*Este artigo foi escrito antes da morte de Nelson, que ocorreu em 01/11/2021, no Rio de Janeiro. Nossas sinceras condolências à família e aos amigos do grande músico.
Nelson Freire é um senhor discreto. É famosa a resenha sobre ele que tem como título: "Pianista quer ser discreto, mas seu talento não" ("Pianist takes back seat, but his talent doesn't"). Calado, reservado e musicalmente evitador de grandes explosões sentimentais. Mas seu talento, não.
Ele reúne técnica impecável, controle sobrenatural, sonoridade cósmica e uma quase completa ausência de malícia (jamais toca simplesmente para impressionar). É um pianista para pianistas, que é como a gente chama o cara que toca tão bem que o público podia ser só de pianistas, ele ainda surpreenderia.
Ele até conseguia manter essa discrição sob controle até 1999, quando a Phillips lançou a caixa Great Pianists of the 20th Century e o incluiu como único brasileiro. Nelson foi um dos que mais se beneficiaram com a inclusão na coleção. Assinou um contrato com a Decca e, até hoje, lança discos quase anualmente. Pouco antes de sair na caixa da Phillips ele tocou aqui em Fortaleza. Não pude ir e não me perdoo até hoje. Mas quem foi disse que ele estava em ótima forma.
Ele nasceu em Boa Esperança, MG, em 1944. Quando tinha 3 anos era capaz de reproduzir as lições de piano de sua irmã espontaneamente. Aos 4 anos de idade foi estudar com um professor uruguaio numa cidade próxima. Depois de 12 aulas o professor disse que ele não tinha mais o que lhe ensinar e sugeriu que ele fosse para o Rio ter aulas com um professor profissionalizante. A família foi para lá e ele passou a ser pupilo de Nise Obino e de Lúcia Branco.
Aos 14 anos sofreu um trauma horrível. Seus pais sofreram um acidente de carro quando estavam indo levá-lo a uma aula de piano e morreram. No documentário Nelson Freire, de João Moreira Salles (2003) lê-se uma carta do seu pai sobre o futuro do menino.
No mesmo documentário ficamos conhecendo um pouco mais da sua amizade com a maior lenda do piano: Martha Argerich. Ela fala ótimo português durante todo o filme, mas, no que eu percebo como um gesto de pouca delicadeza, eles legendam a parte toda.
Pois bem, Nelson foi ganhando prêmios e estudando com professores importantes, como Bruno Seidlhofer, que disse que só teve três alunos realmente talentosos - Nelson Freire, Martha Argerich e Friedrich Gulda.
Os discos do Nelson, eu tenho quase todos. Antes do Great Pianists, tem um disco sensacional de Villa-Lobos; os concertos de Grieg, Tchaikovsky (nº 1) e Schumann, com Rudolf Kempe e a Filarmônica de Munique; recitais de Schumann, Schubert, Chopin; música de câmara com a Martha, os concertos de Liszt com David Zinman e a Philharmonie de Dresden e um punhado de gravações ao vivo.
Depois que ele assinou com a Decca vieram os Estudos e Sonatas de Chopin, assim como os Noturnos; o livro 1 de Prelúdios de Debussy; um recital de Liszt; um de Brahms; um de Bach; um de compositores brasileiros; um de encores e, talvez o mais importante: os 2 Concertos de Bramhs com a Orquestra do Gewandhaus de Leipzig regida por Riccardo Chailly (que são hoje as grandes gravações de referência desses concertos); e o Concerto Nº 5 de Beethoven com a mesma formação. Tem também um belo Concerto Nº 2 de Chopin com a Gürzenich Orchester de Colônia regida por Lionel Bringuier.
Saiu também, recentemente (mais ou menos, sei lá), um CD duplo chamado Radio Days, que são gravações de obras para piano e orquestra feitas nos anos 70-80. Esse disco é espetacular. E também um disco ao vivo chamado Salzburg, que é um recital em Salzburgo para dois pianos dele com a Martha Argerich do qual saem faíscas.
Pode-se dizer hoje que Nelson Freire gravou bastante. Nunca é o suficiente, claro. Desde pequeno eu quero ouví-lo tocando a 1ª Balada de Chopin, mas parece que é a única Balada que ele não toca. Também daria tudo para ouví-lo tocando o Livro 2 de Prelúdios de Debussy, Concertos de Mozart, mais Sonatas de Beethoven e os 3 Movimentos de Petrushka, de Stravinsky. Além de Ravel. E muito mais Rachmaninoff...
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