Era impressionante que Euclides soubesse exatamente como caíra o avião, mas não soubesse como chegara àquela terra. Estava semienterrado, só as extremidades e a cabeça sobravam pra fora. Foi com muita dificuldade que se safou e se levantou. Estava inteiro. Até os óculos. E toda a roupa do corpo. Nada mais.
Aliás, tinha, sim. O xale que compara para sua mãe. Tinha chamado atenção de Euclides na lojinha do museu. A moça dissera que era um fino artesão de Lisboa. Quem sabe ela aceitasse como pedido de desculpas? Aliás, por que logo esse xale sobrevivera à tragédia?
Euclides estava seco, e o xale também, o que era estranho. Olhou em volta. Ilha deserta? Nada indicava que não ou que sim. Ele podia estar em pleno continente, a metros de alguma casa com piscina.
Opa! Não, não era ilha deserta, mesmo. Logo à frente havia um poço. Um belo e humano poço, com balde e cordinha. Estava com sede, caminhou, desceu o balde e o levantou pesado de água. Doce. Sorveu quase com felicidade.
Aquelas vidas todas. Lembrava de o avião ter pousado na água e quase imediatamente começado a afundar. Ele estava ao lado da porta de emergência, e simplesmente abriu e saiu. Lembrava de, no mar, ter chamado por alguém e da frustração intensa que sentiu quando viu um corpo, virado pra baixo, sem chance... Euclides soltou um grito, quase um uivo, e então, só lembra do branco. Nada. Acordara ali, uns bons 30 metros de areia entre si e o mar, e vizinho a um poço.
Mas também, era só isso. O poço, ele, xale, mar, areia e um mato verde, mais além. Ele não estava nem um pouco cansado, tinha que fazer alguma coisa. Agora, qual era o problema de Euclides? O problema é que ele era totalmente desorientado. Se entrasse demais na mata não saberia voltar praquele ponto específico. E aquele ponto específico tinha água.
Andou só um pouquinho. Só uns 20 metros mata adentro, e se sentiu mal. Não era medo, era uma coisa mais forte. Era ojeriza. Nojo. Ele só viu mais mata. Voltou resolvido a ficar ali mesmo. E, na volta, ainda achou o que comer. Um iguana, dando sopa. Não gostava muito de répteis, mas era o que tinha. Levou folhas, gravetos e voltou pro poço.
O que Euclides fez para sobreviver não é a questão. Ele fez, e sobreviveu. Mas depois de três dias já não aguentava mais. Iguana, água e a sensação de que podia estar a trezentos metros da civilização. Por que não entrava naquela mata? Era covarde?
Iria tentar. Vencer a repulsa. Olhou pra dentro da mata, o mais distante que podia ver, e sentiu um mal pressentimento. Era como se o destino mais terrível estivesse por ali. Mas ele já não tivera o destino mais terrível? O que podia ser pior que aquilo?
Pois ele foi. Chegou o mais longe que tinha ido, respirou, e foi além. O fato é que, mal começou, 300 metros, ele avistou a coisa mais inesperada. Uma caverna. Parou, olhou, espiou, e quis entrar. Era alguma coisa, alguma sutileza da caverna, talvez um cheiro. Que o fazia querer entrar. Foi adentrando lentamente, a luz ficando pouca, até que penumbra, até que só uma abertura lá longe. Foi quando ele se deu conta do que estava fazendo. Estava desviando do plano. Encontrar a humanidade. Devia voltar. Mas aí foi que aconteceu: sentiu uma mordida na sua mão, uma dor incrível, a luta para ver o que era que tinha feito aquilo, o desespero. E ele gritou, quase uivou. Conseguiu achar a saída e, de alguma forma, quando viu, já estava no poço.
A mão! Faltavam-lhe dois dedos. Logo da mão boa... Que porcaria! Que droga! Não podia acreditar. Saía muito sangue. Ele enrolou no xale e apertou com força. Não conseguiu deixar de soltar mais um grito. Uivo. Começou a passar mal até que se estirou no chão, inconsciente.
Acordou no outro dia, e com raiva. A excursão fora um desastre. Ele não sabia o que fazer. Aquilo ia gangrenar, apodrecer. Precisava ir atrás de cidade. Pegou o xale, os óculos e foi. Ficou aliviado ao perceber que não estava tonto. Na verdade, sentia-se invadido por um estranho vigor. Então, quando viu, estava em frente à caverna. Só que ele jurava ter tomado outro caminho... Tinha algo, um cheiro, um fascínio... Ele sentiu a enorme necessidade de saber o que o tinha ficado com um teco seu. O que quer que fosse era excelente caçador, não fizera ruído algum. Quem fizera fora Euclides. Aquele uivo não lhe saía da cabeça. Pois entrou.
E foi ficando escuro, escuro. Até que ele só via um pontinho ao longe. E então, aconteceu de novo. Dessa vez foi mordido na barriga. Arrancou-se um pedaço de carne. Gritou, correu para o poço e constatou que, embora saísse algum sangue, não tinha sido profundo. Catou um iguana, assou e comeu. Com água.
Tinha que matar a criatura, mas como? Ideia! Colocou uma pedra na ponta de um toco de madeira e atou com os cadarços e o xale, com muita dificuladade. O nome do artista ficara exposto. Euclides ficou curioso e leu... Mas sentiu algo muito estranho. Nem com muito esforço conseguiria pronunciar aquele nome, aquela palavra simples... Parecia a coisa mais improvável de dizer, até de pensar. Agora lembrava do desenho bordado. Um homem flutuando. Um espírito, um fantasma? O que o... o artista queria dizer com isso?
Quando sentiu que seu tacape estava seguro começou a se deslocar rumo à caverna. Olhou o iguana, no canto de sempre. Não importava quantos já tivesse pego, sempre aparecia um novo ali, no mesmo lugar. Aproximou-se da caverna, olhou, espiou, e entrou.
Nem tinha ficado totalmente escuro quando ele sentiu, no calcanhar, a mordida. Gritou. Lutou, girou seu tacape cego por todo lado, com tudo que tinha. Com força, veloz, pra baixo, pro lado. Até que sentiu que atingiu algo e ouviu a coisa caindo no chão. Pegara? Matara? Euclides ainda sacudiu a marreta pra todo lado, tentou buscar coisa no chão até que ergueu seu taco, em postura defensiva. E sentiu outra mordida, no peito. Uivou alto. A dor era insuportável. Mal pode correr, mas de alguma forma conseguiu atingir o exterior da caverna. Caminhou com muita dificuldade até o poço. Lavou as feridas. Bem profundas. Doía muito, mas conseguia andar.
Não tinha jeito. Não sentia que ia conseguir, mas tinha que pegar a criatura. Dessa vez Euclides nem esperou a dor passar. Nem sentiu quando já estava na boca da caverna. Dessa vez não levaria nada. Desfez o tacape e deixou tudo ali no chão: a pedra, o toco e o xale. Entrou na caverna sem medo. Sem nada. Quase nu.
Dessa vez teve que entrar mais ainda, de modo que não via mais a entrada. Estava no completo breu. A mordida, dessa vez, foi nas costas. Mas teve uma coisa: ele não gritou, não deu um pio, mas conseguiu ouvir o seu grito vindo de longe. O seu mesmo grito, seu uivo. Alguém o soltara por ele. Mas não pode pensar muito no assunto, perdeu os sentidos rapidamente.
A primeira coisa que ouviu foi o crepitar do fogo. Uma fogueira. Abriu os olhos e, lentamente foi discernindo as figuras que o cercavam, estirado no chão. Uma mulher muito velha, dois cachorros enormes, um homem sem uma das pernas, um homem negro de branco, um homem branco de negro, um casal lindo de índios, uma cobra imensa, com dois grandes olhos e dois cachorros gigantescos.
- Dá, dá, sim. – sorriu o homem de preto.
- Claro que dá, foi perfeito. – sussurou a índia.
- Dá o quê? - perguntou Euclides.
Lá longe ouviu-se um longo e desesperado grito.
- Esse grito é meu!
- Não é mais – homem falou suspirando – Não é mais seu. Mas você poderá vê-lo toda noite.
- De quem estão falando? O que será dele?
- Vai berrar, ué! Vai berrar pela eternidade.
- Onde ele está?
- Sabe, você esqueceu suas coisas na entrada da gruta. - disse a velha.
- Mas de noite vai poder tê-las. - falou o homem de preto.
- O que vai ser de mim? - implorou Euclides.
- Você é meu Corpo Seco.
- Mas o que é corpo seco?
- Pesquise, meu menino, tem muito livro por aí... – riu a velha.
- Com essas feridas, eu vou morrer!
- A gente não morre, rapaz. A gente não morre nunca! - e o cão arrancou-lhe mais um pedaço.
Euclides nada sentiu. Lá longe, alguma coisa soltou um longo uivo.
Continua...
Rafael Torres