Rachmaninoff - Concerto NÂș 2 - AnĂĄlise
- Rafael Torres
- 27 de jan. de 2021
- 9 min de leitura
Atualizado: 2 de fev. de 2021
Vou falar aqui do Concerto para Piano de que mais gosto desde criança. O 2Âș Concerto para Piano e Orquestra, em DĂł Menor de Sergei Rachmaninoff (1873-1943), seu Opus 18, Ă© tambĂ©m o mais popular de todos os concertos para piano jĂĄ escritos. Desde os anos 50 vem sendo gravado constantemente e aparece facinho nos concertos de qualquer orquestra e pianista.

HistĂłria
Foi composto em circunstĂąncias especiais. Pra entendĂȘ-lo, a gente vai ter que voltar um pouquinho. Rachmaninoff tinha começado, em 1891, a carreira de compositor. Sua peça de formatura do conservatĂłrio fora o Concerto NÂș 1, em FĂĄ Sustenido menor, Op. 1. Ă uma obra extremamente cativante, bem escrita e segura, especialmente para um compositor de 18 anos. Verdade que a primeira versĂŁo, que eu ouvi em gravação de Alexander Ghindin, regida por Vladimir Ashkenazy e com a Orquestra FilarmĂŽnica de Helsinki (resolveram gravar a obra como originalmente concebida), Ă© um tanto vazia, como se fosse nua. Mas em 1917 ele faria uma revisĂŁo - que Ă© tal como conhecemos a obra hoje - em que a orquestra Ă© mais colorida, intercede mais e de maneira mais certeira. AlĂ©m de mudar a maneira como algumas frases caminham. Mas, mesmo a primeira versĂŁo, mostra um absurdo talento para a melodia, para atĂ© mesmo a condução harmĂŽnica (e modulaçÔes) das frases e uma escrita para piano impetuosa, impecĂĄvel.
Como Moscou era um ovo, bastava uma apresentação para que uma obra chamasse bastante atenção e levasse aquele compositor ao - pelo menos relativo - sucesso. Então. Ele começou bem, e iria despontar de vez com a ópera Aleko, de 1892. Essa lhe garantiu até um editor, que, mais tarde, se provaria de muita utilidade, atirando uns dinheirinhos em épocas mais complicadas.
Como todo compositor importante, esperava-se uma sinfonia dele. A morte de Tchaikovsky, que era um mentor para ele, e outros compromissos, adiaram um bocado a sinfonia, mas em 1895 ela saiu. E sĂł foi tocada em 1897. O problema Ă© como foi tocada. A premiĂ©re seria regida pelo compositor Alexander Glazunov. Acontece que ele nĂŁo ensaiou a orquestra o suficiente (a obra tem vĂĄrios momentos em que precisa de um regente firme e criativo) e ainda deu de beber. Tocou embriagado. Pelo menos Ă© o que recorda NatĂĄlia Satina, que se tornaria esposa do compositor. Rachmaninoff, na coxia, sĂł ia se contorcendo com cada desafinada, cada entrada errada, cada passagem tocada forte demais ou fraco demais... Ele nem aguentou ouvir o finale (Ășltimo movimento), indo embora sem olhar pra trĂĄs.
Como SĂŁo Petersburgo tambĂ©m era um ovo, espalhou-se do fracasso da peça. Os crĂticos foram venenosos. A crĂtica do colega compositor CĂ©sar Cui para o Novosti nĂŁo ajudou:
"Se existe um conservatĂłrio no inferno, e a um de seus estudantes talentosos Ă© dada a tarefa de escrever uma sinfonia programĂĄtica sobre as Sete Pragas do Egito, caso ele escreva uma sinfonia parecida com a do Sr. Rachmaninoff - seu problema nĂŁo poderia ser resolvido de maneira mais brilhante, e ele encantaria todos seus companheiros de inferno."
César Cui
A sinfonia em si não era muito carismåtica - carecia de encantamento melódico e de um bom julgamento sobre a forma - mas tinha muitos méritos. Mas César. PÎ. Doeu.
AliĂĄs, a palavra que descreve Rachmaninoff nesse momento Ă© devastado:
"Depois daquela sinfonia eu nĂŁo compus mais nada por cerca de trĂȘs anos. Eu me sentia como um homem que tivesse sofrido um derrame e por um longo tempo perdido seu uso da cabeça e das mĂŁos. Eu nĂŁo vou mostrar a sinfonia para ninguĂ©m, e vou me certificar disso no meu testamento, tambĂ©m."
Sergei Rachmaninoff
A palavra depressĂŁo aparece repetidas vezes em suas biografias. Sua famĂlia, preocupada, conseguiu que Sergei visitasse seu Ădolo, o grande e jĂĄ envelhecido escritor Leon TolstĂłi, mas as duas vezes em que se viram nĂŁo foram de muito agrado para o compositor. TolstĂłi ficava repetindo coisas como "vocĂȘ acha que eu estou sempre satisfeito comigo", "vocĂȘ acha que tudo na vida Ă© fĂĄcil?", ou "Trabalhe, trabalhe todo dia"... "Frases de efeito", segundo Rachmaninoff. Outra coisa que os parentes tentaram foi levĂĄ-lo a um terapeuta, que seria hoje o equivalente a uma mistura de psicanalista com hipnoterapeuta. Ele estava tĂŁo desesperado que aceitou ver toda semana o Dr. Nikolai Dahl.
Foi o ponto de virada de sua vida. Ele ganhou intimidade com o doutor, que era apaixonado por mĂșsica, e foi recuperando sua auto confiança. Surgiu uma oportunidade de concerto pra ele fazer em Londres, e ele queria escrever uma obra para isso. EntĂŁo eles ficavam repetindo literalmente (trabalho de sugestĂŁo) "eu vou voltar a compor", "eu vou escrever um concerto de que todos vĂŁo gostar". TĂĄ bom de eu dizer umas coisas dessas em voz alta, porque funcionou muito bem.
Em 1900 ele compĂŽs os dois Ășltimos movimentos e os estreou. Depois compĂŽs o 1Âș movimento e estreou tudo de novo, em 1901, em Moscou - o concerto na Inglaterra esperaria. Ele dedicou a obra ao Dr. Nikolai Dahl.
A partir daĂ a carreira dele decolou, sendo solicitado para tocar no EUA com frequĂȘncia, partindo pela primeira vez em 1909 - sobre isso falo nesse artigo. Ele casou em 1902 com a NatĂĄlia, e foi um casamento feliz e prĂłspero. Agora vamos conhecer um pouco da obra.
O Concerto
Acima, vocĂȘ vĂȘ o cĂ©lebre pianista russo Evgeny Kissin executando o concerto com a Orquestra FilarmĂŽnica da RĂĄdio Francesa, regida por Myung-Whun Chung.
1Âș Movimento - (um tal de) Moderato
A obra começa (50s) com os famosos acordes Ă guisa de sinos no piano. Ele faz um crescendo atĂ© que desemboca no primeiro tema, tocado pelas cordas com um clarinete (1m19s atĂ© 2m46s). Este recurso de apoiar as cordas com apenas um instrumento de sopro Ă© bem comum em Rachmaninoff, e certamente comum nesse concerto. Sobre esse tema, ele Ă© tĂŁo comprido que o compositor sempre teve medo que as pessoas achassem que era uma introdução, em vez do tema principal. Mas ele recebe muito tratamento temĂĄtico, repare quantas vezes vocĂȘ vai ouvir esse motivo ondulado, da frase que abre o tema, por todo o movimento.
Depois de uma ponte do piano (3 min.), bem ligeira, que cai num acorde em fff da orquestra, o prĂłprio piano dĂĄ o segundo tema (3m25s). Uma melodia super lĂrica e muito bonita. Preste bem atenção nos dois elementos que compĂ”em esse tema: um arpejo ascendente e um rabinho serpenteado. Mais ou menos assim:

Os dois motivos centrais do segundo tema sĂŁo os circulados ao lado desenhado por um profissional. Preste bem atenção no segundo. Ele irĂĄ se tornar um "vĂrus", que Ă© um elemento que vai tomando conta da mĂșsica atĂ© dominĂĄ-la por completo.
O segundo tema é repetido e desenvolvido imediatamente. Um breve e lindo diålogo do piano com o clarinete e o oboé, é seguido por uma doce subida e descida, baseada no primeiro motivo do desenho profissional. Um toque dos metais (5m53s) anuncia o desenvolvimento.
O primeiro tema volta (6m06s), desta vez com carĂĄter urgente. E aĂ o vĂrus começa a agir. Primeiro vocĂȘ o ouve na flauta (6m12s). Ele aparece de duas formas: puro, como o do desenho; ou precedido de trĂȘs notinhas. O piano Ă© logo contagiado por ele. O desenvolvimento todo Ă© sobre os dois temas principais, mais o vĂrus. No ponto culminante (7m50s), ele faz uma mistura de final de desenvolvimento com começo da recapitulação. A orquestra toca o tema 1 enquanto o piano vai tocando o vĂrus.
A segunda metade do tema 1 cabe ao piano. Quando entra o segundo tema (9m42s), Ă© na trompa, de forma mais calma - como tinha que ser, ao suceder a recapitulação turbulenta do tema 1. O vĂrus ameaça ainda (10m18s), e fica. Agora ele dominou o movimento. Tudo o que se segue Ă© uma elaboração dele. Ele aparece bem espaçado no piano nesse trecho (10m33s) em que os violoncelos fazem o arpejo do tema 2, num momento cheio de modulaçÔes, atĂ© que chega o coda (12m03s). E bem no finalzinho o piano faz uma referĂȘncia ao 1Âș tema (12m36s).
2Âș Movimento - Adagio sostenuto
O segundo movimento tem um formato mais livre, com um tema principal, uma parte B (com uma semi cadĂȘncia) e a volta do tema. Ă o movimento lento da obra. Vamos lĂĄ.
Tudo começa nas cordas (13m08s), que fazem uma das modulaçÔes (mudança de tonalidade) mais famosas do repertório - passa de Dó menor a Mi maior. Aos 13m34s o piano começa uma série de arpejos que vão servir de acompanhamento para o tema principal do movimento, que começa na flauta (13m58s) e é belamente entregue ao clarinete (14m20s). Esse tema é uma longa e linda cantilena, terminando com a flauta se juntando ao grupo (15m21s).
Agora (15m33s) o piano repete, de maneira bem simples, o tema, enquanto o clarinete devolve a gentileza e o acompanha com o mesmo arpejo. A primeira parte termina com um acorde de Si Maior subitamente mudando para Si Menor (17m30s), dando inĂcio Ă seção mais atormentada desse movimento (17m39s), que funciona um pouco como desenvolvimento. A mĂșsica vai ganhando tensĂŁo atĂ© explodir numa cadĂȘncia curta e virtuosĂstica do piano. NĂŁo se trata de uma cadĂȘncia no sentido clĂĄssico-romĂąntico, mas de um momento em que o piano fica mais exposto (21m15s). As flautas (22m10s) anunciam a volta Ă paz. O piano começa seus arpejos e as cordas entram com o tema (22m44s). Depois de uma culminĂąncia (24m08s) a orquestra vai perdendo a força atĂ© deixar sĂł o piano, que termina o movimento.
3Âș Movimento - Allegro scherzando
O terceiro movimento Ă© bem rĂĄpido (25m53s). A orquestra começa como que brincando (scherzando) e cresce bem rĂĄpido atĂ© que entra o piano com uma escala bem rĂĄpida. Ă o movimento mais difĂcil e virtuosĂstico da obra. Seu tema principal aparece sensual, primeiro nas cordas e no oboĂ© (27m47s), e Ă© imediatamente repetido pelo piano (28m25s). Depois temos um momento exĂłtico (29m27s), sucedido por mais um momento de virtuosismo (30m05s).
A histĂłria Ă© repetida: tema principal do movimento nas cordas, dessa vez com a flauta (32m23s), repetido novamente pelo piano (33m). Novamente sucedidos pelo momento exĂłtico (34m09s). Mais um momento virtuosĂstico leva a uma explosĂŁo da orquestra (36m06s), que faz o piano repetir a escala do começo (36m10s) e parar dramaticamente. EntĂŁo (36m26s) explode o tema principal, dessa vez glorioso e brilhante. NĂŁo poderia haver finale melhor (e que puxasse mais aplausos) nĂŁo sĂł para o concerto, como para toda a histĂłria que o cerca. Suntuoso e triunfal.
GravaçÔes Importantes
Como eu falei, quase todo pianista tem que gravar o Concerto NÂș 2 em algum ou em vĂĄrios momentos da sua carreira. AliĂĄs, hoje em dia nĂŁo vemos muito isso, de um intĂ©rprete gravar a mesma obra vĂĄrias vezes. Mas antigamente, atĂ© os anos 70 ou atĂ© mesmo 80, isso era comum. O grande mestre russo Vladimir Ashkenazy gravou esse concerto pelo menos 3 vezes como pianista e uma como regente. Foi ele quem regeu a gravação que eu mencionei acima dos originais do Concerto NÂș 1 e do NÂș 4. Mas vamos ao que interessa.
- Sergei Rachmaninoff, com a Orquestra de FiladĂ©lfia, regida por Leopold Stokowski - O simples fato de termos um grande compositor do romantismo que gravou suas obras jĂĄ Ă© demais! O som Ă© cheio de chiado (a gravação Ă© de 1929, e Ă© atĂ© boa pra Ă©poca), mas vale Ă pena. Ă uma interpretação completamente sem frescura, sem exageros, rubatos e crescendos desnecessĂĄrios. Stokowski era o regente do momento e a FiladĂ©lfia, a orquestra perfeita. AlĂ©m disso, tinha-se implantado recentemente a gravação elĂ©trica, uma nova forma, bem mais fiel, de captar o som. A dupla jĂĄ tinha gravado a mesma obra em 1924, mas a qualidade do som Ă© pior. Nessa gravação de 29, o compositor/pianista e o regente tinham discordĂąncias, com Rachmaninoff mais comedido e Stokowski mais dado Ă grandiloquĂȘncia. Sergei gravaria os outros 3 concertos com a mesma orquestra regida por Eugene Ormandy (nĂŁo porque brigara com Stokowski, apenas este nĂŁo era mais o titular da orquestra). Esta gravação explica por que os pianistas tocam os acordes iniciais mais lento do que o andamento do primeiro movimento. Rachmaninoff o fazia.
- Krystian Zimerman, com a SinfĂŽnica de Boston, sob a batuta de Seiji Ozawa - Tanto Zimerman quanto Ozawa sĂŁo intĂ©rpretes fenomenais, ainda que um tanto exagerados. Mas nessa gravação estĂŁo impecĂĄveis. Vem num CD junto com o 1Âș Concerto, na interpretação definitiva deste. Ă extraordinĂĄrio. Tudo, inclusive a sincronia assustadora que eles alcançaram.
- Sviatoslav Richter, com a FilarmĂŽnica de VarsĂłvia, sob Stanislav Wislocki - Se vocĂȘ perguntar a qualquer conhecedor desse concerto por uma interpretação boa e saudĂĄvel dessa obra, vĂŁo te dizer pra começar com essa. O som nĂŁo Ă© perfeito, mas Ă© muito bom. A orquestra nĂŁo era tambĂ©m essas coisas. Mas a interpretação como um todo acaba sendo justamente isso: a mais indicada.
- Alexis Weissenberg, com a FilarmĂŽnica de Berlim e Herbert von Karajan - Tem uma gravação em vĂdeo (fuja dessa, jĂĄ começa com Weissenberg propondo um andamento e Karajan deliberadamente acelerando) e a gravação de estĂșdio. Esta, de 1972 beira a perfeição. Weissenberg tinha uma tĂ©cnica de mĂĄquina - ele nĂŁo era expressivo em excesso, mas mecanicamente, nunca vi igual - e se adequava muito bem a Rachmaninoff. Karajan, que nunca gravou outra coisa desse compositor, se mostra inspirado do começo ao fim, e a FilarmĂŽnica, impecĂĄvel. A flauta e o clarinete do 2Âș movimento sĂŁo tocados com tanto carinho que dĂĄ dĂł.
- Vladimir Ashkenazy, com a Orquestra do Concertgebouw, de AmsterdĂŁ, regida por Bernard Haitink - Gravação com um som magnĂfico, acho mais interessante que a do mesmo pianista regida por Previn. Mas sĂł levemente, ambas sĂŁo muito fortes. O prĂłprio piano (que eles escolheram) tem um som impactante. As cordas da Concertgebouw, na entrada, soam jĂĄ fantĂĄsticas. Tudo Ă© mĂĄgico, e se vocĂȘ quiser se perder na mĂșsica, ouça esta gravação. O Ășnico problema Ă© que a prĂĄtica da Ă©poca (anos 70) era de interpretar as obras com certas nuances que hoje pareceriam dramĂĄticas. Mas, sabendo que Ă© coisa de Ă©poca, dĂĄ pra perdoar.

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