Já que estamos nessa onda de compositores ingleses que redespertaram a música no seu país, depois de séculos latente, vou falar sobre uma das obras mais importantes desse momento. A Suíte Sinfônica Os Planetas, de Gustav Holst, de 1917. Primeiramente, precisamos falar dos planetas em si. Mercúrio, Vênus, Terra, Marte, Júpiter, Saturno, Urano, Netuno e Plutão. Só que em 1917 ainda não haviam descoberto o último planeta.
Plutão sempre foi um problema. Para os cientistas e para os amantes de Holst. Nos anos 90 e 2000, era comum as gravações virem com um Plutão de algum outro compositor, o que quase sempre dava errado. A obra de Holst é muito concisa, a orquestração, muito característica. Pra que colocar um Plutão desgarrado e desengonçado?
Aí, veio Neil DeGrasse Tyson e disse: "Plutão, não serás mais planeta, mas planetinha". E aí pronto. A suíte de Holst voltou a ficar completa sem precisar adicionarem um movimento a mais. Ufa.
É uma Suíte Sinfônica (ou seja, uma obra com vários movimentos, mais que uma sinfonia, para ser tocada em concerto) em 7 movimentos (ele exclui a Terra), para uma orquestra gigantesca e, no último movimento, um coro feminino sem palavras. Foi estreada no Queen's Hall, em Londres, em 1918, sob a regência de Sir Adrian Boult, para uma plateia seleta. Ou seja, foi uma audição privada. A primeira apresentação pública da obra aconteceria em 1920, com a Orquestra Sinfônica de Londres, regida por Albert Coates, no mesmo Queen's Hall.
O compositor
Gustav Theodore Holst nasceu em Cheltenham, na Inglaterra, em 1874. Seu pai e vários parentes paternos eram músicos profissionais. Mudou-se para Londres em 1893 para estudar no Royal College of Music. Em 1895 conheceu Ralph Vaughan Williams, de quem se tornaria amigo por muitos anos e que seria sua maior influência musical.
Tendo começado a vida profissional como trombonista, logo largou o trombone para se dedicar à composição. O fato é que não ganhava muito dinheiro só com a composição, de modo que passou a lecionar, sendo, por muitos anos um respeitado professor de música.
A lista de composições de Holst é respeitável, tanto de música orquestral (muito dela inspirada em obras literárias, sendo chamadas de Música Incidental), vocal, coral, de câmara e para piano. E para bandas militares, de que ele gostava tanto. Mas o que acontece é que nenhuma de suas peças jamais teve o mesmo impacto que Os Planetas. Não que ele se importasse com isso. Tímido, era avesso à fama.
Casou-se em 1901 com Isobel Harrison, que era soprano no Coral Socialista de Hammersmith, que foi regido por ele, e com quem viveu até a morte, em 1934. Teve uma filha, chamada Imogen Holst.
A obra
Holst era muito interessado em astrologia, de modo que, quando empreendeu a composição de Os Planetas, atribuiu a cada um uma simbologia astrológica.
Ele escreveu a um amigo:
"... se isso é bom ou ruim, cresceu na minha mente lentamente - como um bebê no útero da mãe... Por dois anos eu tinha a intenção de compor esse ciclo, e durante esses dois anos parecia mais e mais definitivamente estar tomando forma."
É que ele levou três anos para completar a suíte. Não é tanto tempo, se considerarmos a grandeza da orquestração, mas para um compositor experiente como ele, foi uma gestação difícil.
A orquestra que ele pede comporta:
4 Flautas (duas alternando para flautim e uma para flauta contralto, em sol)
3 Oboés (um alternando para oboé baixo)
1 Corne Inglês
3 Clarinetes
1 Clarone (Clarinete Baixo)
3 Fagotes
1 Contrafagote
6 Trompas
4 Trompetes
2 Trombones tenores
1 Trombone baixo
1 Tuba tenor (às vezes trocada por um Eufônio)
1 Tuba
6 Tímpanos (2 tocadores)
Triângulo, caixa clara, pandeirola, pratos, bombo sinfônico, gongo, carrilhões, glockenspiel (três tocadores), celesta, xilofone (2 músicos)
1 Órgão
2 Harpas
Violinos 1 (cerca de 16)
Violinos 2 (cerca de 14)
Violas (cerca de 12)
Violoncelos (cerca de 10)
Contrabaixos (cerca de 8)
Em Netuno - 2 Coros femininos (que devem ser ocultas do público por uma cortina).
Abaixo, temos a interpretação que vai nos guiar, do fantástico maestro Andrew Litton com a Orquestra Filarmônica de Bergen, Noruega, numa interpretação fenomenal. Só não me pergunte por que a plateia aplaude entre os movimentos. Pode ser por dois motivos: gostou demais ou ignora a regra tácita (e útil) de não aplaudir até que a peça toda seja tocada.
I. Marte, o que traz a guerra (50s)
A música de guerra começa com uma pulsação no compasso 5/4 em allegro (rápido). Começa baixinho e vai crescendo de maneira formidável até atingir um fortíssimo, aos 2m06s, num acorde altamente dissonante. O tema principal aparece nos fagotes aos 54s.
Trata-se de uma música violenta, dissonante, percussiva, com paradas súbitas e explosões inesperadas. É uma das fontes de inspiração para a música de Star Wars, de John Williams.
Os temas são curtos, aparecendo vez por outra em um trombone, nos fagotes, trompetes... Repare no que parece ser uma explosão aos 3m55s. Depois dela a música parece ir pegando fôlego lentamente, sob o canto dos fagotes e contrabaixos. Até que fica nervosa de novo (5m14s), com a representação do tema principal.
Repare também no famoso coda, com o acorde se repetindo obsessivamente (7m36s) até desembocar numa nova explosão.
II. Vênus, o que traz a paz (8m35s)
A suave trompa que abre o segundo movimento, já no tema principal do movimento, é a antítese de tudo que ouvimos no primeiro. Acompanhada por acordes agudos das madeiras, faz um contraste pronunciado com Mercúrio. Aos 9m17s os contrabaixos entram, fazendo também o tema. Começa, então, um ostinato rítmico que vai permear a peça.
De harmonia bem mais conservadora, sem muitas dissonâncias (ou choques sonoros, como alguém escreveu sobre o primeiro movimento) e de orquestração leve, permite até um violino solista aqui ou acolá. Nem por isso é menos genial e chocante. O chque parte justamente do fato de seguir uma música tão diferente. Enquanto a outra buscava evocar empolgação marcial, essa busca beleza, mesmo. E com efeito.
Temos belos solos de violino, oboé, clarinete, trompa e pouco arrebatamento. Aqui, é paz e sossego. (Lembrando que, se você tentar pousar em Vênus, é sumariamente evaporado ainda na atmosfera.)
III. Mercúrio, o mensageiro alado (16m53s)
Um Scherzo (que é um movimento ligeirinho e de caráter jocoso, brincalhão), como a suíte deveria ter. De orquestração igualmente criativa e tecnicamente habilidosa, somos capazes de ouvir a celesta (17m22s).
Aos 17m57s o primeiro violono (o spalla) toca um tema importante, que depois domina a orquestra inteira. Essa parte pode ser considerada o trio - a parte central do movimento.
Tanto que, aos 18m56s, o corne inglês começa a anunciar a volta do Scherzo.
Pela falta de rompantes maiores, as cordas tocam com surdina (um abafador, que faz o som ficar mais suave).
Depois de novas intervenções da celesta (20m01s) e de ameaças a voltarmos para o tema do trio, o movimento termina de forma sutil.
IV. Júpiter, o que traz a alegria (21m06s)
O tempestuoso gigante gasoso, aqui é representado como algo que carrega alegria. É o movimento mais conhecido da obra ao lado de Mercúrio. Tem três temas principais. O primeiro é logo apresentado pelas trompas (21m11s). Os tímpanos o repetem aos 21m20s.
Aos 22m07s temos a aparição do segundo tema, mais leve, quase circense (agora, porque depois ele ressurgirá um lorde). E, aos 22m43s, surge o terceiro e mais conhecido tema. Ele será repetido algumas vezes, com a orquestra cada vez mais ocupada. Até que desemboca em um acorde tenso (23m37s), que acaba por calar a orquestra.
Os instrumentos vão voltando aos poucos, timidamente. E, sem cerimônia, o segundo tema volta (24m05s), só que, dessa vez, nobre, elegante e heróico. Parece um daqueles hinos religiosos da Inglaterra e, de fato, acabou virando um, a contragosto de Holst. Esse tema faz um discreto crescendo, até ser tocado plenamente.
Aos 26m06s temos a volta do caráter mais infantil desse mesmo tema, no corne inglês. Aos 26m16s o oboé nos traz de volta o primeiro tema, timidamente. A primeira parte é repetida, com alterações. A segunda, também. E a terceira. E aí temos o coda, meio disperso, suspenso e brilhante.
V. Saturno, o que traz a velhice (29m22s)
Mais uma vez a música começa com um ostinato rítmico, tocado pelas flautas e harpas, lembrando um relógio (o passar do tempo) Esse movimento é etéreo, dissonante, até desconfortável à primeira vista. Sua primeira ideia temática é entregue aos contrabaixos.
Os temas aqui são curtos, também, e surgem esporadicamente. Ele faz um lento crescendo até um clímax arrepiante (que começa aos 33m33s), depois do qual, volta à calmaria e à eternidade. Aos 34m35s temos uma passagem mais agitada, em que conseguimos ver no vídeo os carrilhões. Depois tudo volta ao normal de novo. O movimento termina em calma e tranquilidade.
VI. Urano, o mágico (39m08s)
Com um anúncio dos trombones e trompetes digno de um leitmotif de Wagner (compositor que muito influenciou Holsta), começa de forma ameaçadora o sexto movimento. Esse é o tema principal. Temos um movimento agitado, na verdade, bem humorado e jocoso.
A orquestração novamente chama atenção, sendo muito concisa e bem integrada. Os gestos musicais são exagerados: crescendi e diminuendi súbitos, mudanças de humor e até de caráter. Aquele motivo de 4 notas que os trombones e trompetes anunciaram, nunca deixam a obra em paz, sempre cutucando até os momentos mais insuspeitos, como a harpa (43m19s). Acordes maravilhosamente tenebrosos, como aos 44m01s.
O movimento é diluído, não há um tema A e um tema B para situra-nos, o que o mantém íntegro é a orquestração impecável.
VII. Netuno, o místico (45m13s)
As flautas, em registro grave, estipulam o clima do movimento, que é, todo ele, quieto e manso. Não há música mais mística. As modulações (ou mesmo a alternância de dois acordes) são encantadoras. Aliás, a música é encantada. A celesta confere uma atmosfera de fantasia.
Aos 49m30s ouve-se o coro invisível, que adiciona ainda mais misticismo ao movimento. O coro feminino não usa palavras, representando vozes celestiais (ou siderais). Vejam que quebra sutil e maravilhosa ocorre aos 51m14s, quando a orquestra interrompe o coro com um acorde fantasmagórico.
Aos poucos, o coro reassume e tira a orquestra da jogada, finalizando a música de forma ambígua, desaparecendo lentamente.
Holst optou por acabar a música sem um golpe finalizador forte, o que sempre é um risco, pois as primeiras plateias não sabiam se deviam aplaudir ou não. A plateia norueguesa do vídeo não teve essa preocupação - a cada final de movimento, aplaudiam com sinceridade - teve uma vez em que, antes mesmo que acabasse o movimento, ensaiaram palmas extraviadas.
Considerações finais
Os Planetas fez sucesso desde sua estreia pública, alguns poucos críticos encasquetando com sua inovatividade. Sobre a estreia privada em 1918, Imogen Holst, a filha, escreveu, depois:
... mesmo aqueles ouvintes que tinham estudado a partitura por meses foram tomados de surpresa pelo inesperado clamor de Marte.... ... mas foi o final de Netuno que foi inesquecível, com seu coro de vozes femininas oculto ficando mais e mais pálido à distância, até que a imaginação não reconhecesse a diferença entre som e silêncio.
No geral, a crítica foi favorável, às vezes ficando até "ofegante" ao ouvir a maravilhosa obra. No mundo das gravações, Os Planetas reinam - foram mais de 80 gravações desde 1922. Quase uma por ano, o que é um prodígio, se considerarmos que a obra exige uma orquestra dilatada, dois coros femininos e um órgão (vale lembrar que nem toda sala de concertos tem um).
Eu tive o privilégio de ouvir uma interpretação fantástica da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (OSESP), na Sala São Paulo, possivelmente com Dante Anzolini na regência, alguns anos atrás. Foi inesquecível, a obra tem muite efeito ao vivo. Além das gravações, a obra é muito popular nos concertos, mesmo sendo bastante longa.
Outra coisa que não se pode ignorar ou subestimar é a sua influência na música cinematográfica - trilhas sonoras de compositores desde então até hoje, devem muito às peças de Holst, Vaughan Williams, Stravinsky e Debussy. Além, claro, de Wagner e até Brahms.
Observe o elucidador vídeo abaixo, do ensaísta cinematográfico Max Valarezo:
Gravações importantes
São muitíssimas, de modo que vou listar as que geralmente são consideradas fundamentais e as minhas favoritas.
- Gustav Holst, regendo a Sinfônica de Londres - Foi a primeira gravação completa da obra, em 1926. É importantíssima, porque mostra a concepção da obra pelo próprio compositor. O som é muito ruim, porque a gravação elétrica ainda estava em estado embrionário. Além disso, qualquer desafinação da orquestra, especialmente dos sopros, é evidenciada pela ruindade da gravação. Mas é um documento inestimável, nos dando, inclusive, a concepção de andamento do primeiro movimento, muito mais rápida do que gravações posteriores.
- Sir Adrian Boult, regendo a Filarmônica de Londres - É a melhor gravação do regente que estreou a obra, gravada em 1978 (60 anos depois). O som é simplesmente magnífico, a orquestra toca com decisão e confiança. É uma gravação de referência.
- Zubin Mehta, com a Filarmônica de Los Angeles - É outra gravação de referência. A Filarmônica de Los Angeles estava se tornando uma das melhores orquestras dos EUA, e Zubin Mehta é um dos regentes mais consistentes de sua geração. É de 1971.
- James Levine, com a Sinfônica de Chicago - Essa versão, de 1991 é o meu prazer culpado. Levine foi, anos depois, em 2017, exposto como um assediador sexual. Quando faleceu, em 2021, era rico e lendário, mas nenhuma orquestra o chamava para reger mais. O fato é que a gravação é excepcional (como muitas dele). Talvez seja a minha favorita.
- Herbert von Karajan, regendo a Filarmônica de Viena - Se tinha que ter Karajan, que fosse sua primeira gravação, com a Filarmônica de Viena, em 1961. É de uma vitalidade e timbre excepcionais. A versão remasterizada, que saiu na caixa The Legendary Decca Recordings é ainda melhor por causa do som. Mas aqui temos um Karajan (e uma Filarmônica de Viena) solto, quase desvairado. Uma das minhas favoritas, também. Mas não deixe de ouvir a gravação digital dele, de 1981, com a Filarmônca de Berlim.
- Simon Rattle, com a Filarmônica de Berlim - Com um som fantástico, essa gravação de 2006 cai na besteira de completar o ciclo não só com o Plutão de Colin Mathews, mas, no disco 2, com todo tipo de corpo celeste do Sistema Solar, com obras de vários compositores. Não que sejam ruins, mas acho que deveriam ser gravadas separadamente e sem intenção de "completar" o ciclo de Holst. Plutão, o renovador, parece completamente alheio aos outros movimentos, a despeito de seus méritos. Uma obra que chama atenção é Ceres, de Mark-Anthony Turnage, de textura densa e sonoridades dissonantes. Mas claro que também não se encaixa. Os Planetas em si, são ótimos, com a orquestra tocando com toda a sua elegância. Não tem como a Filarmônica de Berlim. Rattle, não vamos negar, está muito bem e tira um som magnífico da orquestra.
- André Previn, com a Sinfônica de Londres - Essa gravação, de 1973, mostra o quão bom regente era Previn. Não se comparava aos maiores em termos de controle e de sonoridade, mas tinha um frescor incomparável. Mais uma vez, a Sinfônica de Londres mostra sua força.
- Vladimir Jurowski, com a Filarmônica de Londres - Um jovem regente russo que vem tendo uma carreira admirável, e principalmente com essa orquestra. A Filarmônica de Londres e a Sinfônica de Londres são as duas forças mais importantes da cidade. Mas deve ter umas 6 orquestras sinfônicas na cidade! Sem contar com os conjuntos de câmara e com as orquestras de repertório Barroco. Veja abaixo. Essa gravação, de 2009, a mais recente da lista, é a que também tem o melhor som (talvez em igualdade com a de Rattle).
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