só essa série furar o bloqueio majoritariamente estadunidense que um monte de série espanhola apareceu nos catálogos de streaming. E não somente séries novas como As Telefonistas (que em nada se relaciona com La Casa de Papel além de ser falada em espanhol), mas também séries que já tinham sido lançadas ganharam uma atenção extra, como Vis a Vis ou Merlí (que também pouco tem em comum com as séries citadas além de ser espanhola ou, mais especificamente, catalã).
Mas existem outros exemplos. No começo dos anos 2000, o surto foi o do cinema argentino (sobretudo os estrelados por Ricardo Darín, mas não se limitando a eles, como Garagem Olimpo, de 1999, e Prata Queimada, de 2000). Acho que o surto começou oficialmente com o eletrizante e divertidíssimo Nove Rainhas, de Fabián Bielinsky, passou por uma espécie de redescoberta de alguns filmes fabulosos (e de certo modo clássicos) do principal diretor argentino, Fernando Solanas, compreendeu um dos maiores sucessos de Lucrécia Martel (O Pântano, de 2001) e culminou com O Segredo de Seus Olhos, de 2009. E pronto. Alguns filmes, como Relatos Selvagens, de 2014, ainda rompem o fim desse “surto” e chegam aqui. É triste pensar que aqui no Brasil conhecemos tão pouco do nosso principal vizinho, mas ao mesmo tempo é interessante perceber que esse “boom” argentino facilitou também os lançamentos de filmes mexicanos, como Amores Brutos (que “revelou” o ator Gael García Bernal e o diretor Alejandro Gonzáles Iñárritu), O Crime do Padre Amaro, de 2005 (também com Bernal), E Sua Mãe Também de Alfonso Cuarón (outro com Bernal e também com Diego Luna) e pelo menos um filme uruguaio: o Banheiro do Papa, de 2007, dirigido por César Charlone.
Outro exemplo: se você se interessar por cinema e estiver, pelo menos, na faixa dos 40, vou fazer um convite a viajar um pouco mais pra trás, porque você deve lembrar que nos anos 90 tivemos, ao menos aqui no Brasil, um surto semelhante: o do cinema iraniano. Era impossível ser uma pessoa descolada sem, no meio de uma roda "cult bacaninha" de conversa, falar sobre Samira Makhmalbaf, Abbas Kiarostami, Jafar Panahi. E embora muitos desses realizadores estivessem de certo modo no seu auge nos anos 90, esse surto permitiu que obras dos anos 70 e 80 de Abbas Kiarostami, por exemplo, fossem revisitadas. Quanto mais "cult bacaninha" se era, mais filmes iranianos você tinha em casa, em VHS.
Esse surto foi relativamente bom até para quem não era do Irã, mas estava ali “nas adjacências”, como o diretor tajique Bakhtyar Khudojnazarov, que lançou seu excelente Luna Papa em 1999 (pra mim, simplesmente o filme mais fofo do mundo), e se beneficiou suavemente dessa onda, já que seu filme, uma coprodução internacional inteiramente rodada no Tajiquistão, em muito lembrou os filmes iranianos (sobretudo Gabbeh, de Mohsen Makhmalbaf, pai de Samira Makhmalbaf, lançado em 1995, dado seu realismo fantástico) e era comercializado (junto com alguns filmes afegãos) como sendo iraniano. Sim, porque "iraniano" acabou virando "gênero cinematográfico". Aliás, o filme é do Tajiquistão, mas na capa da cópia que eu tinha havia escrito bem grande: "Cazaquistão".
Hoje em dia, se você for conversar com um jovem cinéfilo sobre cinema iraniano, existe uma possibilidade relativamente alta dele não conhecer nenhum filme (claro que existem exceções). Talvez a pessoa conheça Garota Sombria que Caminha na Noite, não exatamente por ser iraniano, mas por fazer parte de um outro surto: filmes independentes de terror. Mas certamente conhecerá muito da cinematografia da Coreia do Sul, que vive seu surto aqui no Brasil e no mundo desde o estopim de Old Boy, de 2003, adaptando uma sanguinária e original história em quadrinhos pro cinema (se encaixando em uma trilogia sobre vingança dirigida por Park Chan-Wook) e talvez um pouco devido a O Hospedeiro, de 2006 (um dos primeiros filmes de Bong Joon Ho). E, claro, não podemos nos esquecer da maciça difusão aqui dos doramas e do k-pop (que não é o “pop normal” anglófono) que contribuíram para esse “surto” de bens simbólicos da cultura pop coreana.
Resta saber quando será o próximo susto de surto. Ou surto de sustos. E isso pra mim ficou muito evidente quando me convidaram para participar de uma mesa redonda com um tema altamente vago e altamente amplo: "Cinema Asiático". Num dado momento, depois de um tempo falando sobre o cinema iraniano, fui interpelado com a seguinte pergunta: "mas esses filmes são bons?". É claro que eu disse que eram bons, na verdade, que eram excelentes. Mas fiquei me perguntando a razão daquela pergunta e percebi que estávamos no começo do surto cinematográfico da Coreia do Sul, então, se fosse para falar de cinema "não estadunidense", só tinha espaço para o sul-coreano. Claro que, no momento, não me dei conta disso, mas essa lembrança ficou envolta nesse pequeno incômodo, que somente agora estou processando nesse pequeno texto.
O que me lembra, aliás, de uma espécie de “quase surto” de interesse que presenciei em alguns lugares acerca do cinema finlandês dos anos 90, sobretudo os do diretor e roteirista Aki Kaurismäki (suspeito que isso se deu pela semelhança de alguns filmes dele com o cinema dinamarquês da época do Dogma 95, também uma espécie de surto em vários aspectos) e também de um microssurto: o do cinema alemão jovem (veja bem, na época era jovem). Filmes como Corra Lola, Corra!, de 1998 (de Tom Tykwer, que revelou não somente o próprio Tykwer, como a protagonista Franka Potente, cujo sobrenome soava para nós, lusófonos, ainda mais que perfeito para o filme, e Moritz Bleibtreu que, por coincidência, também estrela Luna Papa); Adeus, Lênin! de Wolfgang Becker, primeiro filme de sucesso internacional de Daniel Brühl (que, como todo bom alemão, hoje faz papel de europeu “genérico” e também de vilão em filmes estadunidenses) e que também conta com Chulpan Khamatova (a principal estrela de Luna Papa, que também é uma das minhas atrizes russas prediletas); Edukators (outro com Daniel Brühl); e o Grupo Baader Meinhof, de 2008, que meio que encerra o surto.
Bom, mas nem só de cinema vivem os surtos. Eu poderia falar (e vou, mas não agora), por exemplo, sobre o surto de arte japonesa na Holanda e na França da Belle Époque, ou da descoberta das máscaras tribais africanas nos anos 20 por artistas europeus que estavam diante de uma verdadeira novidade da antiguidade. Mas vou citar coisas mais recentes...
Se você acompanha a música pop independente, vai lembrar também do surto de bandas escocesas como Travis, Belle & Sebastian ou Franz Ferdinand, que veio na ressaca da enxurrada de bandas de britpop, como Oasis e Blur (percebam mais uma vez como é específico, existe o pop e o BRITpop da década de 90 - e isso porque estou citando os surtos mais "recentes", de 30 anos para cá), ou da onda de música pop experimental e pós-rock da Islândia da metade dos anos 90 até o comecinho da década seguinte (Björk e Sigur Rós), que gerou até o livro de Fabio Massari chamado Rumo à Estação Islândia, lançado em 2001 (cujo título é um trocadilho elegante e óbvio com a edição brasileira de To the Finland Station: A Study in the Writing and Acting of History de Edmund Wilson, lançado aqui como Rumo à Estação Finlândia), um misto de diário de viagem com catálogo fonográfico do país. É claro que existem casos famosos de pessoas que pararam de ouvir Belle & Sebastian porque ela virou uma banda conhecida e, portanto, perdeu a graça e o charme de ser “diferentona”. Mas a questão é que depois que o surto passa, voltamos a consumir mais do mesmo. Como se aquele país só tivesse feito filmes naquele período, como se o Irã não fizesse filmes desde 1921 e a Coreia do Sul desde 1930. Como se determinado país só tivesse lançado bandas naquele período, ou seja, tivesse toda sua produção cultural circunscrita a um punhado de anos ao passo que a indústria cultural anglófona não necessita de surtos, já que tem um fluxo constante.
E é essa a tristeza: aparentemente, para conhecermos algo fora do nosso radar, é preciso que alguma obra fure a bolha para que outras peguem carona nela. E quem determina isso? Óbvio que é a obsessão por lucros de produtoras e distribuidoras que pegam carona nas mais diversas ondas que o mercado de bens simbólicos proporciona. Mas depender disso para abrir nossa mente é complicado. Tive alunos do curso de cinema que se restringiam ao que era exibido em salas de cinema (não havia ainda a febre do "streaming") e deixaram de conhecer diversos filmes que adorariam conhecer se pesquisassem mais, se enfiassem o nariz onde não “deveriam” e foi quando comecei a emprestar muitos "DVDs" do meu próprio acervo didático (e a perdê-los na sequência), o que incluía, a propósito, os primeiros filmes do próprio Bong Joon Ho e outros diretores e diretoras sul-coreanas. Mas pensemos agora na condição de um desafio: de quantos surtos precisaremos para descobrir, por exemplo, o rock da Turquia? As histórias em quadrinhos da Malásia? Os artistas plásticos da África do Sul? A nostálgica e linda Tezeta da Etiópia? A dança cênica do Congo? E as comidas? Quantos surtos de restaurantes de comidas típicas internacionais vem e vão e não ficam? E o que acontece depois do surto? As coisas deixam de existir ou deixam apenas de serem exibidas?
É aí que entra a reflexão sobre quem ou o quê (no caso de ser um algoritmo) está escolhendo o que oferecer para você consumir. A "curadoria" (bem entre aspas mesmo, pois não quero me referir ao sentido curatorial mais erudito, conceitual ou estético que usamos normalmente no meio artístico e acadêmico, mas sim algo mais simplório, mais "bruto") de coisas e listas de coisas que valem a pena conhecer. Claro que cada lista é estritamente pessoal, mas aqui, na condição de um dos editores desta paradoxalmente humilde e pretensiosa revista - almanaque em forma de site, convidamos você para que entre e se esbalde, pois mostrar coisas legais para pessoas ainda mais legais é uma de nossas missões, uma de nossas funções e que abraçamos com alegria.
E se a troca for interessante, é provável que um dia você esteja fazendo suas próprias listas para a gente da Arara Neon. Boas (re)descobertas!