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Liszt - Sonata em Si Menor - Análise


Por Rafael Torres


A técnica pianística teve um salto evolutivo incrível em Paris nos anos 1830, onde viviam Franz Liszt, Frédéric Chopin, e Sigismund Thalberg, cada um trazendo peças cada vez mais intrincadas. O objetivo era esse, o de tornar tocar piano uma coisa sempre mais complexa, com novos problemas, novas soluções, novas invenções e idiomatismo. Ouso dizer que, antes dessa geração, e se excetuarmos algumas das últimas sonatas para Piano de Ludwig van Beethoven (1770-1827) e de Franz Schubert (1797-1828), todas as peças escritas para teclado, especialmente as Barrocas, como as de Domenico Scarlatti, Girolamo Frescobaldi, François Couperin e Johann Sebastian Bach, podiam ser facilmente transpostas para outro instrumento ou conjunto de instrumentos. Já ouvi discos inteiros de obras para cravo de Bach tocadas no Acordeon. Ou por Trios de Cordas, Quartetos... Obras escritas para órgão transpostas para imensas orquestral...


É absolutamente impossível fazer isso com a obra de Liszt. E com a maior parte da de Chopin. E isso, descobrir novos efeitos no instrumento, expandir suas possibilidades expressivas e explorar todos os seus recursos é, por si só, uma arte. E quando, além de toda a parafernália técnica, a música tem significado, beleza e expressão, como é o caso da maior parte da obra de Liszt, vejo que esta não é apenas válida. É essencial.


Já falei bastante sobre o compositor nessa postagem, sua biografia resumida, obras e uma playliszt interessante.

Franz Liszt ao piano. Óleo sobre tela. Autor e data desconhecidos.
 

A Sonata em Si Menor


Pesquisei muito, ouvi dezenas de gravações e sempre as mesmas duas se sobressaíam: a de Martha Argerich e a de Nelson Freire. Comparando as duas com mais cautela, percebi que pouca coisa, no universo da música gravada, é tão impressionante quanto essa gravação do Nelson. Sim, a meu ver, ultrapassa com folga a lendária e excepcional leitura de Martha Argerich. O disco de Nelson Freire contém a 3ª Sonata de Chopin e a Sonata em Si Menor de Liszt. Falaremos apenas sobre esta última, obviamente.


A esta obra e algumas outras contidas neste texto, dedicarei postagens exclusivas e mais aprofundadas. É quase impossível resumir esta Sonata, então, tenham em mente que os próximos parágrafos farão apenas uma (relativamente) breve investigação dela, de modo que você possa escutá-la já com o suporte do conhecimento.


Liszt finalizou a composição da Sonata em Si Menor em 1853, tendo trabalhado nela por, possivelmente, uns 4 anos. Nesta época morava em Weimar, na Turíngia, Alemanha. Dedicou-a a Robert Schumann, ainda vivo, à época, e que havia dedicado a Liszt sua Fantasia em Dó , de 1839. O pacote com uma cópia da primeira edição chegou à casa dos Schumann, mas não encontrou o compositor e jamais encontraria. Ele já havia partido para seu destino final, o Sanatório de Endenich, onde morreria dois anos depois. A viúva Clara Schumann, uma das maiores pianistas da época, jamais executou a obra em público, considerando-a "meramente um ruído branco". Liszt, também, nunca a tocou em concertos públicos, pois já tinha encerrado sua carreira de concertista, mas chegou a executá-la em apresentações privadas, na casa do Barão Fulano de Tal, ou do Conde von Sicrano.


A Sonata só foi mesmo estreada em 1857, por seu genro Hans von Bülow, em Berlim. Não se pode dizer que causou um impacto positivo, na época. Mas, pouco a pouco, foi ganhando adeptos, de modo que no final da vida do compositor já tinha uma reputação robusta e, desde então, sempre crescendo, esteve no repertório de quase todo pianista de concerto. Existem, possivelmente, mais de 150 gravações comerciais dela.


Acima de tudo, a obra é considerada, por especialistas em Liszt, como o pianista Leslie Howard, a maior evolução no gênero Sonata (não confundir com Forma Sonata) desde as derradeiras Sonatas de Beethoven, ainda nos anos 1820. Hoje é amplamente tida como a obra mais importante de Liszt.


É chamada de Sonata em Si Menor (às vezes) em vez de apenas Sonata de Liszt, porque há outra, a chamada Dante Sonata, bem menos conhecida e bem-sucedida. Nenhuma peça para piano gerou tanto debate entre musicólogos, que a atribuem significados, muitos deles, provavelmente, apenas ilusórios ou, na melhor das hipóteses, sem relevância alguma. Por exemplo, é possível encontrar na Sonata, se você quiser, uma representação da história de Adão e Eva. Daí, você encontra o "Tema de Adão", o "Tema de Eva", o "Tema do Diabo", o "Tema de Deus" etc. E encontra na estrutura, que para você é o enredo, a sequência de acontecimentos da história. Há quem a veja como uma "autobiografia espiritual" do compositor. É possível, também, como eu prefiro, enxergá-la como música pura, sem grandes alusões, ou pelo menos sem um programa. Isso não a impede de ser programática, pois, como veremos, sugere emoções humanas, sensações e estados de espírito com bastante clareza.


Sua estrutura é um mistério. A Forma Sonata em si, está, de certa forma presente, mas o que se discute é como, exatamente, ela é aplicada. Há os que defendam que ela tem quatro movimentos interligados; há os que digam que tem três; ou que é, toda ela, um movimento único. Em Forma Sonata. Importante observar que você pode encaixar a sua concepção de Forma Sonata a quase qualquer obra grande. Basta dividi-la em Introdução, Exposição (de preferência com dois temas), Desenvolvimento, Recapitulação e Coda. Vamos ver isso.


Quanto à execução de Nelson Freire, ela me deixa sem palavras, por seu virtuosismo, potência sonora, lirismo poético (de extrema sensibilidade, mas sem jamais se tornar piegas) e capacidade de mudar repentinamente a atmosfera, como se vários pianistas se revezassem em passagens diferentes. Pouco importa se ele segue ou não com precisão as milhares de articulações, pedalizações e instruções dados por Liszt (ninguém segue todas elas, faz parte do ofício do intérprete eleger as indicações mais relevantes, executá-las do seu jeito e detectar as que são desnecessárias ou que, até mesmo, comprometem a inteligibilidade do discurso geral da peça).


O disco, de 1972, contém, ainda, a magnífica Sonata Nº 3 de Frédéric Chopin, que Nelson chegou a regravar, alguns anos atrás.



A Sonata em Si Menor dura cerca de meia hora e não tem uma divisão clara de movimentos ou interrupções, de modo que fica daquele jeito: o intérprete e o produtor do disco decidem se vai haver uma troca de faixa a cada nova indicação de andamento, ou se apresentam a peça inteira em uma só faixa, como se fez no disco de Nelson.


Tomando como base a primeira edição, de Breitkopf und Härtel, a partitura tem 32 páginas e a primeira delas já contém elementos básicos de praticamente todo o material que permeará a sonata. São eles (e eu vou escrever por pontos, que é mais adequado):


(A capa do LP em que Nelson Freire tocou a Sonata, de 1972.)


Introdução e Exposição


  • A introdução contém os elementos básicos em forma bruta, que comporão a estrutura da obra. Uma escala descendente (Motivo 1) que será amplamente aproveitada e transfigurada, como já é aos 22s, o Motivo 1, o Tema A e o Motivo 2, a seguir;

  • O Motivo 1 é o que inicia a obra: duas notas em staccato, seguidas por uma escala descendente. O interessante, nesse trecho, é que, na primeira escala descendente, Liszt usa uma escala diferente, estranha aos ouvidos: a Escala Frígia Dominante. Já na segunda escala descendente, uma ainda mais exótica. É a Escala Menor Húngara;

  • Tema A (40s) - Marcado Allegro Energico, aparece já na introdução, quase como um subito forte, já que a dinâmica muda bruscamente (na partitura, muda de maneira mais gradual, mas quase nenhum pianista faz assim), é uma frase um tanto diabólica em oitavas duplas, ou seja, oitavas nas duas mãos;

  • Motivo 2 (49s) - Facilmente negligenciável e tratável como uma simples passagem de transição, o Motivo 2, no registro grave, na mão esquerda, também terá importância gigantesca no desenvolver da obra;

  • O Tema A parece ser desenvolvido antes da hora, mas está, na verdade, sendo apresentado formalmente. É o início da Exposição;

  • Tema B (3m11s) - Em Ré Maior e majestoso (marcado Grandioso), surgindo após vários compassos de preparação, temos o Tema B, seguido por aparições do Tema A adocicado;

  • Os outros temas e motivos reagem ao Tema B, como se fossem domados por este, e, consequentemente a atmosfera é bem menos tensa e mais agradável (por enquanto);

  • A partir de então, Liszt trabalha os temas, alternando-os e modulando-os. Mas ainda não estamos no Desenvolvimento;

  • O que ouvimos aos 5m31s é nada mais que o Motivo 2 transfigurado. Anteriormente exclusivo da mão esquerda, em registro grave, ele surge, agora, doce e suave, na mão direita e em tom maior. Essencialmente, ele foi transformado no Tema C;

  • Perceba, aos 6m42s, uma passagem cromática descendente da mão direita, bisneta do Motivo 1, em sobreposição com o Tema A, na mão esquerda.

  • Logo depois (6m50s), o que a mão direita estava fazendo se transforma no Tema C. E se torna ainda mais evidente que o compositor não nos entregará mais melodias novas, mas elaborações destas 5 ideias: Motivo 1, Tema A, Motivo 2, Tema B e Tema C;

  • Aos 7m11s, sob um trinado e cadências da mão direita, a esquerda, hesitantemente, nos lembra do Tema A, tentando começá-lo por duas vezes;


Desenvolvimento


  • O Desenvolvimento, em duas partes, começa aos 7m31s, com o Tema A aparecendo mais assertivamente, em oitavas, na mão direita, em ff (fortíssimo).

  • Os temas serão tratados aqui de diversas formas: de maneira rapsódica, improvisativa, com cadências e, até mesmo, de maneira mais padrão, como se espera ouvir em uma sonata, digamos, comum;

  • Na primeira parte a tensão e a turbulência são crescentes, culminando aos 9m26s e seguindo até as profundezas do inferno;

  • Tenebrosamente (9m34s), o Tema B surge desprovido de todo o magnetismo e otimismo de sua personalidade;

  • Aos 11m38s atingimos duas coisas, uma melodia que pode ser vista como um novo tema (Tema D) ou como um amálgama alterado dos outros temas, e, para os que consideram que a Sonata tem três movimentos, o Segundo Movimento;

  • Mas para a nossa análise, será, simplesmente, a segunda parte do desenvolvimento, marcada Andante Sostenuto;

  • De qualquer forma, é o começo da virada de sorte da obra, em que a turbulência e o inferno são deixados para trás;

  • Aos 12m19s há uma instrução de ritenuto, ou seja, deve-se desacelerar ainda mais até que se caia no Quasi Adagio (esses termos são todos em italiano, mas acho bom vocês irem se habituando) (12m30s);

  • Logo em seguida, aos 12m39s, surge o Tema C. Vejam que beleza;

  • Aos 13m34s, com sua dignidade restaurada, o Tema B aparece em registro mais grave e no tom da dominante de Si Menor (o tom geral da obra): Fá Sustenido Maior;

  • Aos 14m18s, depois de mais uma modulação, o Tema B é repetido, desta vez em Sol Menor;

  • Repare, aos 14m28s, Tema A começa, sutilmente, a dar as caras;

  • O ponto culminante da obra acontece aos 14m44s, quando, após um rinforzando assai, uma espécie de crescendo exagerado e rápido, chegamos a um acorde de Fá Sustenido Maior em fff (triplo forte);

  • É o Tema D gerando um clímax memorável;

  • A música vai perdendo ímpeto, utilizando, sempre, Temas e Motivos que já vimos, até chegar o fim do Desenvolvimento;


Recapitulação


  • Aos 17m38s, em ppp (pianississimo) tem início a chamada Recapitulação Motívica, com as mesmas notinhas com que a obra começou (ou alterações: temos a escala menor natural, a menor melódica, a menor harmônica, e Liszt gostava de usar muito a escala menor húngara - não vou explicar, mas era para dar um elemento exótico, da "sua terra", como se ele não fosse completamente germanizado e sequer falasse Magiar). Na Forma Sonata, a Recapitulação é quase uma duplicação da Exposição. Então, chamamos de Recapitulação Motívica aquela que traz de volta, antes dos elementos da Exposição, os da Introdução;

  • Quando entra o Tema A, ele está mais leve, desacompanhado e lépido. E quando termina o Motivo 2, também em piano, ele se transforma no Sujeito do Fugato (é uma passagem com características de uma Fuga, mas dentro de uma peça que não é, em si, uma Fuga). Sujeito é como chamamos o Tema Principal da Fuga, que será imitado por outras vozes ou, no piano, em outros registros;

  • Nesse caso, temos 3 vozes;

  • Elas evoluem até que caímos, aos 20m01s, na Recapitulação Temática, que é a Recapitulação da Exposição, com o Tema A, novamente turbulento e no tom principal da obra, Si Menor;

  • Aos 21m38s, após uma transição sensacional, surge o Tema B, um pouco cansado, talvez, mas só;

  • Aos 22m34s temos, por fim a recapitulação do Tema C, em um ambiente de quietude de paz;

  • Aos 23m57s Liszt marca na partitura Stretta Quasi Presto, o que significa, basicamente, que deve-se passar de uma atmosfera lírica para uma mais rápida. Presto é um andamento bem rápido. Mas ele disse quase;

  • O movimento vai acumulando serotonina e fica quase frenético.

  • Aos 25m20s, a obra atinge novo clímax, seu derradeiro.


Coda


  • O último parágrafo do texto de Liszt começa, aos 25m30s, em paz. É agora que ele dará fechamento à obra e veremos se é positivo.

  • Aos 26m22s o Motivo 2 ameaça a paz geral do trecho.

  • Mas nada mais pode ocorrer depois de tanto ocorrido, não é?

  • A obra termina marcado Lento Assai e pp > ppp. Ou seja, lento e pianissíssimo.


Não é apenas uma sonatas. É uma jornada por dentro de nós mesmos - se você for como eu, irá se certificar de que não será incomodado por uma hora, vão colocar fones de ouvido, deitar (mesmo que seja no chão) e ouvir a obra, como em ritual. E vai ter um dos momentos mais profundos de sua vida.


 

Não esqueça de comentar. São os comentários que nós mantém vivos. sujeita pautas, aquela música que você sempre achou linda e gostaria de saber mais sobre etc.


Boa noite!




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