Vou falar aqui do Concerto para Piano de que mais gosto desde criança. O 2º Concerto para Piano e Orquestra, em Dó Menor de Sergei Rachmaninoff (1873-1943), seu Opus 18, é também o mais popular de todos os concertos para piano já escritos. Desde os anos 50 vem sendo gravado constantemente e aparece facinho nos concertos de qualquer orquestra e pianista.
História
Foi composto em circunstâncias especiais. Pra entendê-lo, a gente vai ter que voltar um pouquinho. Rachmaninoff tinha começado, em 1891, a carreira de compositor. Sua peça de formatura do conservatório fora o Concerto Nº 1, em Fá Sustenido menor, Op. 1. É uma obra extremamente cativante, bem escrita e segura, especialmente para um compositor de 18 anos. Verdade que a primeira versão, que eu ouvi em gravação de Alexander Ghindin, regida por Vladimir Ashkenazy e com a Orquestra Filarmônica de Helsinki (resolveram gravar a obra como originalmente concebida), é um tanto vazia, como se fosse nua. Mas em 1917 ele faria uma revisão - que é tal como conhecemos a obra hoje - em que a orquestra é mais colorida, intercede mais e de maneira mais certeira. Além de mudar a maneira como algumas frases caminham. Mas, mesmo a primeira versão, mostra um absurdo talento para a melodia, para até mesmo a condução harmônica (e modulações) das frases e uma escrita para piano impetuosa, impecável.
Como Moscou era um ovo, bastava uma apresentação para que uma obra chamasse bastante atenção e levasse aquele compositor ao - pelo menos relativo - sucesso. Então. Ele começou bem, e iria despontar de vez com a ópera Aleko, de 1892. Essa lhe garantiu até um editor, que, mais tarde, se provaria de muita utilidade, atirando uns dinheirinhos em épocas mais complicadas.
Como todo compositor importante, esperava-se uma sinfonia dele. A morte de Tchaikovsky, que era um mentor para ele, e outros compromissos, adiaram um bocado a sinfonia, mas em 1895 ela saiu. E só foi tocada em 1897. O problema é como foi tocada. A premiére seria regida pelo compositor Alexander Glazunov. Acontece que ele não ensaiou a orquestra o suficiente (a obra tem vários momentos em que precisa de um regente firme e criativo) e ainda deu de beber. Tocou embriagado. Pelo menos é o que recorda Natália Satina, que se tornaria esposa do compositor. Rachmaninoff, na coxia, só ia se contorcendo com cada desafinada, cada entrada errada, cada passagem tocada forte demais ou fraco demais... Ele nem aguentou ouvir o finale (último movimento), indo embora sem olhar pra trás.
Como São Petersburgo também era um ovo, espalhou-se do fracasso da peça. Os críticos foram venenosos. A crítica do colega compositor César Cui para o Novosti não ajudou:
"Se existe um conservatório no inferno, e a um de seus estudantes talentosos é dada a tarefa de escrever uma sinfonia programática sobre as Sete Pragas do Egito, caso ele escreva uma sinfonia parecida com a do Sr. Rachmaninoff - seu problema não poderia ser resolvido de maneira mais brilhante, e ele encantaria todos seus companheiros de inferno."
César Cui
A sinfonia em si não era muito carismática - carecia de encantamento melódico e de um bom julgamento sobre a forma - mas tinha muitos méritos. Mas César. Pô. Doeu.
Aliás, a palavra que descreve Rachmaninoff nesse momento é devastado:
"Depois daquela sinfonia eu não compus mais nada por cerca de três anos. Eu me sentia como um homem que tivesse sofrido um derrame e por um longo tempo perdido seu uso da cabeça e das mãos. Eu não vou mostrar a sinfonia para ninguém, e vou me certificar disso no meu testamento, também."
Sergei Rachmaninoff
A palavra depressão aparece repetidas vezes em suas biografias. Sua família, preocupada, conseguiu que Sergei visitasse seu ídolo, o grande e já envelhecido escritor Leon Tolstói, mas as duas vezes em que se viram não foram de muito agrado para o compositor. Tolstói ficava repetindo coisas como "você acha que eu estou sempre satisfeito comigo", "você acha que tudo na vida é fácil?", ou "Trabalhe, trabalhe todo dia"... "Frases de efeito", segundo Rachmaninoff. Outra coisa que os parentes tentaram foi levá-lo a um terapeuta, que seria hoje o equivalente a uma mistura de psicanalista com hipnoterapeuta. Ele estava tão desesperado que aceitou ver toda semana o Dr. Nikolai Dahl.
Foi o ponto de virada de sua vida. Ele ganhou intimidade com o doutor, que era apaixonado por música, e foi recuperando sua auto confiança. Surgiu uma oportunidade de concerto pra ele fazer em Londres, e ele queria escrever uma obra para isso. Então eles ficavam repetindo literalmente (trabalho de sugestão) "eu vou voltar a compor", "eu vou escrever um concerto de que todos vão gostar". Tá bom de eu dizer umas coisas dessas em voz alta, porque funcionou muito bem.
Em 1900 ele compôs os dois últimos movimentos e os estreou. Depois compôs o 1º movimento e estreou tudo de novo, em 1901, em Moscou - o concerto na Inglaterra esperaria. Ele dedicou a obra ao Dr. Nikolai Dahl.
A partir daí a carreira dele decolou, sendo solicitado para tocar no EUA com frequência, partindo pela primeira vez em 1909 - sobre isso falo nesse artigo. Ele casou em 1902 com a Natália, e foi um casamento feliz e próspero. Agora vamos conhecer um pouco da obra.
O Concerto
Acima, você vê o célebre pianista russo Evgeny Kissin executando o concerto com a Orquestra Filarmônica da Rádio Francesa, regida por Myung-Whun Chung.
1º Movimento - (um tal de) Moderato
A obra começa (50s) com os famosos acordes à guisa de sinos no piano. Ele faz um crescendo até que desemboca no primeiro tema, tocado pelas cordas com um clarinete (1m19s até 2m46s). Este recurso de apoiar as cordas com apenas um instrumento de sopro é bem comum em Rachmaninoff, e certamente comum nesse concerto. Sobre esse tema, ele é tão comprido que o compositor sempre teve medo que as pessoas achassem que era uma introdução, em vez do tema principal. Mas ele recebe muito tratamento temático, repare quantas vezes você vai ouvir esse motivo ondulado, da frase que abre o tema, por todo o movimento.
Depois de uma ponte do piano (3 min.), bem ligeira, que cai num acorde em fff da orquestra, o próprio piano dá o segundo tema (3m25s). Uma melodia super lírica e muito bonita. Preste bem atenção nos dois elementos que compõem esse tema: um arpejo ascendente e um rabinho serpenteado. Mais ou menos assim:
Os dois motivos centrais do segundo tema são os circulados ao lado desenhado por um profissional. Preste bem atenção no segundo. Ele irá se tornar um "vírus", que é um elemento que vai tomando conta da música até dominá-la por completo.
O segundo tema é repetido e desenvolvido imediatamente. Um breve e lindo diálogo do piano com o clarinete e o oboé, é seguido por uma doce subida e descida, baseada no primeiro motivo do desenho profissional. Um toque dos metais (5m53s) anuncia o desenvolvimento.
O primeiro tema volta (6m06s), desta vez com caráter urgente. E aí o vírus começa a agir. Primeiro você o ouve na flauta (6m12s). Ele aparece de duas formas: puro, como o do desenho; ou precedido de três notinhas. O piano é logo contagiado por ele. O desenvolvimento todo é sobre os dois temas principais, mais o vírus. No ponto culminante (7m50s), ele faz uma mistura de final de desenvolvimento com começo da recapitulação. A orquestra toca o tema 1 enquanto o piano vai tocando o vírus.
A segunda metade do tema 1 cabe ao piano. Quando entra o segundo tema (9m42s), é na trompa, de forma mais calma - como tinha que ser, ao suceder a recapitulação turbulenta do tema 1. O vírus ameaça ainda (10m18s), e fica. Agora ele dominou o movimento. Tudo o que se segue é uma elaboração dele. Ele aparece bem espaçado no piano nesse trecho (10m33s) em que os violoncelos fazem o arpejo do tema 2, num momento cheio de modulações, até que chega o coda (12m03s). E bem no finalzinho o piano faz uma referência ao 1º tema (12m36s).
2º Movimento - Adagio sostenuto
O segundo movimento tem um formato mais livre, com um tema principal, uma parte B (com uma semi cadência) e a volta do tema. É o movimento lento da obra. Vamos lá.
Tudo começa nas cordas (13m08s), que fazem uma das modulações (mudança de tonalidade) mais famosas do repertório - passa de Dó menor a Mi maior. Aos 13m34s o piano começa uma série de arpejos que vão servir de acompanhamento para o tema principal do movimento, que começa na flauta (13m58s) e é belamente entregue ao clarinete (14m20s). Esse tema é uma longa e linda cantilena, terminando com a flauta se juntando ao grupo (15m21s).
Agora (15m33s) o piano repete, de maneira bem simples, o tema, enquanto o clarinete devolve a gentileza e o acompanha com o mesmo arpejo. A primeira parte termina com um acorde de Si Maior subitamente mudando para Si Menor (17m30s), dando início à seção mais atormentada desse movimento (17m39s), que funciona um pouco como desenvolvimento. A música vai ganhando tensão até explodir numa cadência curta e virtuosística do piano. Não se trata de uma cadência no sentido clássico-romântico, mas de um momento em que o piano fica mais exposto (21m15s). As flautas (22m10s) anunciam a volta à paz. O piano começa seus arpejos e as cordas entram com o tema (22m44s). Depois de uma culminância (24m08s) a orquestra vai perdendo a força até deixar só o piano, que termina o movimento.
3º Movimento - Allegro scherzando
O terceiro movimento é bem rápido (25m53s). A orquestra começa como que brincando (scherzando) e cresce bem rápido até que entra o piano com uma escala bem rápida. É o movimento mais difícil e virtuosístico da obra. Seu tema principal aparece sensual, primeiro nas cordas e no oboé (27m47s), e é imediatamente repetido pelo piano (28m25s). Depois temos um momento exótico (29m27s), sucedido por mais um momento de virtuosismo (30m05s).
A história é repetida: tema principal do movimento nas cordas, dessa vez com a flauta (32m23s), repetido novamente pelo piano (33m). Novamente sucedidos pelo momento exótico (34m09s). Mais um momento virtuosístico leva a uma explosão da orquestra (36m06s), que faz o piano repetir a escala do começo (36m10s) e parar dramaticamente. Então (36m26s) explode o tema principal, dessa vez glorioso e brilhante. Não poderia haver finale melhor (e que puxasse mais aplausos) não só para o concerto, como para toda a história que o cerca. Suntuoso e triunfal.
Gravações Importantes
Como eu falei, quase todo pianista tem que gravar o Concerto Nº 2 em algum ou em vários momentos da sua carreira. Aliás, hoje em dia não vemos muito isso, de um intérprete gravar a mesma obra várias vezes. Mas antigamente, até os anos 70 ou até mesmo 80, isso era comum. O grande mestre russo Vladimir Ashkenazy gravou esse concerto pelo menos 3 vezes como pianista e uma como regente. Foi ele quem regeu a gravação que eu mencionei acima dos originais do Concerto Nº 1 e do Nº 4. Mas vamos ao que interessa.
- Sergei Rachmaninoff, com a Orquestra de Filadélfia, regida por Leopold Stokowski - O simples fato de termos um grande compositor do romantismo que gravou suas obras já é demais! O som é cheio de chiado (a gravação é de 1929, e é até boa pra época), mas vale à pena. É uma interpretação completamente sem frescura, sem exageros, rubatos e crescendos desnecessários. Stokowski era o regente do momento e a Filadélfia, a orquestra perfeita. Além disso, tinha-se implantado recentemente a gravação elétrica, uma nova forma, bem mais fiel, de captar o som. A dupla já tinha gravado a mesma obra em 1924, mas a qualidade do som é pior. Nessa gravação de 29, o compositor/pianista e o regente tinham discordâncias, com Rachmaninoff mais comedido e Stokowski mais dado à grandiloquência. Sergei gravaria os outros 3 concertos com a mesma orquestra regida por Eugene Ormandy (não porque brigara com Stokowski, apenas este não era mais o titular da orquestra). Esta gravação explica por que os pianistas tocam os acordes iniciais mais lento do que o andamento do primeiro movimento. Rachmaninoff o fazia.
- Krystian Zimerman, com a Sinfônica de Boston, sob a batuta de Seiji Ozawa - Tanto Zimerman quanto Ozawa são intérpretes fenomenais, ainda que um tanto exagerados. Mas nessa gravação estão impecáveis. Vem num CD junto com o 1º Concerto, na interpretação definitiva deste. É extraordinário. Tudo, inclusive a sincronia assustadora que eles alcançaram.
- Sviatoslav Richter, com a Filarmônica de Varsóvia, sob Stanislav Wislocki - Se você perguntar a qualquer conhecedor desse concerto por uma interpretação boa e saudável dessa obra, vão te dizer pra começar com essa. O som não é perfeito, mas é muito bom. A orquestra não era também essas coisas. Mas a interpretação como um todo acaba sendo justamente isso: a mais indicada.
- Alexis Weissenberg, com a Filarmônica de Berlim e Herbert von Karajan - Tem uma gravação em vídeo (fuja dessa, já começa com Weissenberg propondo um andamento e Karajan deliberadamente acelerando) e a gravação de estúdio. Esta, de 1972 beira a perfeição. Weissenberg tinha uma técnica de máquina - ele não era expressivo em excesso, mas mecanicamente, nunca vi igual - e se adequava muito bem a Rachmaninoff. Karajan, que nunca gravou outra coisa desse compositor, se mostra inspirado do começo ao fim, e a Filarmônica, impecável. A flauta e o clarinete do 2º movimento são tocados com tanto carinho que dá dó.
- Vladimir Ashkenazy, com a Orquestra do Concertgebouw, de Amsterdã, regida por Bernard Haitink - Gravação com um som magnífico, acho mais interessante que a do mesmo pianista regida por Previn. Mas só levemente, ambas são muito fortes. O próprio piano (que eles escolheram) tem um som impactante. As cordas da Concertgebouw, na entrada, soam já fantásticas. Tudo é mágico, e se você quiser se perder na música, ouça esta gravação. O único problema é que a prática da época (anos 70) era de interpretar as obras com certas nuances que hoje pareceriam dramáticas. Mas, sabendo que é coisa de época, dá pra perdoar.
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