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Foto do escritorRafael Torres

Conto sem título, e esse é precisamente o título do conto

Atualizado: 6 de mar. de 2021

O andar do caminhão era lento, lento. Por três razões: havia os buracos, o carregamento era extremamente sensível e o caminhão era ruim mesmo. Os buracos, Ezequiel não enxergava até estarem bem próximos, tudo o que via eram manchas escuras na estrada. Às vezes eram sombras, às vezes remendos no asfalto e outras, depressões perigosas. Era por isso que ele tinha que olhar a estrada com mais cuidado que o normal, observando cada uma daquelas manchas. Teve uma em que, não sabia por que, seu olho pousara por mais tempo. Se fosse um buraco, era uma verdadeira cratera, e ia até o acostamento.


Foi só quando ele se aproximou muito que percebeu que a mancha era escarlate. Mais perto, viu que era líquida. Enquanto passava por cima, refletia: seria sangue? Mas tanto sangue? Só um boi poderia ter deixado tamanho rastro. E quem arrastaria um boi para a mata? Era um boi ou uma pessoa... Agora que a mancha estava para trás, Ezequiel repentinamente lembrou: teria visto um sapato? Tinha quase certeza que sim. Aquilo estava muito estranho. O último carro a passar pela vista dele o fizera há mais de duas horas. Não era nada comum a estrada estar tão deserta, mesmo ali no sertão do Piauí. Era um sapato. Num rastro de sangue. Isso tudo correu na cabeça dele em poucos instantes, e ele já estava decidindo se parava ou não. Não tinha nada a ver com isso, mas lembrou-se da frase atrás do caminhão: "Deus no comando!". Sim, Deus pararia, com certeza. Ezequiel freou de uma vez. Tão de uma vez que ouviu um vaso se quebrar na carga. Soltou um palavrão pela metade, pois lembrou que Deus estava presente...


Quando desceu, além do calor assassino, notou que tinha trazido até aqui um rastro de sangue pelos pneus direitos. E que devia ter passado mais tempo refletindo do que se lembrava, pois estava a pelo menos trezentos metros da poça. Não dava pra dar ré e nem pra fazer o retorno. Trancou a cabine e abriu o compartimento de carga. Era incrivelmente escuro lá dentro. Diacho. Subiu e esperou um pouco até os olhos se acomodarem. Aos poucos foi percebendo que os primeiros estavam íntegros e foi andando até o fundo. E lá estava ele. Um vaso quebrado em dois. Era uma obra de arte. Trazia oito (agora sete) obras de arte. Naquela específica, havia a imagem de um homem branco carregando nos braços uma mulher negra aparentemente morta, com o pescoço quebrado. Lembrou imediatamente, não sabia por que, da lenda que conhecia desde pequenininho, e da música que a acompanhava. "Samba Lelê tá doente / Tá com a cabeça quebrada / Samba Lelê precisava / É de umas boas palmadas". Perguntou-se o porquê das palmadas, a pobre já ia com a cabeça quebrada. Mas o vaso... Dona Neide fora enfática até demais: cada vaso, de um artista famosíssimo, custava mais que o caminhão. Aliás, ele via agora, não eram vasos, eram potes decorativos. Enormes, passavam da sua cintura. Cada um embalado com vários travesseiros. Ele ainda pensou em levar a coisa pra fora, mas além de pesado, o destinatário fatalmente saberia que faltava um. Ô lasquêra! Foi quando lembrou do motivo de ter parado.


Ia, sim, andar aqueles 300 metros. Não teria quebrado o vaso por nada. Foi Deus. Ele, no volante, era responsável pelo pote. E, tendo freado, queria que Ezequiel cuidasse daquela mancha. Pois haveria de saber tudo sobre aquela mancha. Se morreu, o que morreu, como morreu e tudo.


Ia andando e o sol batucava na sua cabeça a melodia: "Samba Lelê Precisava / É de umas boas palmadas / Samba, samba ô Lelê / Samba, samba, samba ô Lalá"... Chegou na poça e se agachou. Era enorme. Uma pessoa precisava de um ferimento imenso para verter aquele tanto de sangue. Devia ser um boi. Ou um cavalo. Mas parecia ter sido arrastado mata adentro, quando, fosse um animal, tivesse sido arrastado, no máximo, até a beira da mata, e já estaria fora do alcance dos veículos. Ele suspirou: iria entrar naquela mata. Agora já não era o instinto religioso de ajudar. Era curiosidade. O que quer que fosse, já o fizera perder o emprego. Com resignação e total ignorância do que haveria de encontrar, entrou na mata seca e densa.


Havia um rastro de sangue e uma pequena trilha de galhos quebrados. Ezequiel caminhou, e caminhou tanto que, a cada vez que pensava em desistir, lembrava do quanto já tinha investido naquele pequeno mistério. Andou por mais de 3 horas, a trilha se esvaindo. Quando começou a escurecer foi que ele realmente se deu conta de que tinha que voltar. Estava morrendo de sede. Nem sinal de água por ali. Ele nem sabia que direção pegar, mas bastava voltar e encontrar a trilha de sangue.


Só que não a achou. Em vez disso, ficou andando até a sede realmente apertar. Já estava escuro e surpreendentemente frio quando ele sentou. Suas pernas doíam, só agora percebia. Ele bufava, de cansaço e medo. Não sabe quanto tempo se passou até que visse um pequeno ponto luminoso alaranjado. Um cigarro, pensou. Exausto, só conseguiu levantar após três tentativas. Como a luz permanecia, foi se esgueirando, machucando o já arranhado rosto, pela mata. Até que percebeu o que parecia ser um homem todo de branco fumando um cigarro de palha. Mas estava longe, e ainda se afastava. Ezequiel o seguiu, trôpego, por um bom tempo, até que sentiu que não iria mais resistir. Antes mesmo de se sentar, apagou.


 

Já não sabia mais onde estava, o que era o tempo, se dia ou noite. Aos poucos foi dando por si. A primeira coisa que notou foi o barulho de chuva, mas não sentia nenhum molhado. Depois, sentiu que estava amarrado a um pau na vertical, bastante coberto por corda, exceto a perna esquerda. Quando conseguiu abrir os olhos, viu um fogo. O que seria? Uma fogueira anormalmente grande. Estava em uma caverna. Em torno do fogo as pessoas, os seres, eram bizarros. Uma velha muito idosa; o homem de branco, ainda fumando; um casal lindíssimo de índios; dois cachorros; e uma gigantesca cobra: era enorme até mesmo para uma jiboia ou uma sucuri. Um pouco afastado jazia o corpo de uma mulher com a cabeça quase decepada. Voltou, na sua cabeça, a canção: "Samba Lelê tá doente / Tá com a cabeça quebrada"...


Ele, sem querer, soltou um gemido, e todos olharam para ele. A velha pegou um facão do chão e todos se aproximaram.


— O que querem? Quem são vocês? — Disse, ou ao menos pensou ter dito.


— Queremos que você se junte a nós — disse o índio.


— Vocês mataram ela?


— Ela? — Apontou a velha com a cabeça. — Ela não está morta.


Era impossível. Ela tinha um corte até a metade do pescoço. E não se movia.


— Ela vai acordar, no seu tempo. Ela já aceitou. — Disse alguém.


Foi então que ele percebeu que havia mais uma pessoa ali. Um homem de seus 50 anos, grisalho, com um terno sofisticado.


— Quem são vocês?


O homem se aproximou e o olhou no olho, tão perto que Ezequiel não conseguia focar.


— Sim, é ele — sorriu.


— Ele quem? O que é isso?


— Você saberá. Em breve será um de nós — disse o homem de branco.


Ezequiel olhou novamente para a mulher caída. Continuava inerte.


— Quer saber quem é ela? Samba Lelê. – Disse a velha.


Então Ezequiel compreendeu. Jamais saberia explicar o que entendeu, mas entendeu. Ainda perguntou.


— Você é artista, não é?


O homem acenou que sim.


— E eu, quem sou? — Ezequiel perguntou.


— Saci — a velha falou. E dizendo isso, ordenou aos cães que atacassem a perna de Ezequiel.


Continua...

Rafael Torres


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