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Foto do escritorElkanova Elena

Rock russo: música de protesto e auto-procura Parte 1

Atualizado: 24 de out. de 2020

Por Elkanova Elena


Vamos falar da música russa que vai além da canção Kalinka. A Rússia é muito conhecida pelo balé, literatura e seu passado soviético. Mas que música russa você conhece? Eu vou te dar um gostinho de bandas icônicas e pouco conhecidas, ativas ou já separadas. Pode parecer pouco interessante ouvir essas bandas que não tocam mais, mas elas ajudam a revelar todo o processo de evolução musical e muitas delas ainda valem a pena ser escutadas. Leia mais para desvendar o porquê.


Akvarium (Aquarium)

Música underground dos anos 40-70


Embora nos tempos soviéticos a música do Ocidente fosse banida, e, consequentemente, não estivesse disponível em lojas, isso não significa que cidadãos da União Soviética não fossem familiarizados com a música das paradas daquele período. Todos estavam falando sobre Elvis, Beatles, Led Zeppelin e Deep Purple. Pra começo de conversa, as pessoas estavam ouvindo os hits das rádios estrangeiras, especialmente aquelas que moravam perto da fronteira, que eram beneficiadas porque o sinal era melhor. As transmissões da rádio Voices of America eram as mais populares, mesmo com as autoridades tentando interferir.

Disco impresso em uma chapa de Raio-X

Além disso, traficantes traziam discos de vinil pelas fronteiras. Meu pai me contava histórias sobre fazer os chamados “discos em costelas”. Uma vez que seu amigo conseguisse as gravações desejadas, você podia então fazer uma cópia para si. Sim, me refiro ao fenômeno da “música nos ossos” (“música nas costelas”), que era a distribuição de gravações impressas em filmes de Raios-X. Superbizarro, na minha opinião. No entanto, este era o único jeito de ficar ligado e curtir música pop. Os discos eram vendidos em becos escuros: os traficantes tinham medo das “patrulhas da música”. Assim, a cultura ocidental era encarada com características de fruto proibido e de moda pela juventude soviética.


A juventude queria abraçar e se esbaldar na cultura ocidental, então eles foram além de ouvir bandas iniciantes e fazer covers. No entanto, poucos músicos e fãs entendiam o significado das letras (naqueles tempos as crianças estudavam alemão, não inglês, como língua estrangeira). Muitos apenas repetiam a pronúncia e cantavam com forte sotaque russo. De acordo com o Russia Beyond, “o verso “She’s got it”, da canção “Venus”, do Shocking Blue, era traduzido como “she-is-garra” pelas bandas cover”.


Aliás, em muitos discos de vinil daquele período, a capa incluía ou continha apenas alfabeto russo: o nome da banda, o título do álbum, o nome das músicas – tudo em russo; e geralmente eles não eram nem mesmo traduzidos, apenas transcritos para o alfabeto cirílico.


Foto de arquivo pessoal. Disco vinil dos Rolling Stones distribuído no final da União Soviética. O título em inglês é duplicado em russo.



Bandas de rock na União Soviética tardia – música dos anos 80 e 90


Nos anos 80, a onda do rock atingiu o ápice da sua popularidade. A obsessão pela música ocidental levou ao surgimento de várias bandas jovens, já que quase todo adolescente queria entrar para uma. Eles dominaram suas habilidades e foram além da imitação de outros músicos. A primeira geração de bandas russas cover de rock deu lugar a bandas com som e letras autênticos. Enquanto outros músicos encontravam inspiração em melodias e ritmos ocidentais, eles preenchiam o conteúdo com a realidade russa e com suas próprias atitudes e percepções do mundo.


Aliás, finalmente tudo parecia a favor do desenvolvimento de artistas e do estabelecimento da indústria musical no país. O Leningrado Rock Club (Leningrado era o nome soviético da cidade de São Petersburgo) abriu, sendo o primeiro clube de rock da história da União Soviética. É válido mencionar que o clube beneficiava tanto as bandas quanto as autoridades, que podiam manter o olho nos músicos. Embora bandas de rock tenham surgido em várias cidades, é São Petersburgo que é considerada o marco cultural e o lugar onde bandas como Аквариум (Aquarium), Кино (Kino), Наутилус Помпилиус (Nautilus Pompilius), Земляне (Zemlyane), ДДТ (DDT), Алиса (Alisa), tocavam e curtiam.


Durante um tempo, produzir discos não era problema. Andrei Tropillo, proprietário de um estúdio musical underground, apoiava muitas bandas jovens, então ele as ajudou a produzir e marcar shows (dizem os rumores que em troca de nada, ou de uma garrafa de bebida). Mas então as autoridades fecharam seu negócio e, por muitos anos, antes da Perestroika, músicos não tiveram nenhuma oportunidade de gravar.


Além disso, em 1983-1985, shows negociados sem o envolvimento do governo eram banidos, resultando em uma caça às bruxas de artistas. Alguns músicos foram demitidos e expulsos da Komsomol (organização política juvenil da União Soviética) acusados de comportamento excêntrico. É essencial ressaltar que muitos músicos tinham que trabalhar duro para sobreviver e sustentar sua busca por uma carreira musical, por exemplo, o cantor da banda Kino trabalhava na fornalha de uma sala de caldeiras. Mas, apesar de todos os obstáculos, músicos ainda estavam compondo e tocando.


Durante a Perestroika (1985-1991), a situação melhorou. Filmes mostrando a cultura jovem e tocando hits de rock foram filmados, sendo “Acca” (“Assa”), de S. Solovyev, o mais popular. Festivais de rock também ajudaram a divulgar o movimento. Algumas bandas até conseguiram shows no Canadá e nos Estados Unidos.


Uma das peculiaridades do rock russo é que, ao contrário de muitas bandas ocidentais, a melodia não é tão importante, o foco está nas letras. De que assuntos as canções falavam? Bom, você poderia pensar que, como os roqueiros estavam sujeitos a ataques e à caça, eles criticavam a política e se opunham às autoridades. No entanto, não é este o caso. As letras eram sobre solidão, alienação, sentimentos, amor, sexo, hipocrisia e consumo de álcool. Até isso era considerado desprezível e abominável pelos criadores do comunismo. Além do mais, imagine os músicos – eles não tinham só a música, mas o estilo de vida em geral: cabelos longos, comportamento provocativo e agressivo, etc. Nos tempos soviéticos, o fato de você estar tocando rock já falava por si só aos olhos do governo.


Deixe-me falar um pouco sobre duas bandas icônicas: Aquarium e Kino. As duas tinham líderes muito carismáticos – Boris Grebenshikov e Victor Tsoy. Ambas contribuíram muito para o desenvolvimento da música.


Aquarium


Aquarium (ou Akvarium numa adaptação mais fiel do cirílico pelo alfabeto ocidental)

Curiosamente, ao passear pela discografia da banda, você pode observar como os interesses e crenças de Grebenshikov mudaram. De canções tradicionais russas combinadas com valsa e folk, ao reggae, o blues e o boogie-woogie; de motivos cristãos, em “Серебро Господа моего” ("Prata do Meu Senhor"), ao budismo e absurdismo; da celebração da natureza e do campo, em “Деревня” (“A Vila”), ou “Дерево” (“A Árvore”) até questões sociais, em “Поезд в огне” (“O Trem Está Pegando Fogo”).



As letras são cheias de metáforas que são, às vezes, difíceis de compreender, por exemplo,“Она может двигать собой” (“Ela pode se mexer”) remete ao poder feminino da Terra, que pode se vingar dos humanos por toda a destruição e caos que causaram. Também vale ouvir o hit da banda, “Рок-н-ролл мёртв” (“Rock’n’roll está Morto”).








Kino


Kino

Vale mencionar que, ao contrário de Aquarium, que usava uma variedade de instrumentos (violino, cravo, baixo acústico, khomuz), Kino se distingue pelas composições instrumentais bastante simples e pelo seu minimalismo como um todo. Eles geralmente usavam controladoras, em vez de uma performance ao vivo de um baterista. Kino tem ritmos muito específicos que grudam na memória e criam uma atmosfera sombria, tanto com a letra quanto com os vocais do cantor. Cantando sobre angústias e emoções de adolescentes no começo, os músicos logo ganharam vibrações mais sombrias, com batidas depressivas e letras com um toque de ironia e cinismo.





As canções mais conhecidas propõem uma mensagem antiguerra, como em“Звезда по имени Солнце” (“A Estrela Chamada Sol”) e “Группа крови” (“Tipo Sanguíneo”); sentimentos e preocupações do autor em “Пачка сигарет” (“Maço de Cigarro”); e aspectos de relacionamentos em “Когда твоя девушка больна” (“Quando Sua Namorada Está Doente”).


É surpreendente que, enquanto eu nunca desejo reescutar músicas dos anos 2007-2009, de tempos em tempos eu quero reviver momentos escutando músicas do final dos anos 90, como Kino. O conteúdo e a música cheia de preocupações jovens e vontade de mudar o mundo não deveria ser mais relevante hoje, que sou uma adulta, mas as ideias e ambições de Tsoy ainda se aplicam. As letras são tão cativantes que são muitas vezes citadas.


Nós queremos ver mais longe que a janela sobre a estrada […] Nós estamos aqui para reivindicar nossos direitos […] É a nossa hora de agir de agora em diante (“Дальше действовать будем мы”) ("Nós Ainda Vamos Agir")


Eu proclamo minha casa uma zona livre de armas nucleares (“Я объявляю свой дом безъядерной зоной”)


A canção colocou em evidência não apenas a questão do desarmamento nuclear, mas também o vasto uso de estações nucleares (a canção foi composta antes do acidente nuclear em Chernobyl).


Nossos corações exigem mudanças, nossos olhos exigem mudanças (“Хочу перемен”) ("Eu quero mudanças")


A canção “Хочу перемен” foi e continua sendo explorada como um slogan político em países pós-soviéticos, como a Rússia, a Ucrânia, Bielorrússia (por exemplo, durante as recentes manifestações que começaram em 9 de agosto de 2020 e estão acontecendo até hoje), embora, de acordo com o site Meduza, Tsoy declarou que ele estava preocupado principalmente com transformações na mentalidade e mudanças criativas humanas.


Outra caso relacionado tanto à Kino quanto à Aquarium é sobre seus projetos com Joanna Stingray, uma cantora de rock de Los Angeles. Em 1984, Joanna visitou a União Soviética e conheceu vários músicos russos, o que gerou longas relações e colaborações. Ela viveu no país por um longo tempo, e até se casou três vezes com diferentes músicos russos. Além disso, ela contribuiu muito para a promoção do rock soviético nos Estados Unidos: para ser mais específica, ela lançou um álbum que foi um marco: “Red Wave” ("Onda Vermelha"). Foi o primeiro álbum no ocidente a conter rock russo (Aquarium, Kino, Alisa e Strannye Igry).


Os músicos mencionados nesse artigo cantaram (e alguns ainda cantam) em russo, o que os torna difíceis de escutar se você não sabe russo. A exceção são dois álbuns solo “Radio Silence” e “Radio London”, do líder do Aquarium, que são em inglês. Kino e Aquarium podem ser encontrados no Spotify, YouTube, VK.com. Além disso, se você está interessado nas letras, você acha traducões na internet ou pode pelo menos ter uma ideia com o Google Tradutor.


Para concluir, depois dos anos 80 o rock é tido como algo que perdeu seu sentido, por ter se tornado legalizado e parte do show business. Muitas bandas deixaram de existir e se separaram devido à morte de seus fundadores (como a Kino), emigração ou conflitos (Nautilus Pompilius). Assim, o interesse do público também caiu. Mas algumas bandas sobreviveram, incluindo Aquarium, e foram criticadas por se vender e rejeitar seus antigos ideais.


A cena de shows de rock evoluiu e mudou durante os anos 2000. Quais são as bandas russas modernas? Eu escreverei sobre isso depois.


Tradução: Carol Maganhi. Leia o original em inglês clicando aqui.


ELKANOVA ELENA é professora universitária e pesquisadora russa. Atualmente vive em Boston, nos Estados Unidos. Escreveu diversos artigos científicos. Seus interesses incluem cultura, indústria criativa, antropologia urbana, turismo, marketing e ética. Ama viajar, a natureza e histórias de mistério.












Carol Maganhi

Revisora de texto e tradutora que escreve como bem entende nas redes sociais. Esquisita de carteirinha, gosta desde músicas e filmes estranhos (Mini Mansions e Quero ser John Malkovich) ao smais mainstreams (Taylor Swift e Esqueceram de mim). Não sabe cozinhar, mas come que é uma beleza. Ah, e tem uns rabiscos também.


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