Por Rafael Torres
A Grande Missa em Dó Menor, K. 427, do compositor austríaco Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) é uma obra prima. Ela engrossa nossos argumentos de que Mozart foi o maior compositor do Classicismo (segunda metade do século XVIII). Não analizaremos a missa inteira, aqui: sua duração é de cerca de 55 minutos (isso porque Mozart não completou a obra - faltam-lhe o Credo, o Agnus Dei e partes do Sanctus e do Benedictus). O motivo da incompletude da obra não se conhece: Mozart parece ter tido bastante tempo livre para compor em 1782. Porém, é dito que a inspiração dele para compor música sacra caiu quando ele se mudou para Viena. Ainda assim, é umas das obras mais geniais e compridas dele.
Hoje em dia as performances tendem a utilizar edições da obra completadas por outros compositores ou editores. Alguns exemplos são as do editor Alois Smith, de 1901, de Clemens Kemme, editor da Breitkopf & Härtel, de 2018, e do musicóloco e pesquisador do Mozarteum de Salzburgo Ulrich Leisinger, para a editora Bärenreiter, de 2019. Por isso é que temos gravações da obra completa: foi completada por outros músicos e musicólogos.
A obra nasceu em 1782 e 1783, em Viena, para onde tinha acabado de se mudar (Mozart nasceu e trabalhou até então, em Salzburgo, também na Áustria). Foi escrita logo antes do seu casamento com Constanze (Weber) Mozart (1762-1842). Mozart escreveu uma carta ao pai, em 1783, contando que tinha feito a promessa de escrever uma missa quando a esposa ficasse curada e quando fosse levar Constanze a Salzburgo para conhecer a família (no caso, restavam apenas Leopold Mozart, o pai e Maria Anna Mozart, a sua querida irmã, apelidada de Nannerl). Depois dessa visita Mozart nunca mais veria a irmã - ele morreria em 1791, apenas 8 anos depois, em Viena. As correspondências entre os dois foram minguando até cessar em 1788. Nannerl é um típico caso, assim como Fanny Mendelssohn, irmã de Felix Mendenssohn-Bartholdy, de mulher que teria uma carreira notável, não fosse a proibição do pai, fruto da misoginia de então.
"É verdade o que eu disse sobre minha obrigação moral... Eu fiz a promessa e espero conseguir mantê-la. Quando eu a fiz, minha esposa ainda era solteira; mas como eu estava determinado a casar com ela logo que se recuperasse, foi fácil para ela, a recuperação - mas como você sabe, o tempo e outras circunstâncias fizeram a jornada impossível. A partitura de uma missa meio acabada que ainda está repousando aqui, esperando para ser terminada, é a melhor prova de que eu realmente cumpri a promessa."
Wolfgang Amadeus Mozart
Em carta a seu pai, Leopold Mozart, em 4 de Janeiro de 1783
O compositor passou 3 meses em Salzburgo e uma de suas intenções era a de apresentar Constanze a Leopold - o pai ficara contrariado com o fato de Wolfgang se casar com uma moça que não tinha passado pela sua aprovação. É também evidente que Mozart escreveu a missa para sua própria distração, para se desafogar dos trabalhos que lhe eram encomendados constantemente, nessa época.
A Estreia
A estreia da peça aconteceu durante essa visita. Foi em Salzburgo, em 26 de outubro de 1783. Constanze, que era hábil cantora, cantou a parte da soprano justamente no Et Incarnatus Est, o movimento sobre o qual vamos nos debruçar. Nessa estreia foram executados apenas os movimentos Kyrie, Glória, Et Incarnatus Est, Sanctus e Benetictus. Foi na Abadia de São Pedro, já que a missa é um formato apropriado para ser cantado em igrejas.
O Formato Missa
O formato missa surgiu vários séculos antes de Mozart, na Idade Média (a primeira missa completa que sobreviveu até os dias de hoje foi a Messe de Notre Dame, de Guillaume de Machaut, do século XIV). A missa tem sempre os mesmos textos, muitos são os mesmos do Réquiem, que também é um tipo de missa. O que varia é a música. Ela é dividida em partes. O compositor pode eleger quais ele quer incluir ou omitir da sua obra.
A Grande Missa em Dó Menor, K. 427 ficou assim:
Kyrie Eleison;
Gloria (essa é uma sessão, que contém 7 movimentos: Gloria, Laudamus Te, Domine Deus, Qui Tollis, Quoniam, Jesu Christe e Cum Sanctu);
Credo (com dois movimentos: Credo, Et Incarnatus Est);
Sanctus (com dois movimentos: Sanctus e Hosanna);
Benedictus.
Um movimento comum, mas que Mozart não incluiu nessa missa é o Agnus Dei, que geralmente encerra a obra. No total, essa missa tem 13 movimentos. Sua duração é de cerca de 55 minutos. É uma obra descomunal e exemplar, de inspiração elevada do primeiro ao último movimento.
Et Incarnatus Est
O 11º movimento dos 13 da Grande Missa em Dó Menor é o Et Incarnatus Est. É um quarteto para soprano e orquestra com três solistas: a flauta, o oboé e o fagote. Talvez seja o mais inspirado e milagroso movimento da missa. Mozart o deixou incompleto, faltando boa parte do acompanhamento das cordas e a cadência. O Incarnatus dura pouco mais de 7 minutos e meio de inspiração, genialidade, beleza, tranquilidade. A mais pura perfeição e delicadeza.
Abaixo temos a nossa gravação guia, com Arleen Auger (soprano) e Leonard Bernstein regendo a Orquestra Sinfônica da Rádio Bávara. É uma gravação extremamente expressiva e muito bem tocada. De 1990.
A Obra
Não cabe fazer uma análise ponto a ponto da peça, como eu costumo fazer. Ela não tem uma forma muito importante. Em vez disso, vou comentar alguns pontos em que você deve prestar atenção.
Começa com a orquestra fazendo sua introdução;
Aos 43 segundos são apresentados a flauta, o oboé e o fagote, que formarão um quarteto com a soprano;
Costuma ser dito que Mozart não gostava de flauta (é atribuída a ele a frase "O que é pior que uma flauta? Duas flautas"). Mas isso se deve ao fato de que, em sua época, a flauta era muito sibilante (ouvia-se muito a emissão do ar) e, principalmente, era difícil de equilibrar com o resto da orquestra, ficando sempre incomodamente mais audível que a orquestra. E, mais ainda, na sua época a flauta era de madeira e com apenas uma tecla. Os instrumentos eram mal feitos e cheios de problemas que afetavam, sobretudo, sua afinação - muitas notas saíam desafinadas independente da qualidade do instrumentista. É sabido que, quando passou a viver em Viena, encontrou instrumentos e instrumentistas de muito mais qualidade. Por fim, quase tudo que ele escreveu para flauta é impecavelmente belo;
Em 1m30s temos a entrada da soprano, fazendo o Tema Principal, com respostas das madeiras. O tema consiste nos versos "Et incarnatus est - De Spiritu Sancto";
Aos 2m20s temos uma série encantadora de melismas da soprano: por esse tempo todo ela esteve cantando simplesmente a segunda letra "a" de "Incarnatus", finalizando a palavra aos 3m48s;
Também aos 3m48s a flauta, o oboé e o fagote têm uma contribuição importante;
O Tema Principal volta, na soprano, aos 4m, o tempo todo dialogando com flauta, oboé e fagote;
Aos 4m43s a soprano toma novas direções (incluindo a bela nota aguda, aos 4m48s), em uma passegem tecnicamente difícil, pois as escalas e arpejos são contraintuitivos;
Aos 5m04s a soprano dá início a uma série de trinados (alternâncias rápidas entre duas notas), que Arleen faz com muita discrição e bom gosto.
Aos 6m38s temos a cadência, momento em que a orquestra para e os solistas (soprano, flauta, oboé e fagote) tocam sós, em caráter improvisativo. Importante lembrar que Mozart não nos deixou essa cadência, de modo que é uma reconstrução de outro músico. Mas é muito apropriada, de muito bom gosto, utilzando apenas elementos que já foram ouvidos na composição. A soprano não canta letra. Termina aos 8m08s;
Aos 8m09s a orquestra toca a introdução e finaliza a música de maneira discreta e sutil.
Considerações Finais
O ponto alto da composição é a graciosa interação entre os quatro solistas: soprano, flauta, oboé e fagote. A escrita deles é contrapontística. Contraponto é a arte de escrever duas ou mais melodias simultâneas. São regras medievais e escrever obedecendo-as é extenuante, mas Mozart faz sem esforço e o resultado é graciosíssimo. A Grande Missa em Dó Menor, K. 427, se considerarmos a obra completa, é escrita para duas sopranos, tenor, baixo, coro duplo (sim, dois coros, cada um com 4 tipos de voz, totalizando 8), órgão e grande orquestra. Trata-se de uma Missa Solemnis, um tipo de missa mais ambiciosa que a Missa Brevis, esta, mais modesta.
Et Incarnatus Est é uma música gloriosa, íntima, repleta de placidez e contemplatividade. Além de ter um impecável trabalho de escrita contrapontística. É um verdadeiro milagre de Mozart.
Gravações Recomendadas
Só há duas maneiras de se interpretar a obra de Mozart: a Romântica, com grandes orquestras, usando mais vibrato e, às vezes, rubato (coisas que não se faziam à época); e a "Historicamente Informada", que adota, teoricamente, práticas comuns na época, com orquestras menores, vibrato comedido etc. Uma terceira forma está surgindo: as grandes orquestras sinfônicas tocam com menos de seus instrumentistas e fazem um estilo híbrido, mais comedido que o Romântico mas não tão "frio" quanto o de época. Dou um exemplo de cada (Romântica e Historicamente Informada).
- Philippe Herreweghe, regendo a Orchestre des Champs-Élysés e a soprano Christiane Oelze - A versão "Historicamente Informada". O porquê das aspas? É que o movimento HIP, Performance Historicamente Informada, é controverso, sugerindo parâmetros de interpretação exagerados, quando não completamente errados. Além do mais eles dizem tocar como o compositor ou alguém de sua época tocaria, mas isso é impossível de saber. Apesar disso, produziram muitas e muitas gravações de primeira qualidade. Esta gravação, de 1991, mostra o genial regente Philippe Herreweghe acompanhando a talentosa soprano Christiame Oelze. É lindo ouvir a orquestra comedida, os solistas sem tomar liberdades, tais quais um vibrato ostensivo, rubatos e ritenutos.
- Claudio Abbado, com a Filarmônica de Berilim e a soprano Barbara Bonney - Essa é a gravação Romântica (embora tenda para o estilo híbrido, mais moderno). É uma versão de uma delicadeza ímpar, além de clareza e excelência. Também é de 1991.
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