Em 1803, Ludwig van Beethoven ainda era, de certa forma, um pacato cidadão morando em Viena, na Áustria, encantado com a Revolução Francesa e com Napoleão Bonaparte.
Acontece que em 1804 Napoleão proclamou-se imperador e Beethoven ficou revoltado. Simplesmente porque viu que era um déspota, não estava interessado nos ideais da revolução, mas no poder. Não que ele tivesse nada a ver com o imperador, mas tinha escrito uma sinfonia inteira e revolucionária em sua homenagem. Pois ele foi lá na partiura manuscrita e apagou o nome do homenageado com tanta força que rasgou o papel.
Além disso, a mente de Beethoven estava tumultuada pelo início da surdez, o que o levou a escrever o Testamento Heiligenstadt, já distribuindo seus bens e evidenciando sua tortura interna.
A Eroica (Heróica) é revolucionária em vários aspectos: temos muitos acordes dissonantes, ele reforça tempos exóticos, o próprio comportamento da música é inovador, trazendo um espírito de triunfo, uma aura épica, que ainda não se tinha visto na música até então.
Ao que parece, o compositor estava ciente do impacto dessas inovações. Houve um ensaio lendário em que os músicos quase se recusaram a tocar, e ele mesmo perdeu o ritmo em uma eção. Era considerada difícil de tocar, difícil de escutar, quase obcena. Mas ele insistia, regendo a estreia em agosto de 1804, na casa do seu patrono, o príncipe Franz Joseph von Lobkowitz, a quem a obra é dedicada.
A sinfonia marca a entrada de Beethoven em sua segunda fase (de três). A fase romântica, ou fase heróica, como é chamada. É considerada o marco inicial do romantismo na música. Foi composta logo depois da segunda, mas se despede do classicismo presente nesta de forma retumbante.
A orquestra pedida contém:
2 Flautas
2 Oboés
2 Clarinetes
2 Fagotes
3 Trompas
2 Trompetes
Tímpanos
Violinos 1
Violinos 2
Violas
Violoncelos
Contrabaixos
Consta que o príncipe contratou 20 músicos extra para a estréia.
A Obra
Abaixo, a Sinfônica da Rádio de Frankfurt (hr-Sinfonieorchester), regida por Andrés Orozco-Estrada.
I. Allegro con brio (20s)
Ela já começa com dois acordes como que mostrando seu caráter agressivo. Logo depois aparece o tema 1 nos violoncelos (23s). A frase dos violoncelos parece ser interrompida por uma nota dos violinos (28s), que leva a um desfecho inesperado. As madeiras repetem o tema 1 (36s), mas dessa vez sem a interrupção, indo para uma terminação mais previsível. E já temos nesses poucos segundos uma revelação do que vai acontecer nos próximos minutos. Repare nas acentuações rítmicas aos 46s. O tema 1 entra com mais vigor aos 59s.
Temos, então, uma transição nas madeiras (1m08s), depois outra (1m27s), nas cordas. Agora (1m48s) temos o segundo tema, bem contrastante, no clarinete. Na verdade, ele é bem distribuído pela orquestra. Aos 2m32s temos mais acordes acentuados e aos 2m37s, acordes repetidos como um martelar insistente. Aí, num súbito piano (2m59s), as cordas nos preparam para a repetição disso tudo, que começa aos 3m05s. Aos 3m18s repare na trompa natural que eles usam, sem pistos. É um instrumento que, se fosse esticado, atingiria uns 7 metros de comprimento.
O desenvolvimento começa aos 5m45s, num clima meio misterioso. Logo aparece um material da transição (6m). Aos 6m13s repare na entrada do tema 1 nos contrabaixos e violoncelos. A música parece que vai se complicando, com mais acentuações e mudanças de tonalidade. Aos 7m29s tem início uma seção medonha que culmina com o acorde mais estranho da música (7m59s). Depois disso, Beethoven achou por bem nos dar um novo tema (no meio do desenvolvimento, o que não é comum). Nos oboés, aos 8m08s. Aos 8m26s o tema 1 ameaça. Aos 8m50s, em vez de nos apresentar alguma ideia nova sobre o tema 2, ele reapresenta o tema 3 e o desenvolve.
A recapitulação tem início depois de uns tremulos em piano dos violinos. Aos 10m12s temos o tema 1, e mais uma vez, com um desfecho diferente. Temos as transições e o tema 2 aos 11m54s.
Temos, então, o coda, aos 13m01s com uma modulação. Ele ainda trabalha o tema 3 (13m28s). Ele também trabalha os outros temas, nem parece um coda. E acaba com os mesmos acordes com que começou.
II. Marcia funebre: Adagio assai (16m14s)
O segundo é uma marcha fúnebre. Nobre e dramática, sua forma é A-B-A. Seu tema 1 é ouvido logo no início, nos violinos em registro grave. O oboé o repete aos 16m48s. Aos 17m18s, os violinos introduzem o tema 2, menos langoroso e mais poderoso. Ambos terão influência por todo o movimento. Aos 18m17s o tema 1 volta, na subdominante. Agora, aos 18m43s, o tema 2 volta no oboé. Ouça o eloquente acorde nas madeiras, aos 20m15s.
Aos 20m50s tem início a parte B, que é bem mais serena, concedendo um certo alívio. É quase pastoral. Aos 22m39s começa uma modulação que nos trará de volta os temas da parte A (22m54s).
A escrita é sutil, mas muito bem elaborada. Temos um fugado belíssimo, começando aos 23m31s. Ele serve como desenvolvimento. Aos 25m27s, mais acordes dramáticos e uma cadência perfeita que leva ao começo do tema 1. Aí Beethoven endoida de novo (26m). Tudo muito atormentado e dividido. Até que o oboé restaura o tema 1 em sua completude (26m46s). O tema 2 volta aos 27m12s com um brilho escuro fora do comum. É incrível como esse movimento, assim como o anterior, se faz com pouco material, apenas desenvolvendo bem e alternando gestos. Repare, por exemplo, na seção quase jocosa que tem início aos 28m54s. E em como ela vai ganhando dramaticidade aos poucos até jorrar uma completa melancolia, antes de a música acabar.
III. Scherzo. Allegro vivace - Trio (32m02s)
Depois desses dois movimentos superpoderosos, não tinha muito como fazer o Scherzo brilhar. Mas ele faz o possível. É um inventivo movimento em que predomina a escrita absolutamente clara para a orquestra, alternando momentos de pianíssimo com fortíssimo.
O Trio começa aos 35m36s, com três trompas. Repare como, na trompa natural, a mão direita tem que se movimentar na campana para dar as notas na afinação correta. Aos 36m09s volta o Scherzo.
Existe um consenso de que estes dois últimos movimentos são mais fracos. Leonard Bernstein argumenta que isso é só porque os dois primeiros foram tão monumentalmente fantásticos. Concordo.
IV. Finale. Allegro molto - Poco Andante - Presto (37m58s)
O finale é um tema com 10 variações. Ele aparece aos 38m10s bem calminho em pizzicato nas cordas, com alguns arrebatamentos. A primeira variação é bem contrapontística, nas cordas, também, mas com arco. Na terceira variação o tema aparece nos baixos e uma segunda melodia começa a invadir, aos 39m43s, no oboé. Ela terá importância e será, inclusive, protagonista dos momentos culminantes do movimento.
Aos 40m23s temos mais um fugado, valendo como quarta variação, que tem consequências mais dramáticas. Depois a música segue alternando momentos turbulentos com outros mais triunfantes. Observe, aos 42m29s, a aparição do inocente tema 2. Ele domina a nona variação. Aos 44m28s temos uma lembrança do tema 2 do segundo movimento.
Na décima variação, a orquestra volta em tutti (todos os instrumentos) em mais um momento de grandeza. O coda é brilhante e enérgico.
Considerações finais
A Eroica é de uma importância grandiosa no desenvolvimento da história da música. Suas dimensões, suas alterações de humor, sua magnitude, sua orquestração, tudo transborda criatividade e a personalidade única de Beethoven. Começa o romantismo, com todas essas características, que seriam levadas às últimas consequências, de modo que, no final do século XIX, os compositores achavam que não tinham mais para onde expandir a música tonal, partindo para outras ideias, como o atonalismo, dando origem à música moderna.
Gravações importantes
Vou tentar ir além do óbvio aqui, o que significa que só vou mencionar as gravações lendárias de Herbert von Karajan, Otto Klemperer e Wilhelm Furtwängler. Pronto, mencionei. E são excepcionais.
- Erich Kleiber, com a Orquestra do Concertgebouw - De 1953, é a gravação clássica. Extremamente bem tocada e bem gravada para a época.
- Gustavo Dudamel, regendo a Sinfônica Jovem Simón Bolivar - É de 2012 e é uma das gravações mais convincentes e com o melhor som. Dudamel e sua excelente orquestra venezuelana fazem milagre.
- Claudio Abbado, com a Filarmônica de Viena - De 1987 e meio lerda, é uma das minhas gravações preferidas, com a Filarmônica tocando de modo excepcional.
- George Szell, regendo a Orquestra de Cleveland - Em seu auge, a paceria Szell/Cleveland fez algumas das principais gravações de Beethoven. Temos, por exemplo, os concertos com Leon Fleisher, que são definitivos. A Eroica, de 1957, não fica atrás, com uma virilidade impressionante.
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