Falei ontem do Livro 1 de Prelúdios de Claude Achille Debussy (1862-1918). Pois bem, vamos ao Livro 2, que são mais 12 prelúdios fechando a série usual de 24. Esqueci de mencionar outro compositor que fez uma série de 24 prelúdios sensacionais. Sergei Rachmaninoff (1873-1943). Falo deles em uma postagem dedicada.
Falei que a tradição de escrever exatamente esse número de peças remonta a Johann Sebastian Bach (1685-1750), que escreveu duas séries, na verdade. Cada uma contém 24 prelúdios e fugas dedicados a uma tonalidade. Dó maior - Dó menor - Ré bemol maior - Dó sustenido menor e por aí vai. Os de Debussy não seguem essa lógica. É mais como se ele quisesse imprimir um sentimento em cada, no lugar de uma tonalidade. Mas são sentimentos majoritariamente abstratos. Ele repartiu a série em 2 livros de 12 porque se fosse uma só de 24 (eles não são curtos como os de Chopin) ia ficar difícil de digerir num concerto. Na verdade, ia ocupar o recital inteiro. Falar nisso, a apreciação dos dois livros inteiros dura mais de uma hora, então sugiro que pegue de 6 em 6.
Os Prelúdios (Livro 2)
1 - Brouillards (Névoa)
Um prelúdio excepcional. Você vê a névoa... bem, sendo névoa, e aí umas oitavas duplas de arrepiar. Uma vez eu estava falando dele e alguém me perguntou a qual eu me referia. Fui tentar cantar e foi, obviamente, ridículo. Rimos um bocado. Tenta você!
2 - Feuilles mortes (Folhas Mortas)
Aqui o pianista tem que ser criativo, pintar com o pedal, como em outros, só que mais. Muito sensível, frágil como uma bolha de sabão. Quando cresce, parece que para no meio da escada. Lindo.
3 - La puerta del Vino (O Portão do Vinho)
Em Granada (Espanha), no Palácio da Alhambra, tem um azulejo que se refere a esse prelúdio, por sua vez dedicado àquele portão onde está o azulejo. É obviamente um dos mais famosos de todo o grupo. Em ritmo de habanera, bem marcado e forte no começo, torna-se mais manso na seção central e termina calmo de novo.
4 - Les fées sont d'exquises danseuses (As Fadas São Dançarinas Maravilhosas)
As fadas, né Debussy? Não existia LSD na época, mas tinha uns cogumelos... Brincadeira, na verdade essa alusão é bem típica dele. Eles (os impressionistas) gostavam de seres mitológicos. Essa é uma peça difícil porque tem muito trinado. Trinado é um inferno.
5 - Bruyères (Urze - um tipo de planta ou uma cidade na França)
Esse equivale a La fille aux cheveux de lin, do outro livro. Linda, tocante. Aquelas músicas que a sua tia diz: oh, adoro piano... Como La fille, é bem tonal e remete ao Debussy mais jovem. Esse é um dos que o grande pianista ucraniano Vladimir Horowitz gravou. Dizem que tem um vídeo dele dando uma aula, e ele passa 40 minutos pra explicar o pedal num trechinho.
6 - Général Lavine – eccentric (O Excêntrico General Lavine)
Também marcado, ritmicamente, é em estilo de Cakewalk, dança americana que daria origem ao Ragtime, que, por sua vez, evoluiria para o Jazz. Tô simplificando muito, porque não foi exatamente assim, não. Mas vale. Também é um prelúdio tonal. Só esclarecendo, os outros não são exatamente atonais, academicamente falando. Mas eu os considero atonais porque não têm tom definido. Não dá pra dizer: essa peça é em mi maior.
7 - La terrasse des audiences du clair de lune (O Terraço das Audiências do Luar)
Audiências do Luar, né, Claude? Pois bem. É um prelúdio suave, que lembra o luar banhando alguma água. Também ameaça crescer, às vezes, mas só ameaça. É encantado e encantador.
8 - Ondine (nome de uma náiade, uma espécie de sereia de água doce mitológica)
Mais um prelúdio aquático, tema que cai bem em Debussy. Na partitura tem "Scherzando", que significa "brincando", numa tradução bem literal. Brilhante, sem ser muito chamativo.
9 - Hommage à S. Pickwick Esq. P.P.M.P.C. (Homenagem a S. Pickwick)
Referência a um personagem da obra de Charles Dieckens "As Aventuras de Pickwick", é bem pianístico. Pena que seja tão curto.
10 - Canope (Vaso Canópico)
O vaso canópico é um artesanato egípcio muito antigo. Um vaso que armazenava as vísceras de quem ia ser mumificado e as preservava. É uma música mística, como não poderia deixar de ser. Muito linda.
11 - Les tierces alternées (Terças Alternadas)
Dificílimo, esse. Usa a mesma técnica que Villa-Lobos no seu Polichinelo. Debussy tem um Estudo (Étude) para piano com o mesmo nome. Obviamente, ambos tratam de terças em alternância bem rápida.
12 - Feux d'artifice (Fogos de Artifício)
Esse é muito usado como peça de exibição pelos mais diversos pianistas. Mesmo os que não gravam muito Debussy. Ele termina com uma peça mais alegre e mais triunfante. Mas, como é Debussy, não há nenhum exagero, e ela mantém o encanto que permeia os dois cadernos de prelúdios.
Gravações Importantes
Não tem como fugir das interpretações dos mesmos pianistas do Livro 1. Vou repetir aqui com umas poucas alterações, pra você não ter que voltar lá.
Walter Gieseking - Dizem que Debussy queria que o piano fosse tocado como se não tivesse martelos, da maneira menos percussiva possível. Pois bem, os críticos concordam que Gieseking atingiu isso. Pra mim o único problema é o som. Por terem sido gravados nos anos 1953-1955, o som ainda tem muito chiado, e eu sinto que não estou conseguindo escutar tudo que é pra eu escutar.
Arturo Michelangeli - A minha favorita. Parece que cada gesto, cada inflexão dele deu certo em cada prelúdio. Eu não sei explicar, não é só técnico, parece que se está respirando música.
Claudio Arrau - Impressionante. Arrau tem um som cósmico. Aliás, um não, milhões de sons. O chileno é um dos pianistas mais coloridos que já existiram (pianisticamente, porque ele mesmo era normal). E a gravação é boa.
Monique Haas - Excelente versão. Imaginativa, com um perfeito colorido e tecnicamente impecável.
Dentre as mais modernas temos:
Vladimir Ashkenazy - Enquanto a gravação do livro 1 é moderna, dele aos 80 anos, em 2017, a do livro 2 é dos anos 70 e ao vivo, quando ele tinha 40 anos e estava no auge. Estão, estranhamente, no mesmo CD.
Maurizio Pollini - Todo mundo tinha curiosidade de saber como o maior pianista italiano vivo iria tocar esses prelúdios. Ele fez o equilíbrio entre o inspirado e o calculado.
Krystian Zimerman - Zimerman é sempre super expressivo. Mas eu digo super mesmo, over. Quando é pra desacelerar, ele desacelera demais; quando é pra crescer, cresce demais etc. Só tem uma coisa. Quando ele acerta é de cair o queixo.
Versão para Orquestra
A mais famosa versão orquestral, e também a única que eu conheço, foi orquestrada por Colin Matthews e gravada, sobretudo, pela Orquestra Hallé, regida por Mark Elder. As orquestrações são fenomenais. Claro que tem prelúdio que é mais pianístico, mas a maioria se adequou bem à orquestra. Esse disco, da Hallé, é incrível. Eles tocam muito e a maneira com que as peças soam é quase de outro mundo.
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