Giuseppe Tartini encontrou-se com o Diabo ainda no séc. XVIII, bem antes do advento do romantismo. Muito embora Paganini tenha se consagrado por sua virtuose, excentricidade e pela história do pacto mefistofélico, em sua época a transgressão já estava há muito instaurada no meio artístico; o “incidente de Teplitz” já tinha acontecido.
Foi em sonho que o “cão” apareceu para o violinista barroco e ofereceu-se a ele como gênio. Qualquer que fosse o pedido feito, num piscar de olhos era atendido. Até que, após muitos desejos concedidos, o amo viu o violino na cabeceira da cama e ordenou: “toca algo para mim”. Arco e violino em mãos, a criatura onírica executou a mais sublime das sonatas que o músico ouvira em toda sua vida. Impressionante! O poder daquela música lhe fora tão inebriante que ele acabou adormecendo, embalado no mundo dos sonhos para acordar novamente no chão dos homens. Correu para registrar em pauta o que ouvira antes que a divina memória lhe traísse. Resultado: estava composta sua Magnum Opus, uma das mais belas e conhecidas peças para violino de toda a história, o célebre “Trinado do diabo”.
Quem dorme em rede e não é primogênito certamente já teve o desprazer de ser acordado aos puxões e sacudidas de punhos. É sempre um susto, e mais ainda quando quem puxa é o Diabo. Assim acordou Gilberto José Pedro, o Gilzé, tocador de rabeca dos confins do Brejo do Reguengado. O moço era agricultor e costumava "passar a égua no bode durante as folgas". Tinha fama no lugar e até ganhava algum para tocar em festas. Porém, para o seu desprazer, apareceu o fole e tomou de conta de tudo, rebaixando a rabequinha ao status de antiguidade. Perdeu o gosto de tocar e viveu cabisbaixo até que, certa noite, recebeu a visita que lhe renderia sucesso e restauraria o prestígio ao seu instrumento e a ele a criatividade.
Inspirado pelo fantástico episódio vivido por Tartini e pela tradição da rabeca nordestina foi escrito o cordel “O rabequeiro do Brejo e o trinado do Diabo”, obra faustiana de Eduardo de Menezes Macedo, poeta que, enquanto aguarda o sonho que o fará um Dante, um Leandro, segue escrevendo seus versos teimosos.
Às estrofes!
O RABEQUEIRO DO BREJO E O TRINADO DO DIABO
Eduardo Macedo
152 estrofes
Após quase cem passados
Pouca coisa inda me resta;
As mãos já não firmam mais,
A vista pra nada presta,
As pernas são varas secas,
A boca tudo detesta.
Mas já fui bom vivedor,
Quando rapaz tive glória.
Meus dedos eram ligeiros,
Na rabeca fiz história.
Em quantos sambas toquei
Não puxo pela memória!
Por Gilberto José Pedro
Dos Santos sou batizado,
Mas pelo povo fui sempre
De Gilzé Pedro chamado;
O famoso rabequeiro
Do Brejo do Reguengado.
Não existia sanfona
Quando eu era molecote.
Pé-de-bode, concertina,
Era coisa de alto dote.
A rabeca é quem reinava
Em valsa, baião e xote.
Em qualquer ocasião
Onde existia uma dança
Eu olhava o tocador
E me enchia de esperança
De um dia poder tocar.
Guardo isso na lembrança.
Sonhava em ser rabequeiro
Pra fazer dançar a gente.
Achava que todo músico
Detinha algo diferente.
Até que o destino deu-me
Certa vez esse presente.
Lembro muito bem que pai,
Num ano bom de fartura,
Chegou um dia da feira
Com legume, arroz, mistura,
Mais um pacote de pano,
Bem cosido na costura.
Papai vinha troviscado,
O que logo mãe notou.
Quando ele abriu o pacote
E de dentro retirou
Uma rabeca, ligeiro
A confusão se instaurou:
− Além de tomar cachaça
Pelo mundo tu investe
Dinheiro em breguesso que
Não se come nem se veste!
Quer tocar pra ir nos bailes,
Cachaceiro, fi' da peste?!
Pai, sem responder a ela,
Puxou, calmo, uma banqueta,
Pôs a rabeca no peito,
Empunhou sua vareta,
Danou-se a riscar as cordas
Co’os fios da crina preta.
Foi um ganido tão grande
Tão rouco e tão desmedido
Que pai logo desistiu.
Pela cana combalido,
Encostou ela de lado,
Saiu coçando o ouvido.
Caiu no fundo da rede,
Ferrou em sono profundo.
Com raiva, mamãe saiu
Pra casa do vô Raimundo.
Resultado: fiquei só
Mais a rabeca no mundo!
Passei a égua no bode
Sem ter tocado jamais
E tirei um som tão limpo,
Friccionando os animais
Que desde então a rabeca
Eu mesmo não soltei mais.
No começo era escondido
Que tocava, sem ter perto
Pai nem mãe, porém um dia
Fui por eles descoberto.
No fim das contas acharam
Que eu ia no rumo certo.
Eu detinha algum talento,
Muito embora encabulado.
Passei a ter meus horários
Entre a faina do roçado
Para treinar na bichinha,
Por pai e mãe abonado.
Fui aprendendo sozinho.
Quando havia uma função
Em casamento, batismo,
Reisado, renovação,
Eu só reparava em quem
Tinha a rabeca na mão.
Com as butucas nos dedos
Que corriam pelo braço,
Eu ia gravando os toques –
Melodias e compasso.
Chegava em casa eu pegava
A minha e mandava o aço.
Nisso, cresci afamado:
“Gilzé Pedro Rabequeiro”.
Me formei tocador sem
Assinar o nome inteiro.
Toquei meu primeiro samba
Como se diz, “nos cueiro”.
O tempo passou voando;
Pai morreu, mãe foi morar
Com vovô, no que eu fiquei
Na casa, pra pastorar.
Adulto, já, nessa altura
Ganhava o meu pra tocar.
Foi quando, pro meu desastre,
Apareceu concertina.
O povo se enfeitiçou
De maneira tão mofina
Que eu despenquei como quem
Cai num buraco sem quina.
Ninguém mais queria ouvir
A rabeca − era cafona!
Falavam somente em fole
De pé-de-bode e sanfona.
Nessa prosa até os velhos
Foram pegando carona.
Eu fiquei desconsolado,
Pois pra viver só de roça
É preciso chuva boa,
Com seca não há quem possa.
Afora o prazer que eu tinha
De tocar numa palhoça.
Tardezinha, certa feita,
Eu voltava do plantio
E quando adentrei em casa
Senti um grande vazio.
Até mesmo o rancho velho
Achei que estava mais frio.
Comi angu de farinha
Com queijo e feijão maduro.
Acendi o candeeiro
Porque já ficava escuro
E me vi ali sozinho,
Triste, sem ninguém e duro.
Abri o baú de mãe,
Lancei mão da rabequinha,
Me sentei no tamborete,
Afinei bem a bichinha,
Toquei um samba completo
Pro público que ali não tinha.
Terminei, soltei o arco,
Peguei ela e disse assim:
− Então, minha companheira,
Fale o que será de mim.
Vamos findar na miséria
Dessa solidão sem fim?
− Me inspira com qualquer coisa,
Ritmo novo, algum segredo
Pra gente voltar aos sambas
E sair desse degredo.
Nem que seja pra tocar
No inferno eu topo, sem medo!
Olhando pra ela eu disse
Com muito ressentimento
Tudo aquilo e de repente
Em casa soprou um vento
Que me arrepiou o couro
E toldou meu pensamento.
Deixei ela sobre a mesa,
Carreguei o candeeiro
Pra camarinha e deitei
Na minha rede ligeiro.
Fiquei a me balançar
Olhando às telhas, cabreiro.
Acabei adormecendo
Mesmo de candeia acesa.
Mas o sono durou pouco,
Qual não foi minha surpresa:
Receber, de madrugada,
Visita da profundeza!
Acordei com uns repuxos
Na rede e quando a visão
Foi se desanuviando
Eu vi bem de frente o Cão,
Em pé, segurando os punhos,
Sacudindo com a mão.
Foi um susto tão medonho
Que nem consegui gritar.
Puxei os lados da rede
Para nela me ocultar,
Foi quando ele foi falando
Pra eu não me apavorar.
− Seu Gilberto José Pedro,
Não tema, mantenha a calma.
Não vim pra lhe fazer mal,
Guarde sossegada a alma.
Vim aqui dar bom alvitre
E não promover-lhe trauma.
− Tenho aqui sua rabeca
E vou lhe ensinar um toque
Que duvido que aos dançantes
Grande calor não provoque.
Portanto preste atenção.
Repare, se desentoque!
Fiquei no fundo da rede
Me tremendo, apavorado,
Até que a rabeca entrou
Com o seu timbre arranhado
Chorando um baião que nunca
Antes eu tinha escutado.
Nem precisava zabumba
Pois havia um tal bordão
Troando feito pancada
Que se dá em percussão,
Ao passo que ressoava
Qual baixo de acordeão.
As notas do fraseado,
Cada qual era uma cor.
Mais parecia um jardim
Todo enfeitado de flor.
Aos poucos tomei coragem
De olhar para o tocador.
Tinha uma perna escorada
No tamborete de couro.
Nas costas um par de asas
Parecidas de besouro.
Um rabo se balançava
Na ponta do cabelouro.
Peludo que nem um bode,
Daqueles avermelhados,
Ele tocava a rabeca
De braços bem abaixados
Pros fios da barba às cordas
Não findarem enlinhados.
Com metade da cabeça
Fora da rede eu olhava
E na medida em que ouvia
A música me enfeitiçava –
Enquanto os olhos fechavam
A boca se escancarava.
Dormi sob a melodia
Da rabeca do diabo.
Dormi que passei direto...
A manhã já dava cabo
Quando mãe bateu na porta
Com um saco de quiabo.
“Bença mãe”, abri a porta,
No que ela foi perguntando:
− Agora deu pra passar
A manhã toda roncando?
Estás doente ou depois
De véi tá vagabundando?
− Não é isso, minha velha!
Como ontem teve frieza
Eu, que não me dou com frio,
De noite senti moleza.
Dê aqui esses quiabos,
Venha se sentar na mesa.
Me sentindo atordoado
Pela noite conturbada,
Lembrando do “pesadelo”
Da toada endiabrada,
Tomei um susto medonho
Quando vi mamãe sentada.
Pois sobre a mesa não tinha
Nada mais do que a toalha
E eu não tinha bebido
Coisa que o juízo empalha.
(Hoje ainda, sem cachaça,
A minha mente não falha!)
Bem lembrava onde eu havia
Depositado o instrumento
Antes de seguir ao quarto.
Lá voltei, pro meu tormento,
Avistei junto da rede
A rabequinha no assento.
Eu até quis começar
A ter medo mas, aí,
Pensei no baião fantástico
Que na madrugada ouvi.
Peguei a rabeca, o arco
E para a sala saí.
– Lá vem mais essa desgraça!
Tu devia era trocar
Essa bicha numa enxada
E por inverno rezar.
Deus o livre de preguiça…
Disse mãe a resmungar.
Com a rabequinha em punho
Comecei fazer esboço
Dos toques que recordava.
Logo fui, sem alvoroço,
Da casca à polpa e ligeiro
Tinha alcançado o caroço!
Toquei com desenvoltura
Toda aquela melodia.
Recordei nota por nota
Tudo que o bicho fazia.
Quando me dei conta mãe
Era quem se sacudia.
Foi um baião desgramado
Da cachorra da moléstia!
Tocado com maestria
(Digo sem falsa modéstia)
De fazer velha casar
E vaqueiro dar a véstia.
Na noite daquele dia
Ia haver o casamento
De Josué Marrequeiro
Com Zefinha Livramento;
Engomei meu paletó,
Rapei a barba a contento.
Logo após a cerimônia
Apontei em Josué.
Não havia começado
Ainda o arrasta-pé.
Quem veio me receber
Foi Francisco Punaré.
Punaré era cunhado
De Josué Marrequeiro,
Casado com sua irmã,
Cabra bom e verdadeiro.
Esse, sim, prestigiava
Ao ver um bom rabequeiro.
– Gilzé, quanto tempo tem
Que não te encontro em folguedo?
Tenho saudade de ouvir
Tu tocando esse brinquedo.
Há tempos só vejo gente
Batendo em botão com dedo.
– Meu compadre, Punaré,
Os tempos estão mudados.
O povo só quer dançar
Na base desses teclados.
Só querem saber de foles
Mesmo que estejam furados.
Francisco me replicou
Dizendo: − Pra lá com isso!
Eu até que escuto um fole,
Pois jamais nego serviço.
Mas prefiro a rabequinha,
Você bem que sabe disso.
Ficamos a prosear
Enquanto não começava
O baile, por consequência
Do fole que não chegava.
Foi quando o noivo me viu
E foi até onde estava.
– Boa noite, Gilzé Pedro.
Esteja em casa, à vontade.
Sua presença agradeço
E peço, por caridade,
Toque pro povo dançar
Que já há necessidade.
Nisso, não contei pipoca:
Desensaquei a bichinha,
Na égua esfreguei o breu,
Afinei ela certinha
E peguei a tocar nela
Uma mazurca que eu tinha.
Houve tanta animação
Que me senti num enterro!
Pensei então “a mazurca
Deve ter sido meu erro.
Agora vou caprichar
Pra acabar esse desterro”.
Ajeitei ela no peito
E danei a tocar xote
Achando que os dançadores
Iam sair no pinote,
Mas o povo estava frio
Que só mesmo água de pote.
Não fosse o pé de Francisco
Movimento não havia.
Ao fim da segunda música
Apenas ele aplaudia.
Era a vez de usar a carta
Derradeira que trazia.
Olhei para o zabumbeiro
E sem maiores demoras
Sapequei o tal baião
Como alguém que dá de esporas.
Gastei tudo enquanto tinha
Sem pensar nos noves foras.
O povo foi levantando
Um a um, cada casal
Foi preenchendo o terreiro,
Sacudindo o areal.
De repente, era só dança
Que se via no quintal.
Pra você ver como foi:
Eu, que andava desprezado,
Sem aparecer em samba,
Toquei feito um condenado
Uma solfa atrás da outra,
Pra parente e convidado.
A coisa foi tão dum jeito
Que quase hora e meia após
Chegou o homem do fole
E se deu − aqui pra nós −
Que ninguém mais quis deixar
Ele tocar seus forrós.
Fui pra casa, aquele dia,
Depois de quebrar a barra.
A minha satisfação
Foi algo que ninguém narra.
Recuperei o prestígio
Na noite daquela farra.
Com muito sono nos olhos,
O apurado na carteira,
Cheguei em casa cansado,
Desenrolei minha esteira,
Deitei, agarrei no sono
Pensando na brincadeira.
Eu, que vinha duma noite
De descanso interrompido
Que desembocou em outra
Sem nenhum sono dormido,
Tirei direto, emendando,
Sem ver o sol engolido.
Quando foi na madrugada
Acordei de supetão.
Me levantei duma vez
Em total escuridão.
Quando acendi a candeia
Lá estava, de novo, o cão!
– Gilberto José, és rocha,
Só não tem nada com santo! –
Disse ele e caiu no riso
Ao perceber meu espanto –
Se acalme e vá se sentando
Nesse banco aí no canto.
– És mesmo “pedra noventa”,
Nunca tive aluno igual.
Gostei, aprendeu a música
De maneira magistral.
Tocou que caiu de novo
No gosto do pessoal.
– Seu talento é inconteste,
Porém, o meu é maior,
De maneira que consigo
Te fazer tocar melhor.
Com meus toques e macetes
Tu não derrama suor.
– Vamos, senta, sem receio,
Eu já disse pra que vim.
Hoje lhe dou outra aula,
Basta reparar em mim,
Que teu tempo de penúria
Agora chegou ao fim.
Ele pegou a rabeca
E começou a tocar
A mazurca que compus
De forma espetacular,
Mudando coisas que eu
Jamais ia imaginar.
Na sequência, o mesmo xote
Do dia do casamento
Ele interpretou também,
Mas dando novo ornamento.
Os floreados completos
Bem guardei no pensamento.
Mas deu-se que um sono forte
Foi tomando minha mente
Ao passo que ele tocava,
Como houve anteriormente.
Quando eu ia adormecendo
Ainda ouvi, fracamente:
− Dorme agora, rabequeiro,
Amanhã acordarás
Com maior desenvoltura.
Pra frente sempre andarás
Se depender dos auxílios
Desse amigo, Satanás!
− Dorme em paz. Em quatro noites
Volto pra te oferecer
O serviço mais completo
Que outro não pode prover
Por preço proporcional
Ao prestígio que vais ter.
Despertei com tais palavras
Ecoando em meus ouvidos,
Sabendo que o capiroto
Sempre cobra aos envolvidos
Com ele a tormenta eterna
No fogo dos desvalidos.
Durante o dia completo
O medo me dominou,
Porém, na boca da noite,
Quando a rabeca chorou
Naquela base do cão
A minha ideia mudou.
Estava tudo mais claro,
Mais leve e descomplicado.
Me sentia como nunca,
Estava desembestado!
Tocava divinamente
No escuro e de olho fechado.
Enquanto eu tocava em casa
Apareceu Punaré
Me saudando dessa forma:
− Louvado seja, Gilzé!
O homem que, pro meu gosto,
Pôs a rabeca de pé!
− Pra sempre seja louvado!
Só porque sou seu amigo
Não queira me engabelar
Dizendo coisa comigo.
Porém, um dia, quem sabe...
Isso é coisa que persigo.
Respondi feito galhofa,
Oferecendo a cadeira.
Ele disse: − ‘Tá de prosa,
Mas eu não fiz brincadeira;
Depois de ontem, no casório,
Tu não sobra pra quem queira.
− Quarta agora, Santo Antônio,
Vai ter fogueira em Seu Bel.
Ele mandou vir lhe ver
Pra cumprir o seu papel,
Porque “Gilzé na rabeca
É doutor sem ter anel”.
− Inda mandou perguntar
A quanto sai a tocada,
Pois somente passar pires
Pra você não vale nada.
Eita, prestígio da gota!
Eita, moral desgraçada!
Foi grande minha alegria.
Finalmente a situação
Dava sinais de melhora,
Chovia no meu torrão!
Estabeleci o preço
E firmei minha intenção.
Entre a rabeca e a roça
Alternei até a festa.
Na véspera visitei mãe,
Levei quantia modesta
Prometendo lhe dar mais
Um dia após a seresta.
Pedi a bença e voltei
Pra minha casa sozinho.
No trajeto eu refleti,
Pensando pelo caminho
Se acaso não estaria
Sendo por demais mesquinho.
Chegado o dia em Seu Bel
Fiz o samba pegar fogo!
Dançou gente nova e velha,
Foi o maior desafogo.
Dançou solteiro e casado,
Até galinha com gogo!
Mas o que me atentou mesmo
Foi a beleza sem par
Da prima de Josué
Que, no terreiro a dançar,
Vira e mexe aproximava
Fixando em mim seu olhar.
Seu nome era Deolinda.
Com ela ainda dancei
Duas solfas, visto que
Minha rabeca passei
À mão de outro rabequeiro
Que no baile eu encontrei.
Quando a festa terminou
Recebi meu pagamento
E já saí contratado
Para fazer outro evento
Logo no fim de semana,
No sítio de Antõe Sarmento.
Eu não tinha me esquecido
Que existia um compromisso
Marcado na madrugada.
Exatamente por isso
Tomei umas três lapadas
Para enfrentar o serviço.
Ao sair, por precaução,
Deixei a candeia acesa
E de longe percebi
Dentro de casa clareza.
Entrei espiando tudo,
Pus a rabeca na mesa.
Pela casa nem sinal,
Tudo estava inalterado.
Nisso, puxei a banqueta
E quando estava sentado
Vi que o saco da rabeca
Parecia esfumaçado.
Pra trás pinotei de susto,
Quase que me desaprumo.
A fumaça se adensou,
Surgiu do meio do fumo
O diabo, de olhos de fogo
Espiando no meu rumo.
Com um tremido das asas
Ele espalhou a fumaça.
Batendo palmas pra mim
Disse: − Não há quem desfaça
A glória daquele que
Escolhe por onde passa.
– Tua fama aqui no Brejo,
Como vês, recuperaste.
Hoje comanda teus passos
Por caminho que trilhaste.
Só a ti cabe ir além,
Ou parar, caso te baste.
– Comigo tens garantia
De não te faltar engenho,
Pois sendo teu professor
Terei sempre grande empenho
Em te ensinar novas técnicas,
Aumentar teu desempenho.
– O preço, deves saber,
Pro teu sucesso e conforto
Durante a vida completa,
Só pagas depois de morto:
Tocarás, pra todo o sempre,
No meu território torto!
Ao cabo dessas palavras
A cana perdeu efeito,
Me arrepiei por completo,
Batucou forte meu peito,
Logo imaginei que estava
Já na casa dos sem jeito.
Eu permaneci calado,
Com medo e muito confuso.
O coração galopava,
A cabeça em parafuso
Rodopiava e não vinha
Um pensamento concluso.
Ele então foi à rabeca
E começou a tocar.
Soou um xote arretado,
Pareceu familiar,
Até que enfim relembrei
De Deolinda a dançar.
Era a música que há pouco
Tinha o colega tocado
Para que nós dois dançássemos
De umbigo e rosto colado.
De repente, ao pensar nela,
Me senti encorajado.
Respirei fundo e falei:
– Minha vida tem seguido
Muito boa nesses dias.
Reencontrei o sentido,
Alegria e fé. Portanto
Diga qual o prometido.
– Muito bem, tu tens razão.
Que não fique duvidoso!
O nosso pacto prevê
Que tu serás virtuoso
E viverás com ventura
Até que sejas idoso.
– O resto da mocidade
Gastarás intensamente,
Gozarás maturidade
Da maneira mais decente.
Sempre serás mencionado
Na boca da tua gente.
Assim dizendo esperou
Até que lhe dei resposta:
– De viver feliz, amado,
Sei que não há quem não gosta.
Porém, a vela se apaga
Depois que a velhice encosta.
– Então todos têm em mente
Descansar repouso eterno,
Viver toda a eternidade
Com nosso Senhor superno.
Nesse caso eu ficarei
Pra sempre preso no inferno?
– Tudo fica ao teu arbítrio,
Pondera sobre o que tem.
Pra que eu venha é só querer;
Vou-me embora, pensa bem:
Pois presos vivemos todos,
Eu vivo preso também!
Ao concluir tais palavras
Tornou a desintegrar
Em fumaça e pelos efes
Da rabeca o vi entrar
Até que não restou fumo
Espalhado pelo ar.
Chegado o dia da festa
Parti para Antõe Sarmento
Com a rabeca na bolsa,
Deolinda no pensamento,
Uma frieza nas mãos
E no peito desalento.
Ia pensando na vida,
Sobre o que tinha mudado,
Sobre os derradeiros dias,
Como tinham melhorado;
Voltei a ser “Gilzé Pedro
Do Brejo do Reguengado”!
Ao chegar fui recebido
Com diversas saudações.
Todos ali me aclamavam
Dando felicitações.
Com pouco foi Punaré
Chegando com seus bordões.
− Chegue aqui, compadre velho,
Vamos pintar a caneca!
Venha logo e desensaque
Essa bendita rabeca,
Bote a bicha pra tocar
Que hoje a fogueira é de breca!
Eu, que estava meio mole,
Não correspondi ao nível,
No que ele foi me dizendo:
− Se alegre, será possível!
Tenho pra lhe dar notícia
Muito mais do que aprazível.
− Espie só: lá no canto,
Toda vestida de flor,
Deolinda da Marreca
Perfumadinha de amor.
‘Tão dizendo que ela veio
No rastro do tocador!
− Oxente, tá com conversa!?
Resmunguei tentando, em vão,
Esconder o meu semblante
De gozo e satisfação.
− Deixe disso e vamos logo
Tomar uma com limão.
No caminho da barraca
Das bebidas ele disse:
− Deolinda contou a Rosa
E pediu que não abrisse.
Mas essa deu com a língua
Que eu queria que tu visse.
− Rosa me contou que ela
Declarou-se apaixonada
E pra onde tu seguisse
Ela iria preparada
Pra ganhar teu coração
Até findar-se casada!
Eu tinha ganhado a noite
Com a nova de Francisco!
Tomei foi logo uma terça
Que fiquei meio trovisco.
Antes de ir pro terreiro
Me acendi que só corisco.
Dei um giro de cabeça
Até mirar Deolinda
Que àquela noite luzia
Com uma beleza infinda.
Era flor cujo botão
Não desabrochara ainda.
No sentido de ganhá-la
Me mandei para a função
Sentindo um fogo no espírito,
Cheio de disposição.
Peguei a rabeca velha
E descasquei um baião.
Botei pra voar as bandas
Logo na primeira dança
Que torei bem duas cordas
Se não me falha a lembrança.
A poeira subiu alta
Que encobriu a vizinhança.
Coloquei de volta as cordas
E danei a xotear.
Com solfa detrás de solfa
O povo pôs-se a dançar.
Mas no terreiro eu só via
Deolinda a transitar.
Depois duma hora e pouco
Da rabeca fazer samba
Parei para descansar
Moído, de perna bamba.
Botaram pra me render
Um tocador carimbamba.
Dedilhando um pé-de-bode
O cabra tocou insosso.
Como eu tinha o que fazer
Sem piscar lhe dei endosso.
Parti para Deolinda
Sem provocar alvoroço.
Cheguei sereno qual quê!
Puxei ela para a dança.
No passo dum xote manso
Fui ganhando confiança.
Ficamos juntos, dançando,
Até o fim da festança.
Aquela noite mudou
Para sempre a minha história.
Tornei-me mais confiante,
Ganhei coragem notória,
Passei a ser mais disposto,
Melhorei minha oratória.
Uns poucos dias depois
O meu desejo chamou
O professor das profundas,
Que logo me visitou.
Ainda melhor que antes
A rabeca ele tocou.
Aprendi diversas técnicas,
Descobri muito segredo.
Lembro dum tal de “piscado”
Tocado apenas de dedo.
Tinha também o trinado,
Bonito de fazer medo!
Assim fui tangendo a fama
Desde o Brejo até pra fora.
Quando a sanfona chegou
Ganhou tudo, sem demora,
Mas eu não sofri derrota
Nem vi chegar minha hora.
Continuei a tocar
Nas fogueiras, casamentos...
Inclusive, Deolinda
Deu-me os melhores momentos.
De filhos, netos, bisnetos,
Foram trinta e três rebentos.
Mas voltemos alguns anos,
Vou findar minha ventura;
Com o tempo fui sentindo
Cada vez mais amargura.
Quando pensava no inferno
Eu padecia de agrura.
Já na época madura,
Com mulher, filhos, saúde,
Satisfeito com a fama
Que me deu minha virtude,
Diante daquele acordo
Me contentar eu não pude.
Só pensava numa forma
De quebrar aquele encanto.
Quando vinha a agonia
Eu me escondia num canto
E, sem ninguém reparar,
Deixava correr o pranto.
Imagine uma prisão
Feita de castigo e dor
Onde, pela vida eterna,
Sofreria o pecador?
Pelo menos foi assim
Que ensinou Nosso Senhor.
E temendo ficar preso
Foi que tive uma visão:
Lembrei que quando ele vinha
Me ensinar nova lição
Emergia da rabeca
Pra fazer aparição.
Terminada a explicação
Novamente penetrava
Pelos efes do instrumento
E por lá mesmo ficava.
Imaginei “a rabeca
Era que o pacto guardava”.
Preparei uma coivara
Lá na extrema do terreno,
Levei quem me acompanhou
Desde quando era pequeno.
Era tarde, o sol se punha
E o vento soprava ameno.
Foi sentindo um grande aperto
Que a rabequinha deitei
Em cima das varas secas
E por fim fogo ateei.
Antes da chama subir
Pra casa, triste, rumei.
Fui me sentar lá no alpendre
Pra ver o fogo pegar.
Súbito uma labareda
Começou a crepitar
Que os estralos, de tão altos,
Fizeram foi me assombrar.
Subiram chamas vermelhas
Muito desproporcionais
Às varas que lá haviam
E rajadas infernais
De vento bateram portas,
Assanharam animais.
Deolinda saiu pra fora,
Com o meu braço agarrou-se
Mas tão rápido quanto veio
A ventania acabou-se.
As chamas também baixaram
Até que o fogo apagou-se.
Dali pra frente eu senti
Que estava desobrigado.
Comprei um novo instrumento
Bonito, bem acabado,
Mas fraco em termo de som –
Não dava aquele trinado!
Segui sendo contratado
Pra fazer “forró” e festa,
Sem nunca alcançar tocar
Como o de chifre na testa.
Foi mais tocador que eu,
Isso a mim ninguém contesta.
Uma saudade amuada
Vez em quando ainda vem.
Foi um grande aprendizado,
Coisa que só poucos tem.
Não fosse essa experiência
Eu hoje seria alguém?
G ozei a vida dum modo
I nofensivo e direito.
U sei o que tinha em mãos,
S em nunca fazer malfeito
E se você me maldiz
P elas escolhas que fiz
É por puro preconceito.
T ermina aqui meu relato,
A qui finda a narração.
R ecordei da minha vida
T ocando pelo sertão.
I nda hoje a mocidade
N o galope da saudade
I nvade meu coração.
Fortaleza, junho de 2016.
Eduardo de Menezes Macedo é poeta, xilógrafo e compositor cearense. Nascido na capital alencarina em 1978 e filho de pais interioranos, faz dos versos cordelísticos instrumento para cantar e entalhar o sertão que carrega na alma. Autor de diversos títulos, premiado pelo ministério da cultura em 2010 e, mais recentemente, vencedor do concurso literário do PAIC 2017 com o livro “A fantástica peleja entre Bode Ioiô e Boi Mansinho”, brande suas armas contra geradores eólicos pela honra da musa poética do cordel brasileiro.