Nascido em Trieste, Itália, no finalzinho de 1971, Emmanuele Baldini é conhecido no Brasil como um movimentador cultural, maestro, spalla da Orquestra Sinfônica Estadual de São Paulo (OSESP), solista, educador e músico de câmara.
Sua trajetória é brilhante, tendo sido aluno de um dos grandes violinistas italianos do século XX, Rugiero Ricci e vencido seu primeiro concurso aos 12 anos.
Emmanuele gravou mais de 40 discos, dos quais temos uma boa amostra no Spotify: https://open.spotify.com/artist/2G4XEKxmESX6JSCK01oKEN?si=RPzHidliT_-FYr5cilYfiw
Antes de vir ao Brasil, foi concertmaster das orquestras do Teatro Comunale de Bolonha, com Daniele Gatti como diretor e do Teatro Giuseppe Verdi de Trieste. Foi violinista da Orquestra do Teatro Alla Scala, de Milão, sob a direção de Riccardo Muti.
Vamos ficar conhecendo um pouco mais da trajetória e dos conhecimentos musicais deste grande violinista e maestro numa entrevista que ele concedeu à Arara.
1. Você teve apoio da família ao começar a estudar música? Como foi seu início?
Eu nasci numa família de músicos, meus pais eram pianistas. São pianistas! E comecei a brincar com o piano de casa até escutar um violinista tocar na televisão, um concerto na televisão, cair simplesmente apaixonado pelo violino e, com sete anos de idade, comecei a estudar violino e não parei nunca mais. Tive um professor, no início, bem severo, mas esse detalhe não me desanimou nem um pouco.
2. Você estudou com o grande Ruggiero Ricci, que tinha na ponta dos dedos o repertório mais tradicional, especialmente concertante, do violino. Teve muitas aulas com ele? O que aprendeu de mais valioso com esse grandioso do século XX?
Com Ruggiero Ricci eu tive contato depois que eu terminei meu Curso de Virtuositè em Genebra. Eu era, então, um violinista já avançado, uma pessoa adulta, já. Já tinha me formado no Conservatório na Itália e já tinha me formado no Conservatório de Genebra. Foi numa ocasião de um curso de verão, então ele me convidou para estudar com uma certa frequência na casa dele, em Salzburgo e eu ia, mais ou menos, uma vez por mês, ficava 2, 3 dias. E as aulas com ele eram maravilhosas porque além de música, se falava muito. Contava lembranças da sua carreira, me mostrava partituras autografadas por grandes do passado. Era uma convivência e me tratava quase como um colega. E a outra grande diferença de tudo o que eu tive antes foi que, pela primeira vez, eu estive em contato frequente e contínuo com uma pessoa que, na época, tinha mais de 70 anos de palco. Mais de 70 anos de experiência, de concertos nos teatros mais importantes do mundo. Isso me deu uma bagagem extraordinária para o meu desenvolvimento.
3. O que o trouxe ao Brasil? Veio para as audições da OSESP?
Eu não vim para o Brasil na primeira leva de grandes audições, quando foram feitas audições para a renovação da orquestra. Eu vim bastante depois, seis anos depois. (O maestro John) Neschling me convidou, primeiramente por algumas semanas, depois por um par de meses, e depois, sem que eu soubesse, decidiram fazer uma audição especial para mim durante uma turnê Latino-Americana, em que toquei 12 vezes "Vida de Herói" (Ein Heldenleben, de Richard Strauss), de Strauss, que é o solo mais difícil do repertório. Então, digamos que a minha audição - eu não sabia que estava sendo audicionado - foi um conjunto entre os concertos em que eu spallei a orquestra, em São Paulo, que foram várias semanas; alguns concertos de música de câmera, que programaram naquele período; e essa turnê pelos principais teatros da America Latina. Depois disso me avisaram que eu estava aprovado na orquestra e que, agora, a decisão de ficar ou não dependia de mim e eu decidi ficar.
4. Maestro, quando nós vamos montar uma interpretação de música popular, temos uma liberdade surreal: podemos modificar a harmonia, a métrica da melodia, adicionar contracantos e mexer no ritmo. Se um maestro fizer isso vai ser chamado de louco. A intervenção dele se dá em um nível bem mais sutil. Que elementos o regente costuma trabalhar mais com a orquestra?
É verdade. É verdade que a música popular pode trabalhar muito mais, com muito mais liberdade. Mas isso se dá pela impossibilidade de ter um contato... Na música clássica - quando se toca uma peça de Beethoven, por exemplo - nós não temos como conversar com Beethoven. Nós temos que pegar a partitura, analisar a partitura e tentar encontrar liberdades e caminhos interpretativos, sem mudar a partitura que Beethoven entregou para a humanidade 200 anos atrás. Entende? É bem diferente quando interpretamos uma obra de música contemporânea. Eu, recentemente, gravei os "Caprichos Latinoamericanos", do compositor Arthur Barbosa e o processo de composição dele foi muito interessante, porque ele me mandava uma primeira versão e nós conversávamos sobre a possibilidade de mudar notas, de mudar efeitos sonoros, então, era uma troca constante. Isso era possível porque compositor e intérprete eram ambos vivos. Então, tinha uma troca.
Agora, quando você aborda uma obra de 200, 300 anos atrás, você não pode ter a presunção de saber o que Beethoven queria, o que Mozart queria. Você tem que trabalhar a liberdade dentro daquilo que está escrito no texto. O texto é sagrado. É uma obra de arte que foi entregue à humanidade e que, de maneira alguma, é estático, é sempre igual. Muito pelo contrário: você pode tocar 10 vezes a 5ª Sinfonia de Beethoven, com as mesmas notas, fazendo as mesmas dinâmicas escritas por Beethoven e, mesmo assim, todo dia, a música soará diferente. Porque as liberdades são mais sutis, são mais minuciosas. Mas não podemos esquecer que, como muitos filósofos já falaram, a beleza está nos detalhes. E, às vezes, uma pequena liberdade, acaba sendo uma enorme liberdade, acaba fazendo uma enorme diferênça. O músico erudito, quando intepreta obras de músicos do passado, trabalha minúcias, trabalha detalhes que, se escutando superficialmente podem parecer pouco importantes, no final, no contexto, no resultado final, vão fazer a diferênça.
5. Um músico de orquestra, digamos, um flautista, está sujeito às indicações na partitura e, ainda, às escolhas do regente. Há espaço para uma expressão individual? O que é esperado desse flautista?
Absolutamente, sim, porque existe o que está escrito na partitura, existe a leitura e a interpretação do regente, mas quem produz o som é o músico que toca aquela flauta. E só e ele pode ser capaz de produzir um som mais "quente", mais "frio", mais sutil ou mais denso. Esse tipo de diferênça é próprio do músico de orquestra e, geralmente, os regentes bons, valorizam muito essa personalidade do músico da própria orquestra. Só os regentes ruins querem frustrar a manifestação da personalidade do músico de orquestra.
6. Quais são os seus violinos?
Eu tenho alguns violinos, vários violinos, mas digamos que aqueles dois que eu uso mais, que alterno mais, são um antigo Sebastian Klotz, de 1760 - é uma obra de arte que foi entregue... Klotz era um dos mais respeitados luthiers constutores de violinos da Alemanha. E o moderno Luiz Amorim, que é um luthier brasilero, mas que é radicado na Itália, em Cremona. É, digamos, um dos luthiers - não - o luthier brasileiro de longe que conseguiu um sucesso internacional. Conseguiu chegar em Cremona, que é o berço da lutheria, então os violinos dele são, entre os modernos, entre os mais importantes do mundo.
7. Com André Mehmari, gravou "Conversas com Bach". O disco é sensacional, mas eu gostaria de perguntar sobre a mística Chaconne. É uma daquelas músicas infinitas. Por que ela é tão respeitada? Você a toca duas vezes da mesma forma?
O disco com Mehmari foi uma aventura extraordinária, como sempre, quando eu me junto com ele para algum projeto. E a pergunta sobre a Chacona, é uma obra que é uma viagem existencial, você começa com os primeiros acordes e nunca saberá onde a música te levará. As notas são sempre as mesmas, mas realmente é impossível tocar a Chacona duas vezes da mesma maneira. Mesmo respeitando todas as notas, os ritmos, naturalmente. São aqueles mistérios das grandes obras de arte, que te entregam muito mais perguntas do que respostas.
Então, cada vez que você enfrenta uma obra como a Chacona, você sabe como começar, você conhece a obra, mas, no meio, você percebe que novas portas estão se abrindo, e você pode decidir entrar para esse caminho diferente, ou se continua naquele percurso que você conhece muito bem. Os novos percursos são sempre um pouco mais arriscados, mas é o papel do intérprete, o grande artísta, como dizia (Nikolaus) Harnoncourt, um dos maiores regentes, recentemente falecido (em 2016), ele dizia que um artista de verdade é alguém que caminha com sua arte sempre à beira do precipício. Ser artista não é algo para os fracos, ser artista não é algo para quem gosta da zona de conforto. Ser artista é arriscar todo dia, toda vez que se sobe num palco.
8. Outras interpretações suas que me chamaram a atenção foram a da Sonata de César Franck, as de Villa-Lobos, de Claudio Santoro e muitas outras. Existe uma diferença entre aprontar uma interpretação de uma obra que já foi dissecada ao extremo (Franck) e uma que você mesmo vai explorar (não necessariamente pela primeira vez, mas ainda com uma atitude de desbravamento)?
Sim, existe uma grande diferênça entre abordar uma obra muito tocada, muito gravada e uma obra nova. Obviamente, quando você enfrenta, por exemplo - você fez o exemplo da Sonata de Franck, você tem a possibilidade de aprender com a tradição e com a leitura, a interpretação dos maiores violinistas que já passaram nesse mundo. E é muito superficial, é muito sem sentido aquele clichê que diz "ah, eu não escuto gravações, porque me influenciam". São os maiores violinistas, maiores artistas que passaram: deveriam te influenciar. Os melhores professores, aliás, os melhores mestres que possamos ter são esses grandes que nos antecederam na missão que estamos cumprindo. Então, obviamente, você vai aprendendo com eles e depois, claro, filtrando, fazendo tuas escolhas... Mas você tem muitas sugestões possíveis, muitos caminhos possíveis para enfrentar a obra.
Quando você estreia uma obra nova, você tem o papel branco. Tem as notas, tem as indicações do compositor, mas você é o primeiro que está dando vida àquelas manchas num papel. Ou num pentagrama. Então, digamos que são dois tipos de estímulos muito diferentes: um é o estímulo da comparação, você tem a possibilidade de dizer algo, fazer ouvir a tua voz, no meio de tantas vozes que já falaram aquilo. E tem a possibilidade de fazer algo diferente, inclusive após ter aprendido com esses gênios. No outro caso, você é o primeiro que dá voz a essa música, então digamos que você tem muito mais espaço para inventar e criar
9. O que acha dos violinistas que mais se destacam hoje: Joshua Bell, Hilary Hahn, Leonidas Kavakos, Lisa Batiashvili, Gil Shaham, por exemplo? Imagino que já tenha tocado com a maior parte deles.
Sim, eu tenho tocado com a maioria deles. Sem querer falar um por um, existem dois tipos de perfis desses grandes violinistas - estamos falando sempre de grandíssimos instrumentistas, que merecem todo o sucesso e toda a fama que ganharam. Mas, entre eles, existem alguns que claramente se venderam um pouquinho ao lado comercial, ao lado industrial da música. E existem, entre eles, aqueles que ficaram com o lado mais profundo e quase missionário da música. Negociando com uma indústria que tende a nivelar tudo por baixo. A qualidade, digamos. Então, digamos que entre os grandes, eu posso citar entre os meus preferidos Isabelle Faust, certamente, Gidon Kremer, certamente, Leonidas Kavakos, certamente, Christian Tetzlaff, Augustin Hadelich e um jovem de 21 anos, Daniel Lozakovich, que recentemente esteve em São Paulo, que me impressionou pela profundidade - não só a profundidade de interpretação, mas a profundidade de pensamento. É um violinista que estuda horas e horas o seu violino, mas que lê, que vai visitar exposições, que tenta realmente abrir os horizontes da mente e conectar as várias formas de arte, como sempre foi e, como só recentemente, não é mais. As artes sempre estiveram muito conectadas entre elas e, só recentemente, começamos a viver nessa moda da "especialização", que tira quase completamente o sentido do fazer artístico.
10. Um colega que se formou comigo, chamado Caio Facó, parece ter lhe chamado a atenção. A música dele é muito viva e expressiva. Você tem noção da importância que é um músico de seu calibre estimular um compositor jovem?
Eu acompanhei Caio desde os primeiros passos. Eu lembro que recebi um e-mail, naquela época, de um compositor, de um jovem que eu nem conhecia, nem de nome. Uma obra para violino solo. Eu quis pegar o meu violino e ler essa obra pra violino solo, e achei muito... encontrei muito talento nessa composição. A partir daí começamos a desenvolver um relacionamento à distância, mas, digamos que a cada alguns meses me mandava algumas composições, eu decidia tocar algo, gravar algo e fui acompanhando todo o percurso. Gomo gosto de fazer quando encontro alguém que eu considero de qualidade. E estou feliz também de dizer que eu abri algumas portas para Caio - a encomenda que o Quarteto Osesp fez de uma obra para o Quarteto Osesp, a encomenda de uma composição original para a minha orquestra de Valdívia... Eu fui três anos diretor artístico de uma orquestra de Valdívia e Caio foi presença constante na programação. Enfim, eu gosto de ajudar os jovens, não só compositores, jovens músicos, jovens artistas porque acho que faz parte da minha missão. Eu volto a esse termo porque eu acho muito importante que o músico enxergue a arte e seu trabalho, não somente como um trabalho, como um job, mas como uma missão, que vai muito além do trabalho profissional que vem se desenvolvendo e pelo qual se é pago.
11. O que vemos nos concursos são jovens cada vez mais tecnicamente infalíveis. Às vezes falta-lhes uma certa curiosidade a respeito da época do compositor, do que já foi escrito sobre ele. Acha que esse é o traço dessa geração que vem chegando? A perfeição técnica e um certo desinteresse por outras questões?
Isso eu já respondia antes, quando falei que há uma especialização excessiva que fecha a mente para toda uma série de outras influências que são importantíssimas para construir uma interpretação. Como podemos interpretar "Assim Falou Zarathustra" de (Richard) Strauss, se não sabemos do que se trata, se não temos a curiosidade de ler Nietzsche (a obra de Strauss é baseada no livro homônimo do filosofo Friedrich Nietzsche). É todo um universo que se fecha para nós e que não nos permite aprofundar a nossa interpretação. É claro que muitas coisas na música podem vir por meio da intuição, mas não é só intuição. Eu gosto de pensar que existe o instinto, sim, existe a intuição, sim, existe a imaginação, são todas coisas muito importantes na vida de um artista, de um músico. Mas existe tanto, pelo menos tanto importante quanto a busca, a pesquisa, o conhecimento, as experiências, inclusive de vida e o interesse por tudo que nos cerca, seja sobre arte, sobre vida, sobre humanidade e sociedade.
Alguns discos importantes
Emmanuele é apaixonado pela música erudita brasileira. Seus discos de Villa-Lobos e Claudio Santoro, dois dos maiores nomes da composição nacional são jóias de refinamento.
Os dificílimos 24 Caprichos Latinoamericanos, do violinista Arthur Barbosa, membro da OSPA (Orquestra Sinfônica de Porto Alegre) e regente titular da Orquestra de Câmara Eleazar de Carvalho, em Fortaleza, são muito interessantes e são obras confortavelmente dentro do linguajar violinístico.
No disco com o pianista André Mehmari, enfrenta, como ele mesmo diz, a Chaconne da Partita para Violino Solo Nº 2, de Johann Sebastian Bach. E com muito sucesso.
Como sempre, sinta-se encorajado a comentar, sugerir, criticar, elogiar, desabafar ou, simplesmente, trocar uma ideia.
Uma opção para o dilema de tocar ou não Música Russa nos concertos hoje em dia.
Um "pequeno" Glossário de termos musicais.
Aqui, 10 Livros Sobre Música Clássica
Veja aqui: Como Ouvir Música Clássica
Perfil da pianista portuguesa Maria João Pires, postagem da nossa correspondente prodígio lusa Mariana Rosas, do Blog Pianíssimo (www.pianissimo.ovar.info)
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Papo de Arara (Entrevistas)