A companhia Ballets Russes, de Sergei Diaghilev teve tanta importância na música moderna que ele merecia uma condecoração. Foram eles que contrataram Igor Stravinsky (1882-1971), em 1909 para compor a música do balé "O Pássaro de Fogo". Depois, "Petrushka", em 1911 e, finalmente "A Sagração da Primavera", de 1913.
Diaghilev também é responsável pela composição de "Daphnis et Chloé" e "La Valse", de Maurice Ravel; "Jeux", de Claude Debussy; "Chout", "Le Pas D´Acier" e "Le Fils Prodige", de Sergei Prokofiev. E muitas outras. Inclusive de Stravinsky.
A Sagração da Primavera, que você vai encontrar como The Rite of Spring ou Le Sacre du Printemps foi o mais famoso, porque sua estreia foi um escândalo de proporções tais que mais de um século depois ainda se fala nela. Existem filmes sobre a peça, como Riot at the Rite, da BBC e livros, como A Sagração da Primavera, de Modris Eksteins, um interessante panorama da primeira metade do século XX tendo como ponto de partida a fatídica noite de estreia da peça; e várias tentativas de montar o balé com a coreografia original, que foi perdida durante a 1ª Guerra Mundial.
Essa coreografia era de Vaslav Nijinsky, e o cenário e figurino de Nicholas Roerich. Depois que ela se perdeu e a guerra acabou, nos anos 20, Léonide Massine fez uma coreografia nova.
Falo sobre a estréia mais adiante. Mas se você ouvir a peça dá pra entender mais ou menos o que aconteceu. É uma música bárbara, sem um tema, uma melodiazinha pra se assobiar. Em alguns momentos não dá pra saber se os músicos estão tocando certo ou errado...
E a coreografia era igualmente impactante: os bailarinos pulavam com os joelhos dobrados, os pés para fora ou, bizarramente, para dentro e faziam expressões bizarras com as mãos e o rosto.
Abaixo, uma ótima interpretação da peça por Simon Rattle (que rege de cor) e a Sinfônica de Londres.
A Obra
Eu quero ser justo. "O Pássaro de Fogo" era uma música bem moderna, mas com muita reverência a Rimsky-Korsakov e o nacionalismo russo. Agora, "Petrushka", essa já era revolucionária, com polirritmia, orquestração contraintuitiva, politonalidade e tudo que se pode imaginar. Mas encasquetaram com a Sagração. Porque ela foi o ápice do movimento moderno, apresentava inovações que a maior parte do público não poderia compreender. Ou poderia, mas não queria. O fato é que duas semanas depois dessa estreia em Paris, a estreia em Londres foi um sucesso, Stravinsky saiu carregado.
A Orquestra
A orquestra pedida é enorme, com:
3 Flautas
1 Flautim
1 Flauta contralto
4 Oboés (2 alternando para corne inglês)
3 Clarinetes (1 alternando para Clarone)
1 Clarinete em Mi bemol (Soprano)
1 Clarone (Baixo)
4 Fagotes (1 alternando para Contrafagote)
1 Contrafagote
8 Trompas (2 alternando para Tubas de Wagner)
5 Trompetes
3 Trombones
2 Tubas
Tímpanos (2 tocadores)
Vasta percussão
Violinos 1
Violinos 2
Violas
Violoncelos
Contrabaixos
A História
Stravinsky queria fazer uma obra que falasse dos primórdios da civilização. Uma tribo estava tendo dificuldades no plantio, então resolve fazer uma oferenda ao Deus da Primavera. Essa oferenda consiste em um sacrifício oferecido pelos velhos sábios: as virgens da aldeia iriam dançar. Aquela que caísse três vezes seria a eleita. Ela deveria dançar até a morte, num clímax musical de tremer os ossos.
Parte 1 - Adoração da Terra
I. Introdução (35s)
Começa já com um fagote tocando estranhamente notas agudas, que seriam muito mais confortáveis em um corne inglês. A harmonia é totalmente cromática, quando entram as outras madeiras, chega a dar tontura caso você queira se situar. Essas notas estão fora da alçada usual do fagote, e o efeito que Stravinsky queria era esse mesmo, o músico se esforçando para tocar. Hoje eles tocam com facilidade, devido às evoluções de técnica e de construção do instrumento. Stravinsky chegou a dizer que era bom que a passagem subisse um semitom a cada década, para voltar a ser difícil.
II. Augúrios da Primavera: Dança dos Adolescentes (4m05s)
Uma dança vigorosa sobre um famoso acorde octatônico (um Mi bemol com 7ª sobreposto a um Mi maior). Aqui, ouve-se o Stravinsky obsessivo, os ritmos martelando na nossa cabeça.
III. Jogo de Captura (7m13s)
Os jovens da tribo fazem uma brincadeira de captura com as virgens.
IV. Danças de Roda da Primavera (8m29s)
Repare nos trinados, eles são tão longos que os instrumentistas têm que se alternar de maneira imperceptível. O destaque é para o clarinete em mi bemol, a requinta. Depois, temos uns acordes arrastados nas cordas até que uma explosão da percussão faz voltar esse motivo nos metais (10m30s). E a requinta volta com seu tema, junto com a flauta contralto.
V. Jogos de Tribos Rivais (12m03s)
A música já está bem agitada, a escrita para metais e madeiras é primorosa.
VI. Procissão dos Sábios (13m50s)
Começa com o canto das Tubas de Wagner (tocadas por dois trompistas). O clima é tenso e há forte polirritmia.
VII. O Sábio (14m37s)
Como a apresentação do sábio-mor, temos as notas longas dos fagotes. Reparem no acorde arrepiante (14m56s). Ele abençoa a terra.
VIII. Dança da Terra (15m04s)
Mais uma vez a música se agita, com a predominância nos metais. É interrompida bruscamente para dar início à parte 2.
Parte 2 - O Sacrifício
IX. Introdução (16m35s)
As madeiras fazem uma cama para notas erradias das cordas. Acontecem pequenas explosões. Repare na melodia do violino solo (18m08s) e nos trompetes com surdina (18m43s).
X. Círculos Misteriosos de Jovens Garotas (21m10s)
As jovens começam uma brincadeira misteriosa, dançando em círculos. Uma delas cai a primeira vez (21m33s), e uma segunda (23m29s) e, por fim, a terceira (23m49s). Ela é a eleita. Seu destino é selado por acordes acompanhados pelos tímpanos.
XI. Glorificação da Eleita (24m08s)
Uma dança febril em glorificação da eleita.
XII. Evocação dos ancestrais (25m44s)
O tiranossauro mata o estegossauro... digo... Elas fazem uma breve dança para evocar os ancestrais.
XIII. Ritual dos Ancestrais (26m28s)
Com a subida cromática do corne inglês e a participação da flauta contralto, a jovem escolhida é incumbida de cuidar do velho sábio.
XIV. Dança do Sacrifício (30m05s)
A virgem dança até a morte na frente dos velhos sábios. É uma dança intensa, a orquestração é magnífica e brutal. No último acorde ela cai e as luzes se apagam.
A Estreia
Foi estreada em 29 de maio de 1913, no Théâtre Champs-Élisées com Pierre Monteux regendo a orquestra. Existiam dois tipos de público de balé: os ricaços, que adoravam música bonita e exuberante; e os modernos, que estavam interessados nessas quebras de paradigmas. Dá pra imaginar que o primeiro grupo ficou escandalizado, vaiando a música do princípio ao fim, muitos deles indo embora sem pestanejar.
A orquestra mal conseguia tocar, tamanho era o barulho, e Nijinsky tinha que contar o tempo da coxia em voz alta para os bailarinos. O teatro piscava as luzes tentando equilibrar o público. Stravinsky e sua Sagração da Primavera entravam de maneira assertiva para os livros de história.
Gravações Importantes
As duas gravações históricas mais importantes envolvem dois regentes diretamente ligados a essa estreia. Pierre Monteux e o próprio Igor Stravinsky, que gravou a obra diversas vezes. Mas existem tantas. Faço menção honrosa a Danielle Gatti, Herbert von Karajan, Bernard Haitink, George Solti, Iván Fischer e Theodor Currentzis. Mas essas são as melhores:
- Pierre Monteux com a Orquestra Sinfônica de Boston - Como se trata de Monteux, temos uma noção aproximada de como a música soava desde sua concepção (aliás, não exatamente: a versão que hoje se toca é sempre uma revisão feita por Stravinsky em 1948). Essa gravação é de 1957 e toca a versão de 1948 da partitura.
- Igor Stravinsky com a Orquestra Sinfônica da Columbia (da gravadora Columbia) - De 1960, é a melhor gravação de Stravinsky da obra. Ainda que um pouco sutil demais, é um importante registro.
- Claudio Abbado regendo a Sinfônica de Londres - É a minha gravação de cabeceira. Vigorosa e com um som muito bom. É de 1976.
- Paavo Järvi regendo a Sinfônica NHK de Tóquio - O som dessa gravação recente (2021) é espetacular. Foi uma surpresa para mim, embora Järvi sempre nos traga leituras excepcionais de tudo.
- Esa-Pekka Salonen com a Filarmônica de Los Angeles - Uma gravação audiófila, de uma eletricidade ímpar. De 2006. Salonen também a gravou com sua atual orquestra, a Sinfônica de San Francisco, em 2023.
- Pierre Boulez conduzindo a Orquestra de Cleveland - A primeira gravação de Boulez da peça, de 1969 é considerada exemplar.
- Ernst Ansermet, com a Orchestre de la Suisse Romande - Ansermet fez uma gravação clássica e excepcional, como sempre. É de 1957-58.
- Mariss Jansons regendo a Orquestra da Rádio Bávara - Gravação ao vivo, sensacional. A melhor orquestra e o maior regente. De 2018.
- Vassily Petrenko com a Filarmônica Real de Liverpool - Praticamente todas as gravações de Vassily com a Filarmônica Real da terra dos Beatles é perfeita. Esse disco todo é dedicado a obras que se referem à primavera, com Printemps, de Debussy e Spring, uma cantata de Rachmaninoff. É um dos grandes discos modernos, de 2017.
- Yannick Nézet-Séguin, com a Orquestra de Filadélfia - Outro disco que é todo impressionante. É dedicado ao maestro Leopold Stokowski, que regeu a Sagração para o filme Fantasia (Disney, 1940) e contém várias de suas transcrições de obras de Bach e da Sagração. Foi lançado em 2013.
- Riccardo Chailly, com a Orquestra de Cleveland - Outra referência. Uma das mais adoradas pelos amantes de Stravinsky. De 1987, está no disco 2 da compilação do link.
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