Quadros de Uma Exposição é uma suíte para piano de Modest Mussorgsky (1839-1881). Ele era um membro do Grupo dos Cinco, de São Petersburgo, com 5 compositores russos de extrema importância: ele, Mily Balakirev (o lider), César Cui, Nikolai Rimsky-Korsakov e Alexander Borodin. Eles se empenhavam em desenvolver e divulgar uma música nacionalista russa. Vale lembrar que na segunda metade do século XIX os movimentos nacionalistas se difundiram - Grieg, na Noruega; Smetana, na República Tcheca; Alberto Nepomuceno, no Brasil etc. Na Rússia, Mikhail Glinka era celebrado como o pai da música erudita nacional, e os 5 continuaram seu trabalho, entre os anos de 1856 e 1870.
Pois bem, Mussorgsky não era um compositor muito prolífico, tendo nos deixado poucas obras. Algumas delas são: a ópera Boris Godunov, o poema sinfônico Noite no Monte Calvo, de que falarei em breve, e os Quadros de Uma Exposição, que eu não sei se seriam tão famosos não tivessem sido orquestrados bem mais tarde (e de maneira impecável) por Maurice Ravel.
A suíte se constitui de 10 impressões musicais sobre pinturas de Viktor Hartmann, que morrera pouco antes da composição, aos 39 anos. Além dos 10 quadros, o compositor vai intercalando Promenades (passeios), que, basicamente descrevem o expectador caminhando de uma obra pra outra. No final, a suíte é em 16 movimentos.
Hartmann era amigo do compositor, e quando morreu foi organizada uma exposição com mais de 400(!) obras suas. Mussorgsky chegou a emprestar duas obras que o pintor tinha lhe presenteado. Um mês depois de comparecer à exibição, ele compôs, em três semanas, a obra. É rápido.
Mas a peça só seria publicada em 1886, depois da morte do compositor. E mesmo assim, foi mexida, otimizada e, possivelmente em alguns pontos, empobrecida, por Rimsky Korsakov.
Era uma peça bastante tocada, mas não a ponto de deixar o compositor famoso depois de morto. Foi então que, em 1922, o maestro Serge Koussevitzky a quis orquestrada, para a Sinfônica de Boston. E quem ele chamou para transpor a partitura de piano para orquestra foi ninguém menos que Maurice Ravel, o deus da orquestração. E é nessa forma que conhecemos os Quadros de uma Exposição. Para se ter uma ideia, Sir Henry Wood, célebre regente inglês, fez uma orquestração em 1915. Assim que soube, em 22, que Ravel a orquestraria, mandou suspender a publicação de sua orquestração e proibiu a divulgação das partituras.
Mas vamos à música. Observe:
1. "Promenade" (Passeio)
2. "Gnomus" (Gnomo)
3. "Promenade" (Passeio)
4. "Il Vecchio Castello" (O Velho Castelo)
5. "Promenade" (Passeio)
6. "Tuileries" (Tulherias)
7. "Bydlo" (Carro de Bois)
8. "Promenade" (Passeio)
9. "Ballet des Petits Poussins dans leurs Coques" (Balé dos Pintinhos em suas Cascas de Ovos)
10. "Samuel Goldenberg et Schmuyle"
11. "Promenade" (Passeio)
12. "Limoges, Le Marché" (O Mercado em Limoges)
13. "Catacombae, Sepulcrum Romanum" (Catacumbas, Sepulcro Romano) / "Cum Mortuis in Língua Mortua" (Com os Mortos em Língua Morta)
14. "La Cabane de Baba-Yaga sur de Pattes de Poule" (A Cabana de Baba-Yaga sobre Patas de Galinha)
15. "La Grande Porte de Kiev" (O Grande Portal de Kiev)
Abaixo temos uma apresentação da Orquestra Filarmônica de São Petersburgo regida por Yuri Temirkanov. (Tive que substituir o vídeo pelo também excelente de Gustavo Dudamel regendo a Orquestra Sinfônica Jovem Simon Bolivar da Venezuela).
1. Promenade (8s)
Bem ao estilo de Promenade, como representando uma solene caminhada, essa peça serve de introdução perfeitamente, porque chama o interesse, mas não entrega nada da profundidade e do mistério que ouviremos mais à frente. Na orquestração de Ravel entrega a parte A inteira a um coral de metais.
2. Gnomo (1m57s)
O brincante Gnomo é, de certa forma, mágico. Seus acordes encantados, seus graves misteriosos, as diferentes escalas e modos que usa, tudo dá um ar às vezes tenebroso. Ravel mantém de forma brilhante esse ar.
3. Promenade (4m14s)
Dessa vez é uma andança meio distraída, aérea, bem diferente do ar marcial que tinha quando apareceu pela primeira vez.
4. O Velho Castelo (5m20s)
É um dos movimentos mais famosos e mais sensuais. A melodia foi entregue por Ravel ao saxofone. Quando a gente ouve pela primeira vez aquele sax sem vibrato, sem firulas, é um som de outro mundo.
5. Promenade (10m20s)
Agora a caminhada é resoluta. E breve. Ravel a entregou aos metais e às cordas.
6. Tulherias (10m50s)
A pintura original é do Jardim das Tulherias, em Paris. É uma peça rápida e agitada.
7. Carro de Bois (11m53s)
Mostra uma carroça, carregada do que for, com dois homens e um boi se aproximando e depois partindo, a música decrescendo lentamente. Ravel entrega à tuba de Wagner a melodia principal.
8. Promenade (14m57s)
Essa Promenade é celeste, como que encantada. Até que é invadida por um certo ímpeto. A orquestração é esparsa, mas muito apropriada.
9. Balé dos Pintinhos em suas Cascas de Ovos (15m46s)
A versão para piano é extremamente bem escrita. Me lembra Villa-Lobos (eu falei isso?). Em forma A-B-A, dela temos a pintura, que sobreviveu. Na orquestração, não havia como fugir das flautas representando os pintinhos. Coisa fofa.
10. Samuel Goldenberg e Schmuyle (16m58s)
Essa foi inspirada em duas pinturas. O judeu rico e o judeu pobre. O rico, Samuel Goldenberg, é opulento, até arrogante (parte A). A parte B, mais etérea, é a do pobre, Schmuyle. Na parte C os dois dialogam, mas a palavra final é a do rico. Isso porque ele é representado por um motivo em uníssono, que é o que encerra a obra. Observe o uso do trompete piccolo com surdina, na parte B.
11. Promenade (N/A)
Essa promenade é básica. Tão básica que muitos pianistas não a tocam. Ravel mesmo não a orquestrou.
12. O Mercado em Limoges (19m14s)
É um mercado em Limoges, França, barulhento, com uma "grande notícia", e uma gorda discutindo. Pelo menos assim Mussorgsky escreveu nas anotações para a estréia. Mas riscou.
13. Catacumbas, Sepulcro Romano (20m26s) / Com os Mortos em Língua Morta (22m24s)
Extremamente sinistro, esse movimento consegue representar a escuridão e o medo de maneira extremamente forte. Em Com os Mortos em Língua Morta, a tensão reduz bastante. É como se primeiro fôssemos alguém a descer às catacumbas, e, depois, alguém que o observa. A orquestração, privilegiando os metais graves, é absurdamente fenomenal.
14. A Cabana de Baba-Yaga sobre Patas de Galinha (24m32s)
Baba-Yaga, a feiticeira russa que mora numa casa sobre patas de galinha. Também é uma das mais conhecidas. É uma das mais elaboradas, tudo criando um clima hostil, mas encantador. Tem, às vezes, a urgência de uma perseguição. A orquestração de Ravel é impressionante aqui. Ele emprega desde o glockenspiel até as madeiras agudas de maneira magistral. Mas a verdade é que ela já vinha genial desde a versão para piano.
15. O Grande Portal de Kiev (27m54s)
Kiev, capital da Ucrânia, na época ainda no Império Russo. Hartmann desenhou esse portal para o imperador, para que fosse construido como celebração de uma batalha. Foi cancelado, nunca construiram o portal, mas o designer disse que era seu melhor trabalho. Mussorgsky o musicou heróico e suntuoso. Perfeito pra fechar nosso ciclo.
Ravel tomou a liberdade de incluir alguma percussão, e você não consegue conceber a música sem esses instrumentos. O bumbo sinfônico e os pratos, além dos tímpanos e do gongo.
O final é apoteótico.
Abaixo, a versão original para piano com Yulianna Avdeeva.
A Orquestração de Stokowski
Gostaria de observar que outras pessoas fizeram orquestrações da peça, mais notavelmente o regente britânico Leopold Stokowski. Ele mesmo costumava reger a versão de Ravel, mas achava que lhe faltava um certo sabor eslavo. Sua orquestração é claramente derivativa da do compositor francês, e a cor eslava me foge. É uma orquestração competente, mas o fato é que se disserem "Ravel orquestrou Hey Jude", ninguém vai fazer melhor.
Vale notar que ele não orquestrou Tulherias e O Mercado em Limoges porque suspeitava que Mussorgsky não os havia composto, e sim, Rimsky-Korsakov, antes de publicar a partitura. Não há evidências de que isso seja verdade. Mas é divertido escutar.
Gravações Importantes
Mikhail Pletnev (piano) - A gravação moderna da versão para piano mais conhecida. Pletnev é um daqueles gênios que às vezes a gente não sabe o que ele tá falando, mas sabe que é coisa importante.
Khatia Buniatishvili (piano) - A feminilidade e a sensibilidade que a georgiana Khatia trouxe à música é meio inédita. Absolutamente uma das versões que vão entrar pra história.
Vladimir Horowitz (piano) - Essa é a gravação clássica. Se quer saber como é a versão para piano sem muitos efeitos, tocada por um russo (ucraniano), essa gravação é indispensável. Não que Horowitz toque sem colorido, pelo contrário, suas cores são absurdas. Mas ele toca mais a seco do que hoje se costuma tocar.
Gustavo Dudamel - Filarmônica de Viena (Wiener Philharmoniker) - Dudamel conduz a orquestra numa jornada com uma infinidade de cores e humores. Os instrumentos individuais tocam do infinito. E em conjunto parece um órgão. Não tem uma inflexão, um suspiro, que não seja na hora certa. Escute as Catacumbas e se arrepie com os metais da Filarmônica de Viena.
Georg Solti - Orquestra Sinfônica de Chicago (Chicago Symphony) - A orquestra conhecida por ter a melhor sessão de metais dos EUA e uma das melhores do mundo, gravou essa obra várias vezes. Todo regente queria fazer seu Quadros de Uma Exposição com a Sinfônica de Chicago. A versão de Giulini é excelente, mas foi Solti que interpretou melhor as atmosferas da música.
Leopold Stokowski - Orquestra New Philharmonia - A orquestração de Stokowski nas mãos dele próprio. Escolhi essa versão porque tem um som melhor que aquela com a Orquestra de Filadélfia.
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