Colaborou: Luiz Pedro Reis Pinheiro
1. Primeiramente gostaríamos de saber como está o cenário para game designers independentes aqui no Brasil. Como você vê esse mercado e que tipos de desafios pessoas que desejam criar seus próprios jogos precisam enfrentar?
O cenário vinha melhorando aos poucos até a chegada da pandemia. Temos um bocado de game designers competentes aqui no Brasil, e criatividade não falta. Mas agora a situação está complicada. Vejo muitos projetos (até mesmo de editoras grandes, bem estruturadas) obtendo resultados pífios em seus financiamentos coletivos. Estamos passando por uma crise das brabas, e o pessoal que está sem dinheiro precisa escolher entre pagar as contas ou gastar com lazer. Para os produtores de conteúdo independente, que trabalham no ramo do entretenimento e da arte, o momento é particularmente difícil. É preciso ter, além de garra e perseverança, muito preparo.
2. A escolha do Catarse para o financiamento coletivo foi algo natural? Você tentou outros meios?
Foi a alternativa mais óbvia, porque nenhuma editora no mundo ia investir tanta grana em um autor de primeira viagem. Então o Catarse foi minha salvação, porque eu também não tinha condição de bancar tudo com dinheiro do meu próprio bolso, estava desempregado.
3. Existem muitos editais de incentivo governamental para arte e cultura. É comum vermos livros, filmes, espetáculos teatrais sendo realizados com dinheiro público provenientes de editais como esse. Mas existem muito poucos ainda para jogos. Ao mesmo tempo também existem entraves burocráticos, por parte do Estado, que facilitem a vida de quem quer empreender na economia criativa seja fazendo games, aplicativos ou mesmo quem quer abrir uma produtora cultural ou um estúdio de jogos. Como você enxerga isso?
Sequer cogitei buscar apoio governamental para o projeto e acho que as chances seriam mesmo baixas. Quando se trata do setor público, contatos influentes são mais importantes do que boas ideias, infelizmente. Acredito que o financiamento coletivo era de fato a opção mais viável, pois o sucesso do projeto só dependeria de boa divulgação e pessoas interessadas, e Kalymba não ficaria refém de processos burocráticos estressantes. Me traz uma felicidade tremenda saber que conseguimos transformar esse sonho em algo tangível apenas com a participação da comunidade, com dinheiro arrecadado voluntariamente. No nosso caso, por sorte, o investimento público não fez falta.
4. - Especificamente sobre o universo diegético do jogo... De fato é muito interessante sua escolha pela cultura de matriz africana para o desenrolar desse novo RPG. Algum recorte específico ou você procurou ser panafricanista? E o que te fez escolher esse recorte?
Eu não diria que fiz um recorte específico. A maior influência do cenário é, com certeza, a cosmologia iorubá, que escolhi por ser mais familiar para nós, brasileiros. Mas também há muitos elementos de outras regiões e culturas africanas, todos adaptados à realidade ficcional do cenário que criei. Então Kalymba pode ser chamado de panafricanista, certamente.
5- Na sua opinião existe uma overdose de mitologia européia no universo da fantasia, horror e ficção científica (gêneros onde majoritariamente se passam a maioria dos jogos) no entretenimento? Tipo, todo mundo sabe o que é um troll, um orc, um elfo mas não reconhece com facilidade seres de outras culturas como as do oriente médio e mesmo as do Brasil... Então o que você pensa sobre isso e em que medida isso foi uma questão propulsora para o Kalymba?
É fato que no mundo do entretenimento algumas temáticas são exploradas à exaustão enquanto outras são renegadas. No caso dos jogos de RPG, a estrutura que chamamos de fantasia medieval europeia (que se tornou a tal "fantasia clássica", afinal) é a que reina soberana. Há muito conteúdo desse tipo sendo produzido e lançado todos os anos, às vezes mais do que o mercado pode absorver. Mas não há como negar que a maioria dos jogadores de RPG continuam sendo atraídos por esses materiais, por mais que, a meu ver, tenham se tornado repetitivos. Então eu resolvi apostar em uma temática diferente, que atraísse jogadores de outros nichos, mas que também soasse familiar para esse público adepto ao mainstream – a fantasia "medieval" africana. E deu certo: Kalymba bombou! Ao que parece, era um material com demanda latente. As pessoas queriam, mas não sabiam disso ainda, pois não havia nada semelhante no mercado. 6 - Como foi o seu processo de pesquisa para conseguir adaptar essa mitologia dentro do seu universo? Quais suas fontes de pesquisa e dificuldades?
A pesquisa foi intensa e cheia de obstáculos, desde barreiras linguísticas até a completa ausência de material de referência. Várias das culturas nas quais me inspirei foram negligenciadas pela História durante séculos, então os estudos ainda são escassos, principalmente na língua portuguesa. Também tem o fato de muito do conhecimento mitológico da África – que foi meu principal objeto de pesquisa – ser baseado na tradição oral. Minha vontade de viajar para lá para absorver inspiração direto da fonte é grande, mas falta quem me banque, hahahaha. Enquanto isso, preciso me contentar com aquilo que o Google e os livros têm a me oferecer.
7 - A o enredo, a base da trama, você adaptou alguma ideia original sua a esse universo, ou uma outra história para esse universo ou você tentou resgatar alguma narrativa original do folclore e mitologias africanas? A estrutura clássica da Jornada do Herói (o monomito) foi usada?
Kalymba é um cenário fictício, um universo meu que foi inspirado nas histórias da África. Tem muitas ideias originais minhas embutidas ali, embora o ponto de partida sejam civilizações, eventos, tradições e mitologias existentes. Nesse cenário, eu proponho o chamado à aventura e ofereço os desafios necessários para que os heróis (os jogadores) tracem suas próprias jornadas.
8 - O que você aconselharia extra jogo para que os jogadores possam ter uma maior bagagem ao entrar em Kalymba?
Acho que a necessidade (ou a curiosidade) de pesquisar surgirá no decorrer da leitura. Kalymba tenta estimular essa busca por conhecimento, mas também fornece muito material para que leigos e iniciantes não precisem se preocupar com bagagem prévia.
9 - Por quais sistemas e livros você já passou dentro do universo do RPG e em que ponto você decidiu criar o seu próprio? E como esses sistemas de RPG te influenciaram?
Faz uns sete anos que conheci o RPG. Comecei mestrando o sistema +2d6, que não por acaso se tornou a base das mecânicas do Kalymba. Mestrei Tormenta, Dungeon Crawl Classics, Pesadelos Terríveis e desenvolvi uns poucos sistemas próprios, como Ilha da Fantasia Homicida, que ainda narro ocasionalmente em eventos. Comecei Kalymba menos de um ano após me iniciar no hobby, foi um desastre. Demorou um bocado de tempo até que eu tivesse bagagem para construir um sistema funcional e um cenário interessante. Tudo o que consumi nesse período serviu de combustível para minha criatividade, além de me fornecer noções de game design.
10. Sabemos que um jogo é uma linguagem artística que bebe de outras linguagens como a literatura, o cinema, as artes visuais... Quais suas influências nessas áreas, que quadrinhos, romances, música e filmes, por exemplo, você consome e quais te influenciam direta e indiretamente na sua criação? Desde os quatro anos de idade consumo documentários que nem um louco. São uma grande fonte de inspiração para mim. Séries como Shaka Zulu, filmes como Kiriku e a Feiticeira e livros como Império de Diamante também deram asas à minha imaginação.
11 - Aproximadamente quantas horas de playteste de quantas pessoas foram envolvidas para que você chegasse ao nível de refinamento que encontraremos no livro? Não faço ideia. Mestro Kalymba há anos, era um projeto pessoal, para uso próprio. Ninguém conta as horas que passou jogando RPG com os amigos. Também mestrei em eventos, então... Sei lá. Só fui testanto, testando de novo, mudando e corrigindo as mecânicas. Foi um playtest feito naturalmente, na maior parte do tempo. Só mais recentemente começamos a testar mecânicas específicas e fazer uma análise aprofundada das regras, mas nesse ponto o sistema já estava bom o bastante para ser jogado.
12- O que te fez optar por criar um sistema mais simples? Não gosto de mecânicas desnecessariamente complicadas. Prefiro apostar na liberdade e na personalização. Kalymba é simples, mas robusto, pois oferece muitas opções aos jogadores, algo que sempre valorizei.
13- E qual o objetivo em não criar classes fixas dentro do jogo? Isso se relaciona diretamente com o universo escolhido ou é uma inovação na mecânica (modo de jogar)?
Como disse uma vez William Wallace: "Liberdaaaaaade!". A mecânica de classes era algo que não parecia se encaixar com a proposta do jogo. Não tem a ver com o universo de Kalymba, mas com a experiência que eu queria transmitir. 14- Pra quem você recomendaria o seu livro e para quem você não recomendaria? Recomendo Kalymba para todos aqueles que desejam começar a jogar RPG ou experimentar coisas novas dentro do hobby. A exceção é para jogadores que fazem questão de sistemas narrativistas, com poucas regras e poucas rolagens de dados. Kalymba não é assim, então eu odiaria te decepcionar. Mas felizmente, para o restante das pessoas, esse jogo pode ser incrivelmente divertido.
15 - Está previsto expansão do universo atual, digo, com mais aventuras prontas ou evoluções do cenário seja de caráter físico ou virtual?
Com certeza. Pretendo lançar mais aventuras, talvez suplementos, talvez romances... Se o material será pago, gratuito, impresso ou digital, aí eu já não sei. O fato é que ainda tem muita coisa pra explorar nesse universo, e espero que a comunidade de jogadores colabore no processo.
16 - A campanha do Catarse teve, como você disse que obteve 1065% da meta. A que você acha que se deve seu sucesso?
Temática diferenciada. Sistema não D20 e qualidade das ilustrações.
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