Por Rafael Torres
Há um bom tempo eu tenho vontade de escrever sobre este que é um dos meus trechos de ópera mais amados. Na verdade, não se chamava ópera, mas tragédie lyrique, que nada mais era que um estilio de ópera francês. Atys foi composta em 1675, dez anos antes, portanto, do nascimento de Johann Sebastiann Bach. Para nos situarmos historicamente, já que Bach nada tinha a ver com a ópera francesa, ou com qualquer ópera que seja.
Jean-Baptiste Lully
Jean-Baptiste Lully, o mais italiano dos compositores franceses, nascido Giovanni Battista Lully, em Florença, 1632, foi um compositor, violonista, violinista e dançarino que, após migrar para a França, adquiriu cidadania daquele país em 1861. Encontrou, também, uma personalidade francesa, compondo perfeitamente no estilo local.
No ano seguinte, o de 1662, ele foi convidado por Luís XIV para ser Superintendente de Música Real e Mestre de Música Real da Família Real. O Grão Ducado da Toscana, onte trabalhava antes, produziu documentos para sua naturalização.
A partir dessa contratação, ele passou a escrever música para a Família Real e Luís XIV. Lully teve uma vida profissional ideal, pela qual foi escalando rapidamente.
Mas uma tragédia o visitou. Quando dirigia um Te Deum, um hino cristão sobre cuja letra, vários compositores puseram música, que ele tocava para seu adorado rei, o inesperado aconteceu. Ocorre que Lully estava regendo a orquestra e o coro. Naquela época, se regia com um bastão enorme, batendo com ele no chão, para que o baque marcasse o tempo para os músicos. Em um dos tempos, Lully errou a mira e atingiu o próprio pé, com violência.
Aquilo criou uma ferida preocupante que acabou gangenando. Como o compositor se recusava a amputar, já que ainda pretendia dançar, só havia um destino possível. Lully passou a ser o primeiro músico a morrer em decorrência de uma regência (mas não o último - aguarde pelas próximas postagens).
A cultura musical na Corte de Luís XIV tinha um ambiente bem interessante, com vários compositores celebérrimos fazendo parte da trupe. É o caso de:
Michel Richard Delalande, ou Lalande, que escrevia música sacra (grandes motetos franceses em um dos trimestres do ano;
Jacques Thomelin, organista da Chapelle Royale.
Outros que dividiram o mesmo mundo com Lully, ainda que longe ou em idades bem diferentes, eram:
Henry Purcell (Inglaterra);
François Couperin (França);
Alessandro Scarlatti (Itália);
Marc-Antione Charpentier (França);
Arcangelo Corelli (Itália);
Heinrich Ignaz von Bibber (República Tcheca/Áustria);
Claudio Monteverdi (Itália)
E muitos outros.
Jean-Baptiste Lully nos deixou obras importantes (a grande maioria são óperas e balés) que são, até hoje, encenadas e gravadas. Veja algumas:
Thésé (1675) (o que chamamos hoje de ópera);
Atys (1676) (ópera);
Ísis (1677) (ópera);
Psyché (1678) (ópera);
Bellérophon (1679) (ópera);
Proserpine (1680) (ópera);
Persée (1682) (ópera);
Phaëton (1683) (ópera);
Amadis (1684) (ópera);
Roland (1685) (ópera);
Armide (1686) (ópera);
Achille et Polyxènne (1687) (ópera);
Mascarade de la Fiore de Saint-Germain (1652) (balé);
Le Grande Ballet des Bienvenus (1655) (balé);
Psyché ou de na Puissance de lamour (1656) (balé);
Ballet de Toulouse (1660) (balé);
Ballet de l'Imperatrice (1661) (balé);
Le Triomphe de Bacchus dans les Indes ou Ballet de Créquy (1666) (balé);
Le Temple de la Paix (1685) (balé);
E outros balés e óperas.
A Ópera Atys
Eu já comentei bastante, aqui, que não gosto de ópera. Acontece que a ópera barroca é mais sublime. Se, um dia, eu me interessar por ópera, será pela barroca. Lully foi um dos mais importantes operistas do século XVII. E da França. E da corte de Luís XIV.
Atys, de 1675, pode ser chamada de ópera, mas o nome oficial é tragédie en musique. O libreto é de Philippe Quinaut, e ele se baseou no poema Os Fastos (em 6 livros), de Ovídio. É uma ópera barroca francesa com um prólogo e 5 atos, em Sol Menor.
Era apelidada de "L'opéra du Roi", pois Luís XIV a adorava.
Não vou falar sobre o enredo da peça porque o que nos interessa agora é apenas um trecho dela.
Dormons, dormons tous - "Durmamos, Durmamos Todos" (3º ato)
Eis que, no meio do terceiro ato, temos essa beleza aqui.
Abaixo, voce pode escutar "Dormons, Dormons Tous" pelo grupo especializado em Música Barroca Les Arts Florrisants, coordenados e regidos por William Christie (com uma batuta, eu poderia apostar).
Trata-se de um trio (que é quando uma ária é cantada por três cantores), cantado pelos personagens Hipnos (o Deus do Sono - haute-contre, o equivalente francês ao tenor), Morfeu (Filho do Sono - haute-contre) e Fobetor (Filho do Sono - barítono). Eles cantam enquanto Atys (haute-contre), o personagem central da ópera, que não canta nessa cena) está dormindo, enfeitiçado por Hipnos.
A letra vai mais ou menos assim:
Hipnos
Durmamos, durmamos todos
Ah! Que doce é o descanso
Morfeu
Reine, divino Sono, reine sobre todo o mundo Espalhe suas mais soporíferas papoulas Encante o cuidado, cativa os sentidos Mantenha todos os corações e profunda segurança
Fobetor
Não deixe nenhum barulho brutal ser feito Flui, murmúrio, seus claros regatos Apenas o som das águas Acalma a doçura de tão aprazível silêncio
Hipnos Durmamos, durmamos todos Ah! Quão doce é o descanso
Le Sommeil
Dormons, Dormons tous
Ah! Que le repos est doux!
Morphée
Regnez, divin sommeil, regner sur tout le monde
Répandez vos pavots le plus assoupissans
Calmez le soins, charmer le sens
Retenez tous les coeurs dans une paix profonde
Phobétor
Ne vous faites point violence
Coulez, murmurez, clairs reuisseaux
Il n'est permis qu'au bruit des eaux
De troubler la douceur d'un si charnant silence
Le Sommeil, Morphée, Phobétor
Dormons, Dormons tous
Ah! Que le repos est doux!
Vou, então, apenas pontuar algumas coisas excepcionalmente interessantes ou belas.
Primeiro, o clima meio sombrio que já se ouve na introdução;
O diálogo entre os Violinos e as Flautas Doces;
A longevidade da introdução;
Com o primeiro cantor, ouvimos o Baixo Contínuo como único acompanhamento;
O segundo cantor entra, nós não percebemos direito, pois ele e o primeiro são haute-contres;
Quando o terceiro cantor entra (um barítono, voz mais grave), podemos ouvir novamente a orquestra inteira, com destaque para as Flautas Doces;
As melodias, meio obscuras, são muito bonitas;
O primeiro cantor volta;
O trio faz um belíssimo trecho em contraponto;
Um dramático coda, com os três cantores, encerra a música.
A questão é a música. Mas, primeiro, deixem-me esclarecer algumas coisas sobre a orquestra (que valem, geralmente, para a orquestra Barroca). Para essa ópera ele pede 2 Flautas, 2 Oboés, Violinos, Violas e Baixo Contínuo. Baixo Contínuo era como se chamava, no Barroco, o acompanhamento não escrito (apenas cifrado) que poderia ser provido por Cravo ou Órgão + talvez um Alaúde ou uma Teorba + Violoncelo ou Viola da Gamba. Era, portanto, um conjunto ínfimo em tamanho, se compararmos à Orquestra Moderna (ou Orquestra Romântica). Observe:
Em Dormons, Dormons Tous, ele ainda retira os Oboés, ficando sua função coberta pelas Flautas. No caso do vídeo acima e da maior parte das gravações que eu vi, os grupos preferem usar a Flauta Doce, instrumento que me arrepia, pois foi o primeiro que aprendi, e pela minha mãe, que ainda toca.
Gravações recomendadas
- Les Arts Florissants, regida por William Christie - É a gravação mais polida, afinada e de bom gosto. É a mesma que você viu acima, no vídeo. Para gravarem outra dessa, põe um século aí. É de 1987.
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