Maurice Ravel foi o grande ser humano orquestrador. Orquestrar é a arte de escrever ou reescrever (transcrever) uma música especificamente para orquestra e com todos os desdobramentos disso. Saber que dois oboés não soam com o dobro da potência de um só; que, naquele registro, com os violinos tocando Mezzo Forte, a flauta só vai soar se tocar muito forte; que os trombones não soam bem tão próximos (as notas tão próximas), exceto exatamente naquele ponto; que um instrumento fica estridente aqui, outro, desnecessário, porque não vai aparecer...
Eu amo orquestração. Mas, embora na faculdade tenham sido 4 semestres, não a domino perfeitamente.
Ravel dominava tanto que os outros compositores o invejavam. Tem a famosa história de George Gershwin, que, em visita a Paris, queria aulas com Ravel. Este teria dito "O senhor já não é um compositor de sucesso?", ao que Gershwin responde que sim. "E quanto o senhor ganha por ano?", perguntou Ravel, "1 milhão de dólares", ouviu e retrucou "Então você é quem deveria me dar aulas!". Essa história é duvidosa (mas pode ser que tenha acontecido). Muito mais plausível é que Ravel tenha se recusado a ensinar Gershwin por medo de que, com muitas aulas teóricas, o compositor perdesse seu dom natural para a melodia. "É melhor ser um bom Gershwin que um mal Ravel!", isso ele disse mesmo.
Pra mim, o apogeu da sua arte foi o balé Daphnis et Chloé, de 1912. Como os balés eram muito longos, os compositores extraíam trechos deles para fazer uma versão de concerto (sem a dança, tocada na sala de concerto). Ele extraiu 2 suítes de Daphnis et Chloé, e a Segunda, justamente a mais conhecida, mostra o potencial de criação de um compositor que usava a orquestra como um infinito leque de cores. Com notas longas e outras extremamente curtas, de maneira que o que cada instrumento faz individualmente é ininteligível, ele parece tecer gesto a gesto um monumental movimento. Um balé.
Escutem só a peça: começa com uma longa e majestosa descrição musical de uma alvorada. São 3 movimentos, mas eles são interligados, você vai pensar que é um movimento só. Tem o amanhecer; tem uma intervenção de Pan, na flauta (07m30s, aos 10m05s vocês podem ouvir uma escala descendente que passa por 4 flautas como se fosse uma só) e tem a dança final (12m24s), com todos os personagens, na qual ele emprega vastamente as percussões. A orquestra, nesse caso, a Filarmônica de Berlim, sob a regência de Simon Rattle, toca avassaladoramente.
- A orquestra pedida é enorme e, em muitas gravações, mesmo da Suíte Nº 2, usa-se ainda um coro (sem palavras), que está presente no balé original. Mas as gravações que eu prefiro são geralmente sem coro.
- O balé foi encomendado por Sergei Diaghilev, dos Ballets Russes, o mesmo que encomendou a Sagração da Primavera no ano seguinte, 1913.
- O compositor, conhecido por ser extremamente metódico, demorou 3 anos para entregar a partitura.
- No auge da alvorada temos um acorde sublime (04m40s), que Ravel, blasé, insistia: "É apenas um Ré Maior acrescido de Sexta". Pode até ser, mas eu pego meu violão, toco um Ré com 6ª e não soa assim, não.
- Ele era tão bom nisso, que tem uma peça, o Bolero, que é praticamente um exercício de orquestração, que ele não gostava e que hoje é famosíssima.
- Era considerada dificílima de dançar.
- Pierre Monteux, o mesmo maestro que estrearia a Sagração da Primavera, regeu a estreia e tem gravações da obra.
Gravações recomendadas: Orquestra de Paris (Orchestre de Paris), regente: Daniel Barenboim (Suíte Nº 2) - Orquestra de Paris, regente: Semyon Bychkov (Suíte Nº 2) - Orquestra Sinfônica de Londres (London Symphony), regente: Pierre Monteux (balé completo)