Por Rafael Torres
Venho apresentar uma obra instrumental do compositor germânico Johann Sebastian Bach (1685-1750), o pai de todos os músicos (e pai, mesmo, de um bocado). Trata-se de uma peça para Órgão, chamada Passacaglia e Fuga em Dó Menor, BWV 582. Bach era um organista prodigioso, muito mais famoso por essa função do que pela de compositor. E sua obra para Órgão é vastíssima.
A Passacaglia e Fuga é obra de inspiração sobrenatural, comparável àquela da Chaconne em Ré Menor, para 1 Violino. Ou da Missa em Si Menor, ou da Paixão Segundo São Mateus. É uma obra infinita, que você, por mais que contemple, não esgota.
Passacaglias e Chaconnes são formas com histórico e formato final muito parecidos.
Passacaglia: composição em compasso ternário, cuja principal característica é o fato de toda a elaboração musical estar sujeita a uma sequência de baixos (conjunto de notas graves, repetido sucessivamente, que pressupõem ou, ao menos, sugerem uma harmonia). O que denuncia claramente que a música se trata de uma Passacaglia é justamente o caráter repetitivo de sua sequência de baixos.
Chaconne: com significado virtualmente igual, inclusive o compasso em três tempos, tende a ser construída sobre uma sequência de acordes, em vez de baixos. Estes não deixam dúvida sobre qual é a harmonia, pois são eles mesmos e suas interações que a constroem.
Mas a principal característica das duas formas é que progridem de uma maneira que lembra a de Variações (do formato Tema com Variações). Mas ao contrário das Variações, não existe, na Chaconne e na Passacaglia, um Tema. São variações sobre o nada. E, em alguns casos, sobre tudo.
No Tema Sobre Variações ainda existe, geralmente, algum elemento comum entre variações avizinhadas. Na medida em que a música progride, essas relações são cada vez mais borradas e seu vínculo cada vez mais tênue. Já na Passacaglia e na Chaconne, esse vínculo, se existir, é breve e não progressivo.
Há, ainda, outras derivações do Tema com Variações. Famosamente, a Rapsódia, que não precisa ter nada a ver com Variações, mas, quando tem, como no caso da Rapsódia Sobre um Tema de Paganini, de Sergei Rachmaninoff (o tema é de Paganini, trabalhado por Rachmaninoff), a música fica livre a fazer o que quer do seu tema. Na altura da famosa variação 18, já nem o temos mais, mas sua gloriosa inversão.
Pois bem, dessa forma, os compositores realmente habilidosos, como Bach, conseguem dar à música uma boa unidade, um certeiro organismo. Você verá que, por vezes, a cada nova seção, uma certa tensão vai se fazendo sentir. E a mesma tensão é quebrada de súbito, surpreendendo o ouvinte com uma passagem mais leve.
Primeiramente, acompanhe boas versões que se podem encontrar no YouTube.
Como a de Reitze Smits, da Sociedade Bach da Holanda, ao Órgão.
Ou a de Andrew Litton regendo a Royal Philharmonic Orchestra, na orquestração de Ottorino Respighi.
Por fim, num consorte de Violas da Gamba, no angelical som do conjunto apresentado pelo Early Music Alberta.
A Obra
A Passacaglia e Fuga em Dó Menor é, teoricamente, já que a datação não é possível, uma obra da juventude de Bach, entre seus 21 e 28 anos de idade. Nessa época ele morava em Mühlhausen, onde havia obtido o emprego na Blasiuskirche (Igreja de São Brás), como organista. Mühlhausen lhe oferecia um melhor salário que o de seu período anterior, em Arnstadt, além de músicos e cantores mais capacitados e, talvez ainda mais importante, a presença de sua prima em segundo grau, Maria Barbara Bach. Que já era Bach. Quando casaram, meses depois da chegada do compositor à cidade, ela apenas manteve o nome.
Isso foi no período anterior ao de Köthen, meu favorito. Em 1708 ele vai (pela segunda vez) para Weimar, onde permanece até 1817, que é quando assume o cargo em Köthen (1717-1723). Nesses anos, Maria Barbara morre e Sebastian casa com a jovem soprano Anna Magdalena. Daí, parte para Leipzig, em seu último e mais conhecido período, da Paixão Segundo São João, da Paixão Segundo São Mateus, dos Oratórios de Natal, de Páscoa e da Ascenção, da Missa em Si Menor e até das Variações Goldberg.
Em Leipzig ele permaneceu até a morte, em 1750, deixando uma penca de filhos (10), muitos deles músicos importantes, e a viúva, também musicista, Anna Magdalena Bach.
A Passacaglia e Fuga, como o nome diz, contém uma Fuga, apresentada sem nenhuma pausa, e que responde por pouco menos de metade comprimento da obra. Trata-se de uma Fuga Dupla, em que o compositor habilmente aproveita a primeira metade do ostinato da Passacaglia como seu Primeiro Sujeito (como é chamado o Tema da Fuga) e a segunda metade como Segundo Sujeito. Há, ainda, um Contra-Sujeito, de importância similar à dos dois Sujeitos. Eles aparecem algumas vezes ao mesmo tempo, sobrepostos. Por exemplo, Sujeito 1 na Segunda Voz, Sujeito 2 na Terceira Voz e Contra-Sujeito na Primeira Voz. Ao mesmo tempo. Quando isso ocorre novamente, de os três sujeitos serem ouvidos juntos, eles já não estão na mesma combinação de vozes, fazendo dessa Fuga uma Fuga com Permutação.
São termos técnicos, não essenciais para a apreciação, mas eu os revelo a fim de atiçar a curiosidade de alguns de vocês para que pesquisem sobre o assunto, dando início à cadeia do conhecimento.
Mais sobre as formas Passacaglia e Chaconne
A Passacaglia originou-se no século XVII, na Espanha, país que também lhe emprestou o nome, formado pelas palavras Pasa (atravessar, passar) e Calle (rua). Isto é: com certa velocidade, como o caminhar usado para se a atravessar uma rua.
Iniciou-se como um interlúdio instrumental a ser tocado entre Árias (cantadas). A Chaconne, que, embora adotemos o nome francês, também é espanhola, originalmente era um ritmo forte e alegre, tocado por Violões e Castanholas. Apesar desse berço espanhol foi na Itália que ambos gêneros ganharam características e convenções formais, como a de se basear em uma harmonia ou baixo repetidos, em ostinato (palavra italiana para obstinado, teimoso).
Já no tempo de Bach, os dois termos haviam perdido a distinção e eram usados indistintamente. Havia, apenas, a vaga noção de que a Chaconne era mais leve, em tom maior (mas a de Bach, que já vimos, é em tom menor), e a Passacaglia era mais lenta, grave, em tom menor.
Devo admitir que enxergo em Passacaglias e Chaconnes uma certa pensão ao enigmático. Uma majestade inerente, talvez. Cheguei a pensar que, para parecer genial, bastava ao compositor criar uma delas. Mas vejam o caso do compositor Romântico norueguês Johan Halvorsen (1864-1935): sua Passacaglia e Sarabanda sobre um Tema de Händel é uma peça virtuosística, para apenas um violino e uma viola, sem qualquer comprometimento em manter a mística da forma. O próprio Barroco Georg Friedrich Händel (1685-1759), em sua Suíte para Teclado Nº 7, incluiu uma Passacaglia (a mesma que inspirou Halvorsen) que, se é bonita, parece não sair do lugar. Parece seguir uma fórmula um tanto vulgar de se fazer variações, além de seguir uma harmonia óbvia. É justamente então que triunfa Sebastian Bach. Sua música, presa ao obstinado baixo, que jamais irá mudar, consegue ter movimento, peso e uma narrativa (peço desculpas por essa e pelas próximas vezes em que usarei o termo ‘narrativa’: é muito caro à música) irresistíveis. Sem contar que a sequência de baixos que ele criou é riquíssima, abrindo possibilidades criativas e exóticas.
Mesmo com a tentativa apenas bonitinha de Händel, a Passacaglia já era levada à sério demais, desde muito antes, no tempo do proto-barroco pelo italiano Girolamo Frescobaldi (1583-1643). Sozinho, ele praticamente reformulou o gênero espanhol, atribuindo-lhe características essenciais, como a quase obrigatoriedade de a música ser em compasso ¾, ou seja, com três tempos por compasso, a repetitividade do baixo e a semelhança, na progressão melódica, com a da Variação.
Ao lado da de Bach, a Passacaglia mais célebre e poderosa que conhecemos é a que faz o último movimento da Sinfonia Nº 4, em mi menor, de Johannes Brahms (1833-1897).
Celebrada quase universalmente (até mesmo pelo moderno Arnold Schoenberg, que considerava Brahms um antiquado), desde que foi apresentada, muito já foi dito sobre ela: “sombriamente intelectual” (maestro Constant Lambert), “é como um poço escuro; quanto mais se olha para ele, com mais força as estrelas brilham de volta” (Eduard Hanslick, crítico musical radicado em Viena, contemporâneo de Brahms), “uma das maiores obras orquestrais desde Beethoven” (Donald Tovey, musicólogo inglês) etc.
Essas duas peças, as Passacaglias de Brahms e de Bach, sintetizam a súplica humana ante a morte. Ou algo parecido.
A propósito, quando se diz a Passacaglia de Bach, é a essa que estamos a nos referir. O mesmo vale para a de Brahms.
Gravações sugeridas
Karl Richter – ao órgão; Gravada em 1978 e lançada em CD triplo dedicado a Bach, em 2005, é delicada e cuidadosa. Extremamente musical, é a que recomendo dentre as originais ao órgão, talvez ao lado da de Werner Jacob.
Orquestra de Filadélfia, regida por Yannick Nézet-Séguin, na orquestração de Leopold Stokowsky; Em 2013 a Orquestra de Filadélfia e seu maestro Yannick Nézet-Séguin lançaram o CD Stravinsky Stokowski - The Rite Of Spring / Bach Transcriptions, com algumas das famosas transcrições do antigo titular da Orquestra.
Orquestra Filarmônica da BBC, regida por Leonard Slatkin; A orquestração de Ottorino Respighi é mais certeira. Feita por um compositor, em vez de um regente. A Filarmônica da BBC está ótima. Tão boa quanto esta é a de Gerard Schwarz e a Sinfônica de Seattle.
Risto Lauriala, ao piano, na adaptação de Eugéne D’aubert. É uma transcrição muito bem feita, das mãos de um especialista. A gravação, do pianista finlandês Risto Lauriala, de 1996, é moderna e tem um som excelente.
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