Por Rafael Torres
Talvez o Réquiem em Ré Menor, K. 626, chamado de "Missa Pro Defunctis" de Wolfgang Amadeus Mozart, sua derradeira obra, seja a peça mais emblemática da história da música. Especialmente da música sacra, ao lado da Paixão Segundo São Mateus e da Missa em Si Menor, ambas de Johann Sebastian Bach (1685-1750).
O Réquiem, para Coro, Orquestra e 4 Solistas (soprano, contralto, tenor e baixo, formação conhecida com SABT) é a obra mais madura de Mozart (1756-1791), já que é sua última. Mozart não a completou. A doença e a morte o impediram.
Os debates acerca da porcentagem da música que é, de fato, de Mozart, não diminuem a sua grandeza. O que Mozart compôs está perfeito, e o que foi completado por seu colega e amigo Franz Xaver Süssmayr é digno de uma composição de tal porte - embora musicólogos apontem "erros" e "inconsistências" na escrita de Süssmayr.
Mozart compôs dez movimentos: não encontrando forças para completar a Lacrimosa, tendo composto apenas oito compassos desta, seguiu adiante e ainda conseguiu nos deixar o Domine Jesu e o Hostias. Suspeita-se que ele tenha deixado instruções e anotações para seu colega completar a obra, já que a inventividade dos movimentos atribuídos a Süssmayr é notável - ele não era considerado um compositor muito experiente.
Logo, apontavam os estudiosos antigos, a única explicação para a alta qualidade dos movimentos que lhe couberam é que Mozart houvesse, de fato, deixado diretrizes. Isso é apenas uma hipótese, no entanto. Os estudiosos mais sérios já apontam há séculos para os perigos dessa linha de pensamento: "se é bom e está bem escrito, é de Mozart; do contrário, é de Süssmayr".
Sabemos que o próprio Süssmayr garantiu ter composto do zero três movimentos: Sanctus, Benedictus e Angus Dei. O Agnus Dei tem uma construção muito própria de Mozart. Benedictus é um movimento da mais pura delicadeza, certamente inspirado em passagens operísticas de Mozart. Sanctus, é um movimento menos ambicioso, mas absolutamente condizente com outros Sanctus de missas anteriores de Mozart, como o da Grande Missa em Dó Menor, peça de extrema humildade adornada por música da mais alta categoria.
O Réquiem
A propósito, uma Missa de Réquiem é a transformação em música de certos trechos bíblicos, em homenagem aos mortos, destinada a ser cantada, por exemplo, em uma missa de sétimo dia. O nome vem da primeira palavra de seu Introit: Requiem aeternam dona eis Domine (Dê-lhes descanso eterno, Senhor). A escolha de algumas seções pode variar, mas há trechos que não podem faltar.
Originalmente, desde muito tempo antes de Mozart, a música era cantada apenas por homens durante uma missa, (por muito tempo mulheres foram proibidas) sem acompanhamento instrumental. Aos poucos, foi ganhando importância e complexidade, de modo que, nos séculos XIX, XX e XXI, passou a ser uma peça comumente executada em uma sala de concertos e aplaudida (o que não ocorre na igreja). A orquestra foi adicionada por volta do ano 1600.
Os trechos mais comuns, especialmente no Barroco (Mozart é do Classicismo, movimento posterior ao Barroco), ou seja, as passagens bíblicas que eram praxe ser musicadas eram: Introit (Requiem Aeternam); Kyrie Eleyson (o único trecho em Grego, em oposição aos outros, todos em latim); Gradual (um salmo); Tract; Sequência (contendo o Dies Irae, o Tuba Mirum, Rex Tremendae, Recordare, Confutatis e Lacrimosa); o Offertorium (que também tinha suas partes); Sanctus; Agnus Dei; Lux Aeterna; Pie Jesu; Libera Me e In Paradisum.
A História
O que levou Mozart a escrever um Réquiem, uma missa fúnebre, às vésperas de quando ele sabia que estava para morrer, foi uma encomenda generosa: o conde Franz von Walsegg, em julho de 1791, enviou um de seus empregados (a fim de permanecer anônimo), todo vestido de cinza, à casa dos Mozart com uma oferta. Mozart deveria compor um Réquiem.
Havia um porém, porém. Ele não deveria se revelar o compositor da obra, deixando que o encomendador tomasse a glória para si.
Walsegg costumava fazer isso, tendo encomendado inumeráveis Quartetos de Cordas que fingia serem seus (e seus amigos fingiam acreditar). Era, ele mesmo, músico amador. E maçom, como Mozart. O Réquiem em questão seria um memorial para sua esposa, a condessa Anna Walsegg, falecida aos 20 anos, pouco antes. O conde, que tinha 28 anos, sofreu verdadeiro pesar com a morte da amada e jamais casaria novamente.
O pagamento era generoso (600 florins, que hoje correspondem a quase 100.000 euros!) para um endividado Mozart, e, mesmo assombrado pela figura do "Mensageiro Cinzento", como apelidou o homem que fazia a intermediação, o compositor eventualmente aceitou.
Supõe-se que Mozart ao menos suspeitasse que quem encomendava a peça era Walsegg, sendo este já famoso em Viena por essas estripulias. Acontece que Mozart recebeu apenas metade desse pagamento, sendo o restante prometido para quando ele entregasse a obra.
Admirador inflexível do Réquiem do irmão do famoso Joseph Haydn, Michael Haydn, que compusera o seu em 1771, Mozart e seu pai presenciaram a estreia e mais duas apresentações subsequentes. Tendo a filha de Michael morrido no começo daquele ano, seu Réquiem (que foi encomendado pela morte do Arcebispo Sigmundo, de Salzburgo) adquiriu uma força, uma dramaticidade, um contato inesperado com a dor que cativaram Leopold e Wolfgang. Mozart faria uma missa nos moldes da do colega. Nos moldes de Michael Haydn e de Georg Friedrich Händel.
Ficou de entregar o Réquiem em 3 meses, mas sofreu atrasos: uma visita a Praga, onde supervisionou a estreia de sua ópera La Clemenza di Tito - a ópera foi um sucesso absoluto, mas foi em Praga que Mozart começou a se sentir mal, de doença esta que permanece desconhecida e que o levaria à morte. De volta a Viena, outro atraso: a estreia de seu Singspiel (uma ópera com passagens faladas) A Flauta Mágica, em 30 de setembro de 1791 - outro absoluto sucesso.
Em 20 de novembro a saúde do compositor se agravou drasticamente e ele foi acamado, com muita dor, vômitos e um violento inchaço (seu filho Karl Thomas Mozart relataria, depois, que Mozart passou a ocupar toda a cama de casal e que o cheiro do quarto era insuportável). Ele foi cuidado por Constanze, sua esposa, e Sophie Weber, irmã desta. E tinha visitas constantes de um médico.
As frequentes aparições do "Mensageiro Cinzento" o apavoravam. No fim, a ele foi permitido mais um mês para a entrega do Réquiem. Mas ele não conseguia trabalhar muito tempo na obra. Ela o afetava. Tanto que, enquanto a escrevia, compôs seu célebre Concerto para Clarinete.
Foi nesse último mês que ele passou a confidenciar a Constanze, às lágrimas: "Eu sinto definitivamente que não durarei muito mais. Tenho certeza de que fui envenenado. Não consigo me livrar dessa ideia." E que tinha certeza que escrevia o Réquiem para si mesmo. Ele já estava muito doente e deprimido, sabia que a morte se aproximava.
Segundo Benediky Schack, um amigo próximo do compositor, para quem o papel de Tamino, da Flauta Mágica, foi escrito, Mozart convidou um grupo de amigos para uma leitura dos manuscritos do Réquiem. Isso teria acontecido na tarde anterior à sua morte. Mozart cantou a parte do Contralto. Quando começaram a Lacrimosa, Mozart desandou a chorar, deitou a partitura de lado e interrompeu o ensaio.
Esse testemunho nos mostra bem o cenário. O compositor doente (consta que ele teve delírios) mirando sua própria obra e sabendo que ela o estava matando. Ele entregava ao mundo a música que vinha dos céus, mas ele mesmo não poderia desfrutar de mais nada.
* Se não me engano, foi Otto Maria Carpeaux, ou o grande musicólogo Mozart de Araújo, que disse algo parecido com: "A música de Beethoven quase toca o céu; a de Mozart vem de lá".
Mozart morreu em 5 de dezembro de 1791, aos 35 anos, de misteriosa doença. A medicina atual provavelmente detectaria com facilidade a enfermidade e a trataria. Ele deixou o Réquiem incompleto, mas em estado bastante avançado.
A anedota de que Mozart foi enterrado em vala comum, como um mendigo, ou coisa parecida (e de modo a impossibilitar o encontro posterior de sua ossada) é apenas meio verdade. O termo "vala comum" não se referia àqueles buracos no chão em que se jogavam dezenas de corpos para serem esquecidos na eternidade. Era, de fato, uma vala individual, e apenas era chamada de vala comum por se tratar do sepulcro de alguém não pertencente à aristocracia. De qualquer forma, a cidade de Viena tinha direito de, após 10 anos, esvaziar a vala para usá-la em outro enterro.
Consta, também, que Mozart desprezava rituais pomposos, incluindo enterros. Ele os enxergava como mera superstição. Além disso, lembremos que, em 1791, os ideais da Revolução Francesa estavam arraigados na sociedade europeia e que o luxo era malvisto.
O enterro em si foi em um dia de chuva torrencial. Compareceram diversos músicos, dentre eles Antonio Salieri e Franz Süssmayr. Constanze não compareceu, porque estava doente.
Em 1896, chegou a Viena um abade, músico e admirador de Mozart, chamado Abbé Stadler. Ele ajudou Constanze a organizar as óperas e publicações do compositor e regularizou a situação da casa dos Mozart. Mas, principalmente, em 1802 ele analisou e estudou cada cópia existente em manuscrito ou publicada do Réquiem, fez correções e apontou quais partes eram de Mozart. Mais do que isso, tornou-se incansável defensor da autenticidade do Réquiem, isto é, advogava que a obra era, sim, de Mozart, e não um espúrio, como estavam tentando retratar desde que se soube que Süssmayr a tinha completado. Escreve, a esse respeito, vários livros.
Posteriormente
O conde Walsegg regeu o Réquiem, fazendo-o passar por seu, em 14 de dezembro de 1793, em memória da falecida esposa Anna. Verdade que Constanze quase estragou a farsa, tendo apresentado dois movimentos em memória de Wolfgang Amadeus Mozart na Igreja de São Miguel, em Viena, em 1791.
Agora, olhemos pelo lado de Constanze. O marido a havia deixado com dívidas e dois filhos. Aconselhada por ele mesmo, ela passou a se empenhar em encontrar algum compositor amigo que completasse a obra para que recebesse o restante do pagamento. Interessante constatar que Süssmayr não foi sua primeira escolha, mas isso pode significar qualquer coisa, inclusive que ela não o encontrou na cidade. Ela recorreu primeiramente a Joseph von Eybler, mas, depois de trabalhar um pouco na peça, ele acabou recusando, sentindo-se incapaz - era realmente um trabalho difícil: compor sobre uma obra já começada; com vários rabiscos que só Mozart poderia decifrar; faltando ora o coro, ora a orquestra...
Só então ela pediu a Franz Xaver Süssmayr, um jovem que havia sido aluno de Antonio Salieri e que, por indicação de um amigo, havia sido copista das óperas La Clemenza di Tito e A Flauta Mágica, de Mozart, em 1791. Süssmayr jamais foi aluno de Mozart, mas os dois adquiriram intensa camaradagem e consta que Mozart tinha por ele muito afeto.
É por isso que são possíveis duas coisas: que Süssmayr tenha ajudado Mozart a copiar o Réquiem em algum momento; e que Mozart tenha pedido a Constanze que pedisse a ele para completar a peça.
Quanto Süssmayr apanhou o Réquiem, este já tinha passado por duas mãos: a do maior compositor do mundo, Mozart, e a de Eybler, que, no final, não fez pouca coisa. Ele aproveitou algo do trabalho de Eybler e tentou ser o mais fiel possível a Mozart.
Da forma que Constanze o entregou, a obra estava assim:
I. Introitus
Requiem Aeternam - Completo por Mozart, tanto o coro como a orquestra;
II. Kyrie
Kyrie - Inicia sem pausa (Attacca). Completo por Mozart, coro e orquestra;
III. Sequentia
Dies Irae - A partir deste movimento, até o Hostias, do Offertorium, o que Mozart de fato escreveu começa a ficar mais escasso, exibindo, por vezes, apenas o coro e a linha do baixo.
Tuba Mirum - este arrepiante movimento é para 4 solistas (Soprano, Contralto, Tenor e Baixo) e orquestra. Mozart compôs, também, a belíssima linha de Trombone, que começa sozinha e, depois, faz dueto com o Baixo (cantor); Na última nota do baixo, entra o tenor. Na última nota deste, entra a contralto. Na última desta, a soprano. No final, todos se juntam.
Rex Tremendae - Belíssimo e dramático movimento para coro e orquestra. É de Mozart, podendo Süssmayr ter preenchido alguns espaços em branco.
Recordare - Para solistas e orquestra. Os 6 primeiros compassos têm beleza sobrenatural, na introdução dos Basset Horns e Violoncelos. É um dos movimentos mais lindos da obra e nos dá o gosto (para quem não gosta de ópera) de ouvir como soa a milagrosa ópera de Mozart.
Confutatis - Para coro e orquestra, ele tem duas partes altamente contrastantes. O coro masculino canta sobre os malditos condenados lançados às chamas. O coro feminino, então, entra quando a música muda completamente de comportamento, cantando "Oro, suplicante, o coração pesaroso e quase em cinzas: toma conta do meu fim". É todo de Mozart.
Lacrimosa - Para coro e orquestra. Famosamente, Mozart escreveu até o oitavo compasso. Mas, ao contrário do que se pode pensar, esses 8 compassos deixam poucas dúvidas sobre como ele queria que a música prosseguisse. Süssmayr finalizou de maneira impecável.
IV. Offertorium
Domine Jesu - Aparentemente o Lacrimosa o afetava demais, de modo que Mozart pulou para o Domine Jesu. Mozart o deixou praticamente completo;
Hostias - Último movimento em que trabalhou, Mozart o deixou quase completo. O suficiente para que qualquer compositor habilidoso pudesse completar sem complicações;
Süssmayr acrescentou as "partes que julgava a apropriadas para constar em um Réquiem", sendo, no seu julgamento, estas:
Santus;
Benedictus;
Angnus Dei.
Para finalizar, e seguindo provável orientação de Mozart, terminou o último movimento, Communio: Lux Aeternam com a musica que Mozart havia criado para o começo (Requiem Aeternam e Kyrie Eleison). O efeito é arrepiante e mostra o claro empenho de Süssmayr em interferir o mínimo possível na criação de Mozart. Tal empenho também pode ser constatado no Agnus Dei, em que Süssmayr faz citações de várias obras de Mozart.
O Tino de Constanze
O que ninguém esperava era a esperteza da viúva Constanze Mozart. O conde Walsegg havia sido enfático ao dizer que apenas uma cópia deveria ser feita da obra. Mas ela, de alguma forma, fez três e ficou com duas. E o que fez com as duas? Vendeu uma para o Rei Friedrich Wilhelm II, da Prússia, e com a outra, fez um golpe de mestre. Vendeu à editora Breitkopf & Härtel, em 1799, para imediata publicação, garantindo, assim, que o mundo pudesse apreciar o Réquiem de Mozart (obra que, a esta altura, era uma lenda).
Entendam que, se ela não tivesse feito isso, o manuscrito do conde, tido como do conde, iria parar em algum porão empoeirado por séculos e jamais ocorreria a algum estudioso sequer folheá-lo.
O conde ficou furioso, sua mentira teria um fim. Mas, vendo-se derrotado, resignou-se e aceitou. Constanze, corretamente, publicou a peça como sendo de Mozart, completada por Franz Xaver Süssmayr. Foi um acerto que acabou gerando enormes debates.
As Outras Completações
Se ninguém tivesse dito nada, deixado o povo pensar que a obra era só e unicamente de Mozart, músicos e musicólogos, apaziguados, não teriam achado defeito algum na peça. Mas como todos souberam que tinha sido mexida por Süssmayr, resolveram se indignar.
Alguns disseram que Mozart jamais encerraria a obra como começou; outros juravam que o Agnus Dei fora ditado por Mozart, devido à sua aparência com o Gloria da Missa Brevis Nº 5; alguns músicos, ainda, se aventuraram a fazer suas próprias completações:
Sigismund von Neukomm (enquanto morava no Brasil), Robert Levin, Franz Beyer, Simon Andrews, Masato Suzuki, Benjamin-Gunnar Cohrs, Michael Ostrzyga, Duncan Druce dentre uma infinidade de outros.
Mas quando uma orquestra vai gravar, o que é que ela grava? A versão completada por Süssmayr. Além de ser uma proeza de compreensão da linguagem de Mozart, é a versão que está na cabeça e no coração de todos nós.
A situação teria degringolado não fosse o trabalho incansável de músicos e musicólogos como o mencionado Abbé Stadler.
Que seja dito, também, que a reputação de Franz Xaver Süssmayr como compositor, não foi afetada, permanecendo positiva. Ele morreria pouco mais de uma década depois de Mozart, em 1803, de tuberculose.
Há, ainda, algo que deve ser mencionado.
A Fuga "Amem"
Nos anos 1960 foram encontrados os esboços quase completos (eu disse quase) de uma Fuga de Mozart para coro feminino e orquestra apenas com a palavra amem. Estudiosos, como Robert Levin se apressaram em clamar que ela certamente era a peça que Mozart pretendia usar para encerrar o Lacrimosa. O Lacrimosa, tal como finalizado por Süssmayr, encerra com uma simples cadência plagal, com terça de picardia e a palavra "amem", bem prolongada. É perfeitamente convincente e eficaz, com um efeito dramático categórico. Enfim, é simples, direta e certeira.
Ocorre que existem vários argumentos a favor da teoria de Levin.
Se tocarmos o tema do primeiro movimento do Réquiem em inversão, a melodia será exatamente a da Fuga (o que não pode, de jeito nenhum, ser acidente);
a Fuga foi encontrada na mesma página de um esboço do Rex Tremendae (um dos movimentos do Réquiem). Isso é importante porque a coloca necessariamente no ano de 1791 e, nesse ano, o único trabalho de Mozart que pedia a palavra "Amem" era o Lacrimosa.
Há poucas dúvidas de que Mozart tenha, pelo menos em algum momento, pretendido usar essa fuga.
Prefiro não entrar nessa discussão. A verdade é que o "Amem" em forma de fuga e como um movimento separado não me agrada. Também não me agrada o próprio "Amem", a música. Mas isso, obviamente, seria sanado caso eu a escutasse mais vezes (sou assim). Apenas me permito uma observação: se Mozart quisesse que o "Amem" fosse incluído, ele o teria feito. Bastaria avisar a alguém.
A pequena Fuga "Amem" foi gravada junto com o Réquiem em 1984 por Christopher Hogwood, sua orquestra, a Academy of Ancient Music e o Coro da Catedral de Westminster. Após esta gravação surgiram outras, mas não se pode dizer que virou unanimidade.
A completação do compositor austríaco 22 anos mais jovem que Mozart, Sigismund von Neukomm, na verdade um movimento Libera Me, para finalizar a obra, foi feita para estrear a peça no Rio de Janeiro (possivelmente a primeira audição do Réquiem em todo o continente americano, ocorrida em 1819). Ela é bem aceita e recebeu boas gravações.
Considerações finais
Eu sou partidário de deixar o Réquiem como está, sem essa preocupação com as supostas instabilidades dos movimentos atribuídos a Süssmayr. Afinal, Constanze Mozart, a viúva do compositor, o procurou para finalizar a obra.
Enfim, quanto ao que "é" de fato Mozartiano, ou o que um tarimbado Süssmayr inferiu a partir de seus manuscritos, nunca teremos certeza. Nem mesmo nos trechos em que temos manuscritos autografados pelo compositor. Para manter a "autenticidade" de Mozart, tão pleiteada pelo conde, Constanze pediu a todos que trabalharam na peça que escrevessem nas mesmas páginas do compositor. De preferência preenchendo espaços vazios onde eles estivessem.
E, no fim, restam-nos, no máximo, palpites. E os meus dizem que o Réquiem é de Wolfgang Amadeus Mozart. Vejam bem, o próprio trabalho que Süssmayr fizera com Mozart, na ópera La Clemenza di Tito, consistia em prover recitativos secos, um tipo mais simples de recitativo (um baixo contínuo e o texto cantado à maneira de fala). Ou seja, há música de Süssmayr em La Clemenza di Tito e ninguém se incomoda.
Também não seria nenhuma forçação (caramba, uma palavra com duas cedilhas) de barra supor que Süssmayr tenha escrito suas partes germinando ideias do próprio Mozart. Eles trabalharam, provavelmente, de maneira intensa, nesse período, pois tinham que finalizar duas óperas. E é consenso absoluto, hoje, que, antes de partir para o trabalho duro na partitura, ele escrevia notinhas em pequenos papeizinhos (apelidados de Zettelchen). Constanze Mozart, mesmo, em carta, nos conta que ele deixou:
"alguns rabiscos de papel com música neles... encontrados na sua escrivaninha após sua morte..."
Eram do Réquiem e ela os entregou a Süssmayr. Mozart estava moribundo, a morte era certa. E era importantíssimo entregar o Réquiem completo ao seu misterioso encomendador, pois isso garantiria dinheiro bastante para o sustento temporário de Constanze e de seus dois filhos: Karl Thomas Mozart e Franz Xavier Wolfgang Mozart, que ainda era um bebezinho. É bem fácil pensar que ele passou, sim, instruções ao seu copista mais próximo. E que desistiu do famigerado "Amem" quando viu que ele dificultaria e atrasaria as coisas.
Mozart e Salieri, ou Amadeus (lenda, peça, ópera, filme)
Um dos mitos mais fortes, que surgiram algumas décadas depois da morte de Mozart, é o de que Antonio Salieri, antigo compositor da corte de Habsburgo, em Viena - e, teoricamente, inimigo de Mozart, pois havia uma rivalidade entre os compositores de ópera italianos e os germânicos - fosse, ele sim, o misterioso encomendador da peça. E que tivesse forçado para que Mozart completasse o Réquiem, mesmo sabendo que isto acabaria por matá-lo.
Não ajuda em nada para ele a forte propagação de um boato que afirmava que, em 1824, muitos anos depois, Salieri, em um sanatório, gritava a plenos pulmões: "Eu matei Mozart! Mozart, me perdoe!". Daí é um prato cheio para conversa.
Mozart e Salieri (peça curta de Alexander Pushkin)
Em 1830 o escritor e dramaturgo russo Alexander Pushkin escreveu uma peça curta, chamada Mozart e Salieri, em que alimentava essa visão, de que Salieri era o verdadeiro assassino de Mozart. Consumatum est. "Se Salieri não matou Mozart, Pushkin certamente matou Salieri", disse um crítico.
Mozart e Salieri (Ópera de Nikolai Rimsky-Korsakov)
Já em 1897, o famoso compositor russo Nikolai Rimsky-Korsakov escreve uma ópera também denominada Mozart e Salieri, em um ato e duas cenas, amplamente baseada na peça de Pushkin.
Mozart e Salieri (peça de Peter Shaffer)
Em 1979 o dramaturgo Peter Shaffer, também baseado na peça curta de Pushkin, escreveu uma peça que também chamou de Mozart e Salieri e que também retratava Salieri como um velho amargo, invejoso do talento de Mozart, tramando planos para matá-lo.
Mozart e Salieri (Filme Longa-Metragem de Miloš Forman)
Em 1984, o diretor Miloš Forman dirigiu uma adaptação cinematográfica da peça, com Tom Hulce no papel de Mozart e F. Murray Abraham no papel de Salieri. Os dois concorreram ao Oscar de melhor ator, que no final ficou com Abraham. O filme é uma obra prima da fantasia histórica. Ganhou 8 Oscars em 1985 - diretor, melhor filme, melhor ator, direção de arte, figurino, som e roteiro adaptado.
Amadeus contém atuações fabulosas e momentos quase simples, em que Salieri apenas descreve a obra de Mozart com tanta invejosa paixão, que é impossível não se comover. Observe o trecho abaixo (não encontrei em português):
A Verdade
A verdade é que Salieri, se não era amigo de Mozart, tinha boas relações com ele. Mozart, é claro, tinha algumas reclamações, como o fato de achar que os italianos estavam atravancando sua carreira em Viena. Mas, musicalmente, eles se respeitavam. Salieri não faltou a uma ópera de Mozart sequer.
O verdadeiro Salieri, rico, mesmo depois da Revolução Francesa, dava aulas de graça a estudantes que tinham talento e não tinham dinheiro para pagar. Foi professor de compositores importantíssimos, como Ludwig van Beethoven, Franz Liszt, e Franz Schubert. No fim da vida adoeceu e foi parar em um manicômio. Morreu em 1825, velho e demente.
Ainda assim, um milagre: se Pushkin, com seu Mozart e Salieri, matou a reputação de Salieri, Miloš Forman, com seu Amadeus, iniciou uma lenta, mas importante, recuperação desta. Hoje podemos encontrar discos e mais discos com suas obras e elas timidamente começam a voltar aos palcos.
A Obra
O Réquiem em Ré Menor, K. 626 foi a última obra de Mozart, e até hoje se discute o que se deve atribuir (especialmente no final da obra) a ele. Como dito, houve várias outras tentativas de se refazer o que havia sido feito por Süssmayr, sob a presunção de que não estava bom. Existem livros, jogos (!) e incontáveis gravações da obra:
Audição
Tomemos como guia a versão abaixo, da Orquestra Nacional da França, sob a regência de James Gaffigan. Você perceberá que a obra é extraordinária em todas as suas partes. O Réquiem tem 50 minutos de duração, de modo que eu recomendo que você vá escutando aos poucos. A filmagem começa com uma prévia da Lacrimosa, não ligue. O Réquiem começa depois.
Instrumentação: 2 Basset Horns (instrumentos aparentados ao Clarinete, populares em Viena, à época, mas que não vingaram), 2 Fagotes, 2 Trompetes, 3 Trombones, Tímpanos, Violinos 1, Violinos 2, Violas, Baixo Contínuo (Violoncelos, Contrabaixos e um Órgão); Coro SABT (soprano, contralto, tenor e baixo) e vozes solistas: Soprano, Contralto, Tenor e Baixo. Às vezes os Violoncelos e Contrabaixos têm partes importantes, que os alçam do seu posto de Baixo Contínuo.
I. Introitus - Requiem Aeternam (1m19s)
A introdução nas palhetas (Fagotes e Basset Horns) nos dá a impressão de que não se trata mais de uma obra do Classicismo, mas uma que já prevê o Romantismo - que começaria, de fato, mais de dez anos depois, com Beethoven. A 1m54s os trombones agressivamente explodem, indicando o fim da introdução.
O coro vai entrando de maneira fugada, primeiro os baixos (2m), depois os tenores (2m03s), então as contraltos (2m06s) e as sopranos (2m10s). Repare como a melodia que eles cantam evoca a melodia da introdução.
A música cai em Fá Maior para o "Et lux perpetua", que faz um diálogo entre as cordas e as vozes (2m38s). Em Si Bemol Maior, a soprano entra para fazer o "Te decet hymnus". Repare que, como se trata de música sacra, e não de ópera, os cantores solistas são mais reverentes e comedidos, cantando de maneira bem mais agradável.
Aos 3m40s, o coro canta o "Exaudi". Aos 4m10s temos uma nova interferência instrumental, que serve para fazer a modulação de volta para Ré Menor, recomeçando o trecho "Requiem Aeternam" (4m21s). Aos 5m08s começa o coda, com "Et lux perpetua", e a música termina calmamente no acorde da dominante.
II. Kyrie (5m46s)
O Kyrie começa sem pausa (attacca), e é uma dupla fuga de alta complexidade textural. As palavras repetidas são simples: "Kyrie eleison, Christe eleison, Kyrie eleison" (Senhor, tende piedade de nós, Cristo, tende piedade de nós, Senhor, tende piedade de nós). Depois de uma pausa, a peça termina em um acorde sem terça, o que nos deixa sem uma resolução: nem Ré Maior (otimista) e nem Ré Menor (pessimista).
III. Sequentia
III.1 - Dies Irae (8m13s)
Os dias de ira são sempre movimentos agitados e amedrontadores. O de Mozart é assim, com o coro e a orquestra tocando forte (f). A música parece perder força na segunda aparição dos versos "Quanto tremor est futurus" (8m58s), mas aos 9m27s ganha nova vitalidade. Aos 9m35 temos o coda. A peça termina em uma simples nota ré no contratempo.
III.2 - Tuba Mirum (10m09s)
Um movimento melodiosamente generoso, o diálogo entre o Trombone e o Baixo é encantador. A entrada do Tenor (11m03s) traz drama ao movimento (o tenor é um que, mesmo nas versões mais discretas, canta de maneira espalhafatosa). O drama é mantido com a entrada da Contralto (11m47s). Apenas a entrada da Soprano (12m04s) é mais plácida, isto porque é em tom maior. O clima esfria um pouco até o fim, com belos corais do quarteto. Repare como Mozart mescla as intervenções da orquestra com as do quarteto.
III-3. Rex Tremendae (13m29s)
O Rex Tremendae é uma das peças mais interessantes do Réquiem. Começa com uma introdução assertiva das cordas e metais. O coro grita "rex" (13m40s) ainda na introdução. Os versos "Rex tremedae majestatis qui salvando salvas gratis salve me fons pietatis" (Rei de majestade tremenda, que salva e salva gratuitamente, salva-me, fonte de piedade) são distribuídos pelo coro de maneira engenhosa e comovente. O Salva me (14m48s) provoca uma ruptura na dinâmica da música, tornando-a singela e angelical. Esse espírito permanecerá até o fim da obra.
III-4. Recordare (15m31s)
Outro movimento comovente, o Recordare é com o quarteto de solistas (provavelmente o momento mais importante para eles, fiando-se o Réquiem mais no coro do que nos solistas). Assim como o Rex Tremendae, ele usa o Cânon, um recurso em que um cantor começa a cantar uma frase e é logo seguido por outro. Observe a entrada da contralto (15m59s), seguida imediatamente pelo baixo (16m01s). Logo depois, soprano (16m12s) e tenor (16m14s) repetem o gesto. É um daqueles movimentos que só Mozart. Plácido, não parece que foi composto por alguém atormentado pela doença. É uma das mais belas páginas do repertório sacro.
III-5. Confutatis (29m27s)
O famoso Confutatis foi dissecado no filme Amadeus, numa cena impagável em que Salieri ajuda Mozart a compor.
A cena deixa bem claro o uso de texturas pelo compositor. As vozes, em cânon, os Trompetes e Tímpanos marcando o ritmo e as cordas, em uníssono, fazendo um movimento ligeiro e atormentado. Já o "Voca me" é novamente surpreendente, cortando a música e nos atingindo com a melodia mais angelical no coro feminino (20m48s). O Confutatis retorna, no coro masculino (20m59s), meio de cabeça pra baixo. Mais uma vez o "Voca me" retorna nas vozes femininas (21m21s), trazendo paz.
O que se segue (21m51s) é "Oro supplex et acclinis, cor contritum quasi cinis, gere curam mei finis" (Eu me ajoelho com um coração submisso, minha contrição é como cinzas, ajuda-me na mina condição final), que é absolutamente assustador. A música parece vir da voz de uma angústia perfeita, inquieta, e assim segue até o fim. Para terminar, um acorde de lá com sétima (22m45s) nos prepara para o mais belo movimento da obra.
III-6. Lacrimosa (22m49s)
Começando com um encadeamento harmônico na orquestra, a obra parece se abrir ao céu quando o coro entra com as palavras "Lacrimosa dies illa, qua resurget ex favilla judicandus homo reus" (Aquele dia de lágrimas, quando das cinzas surgirá julgando toda a humanidade). Até a palavra reus, temos certeza de que foi Mozart que escreveu. Está anotado no seu papel, com a sua letra. E para, subitamente. Aqui começa a confusão, porque aqui entra Süssmayr.
Harmonicamente, a música é complicada, repleta de micromodulações. O que me indica que Süssmayr fez um belo trabalho ao completá-la. Ele o fez com dignidade e fidelidade.
Ele terminou a música com um Amem simples, uma cadência plagal. Mas há indícios de que Mozart previa uma fuga para esse amem, como discutido anteriormente. Uma fuga só com a palavra amem. Eu prefiro sem, do jeito que você está escutando, mas a verdade é que isso tudo tem pouca importância ante a grandeza desta obra magistral.
IV. Offertorium
IV-1. Domine Jesu (25m52s)
O Domine Jesu volta a ser composto por Mozart, pelo menos parcialmente. Ele escreveu o esqueleto, digamos assim, da peça. Tudo que Süssmayr tinha a fazer era completar a orquestração. Além disso, Mozart deixa, nesse movimento, melodias que Süssmayr poderá aproveitar depois. É o caso de "Libera eas de ore leonis" (Liberta-os da boca do leão) (26m29s), cantada pelo coro feminino. "Sed signifer santos Michael" (Deixe que o porta-estandarte, São Miguel) (27m13s), cantada pela soprano em cânon com os outros solistas, é exatamente a mesma melodia, mas em tom menor.
Outra melodia que será aproveitada posteriormente é "Quam olim Abrahae promisisti" (Conforme prometeste a Abraão) (27m42s), no coro masculino. Sempre achei esse momento arrepiante. Nos outros, ele está pedindo perdão e que Deus o aceite no Céu etc. Nesse, ele está apelando, recorrendo à chantagem emocional "cumpra o que você prometeu a Abraão"!
IV-2 Hostias (29m29s)
O Hostias ainda é um produto da imaginação de Mozart. Ele escreveu as partes do coral e uma espécie de baixo contínuo, que situa a harmonia. Süssmayr também teve que orquestrar essa, e o fez com simplicidade, sem correr riscos. A música é repleta de modulações (mudanças de tom) e tem uma escrita coral perfeita.
Aos 31m02s temos a retomada do "Quam olim Abrahae promisisti", de chofre. Ele encerra o movimento.
V. Sanctus (32m52s)
Aqui começa o que Süssmayr garantiu que compôs do zero. Esse movimento e os dois seguintes. Devo lembrar, mais uma vez, da similaridade desse Sanctus com o Sanctus de Mozart para a Grande Missa em Dó Menor. Não acho que seja coincidência. Süssmayr novamente se recusa a tomar riscos (e acho que isso é o que era esperado dele).
A escrita é modesta, mas eficaz. Aliás, um bom regente faz toda a diferença aqui: mal conduzido, pode ser um movimento barulhento e cansativo. Ele termina com uma pequena fuga sobre "Osanna in excelsis" (Hosana nas alturas) (33m39s).
VI. Benedictus (34m30s)
É o movimento mais ousado de Süssmayr, com três partes distintas, coros elaborados e uma suave melodia Mozartiana desde o começo. Mas é também o que mais entrega a ausência do gênio austríaco. Há vários momentos de enchimento de linguiça que dificilmente veríamos em um movimento genuíno de Mozart, além do ritmo estrutural da música ser um tanto mal pensado. No geral, porém, vale a pena. É uma bela contribuição.
VII. Agnus Dei (38m52s)
Das contribuições de Süssmayr, essa é a mais bem-sucedida. Embora a maneira como ele estruture as frases longas da melodia não seja condizente com o estilo de Mozart, a instrumentação é convincente. Ele usa várias técnicas de Mozart, como modulações, quebras de andamento, cadências e mais.
VIII. Communio (41m44s)
Obedecendo ao desejo de Mozart, Süssmayr faz a música terminar exatamente como começou (a partir do solo de soprano). Apenas as palavras são diferentes. A fuga do Kyrie também é repetida e também tem outras palavras. E também acaba sem nos dar a satisfação de ouvir um acorde maior ou um menor. É um ré com quinta aberta. O trabalho de encaixar a nova letra em uma música que foi escrita com outra letra em mente pode ser infernal, mas parece que ele teve sorte e as sílabas se conciliavam. E, onde isso não ocorria, Süssmayr tirou de letra.
Considerações finais
Preciso começar afirmando que essa "Missa Pro Defunctis" é a obra mais genial do mais genial dos compositores do Classicismo. A importância que ela tem hoje, principalmente como música de concerto (mas também tocada em igrejas, em rituais fúnebres) é indescritível. O Réquiem não cansa de nos surpreender e nos privar do fôlego. Mesmo após a milésima audição, o mais insensível dos miseráveis ainda se comoverá.
É, sem dúvida, a música inacabada a levantar mais debates entre estudiosos e executantes. Se olharmos cuidadosamente, veremos que Süssmayr, na melhor das suas possibilidades, nos deu um complemento digno e que, por vezes, realça a composição, além de uma orquestração que, se não tem nada de especial, também não tem grandes pecados. Eu sou a favor de que o Réquiem fique como está, outras tentativas de completá-lo só fazem piorar a música. Até mesmo o Amem que encerraria a Lacrimosa, é melhor sem. Mesmo ele sendo uma música comprovadamente de Mozart. Acho o Réquiem perfeito como está, e é uma das músicas mais assombrosamente geniais que já se compôs.
Gravações recomendadas
Fuja das versões Nutella de Karl Böhm, Leonard Bernstein, Georg Solti e Sergiu Celibidache. Especialmente a de Böhm, que é considerada um clássico, mas que é uma bomba.
- Carlo Maria Giulini, regendo a Orquestra e Coro Philharmonia e solistas - Foi a gravação com que conheci a obra. Passava horas escutando numa rede, no meu Discman. Simon Estes é o baixo perfeito para a obra. A gravação é de 1989 e como todas as de Giulini, repleta de suavidade e candura.
- Christopher Hogwood, regendo o Coro e a Orquestra da Academia de Música Antiga, o Coro de Meninos de Westminster e solistas - Quando ouvi essa gravação, de 1984, fiquei impactado. A começar pelo coro. Em vez de usar vozes femininas, ele usa vozes de crianças, como era praxe na época de Mozart (mulheres não podiam cantar na igreja). Esse produto do machismo religioso acaba por nos dar uma versão arrepiante. Ouvimos a introdução, belamente tocada pelas madeiras da Academy, e, aos poucos, somos invadidos pelas palavras, primeiro com os baixos, depois, os tenores e, então, as crianças, que parecem anjos cantando. Outra novidade é que Hogwood usa o Amem completado por Robert Levin para encerrar a Lacrimosa. E outra coisa, essa versão tem a cantora de voz mais bonita que eu conheço, a soprano Emma Kirkby. Esta gravação adota os procedimentos da chamada "interpretação historicamente informada".
- Peter Schreier, regendo a Orquestra do Staatskapelle de Dresden, o Coro MDR da Rádio de Leipzig e solistas - Um belo dia, um amigo (o Nílbio, co-editor da Arara) me emprestou um vinil com esta interpretação. Eu não botava muita fé, pois nunca tinha ouvido falar no regente. Mas quando coloquei para escutar foi uma surpresa. A gravação é extremamente discreta, equilibrada, beirando a perfeição. É de 1983.
- Nikolaus Harnoncourt, com o Concentis Musicus de Viena, o Coro Arnold Schoemberg e solitas - Essa é a segunda gravação de Harnoncourt da peça, a primeira tendo sido em 1982. Para esta, de 2003, ele foi mais moderado em suas visões de "interpretação historicamente informada", com os contrastes entre fraco e forte ainda bem destacados, mas menos deselegantes que na versão anterior. Essa versão é para o caso de você querer conhecer o Réquiem da maneira que, juram eles, era tocado na época. Não acredito muito nisso. Mas acredito em boas interpretações, e essa é uma.
- Herbert von Karajan, com a Filarmônica de Viena, o Wiener Singverein e solistas - Karajan, em suas últimas gravações, regia com uma segurança e soberania que poucos conquistaram. Conterrâneo de Mozart, de Salzburgo, tinha a música nos ossos, como dizem. É a gravação lançada em 1987.
- Mariss Jansons, regendo a Orquestra Sinfônica da Rádio Bávara, o Coro da Rádio Bávara, e solistas - Esta gravação, com um dos meus regentes favoritos e uma das minhas orquestras favoritas, foi feita em 2017, sendo uma das últimas gravações dele (Jansons morreria dois anos depois). E o disco só foi lançado, postumamente, em 2021. É uma aula de como se fazer cento e tantas pessoas tocarem e cantarem com beleza e compostura. O disco só tem um (para mim) problema: é ao vivo, o que significa que, no final, ouvimos aplausos. Mas nem pra mim, que tenho aversão a gravações com aplausos no fim, isso reduz a magnitude deste grande momento capturado no tempo.
Gostou? Comente!
Revisado, ampliado, apanhado e reconstruído após certeira e justíssima critica de um leitor chamado Pedro.
As postagens da Arara Neon, nós resolvemos dispô-las em lista em uma única (ahm...) postagem.