Esta simpática sinfonia de Ludwig van Beethoven (1770-1827) parece a mais inofensiva das nove. É bucólica, campestre, matinal, vespertina. A única coisa que quebra sua paz é uma tempestade, que é seu 4º movimento. Mas na verdade, a única sinfonia descritiva de Beethoven, a Sexta, é uma verdadeira revolução. Primeiramente, por isso mesmo, por ser descritiva. Não era nem um pouco comum. Depois, pela orquestração magistral de que o compositor faz uso.
Ela opera, se tirarmos a tempestade, como uma sinfonia clássica: 1º - Rápido; 2º Lento; 3º Scherzo e 4º - Rápido. Mas entre o scherzo e o finale, tem ela, ficando a sinfonia com 5 movimentos.
A orquestração se destaca porque, mais do que nas sinfonias anteriores, Beethoven faz muito uso das madeiras, confiando-lhes, às vezes, temas inteiros. Além disso, ele usa efeitos para simular o vento, o canto de pássaros e até gotinhas de chuva. Não podemos comparar, em termos de textura, com uma orquestração de Berlioz, ou Tchaikovsky, estes vieram depois e, se orquestravam com maestria, é porque Beethoven tinha aberto o caminho.
Falar em caminho, o compositor adorava trilhas na natureza. Essa música é uma homenagem dele ao campo.
Falar em trilhas, foi usada quase completa no filme Fantasia (1940), de Walt Disney com Leopold Stokowski regendo a Orquestra de Filadélfia. Eles removeram algumas repetições, mas usaram todos os movimentos.
Muito surpreendente, também, é que ela foi composta juntamente com a 5ª Sinfonia, aquele rompante de fúria e triunfo que em nada lembra a serenidade e a calma da 6ª. É como um escritor trabalhar em dois livros altamente contrastantes ao mesmo tempo. Acontece.
A orquestra que se pede consiste em:
2 Flautas (1 Flautim no último movimento)
2 Clarinetes
2 Oboés
2 Fagotes
2 Trompas
2 Trompetes
2 Trombones
As cordas (Violinos I, Violinos II, Violas, Violoncelos e Contrabaixos)
Tímpanos
Abaixo, o regente Andrés Orozco-Estrada regendo a Sinfônica da Rádio de Frankfurt.
1º Movimento - "Despertar de sentimentos alegres na chegada ao campo" - Allegro ma non troppo
O primeiro movimento é em forma sonata. Beethoven deu títulos que deixam bem claras as suas alusões musicais. No entanto, ele costumava dizer que queria que a Pastoral fosse "antes uma expressão do sentimento do que uma pintura". Ou seja, ela é descritiva, mas também não dá pra pegar qualquer nota, ou mesmo tema, e aplicar-lhe uma imagem. Muitas vezes o que é retratado é só um estado de espírito. A própria forma sonata é usada de maneira muito (extremamente) orgânica, de modo que não pareça que foi talhada pelo compositor, e sim, sentida.
Já começa na exposição com o Tema 1 (23s) dando o ar da graça. Essa melodia (sobretudo as três primeiras notas dos violinos) vai ecoar por todo o movimento. Vamos observar o uso da fermata, que é o prolongamento da nota final de uma frase (28s). As violas repetem as quatro primeiras notas (29s) até que uma figura galopante faz um crescendo que leva ao tutti (todos os instrumentos) (1m01s) que reflete o acordamento desses sentimentos. A 1m30s temos o Tema 2. Viu como ele foi introduzido? Sutil e com charme. Esse tema vai passeando, primeiro nos violinos, depois nas violas, depois nos violoncelos, então nos contrabaixos, até que o clarinete, depois a flauta assumem. Tudo isso para nos dar a impressão de quê? De uma cascata. Não é genial?
Daí temos a repetição da exposição (2m43s). Essa repetição, antigamente, como as peças tinham que ser mais curtas para caber nos discos de vinil, ela era cortada. Na verdade, essa mania de cortar a repetição da exposição eu acho que tem a ver com o comprimento da obra para o vinil. Avançamos para o desenvolvimento aos 5 minutos. Um motivo galopante (inversão daquele primeiro) faz uma longa elaboração, que passa pelos violinos (5m13s), flautas (5m17s), oboés (5m24s) e vai crescendo até a orquestra fazê-lo em tutti (5m36s). Aí ela vai se fragmentando até virar duas notinhas no fagote, que o próprio fagote se encarrega de transformar numa lembrança do Tema 1 (5m51s). Isso se repete (5m58s) só que, dessa vez, quando a flauta faz seu trecho ela não empaca, mas continua fazendo mais do Tema (6m43s). Aqui (6m53) entra um desenvolvimento mais sério, com o Tema sendo tocado primeiro o fim, depois o começo. E em tom menor. Até que cai nos violinos, que elaboram uma frase graciosa (7m23s) que leva à recapitulação (7m27s), já com o Tema 1 se montando para o tutti (7m49s). O Tema 2 (8m22s) também reaparece e nos leva ao coda (9m35), anunciado pelo clarinete.
2º Movimento - "Cena no riacho" - Andante molto mosso
Iniciando aos 11m43s já com o Tema 1, quero que percebam como a melodia é hesitante, descrevendo os murmúrios de um riacho. É repetido aos 12m19s pelo clarinete e fagote. Perceba os trinados das cordas, sempre pontuando a música com o canto de passarinhos. O Tema 2 entra aos 12m49, nos violinos, repetidos pelo clarinete. Veja como, aos 13m27s o Tema 1 volta recheado de referências ao riozinho e os pássaros.
Aos 14m12s a flauta executa um teminha de fechamento que será visto mais adiante. Aos 15m39s, uma aparição em canon do fechamento do Tema 1. Aqui Beethoven optou por nos deixar, em vez de uma cantilena longa, com várias melodias fragmentadas, como ideias episódicas: a água, os animais, o clima... Aos 16m35s o oboé aparece lindo com o Tema 1, a flauta fazendo arpejos de contracanto. Depois a flauta assume e eles fazem um belíssimo dueto (16m57s). Aos 17m21s temos uma modulação importante. Ele brinca com os 2 temas, fazendo-os dar voltas no desenvolvimento. Aos 22m31s temos uma espécie de cadência, em que a flauta, o oboé e o clarinete vão fazer uma imitação de rouxinol, codorniz e cuco, respectivamente. Depois a orquestra se junta ao trio para terminar a seção.
3º Movimento - "Feliz reunião de camponeses" - Allegro
Aos 24m13s tem início o Scherzo da peça. As cordas começam imediatamente apresentando o Tema 1, descendente. Aos 24m41s o tema se revela grandioso num tutti. Aos 24m53s repare na resposta das trompas, e também nas próprias trompas. No vídeo eles estão usando duas trompas naturais, sem pistos. É um instrumento da época de Beethoven, quando uma trompa só podia tocar as notas da série harmônica a que se propunha (ela podia, através da mudança de tubos, mudar sua tonalidade, porém), enquanto que as de hoje podem tocar cromaticamente todas as notas. Aliás, algumas vezes durante o vídeo vocês vão ver os trompistas tirando os tubos para escorrer o vapor que se acumula no instrumento - não, não é saliva.
Aos 25m02s o oboé e o fagote fazem uma melodia que lembrava a Beethoven tanto os laendler (uma dança que precedeu a valsa) quanto as bandas (ruins) de camponeses que ele tanto conhecia. Isso serve de Trio.
Repete-se o Scherzo (25m45s) e o Trio (27m13s).
O Scherzo (27m56s) é repetido tranquilamente e alegremente até que é subitamente interrompido (29m07s). Os pastores pressentem uma tempestade, e as primeiras gotas já caem.
4º Movimento - "Trovão, tempestade" - Allegro
Os contrabaixos em ppp são os trovões à distância, e os ventos. Os violinos e as madeiras vão fazendo crescer a ameaça até que ela explode num terrível relâmpago, num tutti (29m36s) - e só aqui é revelado que a orquestra tem trombones e trompetes. Além de tímpanos. Aqui ele simula tudo, a chuva (29m57s), os trovões (30m07s), gente chamando (30m42s) e o vento (31m22s). Esse movimento é pura criatividade musical.
Mas a tempestade passa logo, os últimos trovões ficando pra trás (32m22s).
5º Movimento - "Canção dos pastores. Sentimentos de graça após a tempestade" - Allegretto
Sem interrupção, com um espreguiçar da flauta (32m50s) começa o maravilhoso finale. O clarinete (32m54s) toca um tema que lembra um ranz des vaches, um chamado de pastores aos seus animais. A trompa imediatamente responde e isso dá origem ao nosso Tema 1 (33m08s) nos violinos. Repare nas gotas que sobraram da chuva nos violoncelos, nesse trecho. Os segundos violinos repetem o iluminado e inspirado tema (33m26s) e ele vai crescendo até que atinge toda a orquestra. Esse tema vai ser apresentado como um rondó-sonata: aparece e é seguido pela exposição; aparece (35m07s) e é seguido pelo desenvolvimento (35m41s); aparece (37m02s) e é seguido pela recapitulação. E finalmente vem o coda (41m25s). Termina reafirmando o acorde de fá. Termina de maneira mais sutil que qualquer outra sinfonia de Beethoven.
Considerações finais
A estreia teve alguns problemas. Como era difícil agendar uma sala em Viena em 1808, ele aproveitou quando conseguiu para estrear a 5ª e 6ª Sinfonias, o 4º Concerto para Piano e outras obras. Foi um concerto de 4 horas, e o público não gostou muito. Mesmo sendo seu querido Beethoven, e mesmo sendo no começo do século XIX, era longo demais.
Mas com o tempo se tornou uma das mais queridas sinfonias do repertório, e influenciaria, como falei, Hector Berlioz (1803-1869) na sua Sinfonia Fantástica, fascinado pela ideia de música descritiva e pelo uso da orquestra para efeitos.
Gravações recomendadas
Tentei excluir as gravações pertencentes a integrais de Beethoven, mas não consegui. Nenhuma das sinfonias de Beethoven é mais gravada que as outras, os regentes fazem, em muitos casos, mais de uma vez, a gravação do conjunto das 9 Sinfonias. Existem infinitas versões maravilhosas. Então eu vou listar aquelas com que tenho uma relação afetiva.
- Otto Klemperer, com a Orquestra Philharmonia - De 1958. Klemperer é lento, sempre foi. Mas ao mesmo tempo, tem uma força motora, algo carregando a música para frente. Além disso, faz a orquestra tocar com toda a serenidade que a música pede. Pra mim é a versão definitiva.
- Claudio Abbado, com a Filarmônica de Viena - Lá pelos 15 anos, eu ganhei um CD do Claudio Abado regendo a Pastoral, numa gravação ao vivo de 1987. Eu estava acostumado com Bernstein, que me parecia que queria que a música acabasse logo. Quando eu ouvi essa, fiquei impressionado com a lentidão, especialmente no primeiro movimento. E com como essa lentidão não era enfadonha. Certamente não é como se tocava à época de Beethoven, mas é lindo. Você vai encontrar nesse link.
- Mariss Jansons regendo a Sinfônica da Rádio Bávara - Simplesmente impressionante. Eles tocam muito bonito, é uma das maiores orquestras do mundo. De 2013, é uma versão bem moderna. A combinação Jansons + Sinfônica da Rádio Bávara rendeu muita coisa boa. Ele era um regente espetacular.
- Christopher Hogwood, com a Academy of Ancient Music - Quando eu ganhei a minha primeira caixinha com as 9 Sinfonias, foi a de Hogwood. E, como sempre, a Pastoral era uma das que mais me interessavam. A versão, de 1988, é lépida, mas não a ponto de ser apressada. Os instrumentos solistas são excelentes.
- Carlo Maria Giulini, com a Filarmônica de Los Angeles - Essa versão é iluminada e sadia. O primeiro movimento começa mansinho, até que explode lindamente no tutti. É de 1980. Ao lado da de Klemperer é considerada obrigatória na coleção de qualquer um.
- André Cluytens regendo a Filarmônica de Berlim - É uma versão mais durona da música. Mas claro que Cluytens, com a sua sensibilidade imensurável, sabe também tirar leveza da Filarmônica de Berlim quando acha que cabe. Gravação de 1960, som muito bom.